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Ficha Técnica

Título original: Falcó


Autor: Arturo Pérez-Reverte
Adaptação da capa: Carlos Miranda
Capa original: Penguin Random House Grupo Editorial
Imagem da capa: David Sutherland/Getty Images
ISBN: 9789892340326

Edições ASA II, S.A.


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ARTURO PÉREZ-REVERTE
FALCÓ
TRADUZIDO DO ESPANHOL POR
CRISTINA RODRIGUEZ E ARTUR GUERRA
Não acredito nos que têm uma casa, uma cama,
uma família e amigos.
Charles Plisnier, Passaportes Falsos
O inferno, na realidade, é um poderoso estimulante.
John Dos Passos, The Best Times
Apesar de documentado com factos reais, Falcó é um romance cuja trama
e personagens são imaginárias. O autor alterou certos pormenores históricos
secundários consoante as necessidades da ficção.
1

COMBOIOS NOTURNOS
A mulher que ia morrer estava a falar há dez minutos na carruagem de
primeira classe. A sua conversa era banal, intranscendente: a temporada
em Biarritz, o último filme de Clark Gable e Joan Crawford. Só referira a
guerra de Espanha de passagem, em duas ocasiões. Lorenzo Falcó ouvia-a
com um cigarro meio consumido entre os dedos, uma perna cruzada sobre a
outra, procurando não pressionar demasiado o vinco das calças de flanela.
A mulher estava sentada junto à janela, por onde a noite desfilava, e Falcó
encontrava-se no extremo oposto, junto à porta que dava para o corredor da
carruagem. Estavam sozinhos no compartimento.
– Era Jean Harlow – disse Falcó.
– Desculpe?
– Harlow. Jean... A de Mares da China, com Gable.
– Oh.
A mulher olhou para ele sem pestanejar, três segundos mais do que o
habitual. Todas as mulheres concediam a Falcó pelo menos esses três
segundos. Ele ainda a estudou durante uns instantes, apreciando as meias de
seda com costura, os sapatos de boa qualidade, o chapéu e a mala no banco
contíguo, o vestido elegante da Vionnet que contrastava um pouco, aos
olhos de um bom observador – e ele era-o – com o físico vagamente vulgar
da mulher. A afetação também era um indício revelador. Ela tinha aberto a
mala e retocava lábios e sobrancelhas, aparentando umas maneiras e
educação que na verdade não tinha. A cobertura dela era racional, concluiu
Falcó. Elaborada. Mas muito distante de ser perfeita.
– E o senhor também vai para Barcelona? – perguntou ela.
– Sim.
– Apesar da guerra?
– Sou um homem de negócios. A guerra dificulta a uns e facilita a outros.
Uma fugaz sombra de desprezo, imediatamente reprimida, toldou os
olhos da mulher.
– Compreendo.
Três carruagens mais à frente, a locomotiva emitiu um longo apito, e o
matraquear dos bogies intensificou-se quando o expresso entrou numa
curva prolongada. Falcó olhou para o Patek Philippe no seu pulso esquerdo.
Faltava um quarto de hora para que o comboio parasse cinco minutos na
estação de Narbonne.
– Desculpe – disse ele.
Apagou o cigarro no cinzeiro do braço do seu banco e pôs-se de pé,
alisando as abas do casaco depois de ajustar o nó da gravata. Deu uma
pequena olhadela à mala de pele de porco usada que estava com o chapéu e
a gabardina na rede para a bagagem por cima da sua cabeça. Não tinha nada
lá dentro, exceto uns livros velhos para lhe dar um pouco de peso aparente.
O necessário – passaporte, carteira com dinheiro francês, alemão e suíço,
um tubo de cafiaspirinas, cigarreira de tartaruga, isqueiro de prata e uma
pistola Browning de calibre 9 mm com seis balas no carregador – trazia-o
consigo. Levar o chapéu podia despertar as suspeitas da mulher, por isso
limitou-se a pegar na gabardina, dirigindo um pesado e silencioso adeus ao
impecável Trilby de feltro castanho.
– Com licença – acrescentou, abrindo a porta de correr.
Quando olhou para a mulher pela última vez, antes de sair, esta tinha
virado o rosto para a noite exterior e o seu perfil refletia-se no vidro escuro
da janela. Falcó dedicou o último olhar às suas pernas. Eram bonitas,
concluiu ele, equânime. O rosto não era grande coisa e devia muito à
maquilhagem, mas o vestido moldava formas sugestivas e as pernas
confirmavam-nas.
No corredor havia um homem de baixa estatura, vestido com um
sobretudo de pelo de camelo, sapatos de duas cores e um chapéu preto de
aba muito larga. Tinha os olhos saídos e uma vaga parecença com o ator
americano George Raft. Quando Falcó parou a seu lado com ar casual,
sentiu um cheiro intenso a gel para o cabelo misturado com perfume de
água de rosas. Quase desagradável.
– É ela? – sussurrou o homenzinho.
Falcó confirmou ao mesmo tempo que tirava a cigarreira e punha outro
cigarro nos lábios. O do sobretudo fez um trejeito com a boca, que era
pequena, rosada e cruel.
– De certeza?
Sem responder, Falcó acendeu o cigarro e continuou o caminho até ao fim
da carruagem. Ao chegar à plataforma virou-se para olhar para trás, e viu
que o indivíduo já não estava no corredor. Fumou apoiado na porta da casa
de banho, imóvel junto ao fole que unia a carruagem à seguinte, ouvindo o
matraquear ensurdecedor das rodas nos carris. Em Salamanca, o Almirante
tinha insistido muito em não ser ele a resolver a parte tática do assunto. Não
queremos queimar-te, nem arriscar nada se alguma coisa correr mal, fora o
ditame. A ordem. Essa mulher viaja de Paris para Barcelona, sem escolta.
Limita-te a encontrá-la e identificá-la e depois sai de cena. Paquito Araña
encarregar-se-á do resto. Já sabes. Com o seu jeito subtil. Ele dá-se bem
com esse tipo de coisas.
Ouviu-se novamente o apito à cabeça da composição. O comboio
diminuía a velocidade e começava a ver-se luzes que passavam cada vez
mais devagar. O matraquear dos bogies tornou-se pausado e menos rítmico.
O revisor, fardado de azul e com o boné na cabeça, apareceu na outra ponta
do corredor, anunciando «Narbonne, cinco minutos de paragem», e a sua
presença alertou Falcó, que o observou, tenso, enquanto se aproximava e
passava diante do compartimento que tinha abandonado. Mas nada chamou
a atenção do revisor – o previsível era que Araña tivesse fechado as cortinas
– que passou junto de Falcó depois de repetir o «Narbonne, cinco minutos
de paragem», e dirigiu-se pelo fole para a carruagem seguinte.
Havia pouca gente na gare: meia dúzia de viajantes que saíam do
comboio com as suas malas, um chefe da estação de boné vermelho e
candeeiro na mão que caminhava sem pressa em direção à locomotiva e um
gendarme de ar aborrecido, coberto com capa curta, que estava perto da
porta de saída, de mãos cruzadas atrás das costas e os olhos fixos no relógio
pendurado no alpendre, cujos ponteiros marcavam as 0h45. Enquanto ia
para a saída, Falcó lançou um breve olhar à carruagem que acabava de
abandonar: pelo lado do corredor, via-se que as cortinas do compartimento
onde a mulher se encontrava estavam fechadas. Nesse mesmo olhar reparou
que Araña também tinha saído do comboio pela porta de outra carruagem e
avançava meia dúzia de passos atrás dele.
Na cabeça da composição, o chefe da estação balançou o candeeiro e fez
soar um apito. A locomotiva deixou escapar um resfolegar de vapor e pôs-
se em marcha, arrastando o comboio. Nessa altura, Falcó já entrava no
edifício, atravessava o vestíbulo e saía para a rua, sob o brilho amarelado
dos candeeiros que iluminavam uma parede coberta de cartazes
publicitários e um automóvel Peugeot junto da beira do passeio, um pouco
para lá da paragem de táxis, ali onde se supunha que devia estar. Falcó
parou por uns momentos, precisamente o tempo necessário para que Araña
o alcançasse. Não precisou de se virar, pois a proximidade do outro foi
anunciada pelo seu inconfundível cheiro a gel capilar e água de rosas.
– Era ela – confirmou Araña.
Ao mesmo tempo que dizia isto, passou a Falcó uma pequena carteira de
pele. Depois, com as mãos no bolso do sobretudo e o chapéu inclinado
sobre os olhos, o homenzinho caminhou com passinhos curtos e rápidos por
entre a vaga luz amarelada da rua até se perder nas sombras. Por seu lado,
Falcó dirigiu-se ao Peugeot, que tinha o motor a trabalhar e uma silhueta
negra e imóvel no lugar do condutor. Abriu a porta traseira e instalou-se no
banco, pousando a gabardina ao lado, com a carteira sobre os joelhos.
– Tem uma lanterna?
– Sim.
– Dê-ma.
O condutor passou-lhe uma lanterna elétrica, engatou a primeira e
arrancou com o automóvel. Os faróis iluminaram as ruas desertas e depois
os arredores da cidade, metendo por uma estrada onde os troncos das
árvores estavam pintados com faixas brancas. Falcó carregou no interruptor,
apontando o feixe de luz para o conteúdo da carteira: cartas e documentos
datilografados, uma agenda com telefones e moradas, dois recortes de
imprensa alemã e uma acreditação com fotografia e selo do governo da
Generalidad catalã em nome de Luisa Rovira Balcells. Quatro dos
documentos tinham selos do Partido Comunista de Espanha. Voltou a
guardar tudo na carteira, pôs a lanterna de lado e instalou-se melhor no
banco, com os olhos fechados, a cabeça apoiada no encosto, depois de
alargar o nó da gravata e de se tapar com a gabardina. Nem sequer agora,
descontraído pelo sono crescente, o seu rosto anguloso e atraente, onde
começava a despontar a barba após várias horas sem se barbear, conseguia
perder a sua expressão habitual, que costumava ser divertida, simpática,
ainda que com um traço de dureza cruel que podia turvá-la de forma
inquietante; como se o seu proprietário estivesse na presença contínua de
uma farsa tragicómica, universal, da que ele próprio fazia parte.
As árvores pintadas de branco continuavam a desfilar à luz dos faróis, de
um lado e do outro da estrada. O último pensamento de Falcó antes de
adormecer com o balançar do automóvel foi sobre as pernas da mulher
morta. Uma pena, concluiu à beira do sono. Um desperdício. Noutra altura,
não se teria importado de pernoitar sem pressas entre aquelas pernas.
*
– Há um novo assunto – disse o Almirante.
Atrás dele, do outro lado da janela, erguia-se a cúpula da catedral de
Salamanca para lá dos ramos, ainda despidos, das árvores da praça.
Movendo-se na contraluz, o chefe do SNIO – Serviço Nacional de
Informação e Operações – foi até ao grande mapa da península que ocupava
meia parede, junto de umas estantes com a enciclopédia Espasa e um retrato
do Caudilho.
– Um novo assunto turvo e lixado – repetiu.
Dito isto, tirou um lenço enrugado do bolso do seu casaco de lã – nunca
vestia uniforme no seu gabinete –, assoou-se ruidosamente e olhou para
Lorenzo Falcó como se este fosse culpado da sua constipação. Depois,
enquanto guardava o lenço, lançou um olhar rápido à parte inferior direita
do mapa antes de a assinalar com gesto vago.
– Alicante – disse ele.
– Zona vermelha – comentou desnecessariamente Falcó, e o outro olhou
para ele, primeiro com atenção e depois com desagrado.
– Pois claro que é zona vermelha – respondeu, azedo.
Tinha advertido a insolência. Falcó estava apenas há um dia em
Salamanca, depois de uma incómoda viagem pelo sul de França até passar a
fronteira por Irún. E antes disso levara a cabo uma missão difícil em
Barcelona, que ficava na zona republicana. Desde a rebelião militar que não
tivera um dia de descanso.
– Hás de descansar quando estiveres morto.
O Almirante riu-se um pouco, sombrio e como que para si mesmo, da sua
própria piada. E a verdade é que muitas vezes, pensou Falcó, o humor do
seu chefe rondava o sinistro; e mais desde que o seu único filho, um jovem
alferes de navio, tinha sido assassinado a bordo do cruzeiro Libertad com os
outros oficiais, a 3 de agosto. Esse caráter ácido e um pouco macabro era a
sua marca da casa, até quando mandava um agente do Grupo Lucero –
operações especiais – deixar-se esfolar vivo numa checa1, para lá das linhas
inimigas. Assim a tua viúva saberá finalmente onde é que dormes, era ele
capaz de dizer, e outras piadas semelhantes, que não tinham graça nenhuma.
Mas nessa altura, com quatro meses de guerra civil e uma dúzia de agentes
perdidos por aqui e por ali, aquele tom bronco e cínico tinha-se convertido
em estilo próprio do serviço. Até as secretárias, os radioescutas e os
encriptadores o imitavam. Além disso, assentava que nem uma luva ao
chefe: galego de Betanzos, magro, pequeno, com um espesso cabelo
grisalho e um bigode amarelado de nicotina que lhe cobria por completo o
lábio superior, o Almirante tinha o nariz grande, as sobrancelhas hirsutas e
um olho direito – o esquerdo era de vidro – muito negro, severo e vivo, de
extrema inteligência, onde as palavras vermelho ou inimigo suscitavam
sempre um rancor tranquilo. Descrito em resumo, o responsável do núcleo
duro da espionagem franquista era pequeno, esperto, mal-humorado e
temível. No quartel-general de Salamanca alcunhavam-no de o Javali. Mas
nunca à frente dele.
– Posso fumar? – perguntou Falcó.
– Não, caralho. Não podes fumar. – Olhou, melancólico, para um pote de
tabaco de cachimbo que havia em cima da mesa. – Estou com uma
gripalhada enorme.
Embora o seu chefe estivesse de pé, Falcó continuava sentado. Eram
velhos conhecidos desde os tempos em que o Almirante, então capitão de
navio e adido naval em Istambul, organizara os serviços de informação para
a República, no Mediterrâneo Oriental, pondo-os depois à disposição do
lado franquista quando rebentou a contenda civil. Tinham-se encontrado os
dois pela primeira vez em Istambul, muito antes da guerra; por causa de
uma questão de tráfico de armas destinadas ao IRA irlandês, de que nesse
momento Falcó atuava como intermediário.
– Encontrei uma coisa para si – disse Falcó.
Enquanto dizia isto, tirou um sobrescrito do bolso do casaco e colocou-o
na mesa, perto do Almirante. Este observava-o, inquiridor. O olho de vidro
era de uma cor ligeiramente mais clara do que a autêntica, e isso dava ao
seu olhar um estranho estrabismo bicolor, que costumava inquietar os seus
interlocutores. Um instante depois, abriu o envelope e tirou de lá um selo
dos correios.
– Não sei se tem esse – disse Falcó. – De mil oitocentos e cinquenta.
O Almirante dava-lhe voltas entre os dedos, olhando para ele a contraluz
na janela. Por fim foi até uma gaveta da secretária cheia de cachimbos e
latas de tabaco, tirou uma lupa e estudou o selo com atenção.
– Negro sobre azul – confirmou, satisfeito. – E sem carimbo. O número
um de Hannover.
– Foi o que me disse o filatelista.
– Onde é que o compraste?
– Em Hendaia, antes de passar a fronteira.
– Vale pelo menos quatro mil francos em catálogo.
– Paguei cinco mil.
O Almirante foi a um armário, tirou um álbum e meteu o selo lá dentro.
– Acrescenta-o à tua nota de despesas.
– Já fiz isso... O que é que se passa em Alicante?
O Almirante fechou o armário devagar. Depois tocou no nariz, olhou para
o mapa e voltou a tocar-lhe.
– Ainda há tempo. Uns dois dias, pelo menos.
– Vou ter de lá ir?
– Sim.
Era estranho como aquele monossílabo podia resumir tantas coisas,
pensou, irónico, Falcó. Um atravessar de zona, a familiar incerteza de se
saber outra vez em território inimigo, o perigo e o medo. Talvez, também, a
prisão, a tortura e a morte: um amanhecer cinzento em frente de um
paredão, ou um tiro na nuca na escuridão de uma cave. Um cadáver
anónimo numa sarjeta ou numa vala comum. Uma pazada de cal viva, e
tudo acabaria nisso. Por momentos, recordou a mulher do comboio, poucos
dias antes, e com uma expressão resignada, fatalista, reparou que começava
a esquecer-se do seu rosto.
– Aproveita, entretanto – aconselhou o Almirante. – Descontrai-te.
– Quando é que o senhor me irá pôr ao corrente?
– Desta vez vamos fazer a coisa por partes. A primeira é já amanhã, com
o pessoal do SIIF.
Falcó arqueou uma sobrancelha, contrariado. Aquela era a sigla do
Serviço de Informação e Investigação da Falange, a milícia paramilitar
fascista. O pessoal mais ideologizado e duro do chamado Movimento
Nacional que era presidido pelo general Franco.
– O que é que a Falange tem a ver com isto?
– Alguma coisa tem. Já vais ver. Temos de nos reunir às dez com o Ángel
Luis Poveda... Sim, não ponhas essa cara. Com esse animal.
Falcó apagou a expressão do seu rosto. Poveda era o chefe do SIIF. Um
camisa velha2 da linha dura, sevilhano, que tinha conquistado uma certa
reputação na Andaluzia durante os primeiros dias da sublevação, fuzilando
sindicalistas e mestres-escola sob as ordens do general Queipo de Llano.
– Julguei que operávamos sempre sozinhos. Por nossa conta.
– Pois já podes ver que não. São ordens diretas do Generalíssimo... Desta
vez vamos coordenados com os falangistas, e isso não é tudo: os alemães
também estão metidos ao barulho, e rogo a Deus para que os italianos não
intervenham. Há um bocado estive com o Schröter a tratar do assunto.
Falcó ia de surpresa em surpresa. Não conhecia pessoalmente Hans
Schröter – rebatizado Juanito Escroto para o eterno gozo espanhol –, mas
sabia que era o chefe do serviço de informações nazi na Espanha nacional, e
que tinha linha direta com o almirante Canaris, em Berlim. Todo o quartel-
general franquista em Salamanca era um formigueiro de agentes e serviços
nacionais e estrangeiros: paralelamente aos alemães da Abwehr operava o
Servizio Informazioni Militari italiano, além dos múltiplos organismos de
espiões e contraespiões espanhóis que rivalizavam entre si e frequentemente
se atropelavam uns aos outros: os falangistas do SIIF, os militares do SIM,
o serviço de informações da Armada, a rede de espionagem civil conhecida
como SIFNE, o MAPEBA, a Direção de Polícia e Segurança e outros
serviços menores. Quanto ao SNIO, dirigido pelo Almirante, dependia do
quartel-general, diretamente supervisionado por Nicolás Franco, irmão do
Caudilho. O serviço era especializado em infiltração, sabotagem e
assassínios de elementos inimigos, tanto na zona republicana como no
estrangeiro. Nele se enquadrava o chamado Grupo Lucero, a que Lorenzo
Falcó pertencia; uma reduzida equipa de elite, homens e mulheres, que na
gíria dos serviços secretos locais era conhecido como Grupo de Assuntos
Sujos.
– Esta noite há uma festa no Casino para receber o embaixador italiano. A
sua delegação vai instalar-se no andar de cima, e virá muita gente. Se calhar
apetece-te ir.
Falcó estudou-o com atenção. Sabia que o seu chefe tinha uma predileção
por ele – «Pareces-te um pouco com o meu filho», escapara-lhe uma vez –,
mas este homem não era dos que se preocupassem com os seus
divertimentos sociais ou com os de qualquer outro subordinado.
Interpretando o olhar, o Almirante modulou um sorriso cheio de arestas.
– O Hans Schröter também deve lá estar... Preparei-vos uma pequena
reunião, coisa de uns minutos. Em privado. Quer conhecer-te, mas sem
chamar a atenção. Sem visitas a gabinetes e tal.
– O que devo dizer-lhe?
– Nada. – O Almirante voltou a assoar-se com o lenço. – Conversa de
circunstância. Tu ficas calado, deixas-te ver e não soltas um pio. É só uma
sondagem. Ouviu falar de ti e quer ver a peça.
– Compreendido. Ver, ouvir e calar.
– Isso mesmo... E certamente vai estar lá outro alemão que tu e eu
conhecemos: Wolfgang Lenz.
– O de Rheinmetall?
– Esse. Com a mulher, parece-me... Ute, chama-se ela. Ou Greta.
Qualquer coisa assim. Um nome curto. Ou se calhar é Petra.
– Eu conheço-a.
O Almirante dirigiu-lhe um sorriso retorcido, disposto a não se
surpreender mesmo nada. Andavam há muito tempo juntos.
– Biblicamente?
– Não. Só de raspão. Encontrámo-nos com ela e com o marido num
jantar, em Zagreb. No ano passado. Lembra-se?... O senhor também estava.
– Lembro-me, claro. – A expressão do outro converteu-se em riso
depreciativo. – Uma loura grandona, com um decote nas costas que
mostrava tudo até ao rabo. Tão puta como todas as alemãs... Se bem te
conheço, acho estranho que não tenhas toureado nessa praça.
Falcó sorriu evasivo, como se se desculpasse.
– Triscava noutros pastos, Almirante.
– Calculo que sim. – Olhava para ele distraído, pensando noutra coisa. –
Pois agora estão de visita, para ver qual o material que nos podem colocar
aqui. Convidados muito especiais e essa estopada toda.
– Tem a ver com aquilo de Alicante?
Um dedo indicador apontou para Falcó como uma pistola carregada.
– Eu nunca mencionei Alicante... Estás a topar, rapaz?
– Estou.
O olho direito tornara-se mais duro e severo.
– Ainda não mencionei Alicante nem qualquer outro maldito lugar.
– Claro que não.
– Então deixa de te armares em parvo, levanta-te dessa cadeira e zarpa
daqui. Amanhã vejo-te às dez menos um quarto, na calle del Consuelo, para
ver Poveda... Ah. E procura ir de uniforme.
– De uniforme... O senhor está a falar a sério?
– Pois claro. Ainda tens o uniforme, suponho, se as traças não o roeram.
Falcó pôs-se de pé, lentamente. Estava surpreendido. Ele não era militar,
muito pelo contrário. Em 1918, tinha sido expulso com desonra da
Academia Naval depois de uma história escandalosa com a mulher de um
professor e de uma luta ao murro com o marido na sala, em plena aula sobre
torpedos e armas submarinas. No entanto, quando rebentou a guerra, o
Almirante conseguira-lhe uma graduação provisória como tenente de navio
da Armada, a fim de lhe facilitar o trabalho. Não havia nada que abrisse
tantas portas na Espanha nacional como uns galões ou umas estrelas nos
punhos das mangas.
– Esses falangistas ficam muito impressionados com os uniformes – disse
o Almirante quando Falcó já ia a sair do gabinete. – Por isso vamos entrar
com o pé direito.
À porta, Falcó imitou, exagerando, o gesto de continência.
– Quando eu estiver de uniforme devo dizer às suas ordens, meu
Almirante?
– Vai para o caralho.
*
Cheirava a loção Varón Dandy e estava penteado para trás, com gel e
risco muito alto, ao colocar pausadamente, diante do espelho do quarto de
hotel, o colarinho e os punhos postiços da camisa de smoking. O peitilho
estava imaculado, e os suspensórios pretos seguravam as calças que caíam
com vinco perfeito sobre os reluzentes sapatos de verniz. Durante um
momento, Lorenzo Falcó permaneceu imóvel a estudar o reflexo, satisfeito
com o seu aspeto: barbeado impecável a navalha, patilhas recortadas no
ponto exato, os olhos cinzentos que se contemplavam a si mesmos, como ao
resto do mundo, com tranquila e irónica melancolia. Uma mulher definira-
os certa vez – cabia sempre às mulheres definir esse tipo de pormenores –
como olhos de bom rapaz a quem correram mal as coisas na escola.
Mas na realidade as coisas não lhe tinham corrido nada mal, ainda que
muitas vezes lhe fosse útil assim parecer, sobretudo com uma mulher à
frente. Falcó provinha de uma boa família andaluza ligada às adegas, ao
vinho e à sua exportação para Inglaterra. Os modos e a educação adquiridos
na infância haviam-lhe valido mais tarde, quando uma juventude pouco
exemplar, uma carreira militar truncada e uma vida vagabunda e aventureira
puseram à prova outros traços do seu caráter. Agora tinha trinta e sete anos
e uma densa biografia atrás de si: América, Europa, Espanha. A guerra.
Comboios noturnos, fronteiras atravessadas debaixo de neve ou chuva,
hotéis internacionais, ruas escuras e inquietantes, abraços clandestinos.
Também tinha, ali onde a memória recente se misturava com as sombras,
lugares e recordações turvas cuja quantidade, pelo menos por agora, não se
importava de continuar a aumentar. A vida era para ele um território
fascinante; um couto de caça grossa cujo direito a transitar por ele era
reservado a uns poucos audaciosos: os dispostos a correr o risco e a pagar o
preço, quando calhasse, sem refilar. Diga-me quanto lhe devo, senhor
empregado. E fique com o troco. Havia prémios imediatos e talvez castigos
atrozes que aguardavam a sua hora, mas estes últimos estavam ainda muito
longe. Para Falcó, palavras como pátria, amor ou futuro não tinham
qualquer sentido. Era um homem do momento, treinado para o ser. Um lobo
na sombra. Ávido e perigoso.
Depois de pôr o papillon, o colete e o casaco, fechou a corrente do
relógio – os punhos da camisa, que sobressaíam exatamente três
centímetros, tinham botões de punho de prata lisa e forma oval – e ocupou
os bolsos com os objetos que tinha cuidadosamente dispostos em cima da
cómoda: um isqueiro de prata maciça Parker Beacon, uma caneta de tinta
permanente Sheaffer Balance verde jade, um lápis com invólucro de aço,
um caderninho de notas, uma caixinha de comprimidos de prata com quatro
cafiaspirinas, uma carteira de pele de crocodilo com duzentas pesetas em
notas pequenas e algumas moedas soltas para gorjetas. Depois pegou em
vinte cigarros de uma lata grande de Players – conseguia-os através de
Lisboa, por meio do estafeta do SNIO – e encheu com eles os dois lados
interiores da sua cigarreira de tartaruga, que guardou no bolso direito do
casaco. Depois, apalpando-se para verificar se tudo estava como devia,
virou-se para a pistola que deixara em cima da mesinha de cabeceira, junto
à cama. Era a sua arma favorita, e desde julho daquele ano que não
costumava afastar-se dela. Tratava-se de uma semiautomática Browning FN
modelo 1910, fabricada na Bélgica, de tripla segurança, ação simples e
recarga ativada por retrocesso com um carregador de seis munições: uma
arma muito plana, manuseável e leve, capaz de enviar uma bala de calibre 9
mm à velocidade de 299 metros por segundo. Tinha ocupado um bom
bocado da tarde, antes de se meter na banheira, a desmontá-la, a limpar e a
olear cuidadosamente as suas peças principais e a verificar se a mola
recuperadora que rodeava o canhão funcionava livremente e sem
impedimentos. Agora sopesou-a por momentos na palma da mão, verificou
se o carregador estava cheio e bem encaixado e a câmara vazia e, depois de
a embrulhar num pano, ocultou-a em cima do armário. Não era caso, disse
para si mesmo, para ir artilhado à festa do Casino; ainda que ali, fruto da
temporada, fossem abundar uniformes, correagens e pistolas.
Deu uma última vista de olhos em volta, pegou no sobretudo, no cachecol
branco e no chapéu flexível preto, e apagou a luz antes de sair do quarto.
Enquanto caminhava pelo corredor, a recordação agradável de que a
Browning 1910 tinha sido o modelo de arma utilizada pelo sérvio Gavrilo
Princip para assassinar o arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo,
desencadeando a Grande Guerra, arrancou-lhe um sorriso cruel. Além da
roupa cara, dos cigarros ingleses, dos objetos de prata e de couro, dos
analgésicos para a dor de cabeça, da vida incerta e das mulheres bonitas,
Lorenzo Falcó gostava das coisas apimentadas com pormenores. Com
tradição.
1 Acrónimo do russo Chrezvychainaya Komissiya Extraordinaria, nome
da polícia secreta desde 1917 até 1922. (N. do E.)
2 Nome dado aos militantes de antes da guerra, por oposição aos camisas
novas. (N. do E.)
2

SUSPIROS DE ESPANHA
U ma orquestra militar tocava Suspiros de Espanha quando Lorenzo Falcó
entrou no salão. O pátio coberto do Casino, situado num palácio do
século XVI, estava iluminado com um esplendor que desmentia a austera
economia de guerra pregada pelos comandos nacionais. Como esperava, viu
muitos uniformes, correagens, botas engraxadas e reluzentes cartucheiras de
pistola garbosamente usadas à cintura pelos seus proprietários. Os militares,
observou, eram na sua maioria de graduações superiores, de capitão para
cima, e quase todos ostentavam insígnias de Estado-Maior ou Intendência,
ainda que não faltassem braços ao peito e condecorações acabadas de
ganhar no campo de batalha durante aqueles dias em que os jornais vinham
cheios de notícias bélicas e os combates em torno de Madrid aconteciam
com extrema dureza. No entanto, apesar dessas chamadas de atenção, dos
uniformes e do toque marcial da assistência, tudo parecia demasiado longe
da frente. As senhoras, ainda com o recato que ficara na moda na fação
nacional – a mulher como ser delicado, amparo do combatente, noiva,
esposa e mãe –, iam bem vestidas, com a elegância própria das revistas de
moda mais atuais, e algumas lá se desenvencilhavam para combinar de
modo eficaz as novas orientações morais com os atributos do seu sexo.
Quanto aos homens, além dos uniformes via-se alguns smokings mais ou
menos corretos e muitos fatos escuros, vários deles com a camisa azul da
Falange e gravata preta. Havia um rumor de conversas, empregados de
mesa militares de casaquinha branca a circular com bandejas cheias de
bebidas, e uma mesa de bar ao fundo, no lado oposto da orquestra.
Ninguém dançava. Falcó cumprimentou superficialmente um ou outro
conhecido, olhou em volta e parou junto da ampla escadaria enfeitada com
a bandeira vermelha e amarela – tinha sido recuperada pelos nacionais umas
semanas antes, eliminando a faixa arroxeada da República – para acender
um cigarro.
– O que fazes aqui, Lorenzo?... Julgava-te no estrangeiro.
Ergueu o olhar sem chegar a abrir a cigarreira. Um homem e uma mulher
tinham parado a seu lado. O homem chamava-se Jaime Gorguel e estava
fardado, com estrelas de capitão no punho das mangas e insígnias de
infantaria nos bicos do jaquetão. A mulher, morena, magra e desconhecida,
vestia cetim estampado de caxemira com reflexos prateados. Um vestido
caro e bom, concluiu Falcó. Se não lhe falhavam o olho e a experiência.
– E eu julgava que estavas na frente – respondeu.
– Venho de lá. – O militar apontou para uma têmpora, onde sob o cabelo
alisado com brilhantina se notava o hematoma de uma contusão. –
Comoção cerebral, disseram.
– Caramba... Alguma coisa séria?
– Não. Um fragmento de metralha, que por sorte a boina amorteceu. Em
Somossierra. Deram-me uma semana para me restabelecer. Sou
reincorporado depois de amanhã.
– Como é que vão as coisas?
– Às mil maravilhas. Estamos a menos de vinte quilómetros de Madrid e
a avançar. Dizem que o governo vermelho evacuou a capital e foi para
Valência; por isso, com um pouco de sorte, tudo estará acabado pelo Natal...
Conheces a Chesca, a minha cunhada?
Um aroma de Amok. Perfume caro, elegante, difícil de encontrar por
aqueles dias – «Uma loucura de Oriente», segundo as revistas da moda. –
Falcó olhou com atenção para a mulher: tinha os olhos claros, o nariz
grande, os seios perfeitos e o corpo harmonioso. Tipo modelo de Romero de
Torres, decidiu. Um certo ar vagamente aciganado não lhe tirava o estilo,
até o acentuava. Era bonita acima da média. Muito acima.
– Não tenho o prazer.
– Bom... É Lorenzo Falcó, um velho amigo da escola. Andámos uns anos
juntos nos Marianistas de Jerez... Maria Eugenia Prieto, esposa do meu
irmão Pepín. Todos lhe chamamos Chesca.
Falcó assentiu, apertando a mão que ela lhe estendia. Conhecia o marido
de vista: José María Gorguel, conde da Migalota. Um tipo seco, alongado e
elegante, com perto de quarenta, amante dos cavalos de corrida. Durante
um certo tempo tinham frequentado os mesmos tablaos flamencos e os
mesmos bordéis de luxo em Sevilha e Madrid.
– E como está o teu irmão? – perguntou ele a Jaime Gorguel, mais por
cortesia do que por verdadeiro interesse, embora olhasse para ela. Acabava
por ser sempre instrutivo, e útil, observar as reações de uma mulher casada
quando se mencionava o marido ausente.
– Bem, que eu saiba – respondeu o outro. – Foi incorporado a 18 de julho
e deram-lhe uma companhia de Regulares. Está num lugar qualquer da
frente de Madrid. Para os lados de Navalcarnero, parece-me... E isso soa
bem, não é? Como nos velhos tempos. Um grande de Espanha a comandar
uma companhia de mouros... A Espanha eterna que ressuscita de novo, para
varrer toda essa chusma marxista.
– Realmente épico – sublinhou Falcó.
Ao olhar para a mulher compreendeu que ela reparara no sarcasmo. Mas
não teve tempo de considerar se isso era taticamente bom ou mau, porque
também reparou, por cima do ombro – a pele nua velada por uma gaze
subtil a combinar com os novos costumes –, que alguém, mais além,
reclamava a sua atenção. Era Marili Granger, secretária de confiança do
Almirante. Ficou surpreendido por vê-la ali, até que se lembrou de que
Marili era casada com um oficial do quartel-general da Armada em
Salamanca e, portanto, era lógico que participasse na receção. Nada mais
natural e discreto que ela funcionasse como ligação. Entre as colunas do
fundo, perto da mesa dos empregados, distinguiu a cabeça loura de Hans
Schröter a dirigir-se para a porta de um salãozinho privado.
– Peço desculpa – disse ele.
*
Quando Marili fechou a porta e os deixou sozinhos, Schröter olhou com
atenção para Lorenzo Falcó. O alemão tinha um copo de conhaque numa
mão e um charuto havano na outra. A sua maçã de Adão era proeminente e
destacava-se sobre o colarinho duro e o papillon preto do smoking. Uma
cicatriz horizontal sob o pómulo esquerdo endurecia-lhe a expressão. Era
alto e enxuto, com um maxilar quadrado barbeado com esmero e uns olhos
inexpressivos de cor azul ártico.
– Alegrro-me porr conhecê-lo – disse em bom espanhol, embora
arrastando os erres.
– O mesmo digo eu.
Ficaram de pé em frente um do outro, a estudar-se em silêncio enquanto o
alemão dava passas no seu charuto e de vez em quando molhava os lábios
no conhaque. Só se ouvia a música distante da orquestra militar. Ao fim de
uns instantes, Schröter olhou para a porta.
– Festa agradável – disse ele.
– Sim.
– Creio que as notícias que chegam da frente são boas... Os marxistas
batem em retirada e Madrid está prestes a cair.
– É o que dizem.
O comentário cético de Falcó pareceu estimular a curiosidade do alemão,
que voltou a beber o seu conhaque enquanto o observava com mais atenção.
– Sabe quem sou? – perguntou por fim.
– Claro.
– O que lhe disse o seu chefe, o Almirante?
– Que o senhor queria ver-me de perto, para qualquer coisa relacionada
com uma missão.
As pupilas do outro contraíram-se.
– Que tipo de missão?
– Isso ele não me disse.
Schröter continuava a olhá-lo fixamente, perscrutador. No salãozinho
havia cadeirões, mas nenhum dos dois mostrou intenção de os ocupar.
– Fala alemão?
A pergunta fora feita nessa língua. Com um sorriso, Falcó respondeu-lhe
em alemão.
– Sofrivelmente. Vivi algum tempo na Europa Central.
– Que outras línguas conhece?
– Francês e inglês. E arranho o italiano... Também conheço todas as
palavras feias, os insultos e as blasfémias em turco.
A piada resvalou no rosto impassível de Schröter. Olhou para a cinza do
seu charuto, deu uma olhadela em volta à procura de um cinzeiro
inexistente, e com um leve toque do dedo indicador deixou-a cair na
alcatifa.
– Agora que fala da língua turca... O senhor matou um compatriota meu
há um ano, em Istambul.
Falcó aguentou o olhar dele em silêncio.
– É provável.
A cicatriz da face parecia afundar-se um pouco.
– Chamava-se Klaus Topeka e vendia peças de ótica militar.
– Não sei, não me lembro. – Falcó encolheu os ombros. – Não lhe sei
dizer.
– Matou assim tantos em Istambul, ou noutros lugares, que nem se
lembra?
Falcó não disse nada. Recordava perfeitamente Topeka, um traficante
privado que também trabalhava para a Abwehr. Novembro de 1935, antes
da guerra. Tratou-se de um assunto rápido e limpo: um disparo na nuca à
porta de um bordel barato do bairro de Beyoglu. Aparência de roubo. Tinha
recebido ordens para o eliminar, pois Topeka interferia demasiado num
negócio de instrumentos óticos comprados à União Soviética por conta da
República. O próprio Almirante, que nessa época ainda era chefe do serviço
de informações espanhol no Mediterrâneo Oriental, foi quem indicou a
Falcó o objetivo. Era curioso, pensou, como a vida mudava as coisas. As
alianças. Os afetos e os ódios.
– O seu chefe refere-se a si como um homem sólido. De muita confiança.
E a missão de que ele o vai encarregar é delicada... O senhor diz que ele
ainda não lhe contou nada sobre ela?
– Sim. Foi o que eu disse.
Reflexivo, Schröter deu uma passa longa no charuto.
– Eu também não lhe vou adiantar quase nada – disse por fim, deixando
sair o fumo. – Mas direi que a Armada do meu país apoiará a coisa. Uma
embarcação da Kriegsmarine vai participar na operação... Talvez se trate de
uma unidade de superfície, ou talvez de um submarino. Saberemos nos
próximos dias.
Falcó decidiu fazer-se desentendido.
– Em zona vermelha?
O outro olhou para ele sem responder, com ar de estar a avaliar o que
Falcó sabia e o que calava.
– Há um cônsul alemão em Cartagena – disse ele. – Chama-se Sánchez-
Kopenick e recebeu instruções. Chegado o momento, irão pôr-se em
contacto.
– Até agora ninguém me tinha falado de Cartagena.
Os gélidos olhos azuis mantiveram-se impassíveis.
– Pois eu acabo de o fazer. Com a certeza, naturalmente, de que o senhor
esquecerá o nome dessa cidade assim que eu sair desta sala.
Cartagena e Alicante. O Levante republicano espanhol. Falcó refletia a
toda a pressa, unindo as pontas. As poucas que tinha.
– E o que esperam que eu faça lá? Qual é a missão?
– Isso é o seu chefe quem lhe irá dizer. – Schröter deu outra passa no
charuto. – Não é assunto meu. Acho que amanhã vão ter uma reunião
importante sobre isso em concreto. Com terceiros.
Falcó fez um esgar para dentro de si. Intranquilo. Gostava de trabalhar à
sua vontade, coisa que só o Almirante costumava permitir-lhe. O Grupo
Lucero existia para isso. Mas aqui, fosse lá o que fosse, parecia diferente. O
SNIO, os falangistas e os alemães, todos metidos no mesmo assunto, estava
longe de ser uma boa notícia. Reunião de pastores, dizia o antigo adágio
espanhol, ovelha morta. E não era agradável pensar que a ovelha podia ser
ele.
– E que mais? – perguntou ele.
Schröter deixou o copo vazio em cima de uma mesa.
– Mais nada.
Falcó estava surpreendido.
– Isso é tudo?
– Sim. Queria conhecê-lo. Ver-lhe a cara.
– Curiosidade profissional?
– Pode chamar-lhe assim. Disseram-me que o senhor assistiu à evacuação
da Crimeia, no ano vinte, com o exército branco. E que até ficou ferido.
Impassível, Falcó aguentava o olhar dele.
– Talvez.
– Eu era oficial naval a bordo do Mütze. Mas o senhor não é russo... E
nessa altura era muito novo. O que é que o tinha levado lá?
– Negócios.
– Estranha maneira de fazer negócios. Aqui foi duro.
– Assim dizem.
– Vendia armas, não é verdade?... Um pouco por aqui e por ali. Ou
trabalhava para aqueles que as vendiam... Essa gente do Zaharoff.
Falcó permitiu-se um sorriso interior. Conhecera Basil Zaharoff a bordo
do Berengaria, a jogar às cartas. Cinco dias de navegação entre Gibraltar e
Nova Iorque tinham feito com que o famoso traficante de armas sentisse
simpatia pelo aprumo e desenvoltura do jovem espanhol que acabava de ser
expulso da Academia Naval e a quem a sua família enviava para a América
a fim de refazer a vida. Seis meses depois, Falcó estava a trabalhar para
Zaharoff entre o México, os Estados Unidos e a Europa.
– Pois não sei – respondeu ele. – Já não me lembro.
O outro continuava a perscrutá-lo com muita atenção.
– E é verdade que, à parte dos seus negócios russos, também traficava
nessa época para os revolucionários mexicanos e para o IRA?
– Disso ainda me lembro menos.
– Sim... Estou a perceber. Também esteve uma vez na Alemanha, parece-
me... Em Berlim, não?
– Disso lembro-me perfeitamente, veja só. Das fachadas de estuque, das
luzes dos cabarés e da falsa alegria que duas ruas mais além se convertia em
tristeza. Com todas aquelas putas de casacos de pele puídos a sussurrar:
«Komm, Süsser».
– Isso era antes.
– Antes de quê?
– Do nacional-socialismo.
– Se o senhor o diz...
O alemão tinha aberto a porta. Regressaram juntos ao salão, onde por
cima do barulho das conversas a orquestra tocava o entreato de O Gato
Montês.
– Conhece o senhor Lenz? – interessou-se Schröter.
– Sim.
Tinham parado junto de um casal formado por um homem de cabelo
ruivo e uma mulher loura e muito alta, quase corpulenta, vestida de cetim
preto.
– Wolfgang Lenz e a sua esposa, Greta. Pelos vistos já se conhecem,
não?... Este é Lorenzo Falcó.
– Conhecemos este senhor – confirmou Lenz.
Wolfgang não vestia smoking, mas um fato escuro. O seu hálito cheirava
a anis, e tinha um copo meio cheio nas mãos. Era um tanto anafado e o
casaco repuxava um pouco pelo botão abotoado na barriga. Representava a
fábrica de munições Rheinmetall no sul da Europa: Falcó e ele tinham-se
cruzado algumas vezes no passado, profissionalmente. Até haviam feito um
negócio juntos em Bucareste – um carregamento de três mil carabinas
Mauser velhas e defeituosas, no entanto muito bem colocadas – em 1929,
com Falcó como intermediário. E os dois tinham ganhado bom dinheiro
com isso. Atualmente, desde o levantamento militar contra a República,
Lenz fornecia as tropas sublevadas. Vivia com a mulher num hotel de
Salamanca e era visto a entrar e a sair, como se fosse a sua casa, no palácio
episcopal onde estava instalado o quartel-general do Caudilho.
– Deixo-o em boa companhia – disse Schröter, afastando-se.
Falcó puxou da cigarreira e ofereceu cigarros. Lenz não quis fumar, mas a
sua mulher sim.
– Ingleses?... Oh, sim. Obrigada. Gosto de cigarros ingleses.
Greta Lenz era mais alta uma cabeça do que o marido e tinha umas
feições duras, vulgares, embora não fosse totalmente feia. Meia cabeleira
lisa cortada à altura dos ombros. Vermelho intenso na boca. O seu vestido
de noite moldava umas fortes ancas germânicas e oferecia um decote bem
preenchido: um duplo conteúdo pesado e túrgido que nenhuma espanhola –
pensou Falcó, divertido –, naquela católica e pacata nova Espanha
nacionalista, teria ousado ostentar com tanta desenvoltura.
– O senhor tem amizades interessantes – comentou Lenz, apontando para
as costas de Schröter com o seu copo.
– Negócios – respondeu Falcó enquanto acendia o cigarro a Greta Lenz,
que o colocara numa boquilha de âmbar.
O marido bebeu um golo e olhou para Falcó com malícia.
– Pátria e negócios andam muitas vezes a par.
Falcó acendeu o seu próprio cigarro e deixou sair o fumo pelo nariz.
– E como é que vão os seus?
– Não me posso queixar. Já sabe como é que isto funciona... O general
Franco precisa de coisas que eu posso proporcionar-lhe.
– Essas coisas custam dinheiro.
– Claro. Mas há quem pague por ele, por isso ficamos todos contentes. A
Alemanha e a Itália cooperam e passam as suas faturas. Ou irão passá-las.
Dizem que esse vosso compatriota que vive em França, o financeiro Tomás
Ferriol, paga atualmente uma boa parte das despesas... Sabe alguma coisa
disso?
– Não.
Conversaram um pouco mais. Greta Lenz abriu a mala e empoou o nariz
com aromas de Elizabeth Arden.
Olhava para Falcó com interesse, mas isso era uma coisa a que ele estava
habituado. As senhoras costumavam gostar das suas maneiras elegantes
combinadas com o seu belo perfil correto e o sorriso simpático e atrevido,
calculado ao milímetro, experimentado mil vezes, que ele costumava
utilizar à frente delas como um cartão de visita. Tinha aprendido desde
muito novo, à custa de algumas rápidas desilusões próprias, uma lição
crucial: as mulheres sentiam-se atraídas pelos cavalheiros, mas preferiam ir
para a cama com os canalhas. Era matemático.
– Apetece-te um anis, querida? – perguntou Lenz.
– Não, obrigada. – Ela baixou um pouco a voz, com censura. – E acho
que tu estás a beber demasiado.
– Exageras.
O marido afastou-se à procura de outra bebida, e quando a mulher virou o
rosto encontrou o sorriso tranquilo de Falcó.
– O Wolfgang adora Espanha – disse ela alguns instantes depois. – Sente-
se aqui muito bem.
– Estou a ver... E a senhora?
– Menos do que ele. – Fez um gesto depreciativo. – Tudo me parece sujo
e cinzento. Os homens são cruéis, vaidosos; e as mulheres, demasiado
tristes com tanta missa e terço... Antes era mais divertido: Madrid, Sevilha
ou Barcelona. – Dirigiu a Falcó um olhar longo e pensativo. – Onde é que
nos vimos a última vez?
– Em Zagreb. No Hotel Esplanade. Numa festa de alguém.
Ela recordou-se, arqueando as sobrancelhas. Usava-as depiladíssimas,
reduzidas a duas finas linhas que mal se notavam, assinaladas pelos
respetivos traços de lápis castanho. Os olhos eram castanhos, com reflexos
cor de palha.
– É verdade. O senhor estava com uma senhora, com um militar espanhol
e também com aquele escritor italiano, Malaparte... Conversámos um
bocado na esplanada, mas não tivemos oportunidade de falar muito.
– É verdade. – Falcó fez uma pausa breve, muito calculada, para olhar
para o decote dela com insolência. – E tive muita pena.
Greta Lenz tinha encaixado o exame com admirável naturalidade.
Observarem-na assim, concluiu ele, devia ser tão habitual como darem-lhe
os bons-dias. Via-se que estava muito acostumada.
– Pois não parecia ter – disse ela instantes depois. – Julgo recordar que a
mulher que o acompanhava era muito bonita... Grega ou italiana, não?
Falcó aguentou o seu olhar, impassível.
– Não me lembro de nenhuma mulher.
– Em Zagreb?
– Em lado nenhum.
Agora Greta Lenz contemplava-lhe o sorriso com atenção irónica. Parecia
prestes a dizer qualquer coisa quando viram o marido regressar,
aproximando-se de longe entre as pessoas. Trazia outro copo na mão e
parara para falar com alguém.
– Está hospedado aqui, em Salamanca? – perguntou ela, quase com
indiferença.
– Sim. No Gran Hotel.
A mulher semicerrou as pálpebras entre o fumo do cigarro.
– Mas que coincidência – disse ela. – Nós também.
*
Eram dez e meia da noite quando Lorenzo Falcó saiu para a rua. A partir
das onze havia recolher obrigatório, mas o hotel ficava perto, por isso foi
caminhando sem pressa. Era um passeio de dez minutos, e depois do fumo
do tabaco, da bebida e das conversas apetecia-lhe desanuviar um pouco. Há
momentos tinha ingerido duas cafiaspirinas – as enxaquecas frequentes
eram o seu calcanhar de Aquiles – e o efeito analgésico dos comprimidos
começava a causar-lhe um grato bem-estar. Sentia um pouco de frio,
intensificado pela humidade do rio Tormes ali próximo. Andou sem se
apressar entre os edifícios mergulhados nas sombras da calle Zamora – a
Lua não tinha nascido e a cidade estava escurecida perante possíveis
ataques da aviação republicana – e depois atravessou a praça Mayor, com as
mãos metidas nos bolsos do sobretudo, com o cachecol cruzado sobre o
peito e o chapéu enfiado até às sobrancelhas. Não se encontrou com
ninguém, e só ouvia o eco dos seus próprios passos. Era tão cerrada a noite
que quase teve de adivinhar a embocadura do arco de saída, onde antes de
descer as escadas parou uns momentos para acender um cigarro. Foi a
faísca do isqueiro que atraiu a atenção de um grupo de sombras que saíram
das arcadas em baixo.
– Quem vive? – interpelou uma das sombras.
– Espanha.
Era a resposta habitual naqueles dias. Um som metálico, de fecho da arma
a ser fechada, indicou a Falcó que se tratava de uma patrulha. Um piquete
noturno de vigilância pela zona.
– Senha e contrassenha – disse a mesma voz.
Agora o tom era imperioso. Desabrido e arrogante. Um suboficial mal-
humorado por passar a noite acordado, pensou Falcó. Ou talvez pior, um
miliciano falangista de gatilho fácil, com vontade de ganhar mérito.
– Não conheço a senha e contrassenha.
– Então apaga o cigarro e levanta as mãos.
O tratamento por tu não deixava lugar a dúvidas: eram falangistas. Falcó
fez uma expressão contrariada na escuridão. Um cano de carabina tocou-lhe
no peito. Obedeceu, dócil, e umas mãos revistaram-no sem consideração. O
foco de uma lanterna na cara ofuscou-o de repente.
– De onde vens?
– Do Casino.
– Para onde vais?
– Para o Gran Hotel. Moro lá.
Falcó ouviu as sombras cochichar.
– Há recolher obrigatório – disse a voz de antes.
– Ainda não. Devem faltar uns quinze minutos.
– E esse chapéu tão elegante?
– Os vermelhos não usam chapéu.
– Documentação.
À luz da lanterna, o outro examinou os papéis de Falcó. Uma simples
cédula de identidade nacional onde sob a sua fotografia figuravam um nome
e apelidos falsos, juntamente com um domicílio fictício em Sevilha. O feixe
luminoso permitiu-lhe ver brevemente o jugo e as setas bordadas na
braçadeira que o falangista usava sobre o casacão de bombazina. Havia
outras duas sombras perto. Rostos rudes e reflexos de carabinas. Simpatia
inexistente. Tudo mais frio, verificou, do que o ar da noite.
– Tens cartão de filiado da Falange?
– Não.
– E de outro órgão do Movimento?
– Também não.
– Um senhorzeco de merda – comentou um.
– Na festa enquanto os outros lutam – sublinhou um segundo.
Falcó esteve tentado a comentar que também eles se encontravam a
duzentos quilómetros exatos da frente, mas preferiu ser cauteloso. Nas
zonas ocupadas pelos militares rebeldes à República, toda a gentalha e
todos os oportunistas se apressavam a vestir a camisa azul e a filiar-se no
chamado Movimento Nacional. Com um pouco de cunhas e alguma sorte,
fazer parte das milícias da Falange na retaguarda era uma forma ideal de se
manter longe dos combates. Emboscados, como se dizia.
Aqueles patriotas de ocasião podiam ajustar impunemente as contas com
os seus vizinhos, denunciar suspeitos, roubar nas suas casas e até dar-lhes
um tiro à luz de uns faróis, na valeta de qualquer estrada. Desde os
primeiros dias da guerra que as autoridades militares delegavam a repressão
mais brutal nesse tipo de gente. Pouco tinha a ver com as centúrias
falangistas que combatiam a sério, deixando a pele no Norte ou em torno de
Madrid.
– Tens de nos acompanhar – disse o chefe.
Falcó sorriu, contrariado. Para si mesmo. Tens de vir connosco até ao
nosso quartelzinho, era a tradução livre daquilo, para te darmos uma tareia e
te roubarmos tudo quanto tiveres de valor contigo. No fim, o riso assomou
entre os seus dentes. Estúpidos seguidores.
– De que é que te ris?
Suspirou profundamente antes de falar. E depois fê-lo com muita calma.
– Rio-me porque, por mais que pense, só me ocorrem duas possibilidades.
Uma é eu tirar agora a minha cigarreira, fumarmos todos um cigarro, e
depois cada um seguir o seu caminho mais amigos do que porcos... A outra
é acompanhar-vos, como vocês dizem, e assim que estivermos onde vocês
me quiserem levar, falar com o vosso chefe de centúria e depois ligarmos
por telefone ao camarada Poveda, chefe do SIIF, ou para o quartel-general
do Caudilho, ou para o da Armada, para o da mãe que vos pariu... E
amanhã, a estas horas, vão estar os três a cantar o Cara al Sol numa
trincheira de Navalcarnero, enquanto salvam gloriosamente a pátria. Com
dois colhões.
Era o tom, continuava Falcó a sorrir para dentro de si. Era mais o modo
como tinham sido ditas do que as palavras. Seguiu-se um silêncio longo,
espesso, durante o qual se dispôs a lutar se o tiro lhe saísse pela culatra.
Três adversários era um número respeitável, e estava demasiado escuro para
recorrer à lâmina de barbear Gillette que levava escondida na aba do
chapéu. Friamente, a sua cabeça traçou de antemão a violenta coreografia
do ballet clássico, quase automático, tantas vezes praticado antes: um, dois,
três. Croc. Plaf. Zac. Uma cabeçada no da lanterna – com sorte partia-lhe o
nariz –, um pontapé ao mais próximo – com sorte acertava-lhe entre as
pernas –, e depois ao terceiro, improvisando fosse o que fosse. A escuridão
e a culatra de uma carabina, se conseguisse apoderar-se de alguma delas,
ajudariam muito a concluir o assunto. E se a coisa não lhe saísse totalmente
bem, tinha Salamanca toda às escuras para correr. A noite era uma criança.
– O que é que este filho da puta pensa que é? – mastigou um dos
falangistas.
– Cala-te, porra – disse-lhe o chefe.
Houve outro silêncio quase tão longo como o anterior. O feixe da lanterna
voltou a pousar um instante no rosto de Falcó. De repente, a luz apagou-se e
viu-se com a sua cédula de identidade na mão.
– Pode ir... Dizia a sério isso dos cigarros?
*
Do bar americano do Gran Hotel via-se o vestíbulo. Lorenzo Falcó
apoiava um cotovelo no balcão e um pé no suporte, e de vez em quando
pegava no copo que estava junto ao cotovelo para beber um golo curto.
Havia quatro beatas no cinzeiro triangular com a publicidade da Cinzano. O
bar era agradável, à moda internacional de antes da guerra. Havia fotos de
artistas de cinema emolduradas nas paredes – Douglas Fairbanks, Paul
Muni, Loretta Young –, cómodos bancos altos de couro, decoração de
madeira e metal cromado.
– Acho que te vou pedir outro hupa-hupa, Leandro.
– Eu esperaria um pouco, senhor Lorenzo... Já vai com dois, e demoram a
fazer efeito.
– Não se fala mais nisso. Tu é que mandas.
Leandro, o barman, era um tipo tranquilo, de cabelo grisalho e rosto
melancólico picado pela varicela. Nesta altura, Falcó e ele eram íntimos;
costumava acontecer quando se tratava de barmans, maîtres, rececionistas
de hotel, encarregadas de guarda-roupa, floristas, paquetes, engraxadores e
outros subalternos úteis para facilitar a vida. As batalhas – Falcó também
aprendera isso muito depressa – ganhavam-se graças aos cabos e sargentos
e não aos generais. Quanto a Leandro, a sua especialidade era o hupa-hupa,
um cocktail à base de Martini, vodca, vermute e umas gotas de laranja.
Desde o Levantamento Nacional, por razões patrióticas ou por simples
prudência por parte da direção do estabelecimento, o bagaço galego
substituía a vodca como ingrediente. Falcó até gostava mais assim. Com
bagaço.
Era quase meia-noite quando viu o casal Lenz entrar no vestíbulo. O
marido levava o sobretudo aberto e o chapéu inclinado para trás, e
caminhava com dificuldade apoiando-se na mulher. Ao passar a porta
giratória esteve quase a tropeçar na alcatifa. Ela levava um casaco de vison
sobre o vestido de noite, e parecia irritada. Estavam a atravessar em direção
ao elevador quando Greta Lenz olhou na direção do bar e viu lá Falcó. Não
fez o menor gesto de reconhecimento, e seguiu com o seu marido até se
perder de vista.
– Serve-me mais outro hupa-hupa, Leandro. E bebe tu qualquer coisa.
Satisfeito com o som do shaker que o barman agitava com vigoroso
estilo, Falcó acendeu outro Players. O último da cigarreira.
– Tens tabaco?
– Só avulso das Canárias, senhor Lorenzo. E papel de enrolar.
– Maldita seja a minha sorte.
O barman encheu-lhe o copo e deitou o resto do shaker noutro para ele.
Falcó ergueu a sua bebida, vendo-a à transparência.
– Arriba Espanha, Leandro.
– Arriba sempre, senhor Lorenzo.
– Que lixem bem o Lenine e o Estaline. E o Douglas Fairbanks.
– O que o senhor disser.
– A Rússia é a culpada.
– Até às bolas.
Bateram com os copos um no outro e beberam, Falcó a sorrir na borda do
vidro, o barman sério como sempre. Falcó ainda tinha o copo nos lábios
quando Greta Lenz entrou no bar.
*
Só se beijaram quando Falcó fechou a porta do seu quarto, atirando com a
chave – um marido, por mais bêbado que estivesse, sempre era um marido.
Até então tudo decorrera com uma fria naturalidade: a curta e banal
conversa no bar, com Leandro discretamente dobrado na ponta do balcão, e
depois, sem palavras supérfluas nem acordo prévio, a mulher a terminar a
sua bebida e a levantar-se do banco em silenciosa cumplicidade,
caminhando ela em primeiro lugar até ao elevador enquanto Falcó, imóvel
junto ao balcão, observava o bom augúrio das suas ancas a afastarem-se sob
o tecido subtil do vestido de noite, a solidez das fortes costas teutónicas, o
cabelo liso e louro cortado a direito nos ombros. Três minutos depois,
controlados com exatidão pelo relógio que usava no pulso esquerdo, Falcó
tinha deixado duas notas de cinco pesetas em cima do balcão e depois de
trocar um rápido olhar com o imperturbável barman encaminhou-se para o
seu quarto. Acabava de tirar o casaco, o papillon e o colarinho duro da
camisa quando a mulher bateu à porta. E ali estavam, agora. Estreitando
laços fraternos entre a nova Alemanha e a vigorosa jovem Espanha.
Greta Lenz era bastante porca, verificou Falcó mal tinha começado o
primeiro assalto. Muito alemã, nisso. Muito eficiente para aquele tipo de
assuntos, como insinuara o Almirante, que parecia conhecer o material.
Manejava a língua com uma desenvoltura surpreendente, saboreando
realmente a tarefa, e ele viu-se em apuros para conseguir que a coisa não
acabasse ali mesmo com uma explosão de afetos prematura. Pensou com
urgência no general Franco, na missão que o esperava, nos três falangistas
de há pouco, e isso arrefeceu-lhe um pouco o ânimo, devolvendo-lhe o
controlo das circunstâncias. Além de uma boca ávida, ela tinha um corpo
colossal, confirmou. A esta altura do episódio, uma das alças do vestido
tinha caído para o lado, revelando o ombro e uma carne abundante muito no
ponto: livre, trémula e generosa, com mamilos escuros, rijos e de um
tamanho notável. Uma valquíria com as unhas dos pés e das mãos pintadas,
cuja pele – devia ter posto um bom borrifo – cheirava agora a Soir de Paris.
Ela também tirara, antes de ir para o quarto, experiente e prevenida, o sutiã,
as cuecas, o cinto de ligas e as meias, o que na opinião de Falcó era um
pormenor técnico que facilitava as coisas. Algo que era de agradecer muito,
pois permitia ir diretamente ao fundo da questão. Acariciou-lhe os seios
enquanto ela deglutia tudo quanto era possível deglutir numa anatomia
masculina. Sob o cetim do vestido, o corpo grande e musculado adquiria
contornos gloriosos.
– Estás fértil ou infértil? – inquiriu ele, cortês.
– Não sejas idiota.
Tranquilizado nesse aspeto, subiu-lhe o vestido até às ancas. Também ali
a paisagem era esplêndida. Havia apenas um pequeno rasto louro,
encaracolado, entre as coxas fortes e brancas. Uma boa estrutura óssea por
baixo. Um Walhalla portátil, concluiu Falcó depois de pensar como definir
aquilo. Tudo amplo, quente e confortável. Perfeito. Conheci noites piores.
– Espera – disse ele.
Com habilidade, fruto de anos de prática, começou a despir-se de baixo
para cima com uma mão sem deixar de trabalhar o material com a outra:
sapatos, meias, calças, camisa. Tudo por ordem metódica. Rigorosa. Ao
chegar aos últimos botões da camisa, Greta retirou-se um pouco. Estava de
joelhos diante dele, com o vestido reduzido a uma ruga de cetim em volta
das ancas, e olhava para ele satisfeita. Relampejava reflexos cor de palha
nas suas íris castanhas.
– Tens bom aspeto, espanholito – disse ela. – Tens muito bom aspeto.
– Obrigado.
Falcó ajoelhou-se e introduziu-lhe os dedos no sexo. Ela sorria.
– Chama-me puta.
– Puta.
O sorriso obsceno intensificou-se.
– Agora chama-me porca.
– Porca.
Quis deitá-la de costas na alcatifa, mas ela escapou-se-lhe, rindo. Depois
virou-se, pondo-se de gatas. Os seios germânicos grandes e pesados
ficavam pendurados. Só faltava música de Wagner.
– Faz-me por trás – ordenou ela.
3

UMA MISSÃO NO LEVANTE


A sede do Serviço de Informação e Investigação da Falange ficava numa
casa da calle del Consuelo, perto da torre do Clavero. Havia um vigilante
de camisa azul, correagem e pistola à cintura no vestíbulo, e outro nas
escadas que levavam ao andar superior. No sentido oposto, as mesmas
escadas desciam até uma cave de sinistra fama naquela época, e também a
uma porta das traseiras pela qual, de madrugada, tiravam da cave
prisioneiros com as mãos atadas – sindicalistas, comunistas, anarquistas e
outras pessoas ligadas à República – que dali a poucas horas apareciam
fuzilados no monte de La Orbada ou junto dos muros do cemitério.
Cadáveres que os delegados de saúde locais, pouco dados a complicar a
vida com subtilezas arriscadas, costumavam certificar sob o eufemismo
Falecido por arma de fogo.
– O uniforme assenta-te bem – comentou o Almirante enquanto Lorenzo
Falcó e ele subiam as escadas. – Devias usá-lo com mais frequência.
– Sou alérgico aos uniformes. – Falcó passava um dedo pelo colarinho da
camisa branca, fechado com uma impecável gravata preta. – Provocam-me
borbulhinhas.
– Aguenta. – O Almirante tirou um lenço do bolso e assoou-se com muito
barulho. – Em momentos como este, os uniformes são mão de santo. Além
disso, a ti o azul-marinho, a boina, os botões dourados e os dois galões com
óculo nos punhos dão-te um aspeto respeitável... É bom que pareças
respeitável de vez em quando, para variar.
– O senhor é meu pai, Almirante. Sempre a dar coragem.
– E aí dentro, procura não passares por palhaço. O Poveda é um tipo
perigoso.
– O senhor também é.
– Esse pássaro tem outro tipo de perigo.
Ángel Luis Poveda levantou-se para os receber no seu gabinete, sob um
retrato de José Antonio Primo de Rivera, fundador da Falange. Era um
indivíduo rechonchudo de meia-idade, com mãos delicadas, rosto barbeado
e cabelo encaracolado e grisalho. Usava óculos. Em cima da mesa coberta
por processos tinha uma bandeirinha vermelha e amarela e outra com as
cores vermelha e preta do partido. Uma pistola Astra calibre 9 longo, do
modelo chamado Sindicalista, servia como pisa-papéis fanfarrão.
– O capitão-tenente naval Falcó. – O Almirante fez as apresentações,
enquanto apertavam as mãos. – Ángel Luis Poveda.
– Muito prazer. Sentem-se, por favor.
Tinha uma acentuada pronúncia andaluza. O aspeto pacífico de Poveda,
pensou Falcó, destoava do seu currículo. Falangista dos primeiros
momentos – na gíria do partido dizia-se camisa velha –, com propriedades
rurais na província de Sevilha, a 18 de julho tinha-se juntado ao
Levantamento militar. O seu primeiro ato patriótico havia sido executar
pessoalmente cinco dos jornaleiros que trabalhavam nas suas terras: um tiro
na cabeça de cada um pour décourager les autres, conforme comentara a
um jornalista francês que o entrevistou mais tarde. Com o fundador da
Falange preso no cárcere republicano de Alicante desde antes do começo da
guerra, Poveda fazia parte do conselho dirigente do partido, e os militares
haviam-no encarregado a ele da parte mais visível da atividade repressora
na zona nacional, a fim de manter limpas, na medida do possível, as mãos
do Exército e da Guarda Civil. Do seu gabinete da calle del Consuelo, o
chefe do SIIF coordenava tanto certas ações parapoliciais na retaguarda
como a quinta coluna falangista que atuava clandestinamente na zona
vermelha.
– O senhor Falcó está a par da missão? – perguntou Poveda ao Almirante.
– Nada mesmo.
O falangista estudou Falcó. Atrás dos vidros redondos dos óculos, os seus
olhos eram pequenos e desconfiados. Tinha-se sentado do outro lado da
mesa e tamborilava com os dedos sobre o dossiê verde de um processo. Era
um gesto deliberado. Sem necessidade de se aproximar para ver a etiqueta
que tinha colada, Falcó soube que aquele processo era o seu.
– Tem uma biografia interessante – disse Poveda ao fim de um momento.
– O senhor também, ao que sei – contrapôs Falcó, sentindo de imediato o
olhar reprovador do Almirante.
O outro estudou-o em silêncio durante uns segundos. No fim ensaiou uma
expressão que não chegava a ser um sorriso. Sem se virar, apontou com o
polegar para trás de si, para o retrato do fundador da Falange pendurado na
parede.
– O que é que sabe dele?
Falcó disfarçou a sua surpresa, reprimindo o impulso de se virar para o
Almirante. Aquilo era completamente inesperado.
– Vi-o uma vez em Jerez – respondeu depois de pensar por momentos. –
A ele e aos seus irmãos.
– Reconhecê-lo-ia se o visse?
– Claro.
– Refiro-me a situações estranhas. Pouco usuais.
– Por exemplo?
– De noite, com pouca luz...
– Suponho que sim, se chegar a ver-lhe a cara.
O outro observou-o em silêncio, avaliador.
– E que mais sabe dele?
– O mesmo que toda a gente, suponho. Que é advogado, filho do general
Primo de Rivera... Que é culto, bonito, agrada às mulheres e fala línguas.
Que admira mais Mussolini do que Hitler, que é um fascista convicto e que
há três anos fundou a Falange Espanhola. Também sei que foi encarcerado
pela República em março, que em julho o Levantamento Nacional o
surpreendeu preso em zona vermelha e que ali continua. Na prisão de
Alicante.
– O senhor simpatiza com a causa falangista?
Falcó aguentou o seu olhar, impassível.
– Eu simpatizo com várias causas.
O outro dirigiu uma breve olhadela ao dossiê do processo. Depois apoiou
um dedo nele.
– Ao que sei, sobretudo com a sua própria... A sua causa, seja esta qual
for.
– Principalmente.
O Almirante pigarreou. Tirou o lenço, assoou-se e voltou a pigarrear. O
seu olho direito fulminava o falangista.
– As simpatias políticas do capitão tenente-naval Falcó não vêm ao caso –
disse ele em tom irritado. – Está completamente ligado ao Movimento
Nacional e é um elemento experiente e valioso, de extrema eficácia... Desde
o 18 de julho que leva a cabo importantes serviços, com grande risco para a
sua pessoa. Por isso é que foi designado para esta missão. Isso é suficiente.
– Naturalmente – concedeu Poveda. – Mas é sempre bom saber com que
pé é que coxeamos.
Falcó tinha tirado a cigarreira e acendia um cigarro. Fechou o isqueiro
com um estalido.
– Eu coxeio consoante o pé que me pisarem.
– Eu disse que já chegava – atalhou o Almirante; depois olhou para
Poveda. – Vamos lá de uma vez por todas ao assunto... Explica-lhe o senhor
ou explico-lhe eu?
O falangista atirou-se para trás no banco, olhou para a pistola pousada
sobre os papéis e depois para Falcó.
– Vamos libertar o José Antonio – disse ele à queima-roupa.
Falcó estava há dez minutos a recear ouvir aquilo. Sobretudo, a parte que
lhe ia calhar a ele.
– Quem? – perguntou ele.
– Nós, a Falange. A Espanha digna e decente. O lugar do nosso fundador
é aqui, em Salamanca. Participando ativamente neste novo amanhecer de
Espanha. A dirigir os seus camaradas.
Pegou num mapa militar que estava dobrado em quatro de um lado da
mesa e abriu-o à frente dele. Era uma parte da costa que incluía Cartagena e
Alicante.
– Há quem diga, com má intenção – prosseguiu –, que a Franco lhe
convém que o José Antonio continue preso onde está. Que não lhe faça
sombra. Mas aqueles que insinuam isso não fazem a menor ideia do que o
Caudilho pensa e vamos demonstrá-lo... O quartel-general está
entusiasmado com o assunto: uma operação audaciosa para libertar o nosso
chefe e trazê-lo connosco. – Olhou para o Almirante como que a solicitar a
sua confirmação. – Ofereceram-nos todo o seu apoio.
– É verdade – fez notar o Almirante, que olhava para Falcó. – Por isso
estamos aqui.
Poveda indicou alguns lugares no mapa.
– Temos gente em zona vermelha. Gente corajosa e de confiança. Está
previsto o desembarque de uma pequena e seleta força de falangistas que se
unirá aos que já lá temos.
– Um golpe de mão? – interessou-se Falcó.
– Sim. Contra a prisão de Alicante.
– E a evacuação?
– Por mar.
O Almirante assentiu.
– Os nossos amigos alemães e italianos colaboram – disse ele debruçado
sobre o mapa. – Isso ainda está a ser delineado. – Indicou um lugar. – Ele e
os seus resgatadores serão recolhidos perto do cabo de Santa Pola.
– E qual é a minha parte?
Poveda dedicou a Falcó outro dos seus meios sorrisos. O segundo. Não
parecia pródigo nisso.
– O senhor é a ligação principal. Vai cruzar as linhas e irá pôr-se em
contacto com a nossa quinta coluna em Cartagena, que é a base de
operações prevista. Ali é que se está a planificar tudo. Levar-lhes-á as
instruções e supervisionará os preparativos. Depois irão por terra a Alicante
para o assalto à prisão. Na noite do ataque juntar-se-á a vocês o grupo de
desembarque.
– Onde vai ser isso?
O Almirante assinalou um ponto do mapa.
– Provavelmente, aqui – disse ele –, a coberto de uns pinhais extensos
que há nesta zona. Uns terrenos fundos cobertos de pinheiros a que chamam
El Arenal.
– Que armamento é que utilizaremos?
– Bombas de mão, pistolas e espingardas metralhadoras – respondeu
Poveda. – Há cumplicidades dentro da prisão. Funcionários e guardas.
Gente conquistada para a nossa causa... Conhece Cartagena?
– Sim.
– E Alicante?
– Também.
– Excelente. Já disse que o seu trabalho será de coordenação e ligação.
Pôr tudo a postos.
– E porque é que não é um falangista a encarregar-se disso?
Poveda olhou por momentos para o Almirante e depois para Falcó.
– Vocês os do SNIO têm meios, contactos e experiência. Os nossos
camaradas no terreno ainda estão muito verdes. Por isso é que vai ser o
senhor a coordenar a fase prévia da operação... O chefe do nosso grupo de
assalto só assumirá o comando para o ataque à prisão. Tirando a ação
militar, o resto será assunto seu.
Falcó sorriu, deixando sair uma baforada de fumo devagar.
– A responsabilidade também, se alguma coisa correr mal... Calculo.
– Obviamente.
– Quem é que vai comandar o seu grupo de assalto?
– Um camarada de extrema confiança, que está a regressar agora do Alto
del León... Um herói de guerra. Chama-se Fabián Estévez e vai conhecê-lo
esta tarde ou amanhã, assim que ele chegar a Salamanca. Está prevista uma
reunião entre vocês os dois, para os pormenores. – Olhou para o relógio. –
Eu não poderei estar presente porque vou viajar daqui a pouco para Sevilha.
– E o que farei eu quando embarcarem com o resgatado, se tudo correr
bem?
– Poderá escolher entre regressar com eles ou fazê-lo por sua conta. O seu
trabalho terá acabado.
Falcó assentiu enquanto dirigia um breve olhar ao Almirante. Esperava
dele alguma palavra, ou um gesto qualquer. Algo que desse por concluída a
conversa. Mas o chefe do SNIO mantinha-se inexpressivo e silencioso. E
aquele silêncio inquietava-o.
*
Estava-se bem ao sol na esplanada do café Novelty. Sentado debaixo de
um dos arcos da praça, muito perto da Câmara, de cuja varanda pendia a
bandeira nacional, Lorenzo Falcó ouvia o Almirante. Era a hora do
aperitivo, por isso tinham pedido vermute e azeitonas. As mesas próximas
fervilhavam de botas lustrosas e uniformes caqui de oficiais, casacos de
couro sobre camisas azuis, boinas vermelhas de requetés carlistas, bonés de
pala e bivaques legionários com borla. Assim que deixaram o gabinete de
Poveda, Falcó tentou ir ao seu hotel, que ficava a um passo, para mudar de
roupa; mas o seu chefe impediu-o. Quero tomar qualquer coisa contigo
enquanto estás vestido com o uniforme, disse ele. Nunca se vê gente da
Armada em Salamanca, por isso vamos passear um pouco pelo pavilhão.
Para que vejam que também nós, os marinheiros, contribuímos para libertar
Espanha da barbárie marxista, da maçonaria liberal e de outros perniciosos
afins.
– Eu sou apenas um marinheiro acidental.
– Tu és, para já, o que eu te disser.
Agora, em voz baixa, com meias-palavras e bebendo golinhos ao seu
vermute entre chupadelas a um cachimbo vazio, o Almirante forneceu a
Falcó alguns pormenores adicionais. Havia um antigo funcionário da
penitenciária de Alicante: um que tinha sido subdiretor e a quem o
Levantamento surpreendera na zona nacional, a visitar a família. Agora
estava na prisão de Salamanca, por filiação socialista. Certamente que
acabaria fuzilado, mas antes podia ser útil para lhes contar como era a
prisão de Alicante por dentro. Traçar-lhes um plano pormenorizado.
– Se o vão fuzilar, não acredito que coopere – opinou Falcó.
– Tem família. Será fácil apertá-lo por esse lado.
– Quando é que o irei ver?
– Amanhã, quando o falangista já estiver aqui. Irão juntos.
– E o que sabemos desse Fabián Estévez?
– Os chefes dele afiançam-no às cegas. É novo e tem fama de os ter bem
no sítio. Não é desses emboscados de retaguarda que acodem em socorro do
vencedor. Este estudava Direito e era dos que vendiam o jornal da Falange
nos bairros operários, com um exemplar numa mão e a outra no bolso onde
levavam a pistola. Cartão do partido número trinta e tantos... Participou no
Levantamento em Toledo, e quando a sublevação fracassou aí ficou a
resistir no Alcázar, com o general Moscardó, até que os libertaram. Então,
em vez de passear pelos cafés a contar batalhazinhas como outros fazem,
foi como voluntário para a frente de batalha, batendo-se em Guadarrama
que nem um tigre.
– Parece-me bem para esta questão.
– Pois claro. A ele não lhe cabe pensar, mas sim pôr tudo de pernas para o
ar. E de certeza que o fará bem. O resto já te pertence a ti.
Falcó ficou calado por momentos. Tentava encaixar peças, mas algumas
escapavam-lhe.
– Porquê eu? – inquiriu por fim.
– És o melhor que eu tenho.
Aguentaram por instantes o olhar um do outro. Conheciam-se desde que
Falcó traficava por sua conta e o Almirante tivera de optar entre liquidá-lo
ou incorporá-lo ao seu serviço. Por fim, depois de uma noite de vodca,
charutos e conversa no porto romeno de Constanza – perto do barco onde
Falcó estava prestes a estivar um carregamento de vinte metralhadoras
Maxim russas –, o Almirante decidira recrutá-lo para a então jovem
República; tal como mais tarde, em vésperas do 18 de julho, o recrutou para
a sublevação contra aquela mesma República. Sabendo, é claro, que se as
lealdades do próprio Almirante tivessem sido outras, também teria podido
convencê-lo a unir-se ao lado contrário. O único comentário de Falcó
quando ele lhe apresentou o golpe militar tinha sido: «Estamos a favor ou
contra?»
– Não te perguntei como é que te correu com o Schröter – disse o
Almirante.
– Correu bem.
– De que é que falaram?
O olhar estrábico e bicolor do Almirante estudava-o com interesse. E
também com cautela, julgou notar Falcó.
– Da missão, apesar de ter sido só um pouco – respondeu ele. –
Confirmou-me que a Kriegsmarine está metida no assunto... Até se
interessou pelos meus anos de juventude, quando eu fazia negócios com os
russos brancos e tudo isso. Pelos vistos, ele também andava então pelo mar
Negro, num dos barcos da força internacional.
– Que coincidência!
– É o que parece.
O Almirante mostrou uma cintilação de interesse irónico.
– Foi quando te feriram na retirada para Sebastopol, e estiveste prestes a
deixar-te apanhar pelos vermelhos como um idiota?
– As pessoas falam muito. – Falcó sorria com uma inocência que teria
convencido um advogado de acusação. – E dizem qualquer coisa.
O outro sorriu em torno do cano do seu cachimbo.
– Essa é a parte menos conhecida da tua biografia de bandido elegante. É
normal que alguns sintam curiosidade.
Falcó fez um gesto impreciso.
– Não há segredo nenhum... Quando me expulsaram da academia, os
meus pais mandaram-me para longe, com uns parentes, para ver se eu
assentava a cabeça. E, bom, não assentei muito. O senhor sabe isso tudo de
sobra.
– Sim. Mas às vezes olho para essa tua cara de falso bom rapaz e
esqueço-me. Até a mim me vendes gato por lebre de vez em quando.
– O senhor está a ofender-me – sorriu Falcó.
– Cala o bico, ou dou-te um castigo que nunca mais esqueces. Juro que te
fecho num castelo, com grilhetas.
– E então quem é que ia dançar com a mais feia?
– Cala-te, já te disse.
– Às suas ordens.
No olho direito do Almirante cintilava um brilho de estranha inteligência.
Falcó inclinou-se um pouco para o seu chefe.
– Há alguma coisa que não me tenha dito, e que eu deva saber?
O outro ficou um momento em silêncio. Primeiro negou com a cabeça e
depois baixou a voz.
– O Caudilho está pessoalmente interessado nisto... Ontem estive com ele
e com o seu irmão Nicolás no quartel-general, e deixou as coisas muito
claras. Quer trazer para aqui o ilustre preso. A qualquer custo. Pelos vistos
Mussolini, que simpatiza com a Falange, pressionou-o muito.
– Muito nobre da sua parte – ironizou Falcó. – Sobretudo se no final tiver
de acabar por lhe ceder o poder.
O Almirante observava a última azeitona que restava no prato. Pensativo.
– Disso já não tenho a certeza. O general Franco é galego.
– Como o senhor.
– Mais ou menos. – O Almirante sorriu.
– Desses que uma pessoa não sabe, quando se cruza com eles na escada,
se sobem ou se descem.
O sorriso do outro acentuou-se.
– Com o Caudilho nem sequer sabes se sobe, se desce ou se está parado.
Falcó pegou num palito, picou a azeitona e meteu-a na boca. Uma nuvem
tinha escurecido a praça.
– E consigo também não, Almirante.
Viu Chesca Prieto ao longe quando estavam prestes a levantar-se.
Atravessava a praça vindo das arcadas próximas do café, passou diante das
mesas e Falcó seguiu-a com o olhar, interessado. Vestia um sobretudo de
tecido bege com lapelas de veludo, muito elegante, e na cabeça trazia um
chapéu de aba curta quase masculino, adornado por uma pena. O Almirante
surpreendeu o olhar de Falcó. A sua forma de descruzar as pernas e ficar
imóvel.
– Conhece-la?
– Apresentaram-nos ontem à noite, no Casino. Conheço o cunhado dela.
– E o marido?
– Vagamente. – Falcó pôs-se de pé, ajustando a gravata. – Desculpe,
senhor Almirante.
O Almirante continuava a observá-lo da sua cadeira enquanto chupava o
cachimbo vazio. Agora parecia divertido.
– Ela é caça grossa, rapaz.
– Grossa como?
– Conheço-lhe dois amantes... Um é comandante de aviação, primo do
general Yagüe; e o outro, marquês de qualquer coisa.
– Ainda estão no ativo?
– Disso não tenho dados. Mas o Pepín Gorguel, o marido, é um bicho
mau. E anda com pistola.
– Está na frente de Madrid – disse Falcó. – A salvar a pátria.
Esticava o casaco azul-marinho. Depois inclinou ligeiramente o chapéu
para o lado, sobre os olhos. Sorria.
– Que aspeto é que eu tenho, Almirante?
O outro estudou-o com olho crítico.
– Até de uniforme – concluiu – tens pinta de chulo de putas.
– Estava melhor na vida com esse ofício do que neste.
– Sai daqui.
*
Apressou o passo até a alcançar na embocadura da passagem e ela
mostrou-se surpreendida a princípio. Abordou-a com naturalidade, tirando o
chapéu para o pôr debaixo do braço antes de apertar a mão enluvada em
pele fina que ela lhe estendia. Que coincidência, que belo dia de sol e tudo o
resto. Falcó desfiou o ritual social oportuno com uma cortesia impecável
enquanto a mulher se mostrava satisfeita com o encontro. Os seus olhos de
trigo verde sorriam luminosos, clareando sob a luz da manhã. Faziam um
belo contraste, decidiu Falcó, com a pele morena e com aquele nariz
atrevido que lhe dava aspeto de cigana elegante, que subiu na vida desde a
mercearia onde a bisavó dançava, refinada depois de um par de gerações de
belas mulheres amadas em estúdios de pintores, pátios interiores com
azulejos e salões luxuosos de capital de província. Pensou no comandante
de aviação e no marquês a quem o Almirante se tinha referido, e depois no
marido que comandava uma companhia de Regulares na frente de Madrid, e
sentiu uma pontada urgente em que se misturavam desordenadamente os
ciúmes, a emulação e o desejo.
– Aonde vai, Chesca?
– Ao Auxílio Patriótico. Tenho coisas para fazer lá.
– Admirável... Contribui, então, para o esforço da Cruzada Nacional?
– Claro que sim. – Sorria trocista, como se a pergunta a tivesse ofendido
um pouco. – Qual a espanhola que não o deve fazer?
– Tem razão. Gostaria de a acompanhar.
– Nada o impede.
Caminharam até à calle Bordadores, devagar. Ela olhava para o uniforme
dele.
– O senhor também contribui para o esforço da Cruzada, pelo que vejo.
– Um pouco.
– No entanto, o mar mais próximo está a trezentos quilómetros.
– Bom... Hoje em dia as distâncias não são o que eram.
– Sim. – Virava-se a estudá-lo de vez em quando, avaliadora. – De
qualquer modo, esse uniforme assenta-lhe muito bem.
– Não costumo usá-lo muitas vezes.
– Foi o que supus. Ontem à noite concluí que se sente mais à vontade
dentro de um smoking. E o meu cunhado confirmou-mo.
– O bom Jaime... O que lhe disse ele de mim?
– Que o senhor é um valdevinos, em resumo.
– E em pormenor?
– Que é de boas famílias. Que é descarado e mulherengo. Que o
expulsaram de todos os colégios e instituições que frequentou. Que os seus
pais o mandaram para o estrangeiro para se verem livres de si, e que depois
se perdeu o seu rasto quanto a atividades, embora se suponham duvidosas...
O que Jaime não disse é que o senhor era oficial da Armada.
– É só provisoriamente. Enquanto a guerra durar.
– Pouco tempo, então. Todos dizem que Madrid cairá antes do Natal.
– E o seu marido regressará, suponho.
Um relâmpago verde atravessou os olhos da mulher. Fugaz. Impossível
averiguar se era de diversão ou de cólera.
– O senhor é sempre assim?
– Assim como? – Falcó sorriu.
– Tão convencido. Tão seguro de si mesmo. Tão seguro de tudo.
– Tem dias.
– E hoje é um desses dias?
Olhou para ela com cara de bom rapaz. Diretamente nos olhos.
– Depende de si.
– Lisonjeia-me.
– É o que pretendo.
Tinham parado por momentos. Inclinou o rosto, pensativa, abraçou a
mala no colo e caminharam de novo.
– Quero vê-la, Chesca.
Ela continuava a olhar para o chão, para a frente das suas botas de salto
alto.
– Já me está a ver.
– Quero vê-la logo. Depois de acabar o Auxílio Patriótico. Hoje. Deixe-
me convidá-la para almoçar.
– Impossível. Tenho um compromisso.
– Então vemo-nos esta tarde.
– Impossível também. Combinei com umas amigas ir ver Nobleza
Baturra no Coliseum... Adoro a Imperio Argentina e o Miguel Ligero.
– A senhora já viu esse filme. Toda a Espanha já o viu vinte vezes.
Quando por fim ela ergueu o rosto, Falcó viu ironia nos reflexos
esmeralda.
– E o que me oferece como alternativa?
– Uma bebida num lugar agradável. – Depois de pensar um segundo,
decidiu arriscar um pouco. – O barman do Gran Hotel prepara uns cocktails
magníficos.
O tiro tinha caído longe.
– Ficou louco?... Não posso ir consigo ao bar do Gran Hotel.
– Se preferir, posso acompanhá-la de uniforme, como agora. Isso daria a
tudo um aspeto respeitável.
– O senhor não tem aspeto respeitável nem de uniforme, senhor Falcó.
Muito pelo contrário.
– Chame-me Lorenzo, por favor.
– Não penso chamar-lhe coisíssima nenhuma. – Ela apontou para o
edifício onde ficava o Auxílio Patriótico. – Já chegámos.
Falcó não se deu por vencido. Sabia interpretar olhares de mulher. Sabia
perscrutar os seus silêncios.
– Há um parque de merendas agradável junto à ponte romana, sobre o rio
– disse com muito sangue-frio. – E está bom tempo. Podíamos dar um
passeio até lá e ver o pôr do sol.
– Ena! – Agora olhava para ele com sarcasmo. – O senhor também é um
romântico.
Retomou a expressão de bom rapaz. Tinha observado que ela não lhe
estudava os olhos, mas sim a boca. E às vezes também as mãos.
– Não acredite – contestou ele. – Tem dias. Ou momentos.
A mulher soltou uma gargalhada aberta, quase luminosa.
– Não se cansa um pouco de estar sempre a fazer de sedutor?
– A si não lhe dói a cara de ser tão bonita?
Ficou séria, de repente; mas os olhos de trigo verde continuavam a rir.
– Oiça, senhor Falcó...
– Lorenzo.
– Isto está a parecer-se muito com assédio e molestamento, senhor Falcó.
– O assédio acabo de o fazer... Agora falta-me molestar.
Por segundos temeu que ela lhe assentasse uma bofetada no rosto. Mas
ela limitou-se a olhar para ele muito fixamente, imóvel, durante um tão
grande bocado que ele chegou a dar tudo por perdido. No fim, ela apertou
mais a mala contra o regaço e fez um movimento estranho com a cabeça,
como se acabasse de ouvir um som remoto que tentasse identificar.
– Vá ao parque de merendas amanhã ao meio-dia – disse ela com voz
opaca.
– Lá estarei... A que horas é que a senhora irá?
– Eu não disse que ia.
Falcó assentiu, assumindo as regras.
– É verdade. Não disse.
4

VERDUGOS INOCENTES
A prisão da província de Salamanca tinha sido construída para uma centena
de presos, mas desde 18 de julho que haviam entrado mais de mil. E
notava-se. A sobrelotação era enorme. Os conselhos de guerra e as
execuções que frequentemente se lhes seguiam aliviavam um pouco as
celas, mas os lugares livres voltavam a encher-se logo. A nova Espanha
nacional e católica tinha pressa em arrancar a má semente esquerdista, e
para isso contribuíam os chamados traslados: um grupo de falangistas ou
requetés apresentava-se com a ordem escrita de levar determinados reclusos
para outra prisão, à qual estes nunca chegavam, pois acabavam numa vala,
num prado ou num poço – aquilo também era conhecido como dar o
passeio. Lorenzo Falcó sabia tudo isso quando ia a atravessar o recinto de
segurança externa, observando as guaritas de onde espreitavam as carabinas
da Guarda Civil.
– Triste lugar – disse Fabián Estévez.
Falcó olhou-o com curiosidade. Tinham-se conhecido três horas antes, no
gabinete do Almirante. Vestiam os dois à civil. Estévez tinha o maxilar
quadrado e o olhar ao mesmo tempo enérgico e distante, velado por anos de
tensão e clandestinidade a que nos últimos meses se haviam juntado os
sofrimentos e a guerra. Usava o cabelo, preto e empastado, penteado para
trás sobre uma testa ampla, com entradas, e isso acentuava uma certa
parecença com o seu líder, José Antonio Primo de Rivera. Falcó simpatizara
com ele. Era um rapaz educado, sóbrio, pouco falador. Tinha atendido com
respeito as indicações do Almirante, discutido com Falcó os pormenores da
operação, e mostrara-se, sem reservas, disposto a tudo quanto se esperava
dele. Um dos pormenores que tinham suscitado a simpatia de Falcó era o
facto de, ao contrário de outros falangistas, Estévez não levar a camisa azul
por baixo do casaco e do sobretudo, mas sim uma simples camisa branca
com gravata de tricô. Não fazia alarde da sua condição nem da sua patente –
era chefe de uma centúria de tropas de choque – como também não dissera
uma única palavra sobre a sua participação recente na defesa do Alcázar de
Toledo e nos duríssimos combates que se travavam em torno de Madrid.
– Há que sanear Espanha, suponho – deixou cair Falcó para o
experimentar, e olhou para ele de lado.
– Prefiro saneá-la na frente. Isto cheira a revanche e a vergonha.
– Pois receio que estejamos, a bem dizer, só no princípio. Segundo a rádio
e os jornais, os vermelhos correm a render-se em massa.
– Isso é mentira. Eu venho de lá... Eles lutam com gana. Defendem o seu
terreno palmo a palmo, e quando caem fazem-no lutando com muita
coragem.
Falcó continuou a olhar para ele com curiosidade.
– Nada de acabar pelo Natal?
– Claro que não. Isso é propaganda.
– Será longo e sangrento, então?
– Imagine. A melhor infantaria do mundo contra a melhor infantaria do
mundo.
Foram recebidos pelo diretor da prisão, acompanhando-os através de uma
galeria em que uma longa fila de janelas lhes iluminava, na parede oposta,
uma escada com passarela de ferro e dois andares com portas de celas. Não
havia aquecimento e o frio ali dentro era intenso. Ouvia-se o rumor de
vozes distantes, som de grades a fechar, e o barulho dos passos tinha ecos
sinistros. De caminho, o diretor pô-los ao corrente do currículo do homem
que visitavam: filiado no Partido Socialista, antigo subdiretor da prisão de
Alicante, surpreendido pelo Levantamento na zona nacional enquanto
visitava a sua família. Tinha tentado fugir para Portugal, mas prenderam-no
em Béjar. Agora estava numa cela com outros quinze homens, à espera do
conselho de guerra que estabeleceria as suas responsabilidades.
– A mãe vive em Alba de Tormes e é viúva de um deputado socialista.
Está sob vigilância, claro... Um irmão alistou-se na Falange, supomos que
para se proteger um pouco.
O preso chamava-se Paulino Gómez Silva e aguardava num
compartimento de paredes cinzentas cujo único mobiliário era composto
por uma mesa, três cadeiras e um retrato do Caudilho pendurado na parede.
O diretor deixou-os sozinhos com ele e fechou a porta. Gómez Silva era um
indivíduo baixo, macilento, com cara de furão e olhos míopes e
assustadiços. Estava vestido com um fato cinzento sujo e cheio de rugas,
sapatos sem atacadores e uma camisa desprovida de colarinho, muito
coçada nos punhos. Os três sentaram-se e, sem mais preâmbulos, Fabián
Estévez desabotoou o sobretudo, tirou do bolso interior uma planta dobrada
em quatro e estendeu-o em cima da mesa.
– Reconhece isto?
O outro olhou para a planta e depois ergueu o olhar para eles.
Surpreendido e desconfiado.
– Os senhores quem são?
– Isso não lhe interessa. Responda à pergunta que lhe fazemos.
Reconhece o sítio?
Gómez Silva pestanejou, confuso.
– Pois claro. É a prisão de Alicante.
– Descreva-a com pormenor para nós e assinale cada sítio na planta.
– Não tenho os meus óculos. Partiram-mos quando me prenderam.
– Aproxime-se. Eu ir-lhe-ei dizendo.
Fê-lo, dócil, com toda a precisão, respondendo a cada pergunta que lhe
formulavam. Porta principal, porta secundária, distâncias, muros, pátios,
galerias, celas. Ao falar tremiam-lhe as mãos, bem como o queixo mal
barbeado onde despontavam pelos grisalhos. Os dedos com que pegou no
cigarro que Falcó lhe oferecia mostravam as unhas compridas e sujas.
Durante um segundo passou uma luz de agradecimento pelos seus olhos de
animal espancado.
– Há muito tempo sem fumar? – interessou-se Falcó.
– Três meses.
– Deve ser duro.
O outro dirigiu um rápido olhar a Fabián Estévez e para a outra porta.
– Não é o mais duro daqui.
– Sim.
O falangista puxara de um caderninho de napa e um lápis e tomava notas:
a entrada, os três corpos de edifícios, os oito pátios, a capela, as grades e a
altura dos muros. Assentava tudo friamente, com croqui e uma letra
apertada, minuciosa. De vez em quando, o preso olhava para Falcó com
uma interrogação muda nos olhos. Quando acabou de fumar o cigarro, este
ofereceu-lhe outro.
– Acho que é suficiente – disse Estévez guardando o caderno.
– Não precisam de mim para mais nada?
– Não.
Falcó e o falangista puseram-se de pé. Gómez Silva continuava sentado, a
olhar para eles com cara de desconcerto.
– Isto irá beneficiar-me de alguma forma?
– Seguramente – mentiu Falcó.
– Estou há três meses à espera de julgamento. Temo que qualquer dia
agarrem em mim e me levem sem mais nem menos, como a outros.
– Tranquilize-se. O seu caso seguirá um curso completamente legal. Tem
a nossa garantia.
Gómez Silva agarrava-se à esperança. Ou queria fazê-lo. O cigarro
tremia-lhe entre os dedos.
– Eu sou afeto ao Movimento Nacional, não tenham dúvidas. Reconheci
os meus erros políticos... Um irmão meu até milita na Falange.
Enquanto Estévez batia à porta, Falcó esvaziou a sua cigarreira e pôs os
cigarros nas mãos do preso, que lhe devolveu um olhar de agradecimento.
Lá fora aguardava o diretor, que os acompanhou de novo pelos pátios e
galerias até à porta.
– Há um pormenor – disse-lhe Estévez quando se despediam. – Por
razões de alta importância, convém que o preso não volte para junto dos
seus companheiros durante uma temporada... Recomendo a incomunicação.
– Verei o que posso fazer. Já viram que aqui não sobra espaço e isto cada
vez é pior.
– As minhas ordens são apoiadas pela chefia da Falange e pelo quartel-
general do Caudilho. É preciso evitar que esse indivíduo fale com outros
reclusos. Nada do que foi dito ali dentro se deve comentar.
O diretor franzia o sobrolho.
– Quanto tempo é que isso tem de durar?
– Quatro semanas, no mínimo.
O outro pareceu aliviado.
– Oh, nesse caso não há problema. Chegaram-me os papéis precisamente
ontem. Vai ser julgado dentro de três dias. E com os antecedentes dele...
*
Não falaram no automóvel durante o regresso. Nem sobre a sorte que
aguardava Paulino Gómez Silva nem sobre qualquer outra coisa. Sentados
no banco traseiro – o condutor era um soldado à civil, jovem e indiferente
–, Estévez consultava o seu caderno e Falcó olhava pela janela. Quando
saíram na calle Toro ficaram calados frente a frente, olhando um para o
outro, com as mãos nos bolsos dos sobretudos. Falcó usava chapéu e o
outro não. Poucos falangistas o usavam.
– Quando é que você se vai embora? – perguntou Estévez.
– Amanhã.
– Vai por terra?
– Sim.
– Atravessar as linhas é perigoso.
– Não será a primeira vez.
– Sim. Já me disseram isso.
Estévez sorria um pouco, e ainda parecia mais novo ao fazê-lo. O sorriso
era triste como o de quem vira demasiadas coisas em breve tempo. Um tipo
melancólico, pensou Falcó, com o passado e o futuro pintados na cara.
Aquele não era, concluiu, dos que sobreviviam.
– E o que lhe disseram mais?
– O suficiente. Como a si acerca de mim, penso.
– Convém saber com quem é que vamos arriscar.
– E eu que o diga!
Ia tirar a cigarreira quando se lembrou de que estava vazia. O outro
olhava mais além, como se a cabeça tivesse ido para coisas distantes. No
dia anterior, o Almirante contara a Falcó que na defesa do Alcázar de
Toledo, quando os vermelhos conseguiram pôr o pé e uma bandeira nas
ruínas da fachada norte, Estévez havia sido um dos cinco voluntários que,
só com pistolas e a trepar por escadas de mão ligadas com cordas, tinham
subido por ali para desalojar o inimigo.
– Como disse na reunião com o seu chefe – comentou o falangista após
um momento –, os camaradas com que você irá contactar são de primeira
classe. Gente sólida e valente.
– Têm de ser, para atuarem onde estão – admitiu Falcó.
– Sabem o que arriscam. Pode confiar por completo nos dois irmãos de
que lhe falei, Ginés e Caridad Montero... Conheço-os pessoalmente.
Tinha falado com uma fé segura, quase vibrante, das que não admitiam
vacilações nem dúvidas. Um tom de certo modo ingénuo, pensou Falcó,
feito de lealdades e de camisas bordadas com o jugo e as setas, em tempos
pretéritos, ou em raros lugares onde ser falangista não era ainda um meio de
medrar e ajustar contas, mas sim um acaso clandestino e perigoso. Um
ritual de eleitos e crentes, camisas velhas que se sonhavam heróis um
minuto antes de serem engolidos pelos oportunistas e pelos canalhas.
Algo tão velho como o mundo.
– Ver-nos-emos nessa praia – disse Falcó. – Procurarei que tudo esteja em
ordem quando você desembarcar.
– É o que eu espero.
– Será em breve, suponho.
– Também espero isso. – O outro olhava em volta com um gesto
incómodo. – Este lugar não é para mim. – Surpreendeu o olhar de Falcó e
esboçou o mesmo sorriso de antes. – Talvez você compreenda... Eu sou um
soldado.
Seguiu-se um silêncio tão longo que quase se tornou incómodo.
Permaneciam em frente um do outro, como se hesitassem em despedir-se.
No seu próximo encontro, pensou Falcó, não iam ter tempo para
confidências.
– Boa sorte, Fabián.
– Boa sorte.
Apertaram a mão. Um aperto firme de ambas as partes. Depois, Estévez
girou sobre os calcanhares e foi pela rua acima enquanto Falcó o via
afastar-se. Com as mãos nos bolsos do longo sobretudo escuro, a cabeça
descoberta e ar melancólico, o falangista caminhava envolvido na aura que
rodeava os heróis, os mártires e os verdugos inocentes. Que, segundo a
experiência de Falcó, eram os verdugos mais perigosos.
*
A cafiaspirina começava a fazer efeito, dissipando a dor de cabeça de
Falcó, e também lhe causava uma sensação de lucidez otimista enquanto
contemplava a paisagem. Para lá da ponte romana, o Tormes descrevia uma
curva que refletia em tons de nácar e prata o azul nublado do céu. A velha
Salamanca de sempre, eclesiástica e universitária sob torres, cúpulas e
campanários – também castrense e patriótica há uns meses, com os alunos a
combater na frente e os catedráticos a denunciarem-se uns aos outros –,
assomava na margem oposta do rio, colorida em tons ocres e pardos. Tinha
visto vir Chesca Prieto ao longe, a atravessar a ponte em direção ao parque
de merendas, depois de ter estacionado o Renault Cabriolet de dois lugares
que ela própria conduzia. Usava um vestido aos quadrados cinzentos e
verdes com uma capinha curta sobre os ombros, boina cinzenta, sapatos de
meio salto, um toque discreto de rouge nos lábios, lápis de sobrancelhas. A
maquilhagem certa. Movendo-se tranquila e segura de si, da sua beleza e
posição social. Comparecendo ao encontro como a maior parte das
mulheres comparecia ao primeiro encontro: mais por curiosidade e desafio
do que por desejo.
– Ainda não percebi o que é que faz um oficial da Armada em Salamanca.
Não ia ser fácil, concluiu Falcó ao fim de quinze minutos de conversa.
Não naquela primeira campanha, desde logo. Ela sabia coisas sobre ele, ou
pelo menos da parte do seu passado que podia considerar-se pública. Sem
dúvida que o cunhado, que naquela mesma manhã voltara a incorporar-se
na guerra, a elucidara um pouco mais a esse respeito. Isso, naturalmente,
intensificava a curiosidade da mulher, mas extremava as suas reservas.
Fazia-a adotar uma tática muito feminina baseada na suave agressão
defensiva. Tatear o inimigo e estudo de reações; nada novo no velho manual
da vida. Mas como era uma mulher inteligente, arriscava o suficiente para
deixar buracos nas trincheiras: convites para penetrar por esses buracos,
com risco e benefício de quem o tentasse.
– Sim, disse-lhe.
– Não é verdade. Não me disse nada. Além disso, ao que sei, foi expulso
da Marinha quando era novo.
– O Levantamento mudou as coisas. Precisavam de gente. Readmitiram-
me.
– Segundo o meu cunhado Jaime, muito desesperados devem estar para o
readmitir. Não era um rapaz exemplar, disse-me ele a rir. Assuntos de saias
e indisciplina.
– E o que é que lhe disse mais?
– Que depois andou pela América e pela Europa, metido em negócios
turvos.
– O seu cunhado é um brincalhão.
– Não acredite nisso. Os meses que esteve na frente tiraram-lhe a vontade
de brincar.
Havia uma garrafa de vinho branco e dois copos em cima da mesa. Ela
bebeu um golo do seu, pensativa. Na mão esquerda ostentava uma aliança
de ouro juntamente com um anel simples com um pequeno diamante.
– Talvez não saiba, mas cruzámo-nos em duas ocasiões – disse ela
momentos depois.
– Impossível. Lembrar-me-ia de si.
– Estou a falar a sério... Uma foi no grill do Palace, em Madrid. Eu estava
com uns amigos, o senhor jantava numa mesa próxima e alguém que o
conhecia referiu o seu nome.
– Em que termos?
– Simpático, viajado e de pouca confiança. Foram essas as palavras.
– Caramba... E onde é que me viu pela segunda vez?
– Em frente do casino de Biarritz, no parque. Há coisa de um ano. Usava
casaco azul, chapéu panamá e calças brancas, e dava o braço a uma mulher.
– Espero que fosse uma mulher bonita.
– Era, sim. E os comentários que o senhor suscitou também não foram
elogiosos. Dessa vez tratava-se de Pepín, o meu marido... Conhece-o?
Falcó assentiu, cauteloso. Terreno delicado.
– Vagamente.
– Era o que me parecia. – Sorria de forma quase cruel. – Naquele dia em
Biarritz, ele não pareceu mostrar muito apreço por si.
– Não se pode ganhar sempre. Nem com toda a gente.
– Claro. Embora não tenha aspeto de ser dos que perdem.
– Faço o que posso.
Agora Chesca olhava para ele de um modo diferente. Como se procurasse
brechas na estrutura. Cruzou as pernas e Falcó pensou que uma mulher
como deve ser sabia cruzar as pernas, fumar e ter amantes com a elegância
adequada. Sem lhes dar importância. E aquela, sem dúvida, sabia.
– É imprescindível que sejam bonitas? – perguntou ela por fim,
subitamente.
– Perdão?
– Refiro-me às mulheres da sua vida.
Falcó continuou a aguentar impávido o olhar. Se o afastasse, sabia
sobejamente, o peixe romperia a linha e escapar-se-ia com um bater de
cauda.
– Não me lembro de nenhuma mulher que o fosse tanto como a Chesca.
– Já me disse isso ontem. Certamente que dispõe de mais respostas.
Pensou por instantes. Apenas dois segundos.
– Já que todas requerem o mesmo esforço – disse ele por fim –, é
preferível que valha a pena.
– Quer dizer que pelo mesmo preço deseja obter o melhor produto?
– Mais ou menos.
– E onde é que situa as mulheres inteligentes?
– Isso e ser bonita é compatível.
– E se não for assim?
– Então prefiro a bonita.
Ela tinha estendido de novo a mão para o copo, mas não chegou a tocar-
lhe.
– É sempre tão brutalmente sincero?
– Só quando além de bonita a mulher é inteligente.
Viu que ela apoiava a mão devagar sobre a mesa. A dos anéis.
– Senhor Falcó...
– Lorenzo, por favor. Já lhe disse. Lorenzo.
– Não vai dormir comigo.
– Agora, é o que me está a dizer?
– Nunca.
– Conceda-me, pelo menos, o direito de tentar.
– Eu nos seus direitos não me imiscuo. – Continuava a manter a mão
sobre a mesa, diante dos olhos dele. – Mas sou uma mulher casada.
– Isso não tem por que ser obstáculo. Pelo contrário.
– Pelo contrário... Prefere-nos casadas?
– É conforme. Muitas vezes uma mulher casada tem coisas a perder. É
mais cuidadosa. Mais prudente.
– Não lhe complicam a vida a si, quer dizer?
Não respondeu àquilo. Não devia. Por isso pegou na cigarreira que estava
em cima da mesa e ofereceu-lha, aberta. Ela pegou num cigarro, mas negou
com a cabeça quando ele, depois de pôr outro na boca, lhe aproximou a
chama do isqueiro.
– E onde é que deixa os sentimentos?... Onde estão o amor e os afetos?
– Nada disso fica excluído. – Falcó acendeu o seu próprio cigarro e olhou
para ela entre a primeira baforada de fumo. – O que acontece é que nunca vi
a necessidade de fazer o que vocês fazem... Quase todas tomam a precaução
de se apaixonar antes.
– Para nos protegermos?
– Para se justificarem.
– Santo Deus. Que descaramento! Nunca ouvi planear com tanta frieza
um adultério.
Tinha deixado o cigarro por acender em cima da mesa, como se fosse um
objeto depreciável, antes de se pôr de pé.
– Vai-se embora?
– Naturalmente.
– Acompanho-a até ao seu carro.
– Não se incomode.
– Insisto.
Deixou uma boa gorjeta em cima da mesa, perante o olhar desconcertado
da empregada do parque de merendas, e levantou-se também. Caminharam
em silêncio incómodo pela estrutura de pedra milenar. A ponte romana
estava deserta.
Salamanca erguia-se do outro lado, monumental e casta.
– Estarei uns tempos fora – disse ele. – Em viagem.
– É-me indiferente onde quer que esteja.
– Não. Não lhe é indiferente.
Tinha parado, e ela também o fez. O rosto parecia impassível, mas
entreabria um pouco os lábios e o queixo tremia-lhe muito levemente. Com
súbita lucidez, seguindo o instinto do momento – às vezes aquilo era como
jogar xadrez –, Falcó ergueu uma mão, cauteloso, e pôs-lhe dois dedos no
pescoço, como se estivesse a ver-lhe a febre ou a pulsação na artéria. A
mulher deixou que ele assim fizesse, imóvel. E quando ele verificou que
pelos olhos verdes passava uma cintilação de ternura e calor, derretendo-os,
aproximou a sua boca da dela.
– Vou-me embora amanhã – disse ele em voz baixa, ao retirar-se. – E
oxalá estejas aqui quando eu regressar.
– Filho da puta – disse ela.
– Sim.
*
Leandro, o barman do Gran Hotel, deixou de agitar o shaker e despejou o
seu conteúdo no copo de Lorenzo Falcó. Este olhou para o copo por
momentos a contraluz, depois ergueu-o um pouco mais e tocou com o vidro
no copo do Almirante, que bebia um whisky escocês com gelo e sem água.
– À sua saúde, senhor Almirante.
– À tua, que vais precisar mais dela.
Beberam em silêncio, sem pressa.
– É bom – comentou o Almirante, satisfeito, estalando a língua. – Não é
esse marado que falsificam no Porto.
Iam vestidos à civil, como de costume, e ocupavam dois banquinhos do
recanto do balcão mais perto da porta. Àquela hora o bar era frequentado
pela clientela habitual: militares de uniforme, uma ou outra camisa azul,
correspondentes estrangeiros e proprietários rurais com cheiro a vara
campina; felizes estes últimos, depois de cinco anos de tormentos
republicanos, por terem os seus jornaleiros com a cabeça baixa ou a
apodrecer em montados e valetas.
– Quando é que te vais embora? – quis saber o Almirante. Estivera a
demorar a pergunta um bom bocado.
Falcó olhou para o relógio. Já tinha feito as malas no seu quarto: uma
mochila, roupa e botas de campo, cigarros e cafiaspirinas. Também a
Browning com três carregadores, uma navalha de mola automática e um
livro com uma chave numérica e outra alfabética. Ia levar a lâmina de
barbear oculta no lado interno do cinto.
– Daqui a oito horas passa um carro para me vir buscar.
– Madrugarei para vir despedir-me de ti.
– Não se incomode.
– Não é incómodo. Quero assegurar-me de que vais mesmo... Quem é que
te leva?
– O Paquito Araña. De carro por Sevilha até Granada e depois
desenrasco-me sozinho.
– Já voltou de França?
– Ontem.
– Bom elemento... Sabias que, mesmo maricas e tudo, foi pistoleiro de
Lerroux, em Barcelona? Que foi ele quem matou o Chiquet del Raval, entre
outros?
– Sim. Sabia.
– A parte dele no comboio, em Narbonne, correu bem. De vocês os dois,
quero dizer. Aquela mulher...
Deixou aquilo ali, fechando a questão com um trago.
– Não há diferença – disse Falcó uns instantes depois.
– Eu sei.
Falcó sorria junto ao rebordo do seu copo.
– São apenas velhos complexos, não acha?... Quando encontram as
circunstâncias certas, elas matam e morrem tal como os homens.
– Às vezes, até melhor.
Houve um longo silêncio. Depois o Almirante perguntou-lhe por onde é
que pensava atravessar as linhas.
– Atravessarei pelo setor de Guadix.
– Anda com atenção. Se os nossos te surpreenderem, podem pensar que te
estás a passar para o inimigo e dar-te um tiro sem tempo para explicações.
Sobretudo se forem os mouros: «Tu estar vermelho, eu fuzila»... Já sabes.
– Nessa parte, a frente encontra-se estável – disse Falcó. – Há uns dois
sítios bons.
O Almirante olhava para um grupo sentado numa mesa, ao fundo. Estava
a levantar-se para se despedir. Um deles usava o uniforme verde da Guarda
Civil.
– Olha quem está ali: o Lisardo Queralt. O carniceiro de Oviedo.
Falcó virou-se para o grupo. O coronel Queralt encarregara-se de torturar
e fuzilar dezenas de mineiros durante a sinistra repressão da sublevação de
1934 nas Astúrias, embora os seus dotes no campo de batalha não se
equiparassem à sua capacidade sanguinária. Durante o Levantamento tinha
levado uma coluna sob o seu comando ao mais absoluto desastre em
Navalperal de Pinares, com resultados de mortandade. Tinha sido destituído
por isso; mas cultivava boas relações no quartel-general, e a sua falta de
escrúpulos tornava-o perfeito para dirigir a repressão interna. Por isso,
Nicolás Franco, o irmão do Caudilho, nomeara-o chefe da polícia e
segurança. A secreta, como se dizia.
– Eh, caramba, que surpresa... Os rapazes que andam à vontade, ou que
assim julgam. O javali e um dos seus javalizinhos.
Parara junto deles a caminho da porta, com o tricórnio nas mãos. Era
corpulento e tinha um rosto sombrio e desagradável, com o olhar muito fixo
e os lábios grossos e pálidos. Falcó sabia que a relação de Queralt com o
Almirante era antiga e tempestuosa. Uma questão de rivalidades, ciúmes e
maus modos por parte do coronel. Mas Nicolás Franco protegia-os aos dois,
o que os punha a salvo um do outro. Para já.
– Sei quem você é – disse ele a Falcó, grosseiro. – Sei tudo.
– O que é que sabes? – inquiriu o Almirante, divertido.
– O que este teu cão de fila vai fazer. – O outro separou o polegar do
indicador aí uns dez centímetros. – Tenho um processo assim grosso sobre
ele. O tráfico de armas e algumas mortes à conta disso. Ou seja, tudo.
– Há sempre um quase. – O almirante sorriu com chacota.
Falcó olhava para Queralt sem descolar os lábios. Este dirigiu um olhar
sinistro ao Almirante.
– Brinquem aos espiões enquanto puderem.
Dito isto, foi com os outros. Falcó continuava a olhar para ele.
– Esse filho da mãe chateia mais do que um prego num sapato –
comentou o Almirante.
– E o que é que ele diz que sabe?
– Não te preocupes com isso.
Falcó deixou o copo vazio no balcão.
– Como é que não me preocupo?... Sou eu quem se vai meter na zona
vermelha. Queralt estará a par do que eu vou fazer?
– Talvez.
– Talvez?... É um assunto público ou quê?... Primeiro a Falange, agora a
polícia. Fica alguém por informar acerca das minhas coisas em Alicante?
O Almirante olhava para um lado e para o outro.
– Baixa a voz, caralho.
– Tanto faz eu baixar como não. Porque já me estou a ver, com foto
incluída, na primeira página do El Adelanto.
– Estás a exagerar. É natural que certa gente tenha sido informada.
– Isso também inclui o outro lado?
– Basta. – Olhou para ele com severidade. – Não me faças cenazinhas de
rufião ofendido. Sabes como isto funciona, com toda a gente a meter a
colher na sopa... Por outro lado, há coisas que me preocupam mais.
– Mais do que os vermelhos estarem à minha espera com banda de
música?
O outro fez soar o gelo no seu copo.
– Fala-se de unificar os serviços secretos e a polícia nos próximos meses.
Com um só comando geral. E se for sob o de Queralt, podemos considerar-
nos todos fodidos.
Falcó tinha a boca aberta.
– Péssima notícia.
– Bem podes dizê-lo.
– O que é que lhe acontecerá a si?... E ao SNIO?
O Almirante tinha tirado do bolso um cachimbo Dunhill e uma bolsa com
tabaco e enchia a fornalha com parcimónia, pressionando com o dedo
polegar.
– Não faço a mínima ideia – respondeu. – Por isso espero que a tua
questão corra bem. Não seria mau mostrarmos um trunfo espetacular nesta
corrida para ver quem é que manda e, de passagem, fazer a vida negra aos
outros.
Falcó bufou, abatido. Estava a desejar, pensou, encontrar-se longe dali,
em zona inimiga. Dono da sua própria sorte, atos e destino. No campo de
operações, pelo menos, as coisas estavam claras: eram todos inimigos
declarados e podia agir-se com eles como tal. Matar ou morrer convertiam-
se em coisas simples. Não obrigavam, ainda por cima, a dar voltas à cabeça.
– Ofereça-me outra bebida, Almirante. – Encolheu os ombros. – É o
mínimo.
– Disseste que eras tu que oferecias. Por isso é que pedi um whisky
escocês.
– Mudei de ideias.
Enquanto o barman agitava novamente o shaker, Falcó viu Greta Lenz
atravessar o vestíbulo a caminho do seu quarto. Sabia que o marido estava
fora, em Burgos, a resolver um assunto de negócios. Só ia voltar no dia
seguinte.
– Sirva-o ao senhor, Leandro. O hupa-hupa.
– Eu não bebo essas paneleirices – grunhiu o Almirante.
– Então beba outro whisky escocês. Eu tenho de ir.
Levantou-se do banquinho, dirigiu um sorriso de despedida ao Almirante
e caminhou até ao vestíbulo ajustando o nó da gravata. Ainda pensou um
momento em Chesca Prieto, apenas cinco segundos até carregar no botão
do elevador e esquecê-la.
5

MATAR NÃO É DIFÍCIL


M atar não é difícil, pensou Lorenzo Falcó. O difícil era escolher o
momento e a forma. Matar um ser humano parecia-se com jogar ao sete
e meio, pois uma carta a mais ou a menos podia dar cabo de tudo. Matar por
improvisação ou arrebatamento estava ao alcance de qualquer imbecil.
Também se pode fazer por se julgar impune, caso muito frequente em
tempos como aqueles. No entanto, matar de forma adequada, impecável,
profissional, era outra coisa. Palavras maiores. Ali requeria-se altas doses
de intenção, sentido de oportunidade, frieza de juízo e um certo grau de
prática.
Também era preciso paciência. Muita. Para matar ou para não o fazer. Há
um bom bocado que Falcó permanecia imóvel, agachado junto ao pilar da
ponte. A Lua, que estava em quarto crescente, iluminava entre nuvens a
azinhaga coberta de canaviais e o declive que levava ao outro lado, onde a
estrada continuava para Guadix. Sobre a sua cabeça, a uns dez metros, dois
homens fumavam e conversavam. De baixo podia ver as suas silhuetas e as
brasas dos cigarros na escuridão, ali onde acabava o parapeito de pedra. Um
pouco mais longe via-se o telhado de uma guarita e as formas escuras de
uns sacos de trincheira.
Tinha sido um erro. Depois de deixar para trás as trincheiras nacionais
pela zona de Guadix, de onde se pôde infiltrar sem chamar a atenção, Falcó
vadeara o rio Darro e caminhara toda a noite pelo lado direito da estrada,
afastando-se desta, mas sem nunca a perder de vista. Faltavam duas horas
para a alvorada quando, julgando-se longe das linhas de vanguarda
republicanas, se tinha aproximado da estrada, encontrando-se ali com a
ponte e o controlo militar inesperado. Quase dera de bruços nas sentinelas.
Pelo que podia ver e ouvir, eram dois homens. A sua pronúncia parecia
local, daquela zona de Granada. Falavam de coisas banais, do frio, da
guerra, da colheita perdida naquele outono e do tempo que faltava para
serem rendidos. Talvez tivesse sido relativamente fácil subir com cautela e
matá-los, mas Falcó preferia ser paciente. Alguma coisa podia correr mal, e
de qualquer modo ainda lhe restava tempo.
A mochila magoava-lhe os ombros naquela posição, mas não se decidia a
tirá-la. Não queria fazer qualquer barulho. Embora, por outro lado, tivesse
de se desembaraçar dela, caso se visse obrigado a lutar. Num bolso do
blusão de cabedal que levava sobre o macacão azul – vestia roupas de
soldado republicano, com a correspondente documentação falsa para o
acreditar – tinha a pistola carregada, com uma bala na câmara e a segurança
ativada, e no outro a navalha automática cuja lâmina de quase um palmo de
comprimento se abria carregando num botão. Mas não era forma de
começar aquela missão, procurar problemas adicionais. Os de cima iam
acabar por se retirar dali. Então, abandonaria o esconderijo para se afastar
pela azinhaga, faria um rodeio e poderia continuar o caminho para Guadix
deixando a ponte e o posto para trás.
– Deixo-te aqui a carabina – disse uma das sombras. – Vou ali arrear o
calhau.
Devia ter previsto aquilo, penso Falcó rapidamente, maldizendo-se.
Pensado antes. Aquele era o seu segundo erro da noite. Um mau começo.
Debaixo da ponte cheirava a sujidade, a excrementos humanos. Era, sem
dúvida, o lugar usado como latrina pelos homens de cima. Um mau sítio
para se esconder. De qualquer modo, concluiu com rapidez, de nada
serviam os lamentos. Um dos soldados já descia pela vertente da azinhaga;
ouviam-se os seus passos e o roçar da roupa nos arbustos. Procurando não
fazer barulho, Falcó desembaraçou-se da mochila e pô-la com cuidado no
chão. Respirava fundo, oxigenando os pulmões, ao tirar a mão direita do
bolso do macacão, empunhando a navalha. Depois pôs a outra mão para
evitar que a folha desse um estalido ao abrir-se e premiu o botão da mola.
A sombra já estava diante dele, a contraluz, recortada nos ombros e na
cabeça pelo vago luar. Um homem sem cara. Provavelmente estava a
desapertar o cinto, a desabotoar as calças quando Falcó se ergueu de repente
na escuridão. Por momentos cheirou a suor e a roupa suja, a terra e óleo de
armas, e imaginou um rosto por barbear, desconcertado, que via
materializar-se diante dele uma forma negra e mortal. Com a mão esquerda
procurou-lhe a boca, para lha tapar e situar o lugar exato onde ficava a
garganta, enquanto com a mão direita lançava uma navalhada profunda,
lateral e ligeiramente inclinada para cima, para cortar imediatamente
qualquer som que o outro pudesse emitir. Acabou o movimento com uma
brusca volta de pulso, seccionando na horizontal, e sentiu ao mesmo tempo
o espasmo mortal do corpo estremecido, o ar débil do grito que não chegava
a sair, pois fugia pela ferida, e o borbotão de sangue quente – 36,5 graus
centígrados exatos, se aquele homem não tivesse febre – que se derramou
imediatamente pelo cabo da navalha, pela mão e pelo braço de Falcó, até ao
cotovelo.
Ajudou-o a cair abraçando-o com força para que não se estatelasse com
barulho, mantendo a mão sobre a boca para apagar o estertor. Foi-o
deixando ir pouco a pouco contra o pilar de pedra até que ficou estendido
no chão – uma mão do moribundo agitava-se convulsivamente, como se o
último resto de vida se tivesse refugiado ali – e Falcó levantou-se devagar,
de novo a respirar profundamente, enquanto as batidas do seu coração
recuperavam a normalidade. Segundos depois voltou a agachar-se, desta
vez para limpar a navalha e a mão escorregadias de sangue nas roupas do
morto.
– Tudo bem, Luciano? – disse uma voz em cima da ponte.
– Sim – respondeu ele, grunhindo roucamente para disfarçar a voz. E
começou a subir o declive empunhando a navalha.
*
Havia uma bilha com água na guarita das sentinelas, e lavou-se com ela,
limpando o blusão e a navalha o melhor que pôde. Também havia uma
marmita com coelho guisado e uma garrafa de vinho, que lhe iriam cair
bem para assentar o estômago. Tinha levado o segundo corpo para a
azinhaga, para junto do outro, e recuperado a mochila depois de esconder os
cadáveres entre os canaviais. De qualquer modo, não se preocupava muito
que os descobrissem; a frente de batalha ficava muito perto, e eram
frequentes as incursões noturnas de um lado e doutro para experimentar as
linhas. Os mouros das tropas franquistas eram especialistas nesses golpes de
mão, costumavam infiltrar-se em profundidade e manejavam a faca sem
qualquer remorso. Tirando até prazer disso. Não tinha dúvidas de que ia
aproveitar-se daquilo.
Comeu devagar, com apetite, pois não tinha ingerido nada desde a tarde
anterior; guardava para mais tarde o meio queijo, o pão e a lata de leite
condensado que levava como provisões. Olhou depois para o relógio –
deixara o Patek Philippe em Salamanca, trocando-o por outro de aço, barato
– e, tirando o mapa e a bússola do bolso, fez cálculos à luz do candeeiro de
petróleo que iluminava o interior da guarita. Tinha previsto seguir a estrada
até Guadix, e ali apanhar o comboio de via estreita da antiga linha Granada-
Múrcia, que apesar do tramo cortado pela guerra continuava a funcionar a
partir desse ponto. Assim que se afastasse um pouco mais da frente poderia
caminhar mesmo pela estrada, e com sorte um camião ou carro de passagem
levá-lo-ia até Guadix, se o condutor mostrasse boa vontade. Ao fim e ao
cabo, segundo os seus documentos com foto e selos oficiais incluídos,
Lorenzo Falcó era agora o cabo artilheiro republicano Rafael Frías Sánchez
colocado numa bateria de defesa antiaérea de Cartagena, que viajava para
se incorporar à sua unidade.
O horizonte começava a clarear quando Falcó deixou para trás a guarita e
se meteu pelo campo fora. Andou cerca de dez quilómetros em duas horas,
e com o sol já alto no céu regressou à estrada. A dado momento pareceu-lhe
ouvir ribombar de artilharia ao longe, nas faldas da serra de crista nevada
que se erguia majestosa à sua direita. Pouco depois, dois biplanos
atravessaram o céu de leste para oeste, e um deles separou-se do outro para
se aproximar da estrada, voando baixo. Era um Fiat 32 Chirri, e com
alguma apreensão Falcó avistou a aspa negra da aviação nacional pintada
sobre branco no leme da cauda; mas estava em campo aberto e não havia
lugar onde se proteger. Por isso continuou a caminhar, tenso como uma
mola, enquanto o avião se aproximava cada vez mais e a menor altitude. E
um instante depois, com a violenta e desagradável certeza de estar indefeso,
viu como o avião passava a seu lado, a apenas trinta metros do chão, e
como o piloto, uma figura com capacete de couro e óculos protetores,
olhava um momento para ele antes de ganhar novamente altura e regressar
para junto do seu companheiro.
Quando os dois pontos diminutos desapareceram no horizonte, Falcó
parou para tirar a mochila das costas e abrir o blusão. Por baixo tinha o
macacão encharcado em suor. Sentado num marco de pedra da estrada, tirou
uma cigarreira com cigarros enrolados e uma caixa de fósforos – os Players
e a cigarreira elegante também haviam ficado em Salamanca –, e ao acender
um reparou que ainda tinha sangue debaixo das unhas: uma crosta em
forma de linha fina, suja e parda. E assim ficou ali um bocado a raspá-la
com a ponta da navalha.
*
A carruagem, que havia sido de terceira classe – agora as classes estavam
oficialmente abolidas em território da República –, ia quase cheia de gente.
Os solavancos faziam vibrar tudo. As redes da bagagem estavam carregadas
de embrulhos, cestas e malas de cartão que balançavam suspensas sobre as
cabeças de soldados de azul ou caqui com Mauser, correagem e bivaque.
Quatro ou cinco jogavam às cartas, e outros fumavam ou dormiam. Os
restantes passageiros eram, na sua maioria, mulheres de luto cobertas com
xailes de lã e homens vestidos de bombazina ou tecido grosseiro. Viam-se
alguns bonés e boinas, mas nenhum chapéu. O comboio seguia para
nordeste – já deixara para trás a estação de Baza – entre campos secos e
colinas pardas de monte baixo; e pelas janelas, mal fechadas com cartões a
substituir os vidros, passava uma corrente de ar frio e desagradável com
fuligem da locomotiva, que apitava à frente da composição.
Lorenzo Falcó esmagou o resto do cigarro no chão, levantou a gola do
casaco e procurou ajeitar-se o melhor que pôde no duro assento de madeira,
tentando dormir um pouco. Com tranquila resignação, rotineira nessas
alturas da sua vida, recordava outros comboios e outros tempos mais
confortáveis, ali onde os homens pareciam – ou eram – mais elegantes e as
mulheres eram – ou pareciam – mais bonitas quando se cruzava com elas
nos corredores de pullmans e wagon-lits. Acerca deste pormenor, Falcó
possuía um bom repertório mental de imagens e momentos retidos como se
de um álbum de fotografias se tratasse: pequenos-almoços em luxuosas
carruagens-restaurante a caminho de Lisboa ou de Berlim; bebidas nos
bancos de couro do bar do Train Bleu, mais requintado do que o do Ritz de
Paris; jantares com talheres de prata no Orient Express, rumo a um quarto
com boas vistas ao amanhecer no Pera Palace de Istambul... Tudo aquilo,
comboios, passagens de fronteiras, passageiros internacionais, cidades e
paisagens, se combinava na sua memória com transatlânticos, hotéis,
aeroportos, fragmentos de uma vida excitante e perigosa, nada
convencional. Uma vida que – o comboio em que viajava hoje, e o seu
destino, eram provas incontestáveis – somava o mesmo número de
sobressaltos e de satisfações, de lugares sórdidos ou perigosos e de sítios
caros e gratificantes. Uma vida, a sua, que talvez um dia acabasse por lhe
pedir contas de modo implacável, toc, toc, toc, senhor Falcó, cabe-lhe a si
pagar a despesa. Chegámos até aqui. Fim da festa. De prevenção para que
esse fim de festa fosse, se se desse o caso, o mais rápido e indolor possível,
Falcó levava escondida no tubo de vidro das cafiaspirinas uma ampolazinha
de cianeto de potássio que lhe permitiria cortar caminho no caso de as
cartas saírem trocadas. Bastava pô-la entre os dentes e apertar. Clac, e
anjinhos para o céu, ou para onde fossem. Morrer devagar e aos bocados
enquanto o interrogavam não era um dos objetivos da sua vida.
Foi uma mulher que lhe fez a pergunta, a dada altura. Eram sempre elas a
perguntar esse tipo de coisas. Porque é que fazes isso?, disse ela. Porque é
que vives assim, a arriscar no fio da navalha? E não me digas que é por
dinheiro. Tinha acontecido num amanhecer ainda não distante, num
daqueles lugares elegantes e luxuosos dos quais aquela mulher não era
senão complemento natural; ou talvez fosse aquele género de lugares que
tornava algumas delas perfeitas, escolhidas pela biologia e pela vida,
situando-as com toda a naturalidade no lugar exato para o qual foram
criadas. Tinha acontecido num quarto do Hotel Grande Bretagne de Atenas,
a tomar o pequeno-almoço diante da janela aberta sobre a praça Sintagma,
depois de uma noite em que nenhum dos dois dormira mais do que o
imprescindível. Porquê?, insistiu ela enquanto o observava por cima da sua
fumegante chávena de café. Falcó observara os seus olhos, de uma
claridade líquida – aquela mulher era uma húngara bonita, inteligente e
tranquila –, e depois o corpo esplêndido que semiespreitava sob o roupão
branco entreaberto, o arrancar das coxas e o nascimento dos seios redondos
e firmes, os olhos ainda com rastos da maquilhagem do dia anterior, a pele
macia que cheirava a lençóis metodicamente revolvidos, a corpos
enlaçados, a carne morna partilhada e exausta. Depois da pergunta, Falcó
olhara para a mulher com calma deliberada, saboreando a paisagem perfeita
que ela ostentava diante dele; e após um silêncio, encolhendo os ombros,
resumiu tudo em poucas palavras. Só disponho de uma vida, disse ele. Um
breve momento entre duas noites. E o mundo é uma aventura formidável
que não estou disposto a perder.
*
No apeadeiro de Purchena entraram três novos passageiros. Dois eram
milicianos e iam armados: um anarquista com alpergatas e lenço da FAI ao
pescoço, e um tipo com o jaquetão azul escuro e o boné de pala dos guardas
de assalto. Os dois tinham mãos de camponeses e usavam correagem,
baionetas e uma Mauser cada um. Os dois conduziam um jovem com as
mãos atadas à frente, em mangas de camisa e com um casaco sobre os
ombros. Sentaram-se em frente de Falcó, com as carabinas entre as pernas,
um de cada lado do prisioneiro. Por momentos, este cruzou o olhar com
Falcó. Tinha o cabelo despenteado, barba de um dia e um coágulo de
sangue no nariz e no lábio superior, que estava inchado, sob uma tira de
adesivo. Também havia marcas de sangue na camisa. Ao sentir-se
observado, como se um minúsculo resto de orgulho se tivesse avivado no
seu interior, o jovem ergueu um pouco a cabeça e esboçou um sorriso
mecânico que não foi além de um breve trejeito. Um gesto ausente. Então
Falcó afastou o olhar, pois não tinha o mais pequeno interesse em chamar a
atenção daquele jovem nem de ninguém.
Ao fundo da carruagem havia uns soldados a cantar: uns versos tristes,
andaluzes, com arranques de cante jondo e algumas palmas. O comboio
continuava aos solavancos. Um homem de samarra cinzenta e boina enfiada
até às sobrancelhas, sentado ao lado de Falcó, perguntou aos guardas o que
é que o prisioneiro tinha feito.
– É um fascista – disse o guarda de assalto. – Prendemo-lo ontem em
Olula.
– O pai dele tinha terras e uma fábrica de conservas – acrescentou o
outro, como se isso resumisse tudo.
– E o pai?
– Fuzilado há três meses, com outro filho. Faltava-nos este, que andava
escondido.
– Para onde é que o levam?
– Para a prisão de Múrcia... por agora.
O homem da samarra tinha tirado uma cigarreira com cigarros de enrolar
já enrolados, e ofereceu aos milicianos. Depois perguntou se podia dar um
ao prisioneiro.
– Dá-lho, se ele quiser – concedeu o guarda de assalto.
Segurando o cigarro entre as mãos atadas, o jovem inclinou-se para a
frente para que o da samarra lhe desse lume com o isqueiro. Quando se
recostou no assento, os seus olhos cruzaram-se de novo com os de Falcó.
Havia um imenso vazio neles, verificou este antes de afastar outra vez o
olhar. Uma paisagem nua, desolada. Opaca. Um cansaço sem futuro.
– No final de contas – disse o anarquista –, este vai deixar de fumar muito
em breve.
*
Pediram-lhe a documentação no dia seguinte, depois de sair do comboio
em Múrcia para esperar na gare pelo expresso de Cartagena. Foi um
controlo casual, de rotina, mas Falcó sabia que muitas vezes os acasos
imprevistos levavam a problemas sérios. Ficavam fora de controlo. Aquele
era, desde logo, o momento adequado para verificar a qualidade dos seus
documentos falsificados; por isso aguardou, tenso, com uma mão a tocar na
pistola que levava no bolso do blusão, procurando vias de fuga com os
olhos enquanto um dos milicianos que vigiavam a gare dirigia uma olhadela
ao cartão de identidade militar – Arma de Aviação, forças da DCA – do
cabo Rafael Frías Sánchez, solteiro, filho de Andrés e de Marcela, nascido
em Guadix, domiciliado em Cartagena. O vigilante olhou sobretudo para o
emblema das duas asas coroadas pela estrela vermelha e para a fotografia, e
deu apenas uma vista de olhos à folha datilografada, selada e assinada pelo
capitão chefe do Agrupamento Sul, onde se certificava que o cabo Frías
viajava com todas as bênçãos do Comando; pelo que Falcó deduziu que o
miliciano – um tipo seco e enxuto, equipado com pistola, boina de pichi3 e
braçadeira do Partido Comunista – era analfabeto.
Superado o primeiro controlo, caminhou até ao quiosque da imprensa,
comprou o El Liberal e o Mundo Gráfico e foi sentar-se numa mesa da
taberna, com a mochila aos pés, entre um cartaz publicitário de Hipofosfitos
Salud e outro de homenagem às milícias populares. Pediu dois ovos
estrelados e uma carcaça, e comeu com apetite enquanto folheava o jornal e
a revista. Madrid resiste à agressão fascista era o título principal da
primeira página. O Governo, evacuado para Valência por razões
estratégicas, reata a sua vida oficial... Duros combates na frente de
Aragão... O povo organizado luta vitorioso em todo o lado... A capa do
Mundo Gráfico era ocupada pela foto de uma belíssima mulher em
uniforme de miliciana, no ato de montar uma pistola Campogiro perante o
olhar de um presumível instrutor. A estrela de cinema Pepita Monteblanco
trabalha como motorista na União Republicana, era o título, que fez Falcó
sorrir interiormente. Pepita Monteblanco – na realidade chamava-se
Josefina Lledó – e haviam tido um breve romance depois da ceia de Natal
de 1935, numa suíte do Hotel María Cristina de San Sebastián, onde ela
rodava um filme em que interpretava uma elegante senhora da alta
burguesia. A vida, concluiu, era um curioso carrossel. Uma sucessão de
fotos absurdas.
Doía-lhe a cabeça. A viagem e a tensão passavam a devida fatura. O café
não era mau de todo, apesar das restrições da guerra – calculou que isso
mudaria para pior com o passar do tempo –, por isso pediu outra chávena e
com a bebida ingeriu uma cafiaspirina. Depois ficou imóvel, sem ler nem
fumar, com a mente vazia, esperando que fizesse efeito. Estava assim
quando viu os uniformes escuros de dois guardas de assalto de Mauser
pendurada ao ombro.
– Documentação – disse um deles.
Era o mais velho e usava bigode, o que naquela sociedade de rostos
barbeados demonstrava segurança em si mesmo e solvente pedigree
republicano. Sob a pala do boné havia uns olhos escuros e desconfiados,
muito próprios do ofício. Desde que boa parte da Guarda Civil se sublevara
com os rebeldes, os de Assalto, em geral fiéis ao Governo legítimo,
carregavam o peso da ordem pública na zona vermelha, desde que não
interferissem com alguma das inumeráveis milícias que atuavam por todo o
lado. E aqueles dois guardas, calculou Falcó com uma rápida vista de olhos,
não pareciam analfabetos como o miliciano de antes. Eram profissionais.
– De onde vens, camarada?
– De ver a família, em Guadix... A minha mãe morreu. Licença de seis
dias.
– Acompanho-te no sentimento.
– Obrigado.
O guarda olhava para os papéis, lendo atentamente o documento da
viagem.
– E para onde vais?
– Diz aí.
– Sim, mas quero que mo digas.
O ritmo cardíaco de Falcó acelerava algumas pulsações. Procurou
responder com indiferente naturalidade.
– Para a unidade de defesa antiaérea de La Guía, perto de Cartagena.
– O nome do teu oficial superior?
– Capitão de milícias Segismundo Contreras Vidal.
– E o que fazes aqui?
– Estou à espera do expresso. Que, pelos vistos, está atrasado.
O guarda olhou para o jornal e para a revista que estavam em cima da
mesa, junto da chávena de café vazia.
– Levas armas?
– Pistola regulamentar. – Tirou a Browning do bolso sem hesitações,
mostrando-lha.
– Não se pode viajar com armas, mesmo que sejam regulamentares.
Falcó voltou a guardar a pistola.
– Eu posso, sim.
Tirou a licença especial do bolso interior do blusão enquanto o guarda
ficava a olhar para ele. Não para a licença, mas para ele. E Falcó não tinha
dificuldade em adivinhar o que ele pensava. Aquele documento não estava
ao alcance de qualquer um, por isso provavelmente encontrava-se perante
alguém com um certo tipo de influência. Bem relacionado.
– Militas nalguma organização, camarada?
Falcó apontou para a carteirinha de capa encerada da licença. Dentro dela
havia um cartão de cartolina cinzenta com a foice e o martelo impressos, e
uma foto sua agrafada. O Almirante e o departamento de falsificações do
SNIO, pensou, tinham feito um bom trabalho de previsão.
– Na Amelia – disse ele.
Amelia, ou AML, era o nome popular do Agrupamento de Milícias de
Levante, de filiação comunista. Gente disciplinada e dura, com muito peso
na zona. A sua influência podia explicar que Falcó estivesse em Cartagena e
não integrado na frente.
– Porque é que não nos mostraste isto antes, com os outros papéis?
– Não julguei necessário.
O guarda olhou para ele mais um instante. Depois devolveu-lhe os
documentos e levou os nós do punho cerrado à pala do boné.
– Saúde, camarada.
– Saúde.
Afastaram-se em direção à porta da gare enquanto Falcó guardava os
cartões e a licença de viagem, relaxando por fim o rosto curtido por anos de
tensão, mentiras e violência. O pulso voltou às sessenta batidas por minuto
habituais. Tinha sido um mau bocado, pensou. E a cafiaspirina não lhe
fizera qualquer maldito efeito. Por isso levantou-se à procura de um copo de
água. Não ia ter outro remédio senão tomar outra.
*
Apesar do seu nome poético, a calle Balcones Azules ficava ao pé do
Molinete, o bairro de prostitutas de Cartagena: uma colina de velhas casas
de mau aspeto situada no centro da cidade, coroada por uma antiga torre
descabeçada de moinho para a qual ascendiam ruas com tabernas, cabarés e
casas de má fama. Havia roupa estendida e vasos de manjerico e gerânios
nas varandas.
Lorenzo Falcó desceu os degraus da escada da pensão onde acabava de
arrendar um quarto e saiu para a rua. Vestia calças de bombazina e blusão
de cabedal sobre uma camisa branca – levava a pistola atrás, metida no
cinto, com seis balas no carregador e uma na câmara – e cobria a cabeça
com uma boina. Ainda faltava um bom bocado para o pôr do sol, mas já se
viam mulheres a oferecer-se à entrada das portas, homens a caminhar
devagar, olhando para elas, e grupos de marinheiros e milicianos que se
dirigiam para o dédalo de ruelas altas. Andou entre eles sem pressa, subindo
a encosta. Os locais de diversão começavam a abrir as portas; os seus
nomes estavam nos dintéis: O Trianón, o Gato Negro, a Puñalá. Entrou
neste último, um cabaré decrépito com cenário ao fundo, e apoiou-se no
balcão. Na parede havia uma Betty Boop mal pintada, com bivaque e a
bandeira republicana numa mão, junto de um cartaz: Camarada, trata bem
a companheira que escolheres. Pode ser tua filha, tua irmã ou tua mãe.
Falcó ainda sorria quando pediu um anis. Havia pouca gente: quatro
valentões de retaguarda com a fita do couraçado Jaime I nas boinas
fanfarronavam em volta de uma mesa e de um porrón de vinho, a falar de
liquidar facciosos, e meia dúzia de pessoas à civil bebiam sozinhas ou
conversavam com mulheres. A que estava por trás do balcão era madura,
forte, vestida com uma bata caseira estampada com flores chinesas. Quando
pôs o copo diante de Falcó, este provou a bebida e ergueu o olhar com ar
casual.
– Demasiado doce. Eu gosto de mais seco... Por acaso não tens anis
Romerito?
A mulher olhou para ele fixamente durante três segundos. Por fim abanou
a cabeça.
– Desse não tenho.
– Que pena. É uma marca nova.
– Pois aqui ainda não chegou. – Passou um trapo húmido pelo balcão. –
Experimenta a pulpería da calle del Paraíso. No fim das escadas, quase na
esquina.
– Obrigado.
– São dois reais.
– Foda-se. – Falcó meteu a mão no bolso. – Nem que fosse champanhe.
A mulher olhava para ele muito séria.
– Estamos numa revolução do povo, companheiro. A riqueza reparte-se.
– Estou a ver.
– Pois, é isso.
Pareceu não lhe ligar mais, mas dali a pouco Falcó viu que ela se
aproximava de uma das mulheres que estavam no local, trocava umas
palavras com ela e a outra dirigia-lhe um breve olhar. Acabou o anis e saiu,
perguntou pela calle del Paraíso e desceu pelas escadas que levavam ao fim
da rua, onde um cheiro a polvo assado o fez reconhecer logo o lugar. Era
um estabelecimento pequeno e barulhento, cheio de gente. Entrou, colocou-
se ao fundo do balcão, junto à parede e aguardou durante vinte minutos. Por
fim viu entrar a mulher que tinha olhado para ele em La Puñalá. Devia
andar pelos trinta e muitos, e apesar do seu ofício conservava um certo
atrativo. Cabelo preto apanhado num carrapito, lábios pintados de vermelho
intenso e sinais de olheiras cansadas na cara. Dirigiu-se a ele pelo meio das
pessoas.
– Como é que te chamas, jeitoso? – perguntou com um sorriso mecânico,
profissional.
– Rafael.
– Vem passar um bom bocado, Rafael.
Seguiu-a de novo pelas escadas acima, como faziam dezenas de homens
por dia naquele bairro. Meteram-se por um beco onde uma velha de luto,
sentada diante de uma caixa com coisas para vender, murmurava «tabaco e
pastilhas, tabaco e pastilhas» com voz monótona. Passaram por um patamar,
uma escada estreita e sórdida cujos degraus de madeira rangiam ao pisá-los
e a mulher abriu uma porta. Do outro lado havia um corredor escuro e um
quarto ao fundo. Antes de entrar, Falcó tirou a pistola de trás do cinto e
meteu-a no bolso direito do blusão, empunhada e com um dedo no gatilho
depois de a destravar com o polegar. Lá dentro havia uma cama com a
colcha posta, uma mesinha com um cinzeiro, um bidé, um jarro de água e
duas toalhas dobradas. Na cama estava um homem novo sentado, a fumar.
A mulher fechou a porta atrás de Falcó, ficando de fora, e o rapaz sentado
na cama sorriu quase com timidez.
– O senhor conseguiu anis Romerito?
– Nem uma gota.
O outro acentuou o sorriso.
– Chamo-me Ginés Montero. Seja bem-vindo a Cartagena.
– Obrigado.
– Tratamo-nos por tu?... Aqui é mais seguro fazer assim.
Falcó concordou.
– Como queiras.
O rapaz tinha um aspeto agradável. Cabelo crespo, mãos sardentas e uma
covinha no queixo. Usava óculos redondos de tartaruga. Estava vestido com
um casaco cinzento e camisa de colarinho aberto, sem o pormenor burguês
da gravata. Falcó calculou que teria uns vinte e cinco anos. Parecia-se um
pouco com os atores secundários das comédias românticas americanas. O
melhor amigo do protagonista.
– Como devo chamar-te, camarada?
– Rafael – disse Falcó. – Mas salta essa do camarada.
– Como queiras... Trazes instruções?
– Sim.
– Informa-me, por favor.
Durante quinze minutos, Falcó contou com pormenor tudo quanto podia
contar. A operação em marcha, o papel de cada um. O desembarque
previsto e o ataque à prisão de Alicante. Os trabalhos de coordenação prévia
atribuídos ao grupo de Cartagena.
– Já não somos muitos – disse Montero. – No último mês caíram três dos
nossos... Dois deles estão mortos. O outro aguentou bem os interrogatórios,
sem denunciar ninguém, e está na prisão de San Antón, ou pelo menos
estava lá há três dias... Anteontem, depois de um ataque aéreo, os
vermelhos foram à prisão e, como represália, pegaram numa dúzia deles e
mataram-nos. Ainda não sabemos se estava com eles.
– Quem são os que restam no ativo?
– A minha irmã Cari, a Eva Rengel e eu... Há um quarto membro do
grupo, Juan Portela, mas desse falaremos mais devagar. De todas as formas,
para o que há que fazer, de momento nós os três chegamos. – Olhou para
ele com respeitosa admiração. – Contigo, claro.
– Quem é a Eva Rengel?
– A melhor amiga da minha irmã. Falangista desde a primeira hora, das
poucas mulheres que se filiaram aqui na Secção Feminina. Uma rapariga
admirável, corajosa e de confiança... Está previsto que as duas se encontrem
contigo amanhã, no cinema Sport. Sessão de lugares marcados, à tarde:
passam um filme russo: A Mãe. Irão conhecer-se como que por acaso.
Tinha tirado do bolso um bilhete de cinema que entregou a Falcó. Este
guardou-o na carteira.
– O que é que vocês sabem de Alicante?
– O José Antonio faz a vida normal, prepara a defesa do julgamento a que
o vão submeter, que parece iminente, e joga futebol no pátio da prisão. Por
esse lado não há nada de novo.
– Comunicaram-lhe o que estamos a planear?
Montero abanou a cabeça enquanto apagava o cigarro no cinzeiro.
– Não lho daremos a saber até ao último momento, para sua própria
segurança. É capaz de se opor, com a questão de não pôr em perigo a vida
dos camaradas... Como é que veem as coisas em Salamanca?
– Acham que pode correr bem. E os alemães estão metidos nisto. A
marinha deles vai dar uma ajuda.
– Julguei que seriam os italianos.
– Pelos vistos, o quartel-general confia mais na Kriegsmarine.
– Essa é uma boa notícia.
– Suponho que sim.
Montero olhava para ele com intensidade. Os seus olhos míopes
transpareciam admiração e respeito. Alguém capaz de atravessar as linhas e
chegar a Cartagena, como Falcó tinha feito, era especial, sem dúvida. Um
sujeito extraordinário.
– Não sei muito de ti – disse o rapaz.
– Há pouco para saber. Não precisas.
– Só me disseram que não és falangista, mas que sabes o que fazes. Que
vens apoiado ao mais alto nível. Mas eu gostaria...
– Isso já te chega – interrompeu-o Falcó. – Onde é que fica o consulado
alemão?
– Num escritório comercial, sobre a muralha do mar. Continua ali, por
agora. Embora digam que de um momento para o outro Hitler e Mussolini
reconhecerão o governo de Franco. Então terão de se ir embora a correr.
– Tenho de contactar o cônsul. É possível?
– Creio que sim, indo com cuidado.
Falcó tirou a cigarreira e acendeu um cigarro enrolado sem lhe oferecer
outro.
– Qual é a situação aqui?
Os bombardeamentos da aviação nacional, resumiu Montero, enfureciam
muito. Sobretudo quando havia vítimas civis. E cada vez ocorriam mais
represálias como a do outro dia. Os milicianos agarravam nas pessoas para
as matarem no cemitério ou no campo. Os comunistas mantinham uma
certa ordem e disciplina; mas os anarquistas – qualquer maltrapilho se
alistava na FAI e se recusava a obedecer a qualquer hierarquia – eram um
perigo até para a República. Uma boa parte dos delinquentes comuns
libertados quando se abriram as prisões passeava com armas, e não ia para a
frente de batalha nem em sonhos.
– Os decentes estão na linha de fogo, a lutar – concluiu. – Aqui ficaram
os que nunca deram a cara, apoderando-se das fábricas e oficinas, e também
toda a marinhagem da Esquadra, que depois de assassinar todos os chefes e
oficiais não sai para o mar nem para pescar atuns. Formaram aquilo a que se
chama grupos de recuperação proletária, que assaltam as casas com o
pretexto de procurar fascistas e arrebanham tudo o que encontram de
valor... As noites, com coronhadas nas portas das pessoas honradas, são
pavorosas.
– E como é que tu sobreviveste até agora?
O outro dirigiu-lhe um olhar inquiridor, tentando perceber se a pergunta
incluía uma censura. Instantes depois pareceu tranquilizar-se.
– Quando a guerra rebentou, eu ainda não tinha o bilhete de identidade,
por isso a minha ficha não estava entre as que os vermelhos encontraram
quando saquearam o local da Falange... Sou enfermeiro no hospital e atendo
as mulheres deste bairro. Classificaram-me entre o pessoal imprescindível
de retaguarda, porque com o descalabro da guerra as doenças venéreas
fazem estragos aqui... Tudo isso me deixa relativamente a salvo.
– E a tua irmã?
– Está filiada nas Juventudes Socialistas e trabalha nos Telefones, na
praça de San Francisco.
– Caramba! Um bom sítio para ouvir conversas.
– O melhor, e acaba por nos ser muito útil. – Olhou para o relógio e
enrugou a testa. – Tenho de me ir embora... Onde é que ficas hospedado?
– Ali mesmo, na Obrera.
Montero sorriu.
– Antes chamava-se pensão do Príncipe. – Voltou a olhar para o relógio. –
Vou avisar o cônsul alemão para amanhã de manhã. E à tarde vais
encontrar-te com a minha irmã Cari e com a Eva no cinema. A partir daí, tu
assumes o comando até chegarem os camaradas de que estamos à espera.
Essas são as ordens que tenho.
– Não te importas? – Falcó observava-o com curiosidade. – Que eu, como
dizes, assuma o comando?
– Sou um esquadrista. – Encolheu os ombros. – Estou habituado a receber
ordens e a executá-las sem fazer perguntas.
Falcó intuía que assim era. Ou tinha a certeza disso. Ginés Montero
parecia-se em estilo com Fabián Estévez, o falangista que ia desembarcar
uns dias depois. Talvez Montero fosse mais ingénuo, e Estévez mais
passado pela peneira da guerra; mas havia algo comum a ambos, feito de
clandestinidade e de coragem, de decisão política e de fé na causa pela qual
arriscavam a vida. Paradoxalmente, isso aproximava-os dos seus
adversários, ou de alguns deles, os melhores da outra fação. Falcó vira-os
nos tempos logo a seguir ao Levantamento, a confrontarem-se aos tiros nas
ruas: falangistas, socialistas, comunistas, anarquistas, matando-se entre si
com admirável tenacidade. Rapazes corajosos e decididos, uns e outros, que
às vezes se conheciam e até tinham sido colegas em universidades ou
fábricas e partilhado bailes, cinemas, cafés, amigos e até namoradas. Vira-
os a assassinarem-se conscientemente, represália atrás de represália. Umas
vezes com ódio, e outras com o frio respeito para com um adversário que se
conhece e valoriza, apesar da diferença de trincheira. Ou ele ou eu, era a
ideia. O móbil. Ou ele ou nós. Que pena que isso tudo dava, concluiu. Da
fogueira onde se ia consumir, ou se estava a consumir, a melhor juventude
de um lado e de outro.
Afastou aqueles pensamentos enquanto esmagava o resto do cigarro no
cinzeiro. Não era problema seu, disse para si. Problema de quem matasse ou
morresse, e das suas razões para o fazer. Da sua parvoíce, maldade ou
motivos nobres. A guerra de Lorenzo Falcó era outra, e nela as fações
estavam perfeitamente claras: de um lado ele e do outro todos os restantes.
Ginés Montero tinha-se ido embora depois de lhe apertar a mão, e Falcó
ficou a pensar um pouco mais no seu olhar ao mesmo tempo firme e
ingénuo atrás das lentes dos seus óculos redondos. No sorriso tímido
daquele jovem sentenciado, vivesse ou morresse, como também o estava o
resto da sua geração. Então bateram à porta e apareceu a mulher de antes.
Falcó tirou duas notas de cinco pesetas da carteira e colocou-as na mesinha,
por baixo do cinzeiro.
– Obrigado por tudo – disse ele.
Fez menção de sair. Ao passar reparou na expressão fatigada da mulher,
mas também no decote da blusa preta que revelava o arranque dos seus
seios, no meio dos quais reluzia uma medalha da Virgen del Carmen
pendurada numa correntezinha de ouro. Para uma puta do Molinete não era
má, disse para si. Quase acima da média. Ela pareceu interpretar o seu
olhar, porque apontou para o dinheiro em cima da mesinha.
– Queres cobrar isto? – perguntou ela com indiferença profissional.
Falcó sorriu, hesitante, dirigindo uma vista de olhos rápida ao relógio.
– Vou com pressa. Talvez outro dia.
– Posso chupar-ta... Se alguém me fizer perguntas, tenho de saber como é
que tens a verga.
3 Boina clássica de pala cosida típica do traje masculino das festas
madrilenas. (N. dos T.)
6

A PRIMAVERA VOLTARÁ A RIR


E ntrava-se para o cinema Sport por uma porta ampla, rodeada de
palmeiras. Lorenzo Falcó desceu do elétrico, que ia atestado – utilizá-lo
era grátis, vantagem de viver em zona de revolução proletária –, e enquanto
o veículo se afastava fazendo faíscas sob os cabos atravessou a praça até à
entrada do local. A meio caminho, por reflexo instintivo de segurança,
parou junto da fonte central para atar um sapato enquanto dava uma vista de
olhos discreta em volta, sem observar nada de alarmante. Depois seguiu até
ao cinema.
Tinha sido um dia produtivo. O cônsul alemão, um consignatário de
navios chamado Sánchez-Kopenick, tivera uma entrevista a sós com Falcó
depois de este ter acedido discretamente ao edifício situado sobre a muralha
do mar, por uma porta das traseiras onde às onze em ponto, sem
testemunhas, o esperava o próprio cônsul. Era um indivíduo louro,
rechonchudo e simpático, com ar atarefado, que falava o tempo todo em
voz baixa e que confessou logo à primeira estar a tratar dos preparativos
para sair de Cartagena, pois em menos de uma semana o seu governo, disse
ele, reconheceria oficialmente o do general Franco. Por isso não ia ficar na
cidade para que às três da madrugada os milicianos fossem pedir-lhe
explicações. E como além disso, explicou, estes costumavam limpar o olho
do cu com os passaportes diplomáticos – foi mesmo o que ele disse, limpar
o olho do cu –, já tinha as malas quase feitas. A sua mulher fora-se embora
com as crianças, e ele iria uns dias mais tarde. Era o tempo de que Falcó
disporia para utilizar os serviços que o seu gabinete lhe podia prestar.
– Quanto às suas coisas – acrescentou o cônsul –, continua tudo como
está previsto: o desembarque, a ação naval de cobertura e o resto...
Entretanto, poderá continuar a transmitir através de nós, caso seja
necessário.
Falcó sorriu para dentro. Aquele através de nós significava que os seus
comunicados seriam enviados para os gabinetes de Berlim, e reenviados
para o quartel-general de Salamanca. O mesmo aconteceria com os que
viessem de lá. Desse modo, os serviços de informação alemães não iam
perder nenhum pormenor. Falcó tinha passado uma boa parte da noite a
cifrar um relatório para o Almirante através de uma chave baseada num
livro de códigos que trazia consigo, embora soubesse muito bem que
decifrar aquilo ia ser uma brincadeira de crianças para os desencriptadores
da Abwehr. No que se referia aos alemães, era igual tê-lo escrito sem
codificar. A parte positiva era que se tratava de um código novo, diferente
dos que tanto republicanos como nacionais costumavam usar, que na sua
maior parte era de antes da guerra e acabavam por ser, com frequência,
conhecidos pelos dois lados.
– Tem de enviar isto – disse ele, entregando a mensagem a Sánchez-
Kopenick.
O outro olhou para ele de cima. Duas folhas arrancadas de um caderno,
cheias de letras e números escritos a lápis.
– Transmiti-lo-ei imediatamente. – O cônsul meteu a mensagem num
bolso. – Suponho que sabe que não deve voltar aqui, a menos que tenha
alguma coisa muito importante para enviar... Receberá as mensagem com as
notícias da Radio Sevilla, por isso procure um aparelho e permaneça todas
as noites à escuta, às dez. De cada vez que disserem «notícias para os
amigos de Félix» seguir-se-á um texto codificado para si.
– Eu sei. Preveniram-me disso antes de vir.
– Bem... Há mais alguma coisa que eu possa fazer?
– Devia entregar-me dinheiro.
– Certo. Desculpe.
Entraram num gabinete onde, sobre uma lareira apagada, havia um retrato
do chanceler Hitler. O cônsul abriu uma caixa-forte e tirou de lá um
sobrescrito grosso com notas da República.
– Aqui tudo se arranja com isto – disse ele. – Muita revolução, muita
reivindicação proletária e muito mundo novo, mas assim que ouvem soar
uma moeda de cinco todos gritam minha!... Parece mentira como os
comunistas e os libertários tomaram gosto ao vil metal.
– Como em todo o lado, calculo.
– Não, isto daqui nem calcula. Com tanto marinheiro, soldado e miliciano
a rivalizar para ver quem é mais de esquerda e mata mais fascistas, mas na
retaguarda e só a encher o bucho, isto é um disparate... Vinte mil pesetas
tive de pagar eu aos da CNT para que pusessem o meu cunhado em
liberdade, a quem queriam dar o passeio por ser irmão mais velho de uma
confraria de Semana Santa... No outro lado também funcionam assim?
– Mais ou menos... Lá podem fuzilar uma pessoa por ser professor numa
escola; mas pormenores à parte, as tarifas são as mesmas.
Sánchez-Kopenick olhou para ele com curiosidade, e Falcó percebeu que
ele tentava situá-lo numa determinada categoria, sem muito êxito. Quanto
ao cônsul, ele informara-se bem antes de começar a missão. Era útil saber
com quem é que se arriscava. Ao contrário do cônsul de Alicante, que
segundo parecia era um nazi convicto, o de Cartagena não tinha filiação
política. Era um homem de mundo; um empresário fixado em Espanha que
também trabalhava para o serviço de informações alemão.
– Está bem alojado? – interessou-se o cônsul enquanto Falcó contava o
dinheiro.
– Sim. Numa pensão discreta.
O outro apontou para a janela. Para lá do mastro sem bandeira – ter ali a
do Reich teria sido uma provocação – via-se uma boa panorâmica dos cais,
dos faróis e do mar.
– Espero que não seja perto do porto ou do Arsenal... Cada vez há mais
incursões aéreas dos franquistas, e as bombas caem de qualquer maneira.
– Bombas alemãs? – insinuou Falcó, não sem malícia.
– São Savoia italianos, embora levem emblemas nacionais... Desde que
começaram a vir colocaram-se refúgios por toda a cidade. Há vários perto,
na calle Gisbert. Se for apanhado pelo alarme aéreo, corra para se meter
num.
Falcó preparou-se para sair. Tinha guardado o sobrescrito com o dinheiro
no bolso esquerdo do blusão.
– Mais uma coisa – disse o cônsul.
Parecia incomodado. O sorriso dele era forçado. De circunstância. Falcó
correu o fecho éclair e ficou a olhar para ele.
– Diga.
O outro ainda hesitou por momentos.
– Se alguma coisa correr mal, não procure refúgio aqui... Poderia
comprometer-nos.
– Não se preocupe com isso. Estou habituado a desenrascar-me sozinho.
O cônsul assentiu. Agora o sorriso diplomático era de alívio.
– Sim – admitiu. – Isso salta à vista.
*
O interior do cinema Sport era pouco ventilado. A decoração da plateia e
dos balcões mostrava rastos de um esplendor recente, mas cheirava a
cortinas bafientas e a gente. No chão, mal varridos debaixo dos bancos de
madeira, havia restos de papéis amachucados, beatas esmagadas e cascas de
pevides. Quando Falcó entrou no local estava quase a começar a projeção.
Havia pouca gente. A Mãe, um melodrama revolucionário soviético baseado
no romance homónimo de Gorki – Comovente homenagem às mulheres
antifascistas, dizia a publicidade – não parecia atrair muito as massas
populares. Havia apenas uma dúzia de espectadores. Falcó ocupou o seu
lugar numerado, numa fila vazia, ao mesmo tempo que as luzes se
apagavam e o ecrã se iluminava.
Ninguém se foi sentar ao seu lado. O filme decorreu normalmente, com
Falcó a prestar-lhe pouca atenção. Atento ao que o rodeava. O filme
contava a triste e heroica história de Pelágia, uma mãe que adquiria
consciência revolucionária através da desgraça do seu filho durante uma
greve de trabalhadores, em 1905. O final, como podia prever-se, era de
arromba. Apoteose proletária. Quando apareceu a palavra Fim e se
acenderam as luzes sobre o glorioso porvir da União Soviética a adivinhar-
se no horizonte, Falcó continuava sozinho na sua fila. Ninguém de um lado
nem do outro. Os poucos espectadores já saíam. Pôs-se de pé, preocupado,
e caminhou para a saída.
– Olha, mas é o Rafael!... Que alegria!
Tratava-se de duas mulheres novas. Vestiam, naquele tempo de luto, de
mulheres libertas e punhos no ar, com uma correção que noutra época seria
qualificada como burguesa. Uma morena e uma loura. Dirigiram-se a Falcó
no vestíbulo, passada a cortina, junto a um cartaz com o anúncio das
próximas projeções previstas: Uma Noite na Ópera e A Carga da Brigada
Ligeira.
– Que alegria! – repetiu a que tinha falado.
Tinham-se aproximado de braço dado, e a rapariga morena apertava-lhe
vigorosamente a mão. Era desenvolta, pispirreta. Nem bonita nem feia.
– Não me reconheces?... Sou a Cari... Já sabes: Caridad Montero.
– Claro que sim – anuiu Falcó, com calma. – Estou muito contente por te
ver.
Um apertão forte. Tenso, notou ele. Um contacto que recomendava
precaução extrema.
– Não te vimos no cinema, antes... Também estavas a ver o filme?
A rapariga tinha uma certa parecença com o irmão. Ar de menina bem,
alterado por ventos do povo. O seu cabelo castanho ondulado estava
cortado à moda. Usava um sobretudo discreto de fazenda cinzenta cor de
rato e sapatos com peúgas.
– Mas que grande coincidência! O Ginés vai ficar todo contente quando
souber que estás aqui! – Voltou-se para a sua acompanhante. – Conheces o
Rafa Frías?... É muito amigo lá de casa.
– Muito prazer – disse a outra.
– Eva Rengel – apresentou a morena. – A minha melhor amiga.
A sua melhor amiga era quase tão alta como Falcó, que media um metro e
setenta e nove centímetros. Era trigueira, de olhos castanhos e boas formas
debaixo da trincheira inglesa de corte masculino, apertada na cintura. Pele
bronzeada, cabelo louro muito curto. Pouco feminina, como se usava. Tudo
isso lhe conferia um vago e simpático aspeto de rapaz saudável.
Desportista. Devia ter entre vinte e cinco e vinte e oito anos. Era fácil
imaginá-la com camisola e esquis, em fato de banho no cimo de um
trampolim, ou como amazona a saltar obstáculos em cima de um cavalo.
– Não vás assim sem mais nem menos – disse Cari Montero. – Vamos
tomar um café, ou qualquer coisa parecida.
Pegou-lhe pelo braço com naturalidade e caminharam os três até um
pequeno estabelecimento situado na esquina da praça de Risueño, onde
beberam chávenas de uma chicória infecta enquanto Cari Montero fazia as
perguntas adequadas a Falcó para que o empregado de mesa fosse
testemunha, em caso de necessidade, de que entre eles não havia mais do
que uma conversa banal de jovens que se conheciam anteriormente. Uma
conversa insubstancial de falsas referências familiares e recordações em
comum inventadas.
– Apetece-te dar um passeio, Rafa?... A tarde está agradável, se a aviação
fascista não a estragar. Costumam vir a esta hora.
– Parece-me bem.
Eva Rengel olhou para ele com sarcasmo.
– Que venham os aviões?
– O passeio – sorriu ele.
A loura tinha uma pronúncia levíssima que não conseguiu identificar.
Observou que, ao contrário da maior parte das mulheres, não exibia buracos
para brincos nos lóbulos das orelhas. Tinha as unhas muito curtas, partidas
ou roídas, sem verniz, e os dedos da direita estavam manchados de nicotina.
Não eram mãos bonitas.
– O passeio parece-me uma ideia fantástica.
Pagou os cafés e seguiram os três para o porto. Agora ia ele no centro,
com uma jovem de cada lado de braço dado. Caminhavam sem pressa.
Quatro milicianos que passavam de pistola à cintura ficaram a olhar para
ele com inveja trocista. Um emitiu um assobio de admiração e Falcó
piscou-lhe o olho. Os milicianos afastaram-se a rir.
– O meu irmão avisou-me esta manhã – disse Cari. – Está tudo preparado
e só falta que nos digam o dia... Também disse que és tu a assumir o
comando.
– São essas as minhas instruções.
– Então não resta senão cumpri-las. O Ginés também disse que não és um
camarada. Que não estás filiado na Falange.
– É verdade.
– Simpatizante?
– Também não.
Eva Rengel olhava para ele com curiosidade.
– Acho estranho que te encomendem esta missão – disse ela.
– A questão do vosso chefe máximo é séria. De várias maneiras. Vocês
não são os únicos interessados em libertá-lo.
Passaram diante de um edifício sem vidros nas janelas, tapadas com
cartão e jornais, cuja fachada estava salpicada de impactos de metralha. A
cratera da bomba estava no meio da rua, coberta com terra, pedra e tábuas.
– O que é que fazias antes do Levantamento? – interessou-se Cari
Montero. – Militavas nalgum partido ou sindicato?
– No PHC.
– E que partido era esse?
– Partido Hidráulico Contemplativo.
– Não me chateies.
– Sim. Via a água a correr debaixo das pontes.
– Eh pá, és brincalhão... Ouviste, Eva?... Mandam-nos um brincalhão.
Àquela hora, as bancas do mercado da calle Gisbert já estavam fechadas.
Havia gente a rebuscar pelo chão, entre os restos de peixe e hortaliça:
algumas crianças, mulheres mais velhas e indivíduos com aspeto miserável.
– Começa a haver fome – comentou Cari. – Com as fábricas confiscadas
e o campo assolado, ninguém produz nada. Fuzilaram muitos patrões e
ninguém paga os salários. Nem as rendas se pagam, porque isso é
exploração capitalista... Aquele que é esperto encosta-se a um partido ou a
um sindicato e aproveita-se; e aquele que não o faz, arranja-se como pode.
Está tudo um caos, e não há dúvida de que vai piorar.
Deixaram para trás o mercado. O céu começava a tornar-se púrpura para
poente.
– Já sabes quando será a ação? – perguntou Cari.
– Nos próximos três ou quatro dias. Seremos avisados. – E há alguma
coisa que possas contar agora?
Falcó fez um gesto ambíguo, que em nada o comprometia.
– Ainda não convém contar muito.
– Sabes que somos de confiança. – Cari parecia incomodada. – Não sei
onde é que estavas no 18 de julho, mas nós já andamos aqui a arriscar desde
antes, com o meu irmão e outros camaradas... Muita da informação que tens
fomos nós que a recolhemos. Até estivemos em Alicante a estudar a prisão
e os arredores.
Ao virar-se para Eva Rengel, Falcó encontrou o seu olhar silencioso.
Talvez um pouco depreciativo, disse para si mesmo. Aquilo fê-lo sentir-se
ligeiramente incomodado.
– Não se trata disso – replicou. – É só uma questão prática. Vamos passo
a passo.
– Queres dizer – insistiu Cari – que se nos prenderem e tivermos muita
informação, falaremos com mais facilidade do que um homem?
– Há homens e homens. Tal como há mulheres e mulheres.
– Sim. Mas nós somos mais fracas numa checa, queres dizer. Nas mãos
dessa gentalha.
– Enganas-te. Não quero dizer nada.
Continuava a sentir nele o olhar reprovador de Eva Rengel. Que vá para o
diabo que a carregue, disse para si. Ela e a outra. Falcó vira interrogar
mulheres, e não era igual. Nem de longe. As suas recordações sobre o
assunto não eram comícios nem conversas de café, nem teorias sobre a
igualdade de sexos. Vira-as torturadas que nem animais, sem consideração
nem piedade. Conhecia bem os mecanismos. Os pontos vulneráveis mais
fáceis. Os métodos. Havia horrores que nenhuma mulher era capaz de
suportar, exceto por um filho ou um amante.
– Há uma questão que nos preocupa – disse Cari de repente. – O Ginés
comentou qualquer coisa contigo, parece-me. Um indivíduo chamado
Portela.
Falcó assentiu.
– Só mencionou o seu nome, e que é do vosso grupo... O que é que se
passa com ele?
– Há coisas estranhas. E coincidem com a captura de outros camaradas.
– Acham que tem alguma coisa a ver?
Cari torceu o nariz. Estava engraçada com o sobrolho franzido e o ar
preocupado, pensou Falcó. Fazia com que parecesse ainda mais nova. Por
instantes, imaginou-a nas mãos de carrascos, e isso fê-lo sentir uma irritante
ternura que afastou imediatamente com uma sapatada mental. Aquele
assunto não lhe dizia respeito. Não podia dizer, no seu trabalho. Aquele tipo
de sensações induzia a cometer erros, e os erros matavam. Matavam a
própria pessoa e os outros.
– Eu tenho a certeza e o Ginés está de acordo comigo. A Eva também
acha que sim.
Falcó olhou para a amiga. Os olhos desta mostravam uma tranquila
decisão. Um mudo assentimento.
– E vocês acham que esse Portela não deve ser informado do que estamos
a planear?
– Já foi – lamentou-se Cari. – Em parte, pelo menos. E isso é o que nos
preocupa. Pode estar a fazer jogo duplo. Passando informação para os
vermelhos.
Falcó hesitava, calculando prós e contras. Riscos. O tal Portela era mais
um fator imprevisto.
– Porque é que vocês não informaram acerca disso antes?
– Não temos tido comunicação com o outro lado há vários dias. E as
nossas suspeitas são recentes.
– As nossas certezas – corrigiu-a Eva Rengel.
Falcó virou-se para ela.
– Vejo-te muito segura disso.
– Tenho motivos.
Ele refletiu ainda mais um momento.
– O que é que pensaram?
– O meu irmão dir-te-á esta noite – respondeu Cari. – Porque vamos
jantar juntos, se puderes vir. Em casa.
– É prudente que eu vá? – hesitou Falcó.
– Claro que sim. És um amigo da família, encontrámos-te no cinema, e
nada mais natural do que convidar-te para jantar. Tu, a Eva, nós.
– Porquê ela? – Falcó indicou a amiga. – Está justificado?
Cari desatou a rir.
– Foi o meu irmão que teve a ideia, e não é um mau pretexto...
Conheceste-a hoje à tarde, estás interessado nela, gostas dela. Ela gosta de
ti.
– Isso é credível?
– Que a Eva gosta de ti?... Pergunta-lhe.
Os olhares de Falcó e da outra jovem cruzaram-se. Também sorria,
reparou. Poderia julgar-se, disse espantado para si mesmo, que estamos os
três a urdir uma brincadeira de estudantes. Ninguém diria que daqui
podemos ir todos para o paredão.
– Não tens qualquer inconveniente? – perguntou Rengel a Eva.
– Pelo contrário. – Parecia divertida com a situação. – Acho que é uma
boa ideia.
– Nós gostamos um do outro, então.
– É verdade.
– Quanto?
Ela aguentou o olhar dele um segundo mais do que o normal.
– O razoável – disse ela.
Agora era Falcó quem desatava a rir. Observou Cari por um instante, para
espreitar a sua reação, e continuou a rir.
– O melhor é um amor libertário, não é?... São tempos de guerra,
revolução e tudo isso. Vivamos e amemos, que amanhã morreremos...
Etecetera.
Notou que Eva Rengel ficava ligeiramente tensa.
– Já chega. Brincas sempre com estas coisas?
– Com o amor?
– Com matarem-te.
Falcó franziu a boca num sorriso cruel.
– Só quando me podem matar.
Depois deslizou um rápido olhar pelas formas que a gabardina cingida
pelo cinto moldava sobre o corpo da jovem. O pescoço nu sob o cabelo
louro muito curto, por cima das golas levantadas da trincheira, parecia
prolongado e forte. A boca carnuda era bem desenhada, sem batom. E o
roçar do corpo ao caminhar de braço dado – agora ela voltava a descontrair-
se – era muito agradável, quente e firme, tão natural como a vida e a própria
carne. Não havia timidez naquela maneira de estar próxima, concluiu. E
havia aquelas mãos de unhas partidas e manchas amareladas, que pareciam
não a preocupar nada. Era uma rapariga segura de si; tinha de o ser para
fazer o que fazia. O que as duas faziam. Milhares de homens teriam tremido
perante a simples ideia de tentarem.
*
Iam quase ao fim da calle Gisbert, perto do túnel que dava para o porto,
quando foram surpreendidos por um alarme aéreo: uma sirene a apitar sobre
as suas cabeças, no hospital da Marinha, a que imediatamente se juntaram
outras mais distantes, espalhadas pela cidade. À luz avermelhada do
crepúsculo, pela rua que já começava a escurecer, apareceram grupos de
vizinhos que corriam para os refúgios escavados na rocha.
– Também deveríamos ir – disse Falcó.
Caminharam apressando o passo até à entrada do refúgio mais próximo,
onde havia umas trinta pessoas: mulheres e homens de idade, mães com
filhos pequenos, um soldado e um marinheiro. Um candeeiro iluminava o
recinto e multiplicava as sombras. Dois milicianos tinham chegado em
último lugar, trazendo nos braços uma velhinha inválida que agora se
queixava baixinho, deitada no chão sobre uma manta. Havia rostos tensos,
preocupados, expectantes. Gestos de inquietação. Havia um cheiro azedo,
espesso, a suor, a medo e a fumo de tabaco. Quase todos os homens
fumavam. Ouvia-se ao longe um ribombar surdo, esporádico que se ia
aproximando. De repente ouviu-se uma explosão perto, fazendo tremer as
paredes. Algumas mulheres gritaram e as crianças choravam ao fundo.
– Filhos da puta dos fascistas – disse alguém.
Falcó estava com as duas jovens mesmo na embocadura do estreito
passadiço que conduzia à porta. Achava-as serenas, mesmo quando o
estrondo das bombas se aproximava muito. Tirou cigarros e os três
fumaram.
– Essa tua pronúncia é de onde? – perguntou ele a Eva Rengel.
– Quase não se nota – disse Cari.
– Eu notei.
Eva contou-lhe em poucas palavras. O pai era um engenheiro de minas
inglês, casado com uma espanhola. Dirigia uma exploração em Linares, e
depois foi colocado em Cartagena para se ocupar de outra situada em La
Unión. A esposa morrera durante o parto, e a menina, Eva, tinha sido
educada com a família do pai. Viajara com frequência para Espanha;
gostava do país e da sua gente. O pai morreu poucas semanas antes de
começar a guerra, deixando-lhe uma pequena renda. Ela tinha ido a
Cartagena para dispor do dinheiro quando se deu o Levantamento. A renda
– aquele privilégio de parasitas burgueses improdutivos – evaporou-se
quando o banco foi nacionalizado. Na Câmara não havia ninguém que
falasse línguas, e ela dominava o inglês e o francês. Por isso conseguiu um
emprego de intérprete.
– Um lugar oportuno – opinou Falcó. – Perfeito.
– Sim.
O rebentamento das bombas parecia afastar-se, entrecortado pelos
disparos distantes da artilharia antiaérea. Quando lá fora voltou o silêncio,
Falcó olhou para o exterior do refúgio.
– Vamos?
– De acordo.
Saíram para a noite. A rua que seguia para o túnel do porto era um
afunilamento de sombras. Debaixo dos seus sapatos estalavam vidros
partidos. Falcó dirigiu-se a Eva.
– Como é que te meteste nisto?
Deram uns passos sem que a jovem dissesse nada. Três silhuetas negras
saindo para o terreiro do porto. Estava tudo escuro, sem uma única luz a
não ser o luar entre as nuvens. Atrás deles, sobre a muralha, a sirene
anunciava o fim do alarme aéreo.
– Eu tinha amigos de antes da guerra – disse Eva por fim. – Era gente
filiada ou simpatizante. Ao ver tanta barbaridade em volta, decidi que devia
fazer alguma coisa... Tinha conhecido a Cari na Telefónica, e ela
apresentou-me ao irmão e aos outros. Ingressei assim na Secção Feminina
da Falange.
– E não tens medo? Nunca?
– Não tem – interveio Cari. – É a rapariga mais corajosa que eu já
conheci. E o Ginés diz o mesmo.
– Claro que tenho medo – contrapôs Eva. – Estou sempre com medo.
– Então porque é que fazes isto?
Ela não respondeu. Caminhavam junto ao gradeamento do cais comercial.
Falcó comentou que estavam demasiado perto e que alguma patrulha os
podia mandar parar.
– Não quero que me acusem de fazer sinais aos aviões com a brasa do
cigarro.
– São muito capazes disso – riu-se Cari.
– Por isso é que eu digo.
Afastaram-se em direção à muralha e à praça da Câmara. As grandes
magnólias do passeio portuário abrigavam-nos sob a sua ramagem espessa e
escura.
– Ainda não me disseste porque é que és falangista – disse Falcó a Eva.
A jovem ainda se manteve calada por uns momentos.
– Viste o José Antonio em pessoa? – insistiu ele.
– Uma vez, num comício em Madrid.
– E?
– Gostei da forma como ele falava. Sensato... Educado.
– E bonito.
– Também.
– Tu também não és nada mau – riu-se Cari. – Com camisa azul serias o
máximo.
– Prefiro as camisas brancas.
– Pois... É uma pena.
Tinham chegado à praça da Câmara. À esquerda adivinhavam-se as
silhuetas dos navios de guerra amarrados de popa ao cais. Não parecia
haver danos do bombardeamento por ali. Do outro lado, na parte alta da
cidade, o brilho de um pequeno incêndio recortava as paredes da catedral
velha.
– Amo Espanha – disse Eva por fim. – Teria muita vergonha de assistir ao
que acontece sem fazer nada.
– Esse é um motivo... – começou Falcó a dizer.
– Viril?
Interrompera-o, brusca. Quase agressiva.
– Poderoso – terminou ele.
– Acontece à Eva o mesmo que a mim – cortou Cari. – A diferença é que
a mim, tal como ao meu irmão, a indignação pelo que acontece exalta-me.
Faz-me ferver o sangue ver como socialistas, comunistas, anarquistas e
separatistas destruíram Espanha; enquanto ela vê as coisas de outra forma...
É mais serena do que eu. Mais fria nos seus afetos e ódios.
– É uma aventura perigosa. Pode acontecer não verem o fim.
– Não digas isso – protestou Cari, dando-lhe uma pequena pancada no
braço. – A primavera voltará a rir.
Era uma estrofe do Cara al Sol, o hino da Falange. Isso provocou um
sorriso em Falcó.
– Eu saberei qual é o meu final quando ele chegar – disse Eva.
Cari voltou a dar o braço a Falcó. Parecia contente.
– Então, Rafa, ou lá como te chamas mesmo... Gostas da minha amiga?
– Muito – confirmou ele, divertido. – Gosto muito.
– Pois não tenhas ilusões.
Uma patrulha noturna passou junto deles. Não os mandaram parar. Por
instantes, uma lanterna elétrica iluminou os seus rostos e o feixe de luz
apagou-se a seguir. As sombras afastaram-se com barulho de passos e de
carabinas.
– Marinheiros de algum barco. – Cari tinha ficado séria. – Vão com
pressa, a caminho da prisão do Arsenal... Alguns desgraçados vão pagar
pelo bombardeamento desta noite.
7

OS AMIGOS DE FÉLIX
E stava com Eva Rengel em casa dos irmãos Montero, depois de jantar. A
mãe, uma mulher rechonchuda e simpática que era parecida com a filha,
tinha retirado os pratos e fechado a porta, deixando-os tranquilos. Ouvia-se
o assobio suave de um aquecedor a gás. Aquela era a sala de jantar de uma
casa de classe bem instalada, sem excessos: móveis de mogno escuro,
retratos familiares nas paredes. Sobre a toalha havia um mapa e uma planta
desdobrados entre chávenas de café vazias, cinzeiros e um maço de Muratti
encetado a meio, um caderno escolar e um lápis. Também uma garrafa de
Fundador, um sifão e copos. Para obedecer às regras do escurecimento, o
grande candeeiro de vidro suspenso do teto estava apagado, e fechadas as
portadas de madeira da sacada. O fumo do tabaco acinzentava o cone de luz
do candeeiro flexível posto em cima da mesa.
– Esta é a cela do José Antonio. – Em mangas de camisa, Falcó mostrava
tudo na planta, que tinha sido desenhada à mão. – Para lá chegar é preciso
passar por este pátio, e por este. Aqui à direita, estão a ver?... Pelo corredor.
– Isto é um gradeamento? – apontou Ginés Montero. A planta refletia-se
nas lentes dos seus óculos.
– Sim. E aqui há outro. – Falcó indicou o ponto exato. – Supõe-se que
teremos as chaves.
– Conta com isso. O camarada que temos entre os funcionários garantiu-
nos que sim... Como é que vamos passar pelo portão principal?
– Chegaremos no primeiro carro, seis de nós, dizendo que trazemos um
detido. Levamos uma ordem com todos os carimbos correspondentes, para
evitar problemas: CNT, UGT, FAI... Quando abrirem, atacaremos com
pistolas metralhadoras e bombas de mão e os restantes seguir-nos-ão.
Montero olhou para a sua irmã e para Eva antes de concordar, satisfeito.
– Agrada-me. Mas como armas de guerra, nós só temos uma caixa de
granadas Lafitte, três pistolas Star de nove milímetros longas e uma centena
de cartuchos.
– Servirá, embora esteja previsto que a força de desembarque traga mais –
tranquilizou-o Falcó. – Armas, munições e bombas para todos.
– Colossal.
Falcó dobrou a planta da prisão e meteu-a no bolso do blusão que estava
pendurado no espaldar da cadeira.
– Há alguma objeção?
– Tu és o responsável a partir de agora – disse Montero. – São essas as
minhas ordens.
– Isso não tem muita importância. Eu só coordeno. O trabalho prévio terá
sido feito por vocês.
– Também vais assaltar a prisão?... Quero dizer, se vais entrar nela?
– Ainda não sei.
– Ainda há o irmão dele, o Miguel. Suponho que o tiraremos.
Falcó pensou em Miguel Primo de Rivera. Conhecia-o de vista, tal como
aos seus outros irmãos: havia ainda uma rapariga, Pilar. Ao mais novo,
Fernando, encontrara-o às vezes em Jerez, quando era pequeno, ainda de
calções, quando os seus irmãos começavam a fumar os primeiros cigarros, a
ensaiar passos de tango e a ficar apalermados com raparigas. Fernando já
tinha sido fuzilado em Madrid. Quanto a Miguel, estava preso com José
Antonio e ia ser julgado em breve. Tal como estavam as coisas, uma
sentença de morte era mais do que provável.
– As minhas ordens não o incluem – disse ele.
– Mas é um camarada – protestou Montero.
– Vai dar ao mesmo. A prioridade é libertar o José Antonio... Se quando
ele estiver a salvo houver oportunidade, ajudar-se-á outros presos. Mas nada
disso se poderá fazer senão quando a sua fuga estiver garantida, com ele
fora da prisão.
– Alguns são falangistas – insistiu o outro. – Serão assassinados, se os
deixarmos lá.
– Isso não é problema meu. As minhas instruções referem-se a um único
preso. Quanto aos outros, não temos meios para os retirar a todos. E o local
de embarque dista meia hora de automóvel... Não há transporte, nem
capacidade no barco que nos irá recolher na praia.
– Podemos soltá-los e eles que se desenvencilhem – sugeriu Cari
Montero.
– Não confio nisso. Supondo que teríamos tempo e oportunidade para
isso, iriam colar-se a nós que nem lapas. Ocupariam lugar e atrasariam a
fuga.
– Tu não és dos nossos – espicaçou Montero. – Há coisas que...
Falcó olhou para ele com dureza.
– Não há coisas que valham. Vocês distinguem-se pela vossa disciplina,
não é?... Pois é uma boa ocasião para o demonstrar. Decidiu-se assim, e
assim se deve fazer.
Serviu-se de um dedo de conhaque num copo e acrescentou um jato curto
de sifão. Os dois irmãos e Eva olhavam uns para os outros.
– Há outra coisa – disse Montero. – Elas querem vir.
Falcó semicerrou as pálpebras com o sabor do conhaque na boca. Depois
moveu a cabeça e pousou o copo sobre a toalha muito devagar.
– Nem pensar.
– Já lá estiveram. Correram muitos riscos.
– Então isso já chega.
– Podem ser-nos úteis como apoio. Não é preciso que entrem na prisão. E
sabem usar as armas.
– Sabemos usar pistolas e granadas – confirmou Cari. – O Ginés ensinou-
nos. E ela é muito boa condutora.
Eva apoiava os cotovelos na mesa, com as mãos debaixo do queixo. Um
cigarro fumegava entre os seus dedos.
– Sim – confirmou. – Conheço bem os automóveis.
Falcó pensou naquilo. Na sua experiência pessoal. Nas suas recordações.
Tinha matado homens por culpa, ou por causa, de mulheres. Elas
facilitavam esse género de coisas. Não importava o quão inteiras ou
decididas fossem, ou que soubessem valer-se por si mesmas. Eram os
velhos instintos que sempre, acima de qualquer razão, acabavam por
interferir de modo perigoso. Tanto fazia que o móbil masculino fosse a
vaidade, o impulso dominador ou protetor, ou até sentimentos mais nobres,
como o afeto, a humanidade ou o amor. Postos em situações extremas ao
lado de mulheres, a maior parte dos homens não era capaz de se subtrair ao
impulso básico de as proteger. E isso tornava-os descuidados. Vulneráveis.
A eles, em primeiro lugar, e a elas como consequência. A todos.
– Quanta gente teremos lá, além dos que vêm por mar?
Eva e Cari continuavam a observá-lo, expectantes. Evitou os seus olhares
com um golo de conhaque.
– Elas as duas e outro camarada – disse Montero – podem vigiar a praia e
fazer sinais ao barco.
– Qual outro camarada?
– Um de Alhama, muito novo, mas de confiança a cem por cento. Um
estudante chamado Ricote. Tu e eu conduziríamos os do grupo de assalto...
O que é que achas?
Falcó continuava a evitar o olhar das duas mulheres. A verdade, concluiu,
é que não tinha gente de sobra.
– Parece-me bem – aceitou por fim. – Mas ficarão na praia.
Aquilo foi acolhido por um percetível suspiro de alívio. Agora, ao erguer
a vista, Falcó encontrou os olhos de Eva. Fitava-o de forma estranha entre
as espirais de fumo do seu cigarro.
– Quantos é que vão desembarcar? – quis saber Montero.
– Disseram-me que uns quinze... São todos gente bem treinada, decidida.
Escolhida em centúrias da Falange que estão a combater na frente.
– Hora?
– Meia-noite. E Alicante fica a nove quilómetros. Teremos uma hora e
meia para tudo: desembarcar, ir à prisão e estar de regresso na praia.
– Conheces o lugar?
– Não. Só pude vê-lo como aqui, nos mapas.
Montero apontou para o que estava em cima da mesa. Um velho mapa
militar, topográfico, uma tira estreita entre curvas de nível muito juntas e o
mar.
– É aqui, a norte do cabo de Santa Pola. Vês?... Chama-se El Arenal. Há
um pinhal extenso num terreno fundo e uma praia com dunas. Os pinheiros
chegam quase até à beira-mar.
– É preciso passar por alguma povoação para lá chegar?
– Não. Há um caminho de terra que sai da estrada de Cartagena para
Alicante e entra no pinhal... É tudo muito discreto.
Falcó tirou um Muratti, bateu com ele suavemente no mostrador do
relógio e acendeu-o pelo lado da marca impressa no papel. Fazia sempre
assim para que ardesse primeiro por esse lado, deixando o menor rasto
possível. Um fumador podia ser facilmente identificado pelas suas beatas.
Aquela não era a sua marca habitual, mas o reflexo automático continuava a
ser o mesmo. E ele, entre muitas outras coisas, era um conjunto bem
coordenado de reflexos automáticos. Ajudavam a conservar a saúde e a
cabeça. Não era a mesma coisa ser um alvo fixo que um alvo móvel.
– Disseram-me que trarias mais alguma gente.
– É verdade – disse Cari. – Dispomos de uma esquadra que é de
confiança: rapazes dispostos a tudo. São três camaradas de Múrcia que têm
um camião: os primos Balsalobre e um guarda de assalto chamado Torres.
– Não quisemos comprometê-los até agora – confirmou o irmão –, mas a
ocasião assim o exige.
– Eles sabem qual é o objetivo da missão?
– Não. Mas são disciplinados e comparecerão onde os mandarem.
– O guarda de assalto é de confiança?
– Completamente. Camisa velha.
Com o cigarro a fumegar-lhe na boca, Falcó tinha ido tomando nota
mental de tudo. Exceto a planta da prisão, necessária para os que iam
desembarcar, não levava consigo nenhum outro documento que estivesse
relacionado com a operação. Há muito tempo que não apontava nada que
não fosse imprescindível; porventura, notas breves que destruía assim que
as memorizava. O excesso de papel nos bolsos também matava uma pessoa
com facilidade. No dia em que lhe falhasse a memória, teria chegado o
momento de mudar de ofício. Ou de se deixar liquidar como um idiota.
– Com os quinze do grupo de assalto seremos vinte e quatro, contando-as
a elas – disse ele. – Não é muita gente.
– Não dispomos de mais. Por isso é que precisamos da Eva e da Cari... E
mesmo assim, não seremos vinte e quatro, mas sim vinte e três.
– Porquê?
A resposta ficou adiada, pois naquele momento a mãe dos Montero
irrompeu na sala, pálida e a tremer de angústia. Tinha parado um carro na
rua, disse ela. Santo Deus! E saía gente armada.
– Vêm para aqui?
– Não sei.
Falcó tirou a pistola do blusão e meteu-a no bolso de trás das calças.
Apagaram o candeeiro e os cigarros. A mãe rezava em voz alta, meu Senhor
Jesus Cristo, Virgem santíssima, de forma incoerente e atropelada, até que o
filho lhe ordenou silêncio. Falcó encaminhou-se para as portadas da sacada,
entreabrindo-as um pouco. Não conseguia ver o suficiente, por isso
introduziu-se pela abertura, colado à parede, e olhou para a rua. Na
penumbra, viu um automóvel parado em baixo. Era de cor escura e sobre o
capô, pintadas a branco, sobressaíam as letras UHP. Havia sombras com
carabinas.
– Vão à casa em frente – sussurrou Montero. – Uma rusga.
– Quem é que vive lá?
– Vizinhos diversos. Um é militar retirado, com uma filha freira que
expulsaram do convento quando o incendiaram, e um filho que se passou
para o outro lado. O pai votou à direita. Talvez vão por causa dele... A estas
horas costumam começar as visitas noturnas.
Ao falar brilhava-lhe na mão o canhão niquelado de um revólver.
– Guarda isso – disse Falcó. – Se te escapa um tiro estamos feitos.
– Tu também pegaste na pistola.
– Mas tenho-a no bolso.
Podia cheirar o seu medo, embora o tenha satisfeito verificar, ou intuir,
que era um cheiro a medo tranquilo, sereno. O de alguém resignado a tê-lo,
assumindo-o sem se ver descomposto por ele. Ficaram ali os dois, imóveis,
coisa de uns quinze minutos, com as mulheres a aguardar, tensas, na sala de
jantar. Ouviam a mãe a murmurar rezas. Por fim, saiu um grupo de sombras
da porta de entrada em direção ao carro. Agora havia luz numa das sacadas
e duas mulheres assomadas. Ouviam-se gritos e choros. De baixo, uma voz
desabrida ordenou que se metessem para dentro e apagassem a luz ou
levavam um tiro. A sacada ficou às escuras.
*
– O que é que se passa no número vinte e quatro? – quis saber Falcó.
Ele e Montero estavam de regresso à sala de jantar. A mãe tinha ido a
chorar e sem deixar de rezar. Virgem santa. Que loucura! Que Deus os
amparasse a todos. O candeeiro flexível iluminava de baixo os rostos graves
de Eva e de Cari.
– É o Juan Portela – disse o outro. – Um do nosso grupo. Não confiamos
nele.
Falcó apontou para as duas jovens.
– Elas falaram-me disso... Até quando é que vocês confiaram?
– Até há demasiado pouco tempo – disse Cari.
– Sabe alguma coisa de mim?
– Nada.
– E de Alicante?
– Também não. Sabe que existe o projeto e nada mais.
– Qual é o problema, então?
– Nas últimas semanas caíram três camaradas, e ele conhecia-os a todos.
Falcó fez uma expressão desagradável. As paranoias eram habituais no
seu mundo, mas isso não significava que o inimigo não fosse realmente
atrás de alguém. O problema era encontrar o ponto de equilíbrio entre golpe
baixo da imaginação e ameaça real.
– Suponho que vocês também os conheciam – tateou.
Aquilo não caiu bem. Seguiu-se um silêncio breve, incómodo.
– Isso não tem graça nenhuma – disse Cari.
O seu irmão tinha-se levantado. Foi até um aparador e meteu a mão entre
o móvel e a parede.
– A Eva viu-o na Câmara duas vezes. Em gabinetes onde não teria nada
que fazer... Isso levou-a a investigar um pouco e obteve isto.
Retirara do esconderijo duas folhas de papel datilografadas e agrafadas
que pôs nas mãos de Falcó. Tinham o timbre da Unidade Especial de
Segurança e Vigilância. Segundo me manifesta Juan Portela Conesa, de
trinta e dois anos de idade, solteiro, domiciliado na rua do Salitre, número
7... O documento era assinado por um tal Robles, com o selo da polícia
junto à rubrica, e continha o resumo de uma conversa na qual se davam
referências sobre várias pessoas de direita. Segundo o texto, Portela
denunciara-as.
Falcó estudou o documento. Os selos pareciam autênticos.
– Desde quando é que vocês têm isto?
– Há três dias.
– E como é que chegou às vossas mãos?
– A Eva, pelo seu trabalho de intérprete na Câmara, tem acesso a muitas
coisas.
Falcó olhou para a jovem com sincero respeito.
– Isso é arriscar a vida.
Ela sorria apenas, distante. Tinha tirado outro cigarro. Falcó pegou na
caixa de fósforos e ofereceu-lhe lume. Eva inclinou-se sobre a chama, e as
suas mãos roçaram nas dele por um momento.
– Fiquei que nem uma pedra – disse ela com simplicidade, expulsando o
fumo – quando vi esse papel.
– Não vão dar por falta desse documento?
– Espero que não, pelo que implica para mim... Trouxe-o para que o vejas
e devolvê-lo-ei assim que puder.
Disse aquilo com calma, sem lhe dar importância. Aquela era uma mulher
com casta, pensou Falcó. Achava-a mais bonita agora, sem a gabardina.
Quando ela a tirou ao entrar em casa, ele reparou nas pernas bem torneadas
e na saia azul que desenhava as suas ancas largas, de fêmea vigorosa; nos
serenos olhos castanhos, nos ombros de nadadora, nos lóbulos das orelhas
sem furos e no pescoço comprido, forte, descoberto entre a blusa e o cabelo
louro muito curto. No entanto, concluiu um pouco desconcertado, havia
algo equívoco nela. Talvez aquelas mãos vulgares, de unhas descuidadas.
Também uma certa dureza de ordem física excessiva, quase masculina,
acentuada pela ausência de maquilhagem. Por breves instantes, e pela
primeira vez, perguntou a si mesmo se além de falangista e corajosa, Eva
Rengel não seria lésbica.
– Um dos referidos no documento era dos nossos – estava Montero a
dizer. – Detiveram-no e não chegou à prisão... Depois de o interrogarem na
checa das Adoratrices, fuzilaram-no no cemitério.
Falcó inclinou-se para trás na cadeira. Refletia.
– O que é que vocês pensaram?
Os outros olharam-se entre si.
– O Juan Portela faz jogo duplo – atalhou Montero. – Talvez devamos
neutralizá-lo antes que isto prossiga.
Falcó olhou para ele, trocista. Achava graça à palavra.
– Neutralizá-lo?
– Chama-lhe como preferires.
– Isso é grave. – Estudou-os um a um, certificando-se. – Trata-se de um
camarada vosso.
– Não é um camarada. É um traidor e um delator.
Falcó olhou para Cari.
– Tu estás de acordo com isso? Com a neutralização desse homem?
Ela não disse nada. Falcó virara-se para Eva.
– E tu?
Também não houve resposta.
– Custou-nos a acreditar – comentou Montero, como se aquilo resumisse
tudo.
– Há quanto tempo é que esse indivíduo é falangista?
– O mesmo que eu. E nunca tinha falhado.
– Tem algum familiar ameaçado, ou na prisão?
– Que eu saiba, não. O pai dele é apolítico. Mas tinha um irmão, que era
capitão de artilharia, que foi executado pelos nacionais em Melilla por não
se juntar ao Levantamento.
– E quando é que ele soube?
– Há um mês.
– Coincide com as primeiras detenções dos vossos companheiros?
– Mais ou menos.
Falcó apagou o seu cigarro.
– É um motivo – opinou – tão bom como outro qualquer.
Ficaram todos calados, a olhar uns para os outros.
– És tu quem decide como vamos fazer – disse por fim Montero. – Agora
estás no comando...
– Não lhe vi a cara – objetou Falcó.
– Posso marcar para amanhã, se quiseres.
– Onde?
– No bar Americano da calle Mayor. Ele costuma tomar ali o aperitivo e
depois joga uma partida nos bilhares da calle del Aire. Trabalha perto, na
alfaiataria do pai. Falo com ele, olhas para ele de longe e identifica-lo...
Marco encontro para depois e nós damos conta dele. Tu e eu.
– Nós também – disse Eva, com súbita dureza.
Falcó calculava os perigos e as vantagens. Naquela altura do complô,
Juan Portela podia já ter dito tudo quanto sabia. Mas também não era
conveniente matá-lo sem mais nem menos. A sua morte podia alertar as
autoridades e precipitar as coisas, estragando-as. Por isso, neutralizar
acabava por ser a palavra adequada. Era importante averiguar quanto é que
Portela sabia, quanto é que desconhecia e quanto é que tinha contado. Se a
pior possibilidade resultasse certa, a razão de ainda não terem agido contra
o grupo podia ser estarem à espera de que a presa fosse maior na hora de
fechar a rede. Nem tudo, entre os vermelhos, eram passeios espontâneos e
disparates de milícias e fações que se estorvavam umas às outras. Também
havia ali gente que pensava.
– Há alguma maneira de o apanhar vivo e interrogá-lo?
– Pode fazer-se.
– Há um princípio militar muito útil – disse Falcó depois de pensar um
pouco mais. – Prepararmo-nos para a hipótese mais provável, mas adotar a
segurança consoante a hipótese mais perigosa.
– Gosto disso – exclamou Cari.
– Eu também – disse o irmão.
– Pois aqui juntam-se o provável e o perigoso... Tu o que é que opinas,
Eva?
A jovem olhou para ele, inexpressiva. Apagava o cigarro esmagando-o no
cinzeiro de forma minuciosa, até que o último resto de brasa fumegante se
extinguiu.
– Façamo-lo – disse ela.
Falcó começava a ter dor de cabeça. Resignado, procurou o tubo de
cafiaspirinas no blusão.
– De acordo – ergueu as mãos, como se se rendesse. – Fazemos isso
amanhã.
*
Madrid resiste à furiosa ofensiva fascista era o título principal de El
Noticiero. E mais abaixo, a duas colunas: Em Cartagena continuam os
bombardeamentos criminosos sobre a população civil. Apoiado à parede
junto ao balcão do bar Americano, Lorenzo Falcó dobrou o jornal e pô-lo
em cima do balcão, ao lado do copo de cerveja. Tinha comprado uma boina
de pichi e posto na gola do blusão uma insígnia do Partido Comunista: uma
foice e martelo de metal dourado e vermelho comprada numa loja próxima,
e que contribuía – pelo menos era essa a intenção – para o mimetizar mais
com a paisagem. Estava na hora do aperitivo, o tempo estava bom, e os
bares e cafés da calle Mayor fervilhavam de gente. Muitos eram homens
novos, em idade militar, que conseguiam não ser mobilizados e ficar na
retaguarda sob a etiqueta salvadora de pessoal imprescindível. Havia
funcionários de escritórios municipais, empregados e proprietários das lojas
próximas, e não faltavam os uniformes. O Americano, que antes da guerra
era um local elegante onde se reuniam os senhores da classe média e alta,
era um ir e vir de caquis militares, de macacões azuis ou cinzentos, casacos
de cabedal, blusões com braçadeiras de agrupamentos e partidos, bonés de
pala, boinas com insígnia e bivaques com borla. Tudo bem acompanhado de
correagem e pistolas, a trezentos quilómetros do mouro ou do legionário
mais próximos. Havia um retrato de Lenine e outro de Estaline entre as
garrafas alinhadas nas prateleiras. Com um sorriso interior, Falcó pensou
que, se toda aquela gente disfarçada de guerreiros fosse enviada para a
frente de batalha, nem que fosse só pelo seu número, seria suficiente para
parar os pés das tropas nacionais. Lembrou-se de um verso que se cantava
do outro lado, mas que também dava para este.
Quando regressas da frente
a primeira coisa que se vê
é que estão os emboscados
sentados nos cafés.
Ao lado de Falcó, um indivíduo trigueiro de mãos e cara, vestido com
camisa aos quadrados e alpergatas e com a cabeça coberta pelo bivaque
vermelho e preto dos anarquistas, onde levava uma bala de Mauser cosida,
tinha apoiado a naranjero4 no balcão e bebia um vermute devagar,
espetando de vez em quando uma azeitona. As mãos eram calejadas e
nodosas, de operário. A beata do seu cigarro, meio consumida, queimava a
madeira do balcão.
– Quanto é que te devo? – perguntou o miliciano ao empregado.
– Oferta da casa, companheiro – disse o outro. – Eu também sou da FAI.
Falcó observou a cara do empregado: uma navalhada sobre uma
sobrancelha, mal encarado, olhos ruins, sorriso velhaco e servil. O seu
melhor pensamento, deduziu, teria vinte anos e um dia de presídio.
– Ah, bom – mastigando um palito, o miliciano pegou na sua pistola-
metralhadora e encaminhou-se para a porta. – Saúde, então.
– Saúde.
Havia algumas mulheres, observou Falcó. Sentadas à mesa ou ao balcão a
conversar com homens. A maior parte usava roupas civis e duas delas
estavam vestidas de milicianas, e uma era bastante bonita; tinha as
sobrancelhas muito depiladas, o bivaque inclinado de forma coquete sobre
os caracóis e, à cintura, uma enorme pistola-metralhadora Bergmann.
Estava num grupo junto à porta, à conversa.
– Não devia restar nem um – ouviu-a Falcó dizer algumas vezes.
– Mas os facciosos têm tanques italianos e canhões alemães – comentou
alguém.
– Basta ter tomates – respondeu a miliciana. – Para ir atrás deles e agarrá-
los.
– Aos tomates? – troçava um.
A outra empinou-se toda, com fúria feminina e proletária.
– Essas piadas fachistas são para dizer à puta que te pariu.
– Desculpa, companheira.
– Qual companheira, qual quê!
Talvez tudo aquilo, disse Falcó para si, marcasse a diferença entre duas
Espanhas. Entre duas barbáries paralelas. Nem sequer se tratava de um
assunto de coragem; matéria da qual, disso não havia a menor dúvida, os
dois lados estavam fornecidos. O que se dava do outro lado era uma
planificada repressão sob comando único, um extermínio sistemático de
tudo quanto cheirasse a democracia, liberdade e ateísmo, com a ideia de
uma nação unida, religiosa e forte acima de tudo. Por isso, em Salamanca
começava a falar-se de Cruzada: uma guerra total feita por militares
profissionais que usavam o terror e o sangue como arma definitiva. E
entretanto, o que havia por parte da República era um disparate de
improvisação, oportunismo e demagogia, com as prisões abertas a 18 de
julho atirando a chusma para as ruas – convertida em milicianos que
gastavam em paródias e mulheres o que roubavam assassinando a esmo –, e
o povo armado, soberano no caos, a ajustar contas; um ódio homicida não
só para com o exército de Franco como para com os membros do seu
próprio lado, partidos e fações em confronto entre si, indecisos entre ganhar
a guerra ou fazer a revolução, incapazes de coordenar um esforço comum;
fora do controlo de uns governantes e políticos alheios à realidade,
divididos, impotentes e incapazes. Por isso iriam ganhar os outros, concluiu
equânime Falcó. Os fachistas, como dizia a miliciana. Não tinham
escrúpulos democráticos, eram os mais criminosamente disciplinados e os
mais fortes. Iam ganhar, sem dúvida, por mais que isso tardasse. E ele
esperava continuar vivo para o comprovar. Quando tudo acabasse não
haveria sepulturas que chegassem.
*
Viu entrar Ginés Montero, com sobretudo e cachecol. O falangista deu
uma vista de olhos à sua volta, e o seu olhar tropeçou em Falcó como se
este lhe fosse desconhecido. Depois foi encostar-se na ponta oposta do
balcão e pediu um café. Falcó ficou onde estava, acabou a cerveja e pediu
outra. O empregado mal-encarado acabava de lha servir quando um homem
novo vestido com casaco, camisola e gravata entrou no local, olhou em
volta e quando descobriu Montero foi colocar-se a seu lado. Trocaram umas
palavras e saíram para a rua. Falcó deixou umas moedas em cima do balcão
e foi atrás.
Seguiu-os pela calle Mayor em direção ao porto. Conversavam com
naturalidade. Juan Portela era mais alto do que Montero e o seu aspeto era
distinto. Tinha pouco cabelo e orelhas grandes e movia-se com lentidão.
Não era malparecido. A sua roupa tinha um corte elegante que contrastava
com o que costumava ver-se pela rua. Ia com as mãos nos bolsos e a cabeça
baixa, ouvindo o que Montero lhe dizia. Ao chegar em frente do casino
pararam e conversaram um pouco mais enquanto Falcó, para disfarçar,
permanecia parado diante da montra de uma casa de luvas. Montero falava
e o outro concordava com a cabeça. Depois separaram-se, Portela continuou
o seu caminho e Montero desandou o seu até parar ao lado de Falcó,
olhando como ele para a montra.
– Convoquei-o para esta noite – murmurou.
Falcó começou a andar sem responder. Portela afastava-se pela rua
abaixo, e ele foi atrás dele, embora essa parte não estivesse prevista. O
combinado era que Montero ajudasse a identificá-lo e mais nada, e assim ter
o seu rosto presente para o que acontecesse mais tarde. Mas a Falcó
apetecia-lhe qualquer coisa mais, e deixou-se levar pelo impulso. Não era a
primeira vez. Podia matar-se um ser humano de muitas formas, mas era
sempre conveniente, ao enfrentar a tarefa, possuir o máximo de informação
possível sobre ele. A sua forma de se mover, de caminhar, de parar, era
fundamental. O modo de olhar ou de se precaver, o grau de confiança ou de
suspeição. Os hábitos e os tiques característicos. Falcó sabia muito bem que
nada no mundo, nem sequer o mais pormenorizado dossiê elaborado sobre
uma potencial vítima, podia substituir os olhos e o instinto do executor. Por
isso, sempre que era possível, convinha rondar a presa, estudando-a. Farejar
o seu rasto na perseguição, com tempo e calma por diante. Os gatos, os
tigres, os felinos em geral, costumavam fazer isso bastante bem. Muito
profissionais. Era algo tão velho e natural como a própria vida e morte. Na
realidade, pensava Falcó, essa era a parte interessante do ato de matar. A
mais atrativa. O resto, golpe, disparo, veneno, punhal, já era pura técnica.
*
Quando entrou nos bilhares seguindo os passos de Portela, este
encontrava-se junto de uma das mesas de fundo, à conversa com o
encarregado. Tinha um taco nas mãos. Havia uma dúzia de pessoas no
salão, todos homens, um uniforme ou outro e muito fumo de cigarros.
Ambiente carregado. O local, escuro, sem janelas, era iluminado por
campânulas de vidro situadas por cima do pano de cada mesa. Ouvia-se o
bater dos tacos nas bolas de marfim, o entrechocar de carambolas e o som
de fichas nos ábacos da parede.
Falcó deambulou entre as mesas, olhando para o desenrolar dos jogos.
Aproximou-se dessa forma daquela onde Portela jogava. Era às trinta e
uma, com o encarregado a fazer de árbitro, e havia mais dois jogadores: um
militar com divisas de sargento de milícias, baixo e hirsuto, e um civil alto e
deselegante, com o casaco roto num cotovelo. Falcó pediu para se juntar à
partida e ninguém se opôs. O encarregado lançou à sorte as bolinhas
secretas, situou os cinco pinos sobre o pano e começaram a jogar. As
apostas eram a cinco pesetas, e a casa ficava com uma peseta por cada um;
Portela foi o primeiro a sair e Falcó o último. Aquele jogava com calma e
habilidade, sereno. Deslizava o taco com suavidade entre os dedos, muitas
vezes, antes de aplicar a pancada à bola adequada. Calculava o lance com
atenção enquanto se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco debaixo do
queixo, numa postura impecável, repetindo várias vezes o vaivém no
ângulo formado pelo polegar e pelo indicador. Não caía na vulgaridade de
querer seguir a trajetória das bolas movendo o corpo enquanto estas
rolavam. Fazia aquilo bem. Somou pontos derrubando os pinos certos,
parou quando era preciso e ganhou a primeira partida. A segunda foi ganha
pelo militar. Tinham começado a terceira quando se ouviu lá fora o alarme
aéreo.
– A aviação fascista! – gritou alguém.
Toda a gente, militares incluídos, saiu em debandada a caminho do
refúgio mais próximo. A sala ficou vazia, à exceção de Portela, Falcó e o
encarregado. Este aguardava, muito nervoso, que os jogadores se fossem
embora com os outros. Assim podia ficar, supôs Falcó, com as dezasseis
pesetas da partida inacabada.
– Acho que é a sua vez – disse Portela a Falcó com muito sangue-frio.
Sustiveram o olhar por momentos e Falcó gostou do que via. Verificou
que na boca do outro espreitava um esboço de sorriso. Um pouco de
insolência desdenhosa.
– Pode cair uma bomba – balbuciou o encarregado.
– Cumpra o senhor o regulamento – disse Falcó.
O sorriso de Portela acentuou-se. Punha giz no casquilho com muita
parcimónia enquanto o alarme continuava a tocar lá fora. Adaptando-se ao
estilo, Falcó tirou a cigarreira com cigarros enrolados do bolso e ofereceu
ao outro.
– Obrigado. Não fumo.
Falcó apoiou o seu taco no rebordo da mesa, raspou um fósforo e acendeu
um cigarro. Depois olhou para as bolas e para os pinos por entre a primeira
baforada.
– Acerta no dois com quinze pontos – disse o encarregado, com
resignação.
Estava pálido como o marfim das bolas. Falcó estudou sem pressa o pano
verde. As duas bolas para a jogada estavam muito perto uma da outra no
mesmo canto, e o pino que lhe convinha derrubar era o número um, que
ficava na parte oposta. Era uma tacada difícil, mas sentia os olhos cheios de
medo do encarregado e o olhar atento do outro jogador, por isso não havia
forma de recuar. Inclinou-se sobre a borda da mesa, procurando uma
posição cómoda enquanto alongava o taco.
– O senhor sabe qual é a bolinha que tem? – perguntou Portela ao reparar
no ângulo a que ele ia jogar.
– Perfeitamente.
– Deveria olhar para ela na marca para verificar o que lhe falta.
– Sei muito bem o que me falta – disse Falcó com frieza.
Na rua ouviu-se o ribombar de um estouro de bomba, distante, e depois
outro mais perto. O encarregado teve um sobressalto. Falcó continuava
imóvel, com o cigarro a fumegar na comissura da boca e as pálpebras um
pouco fechadas, estudando a posição das bolas.
– O pino um? – perguntou Portela, compreendendo por fim o que
pretendia.
– Sim.
– Ui. É uma tacada difícil.
– Talvez.
– O senhor terá de bater com bom efeito.
Falcó ergueu a vista por momentos para encontrar os olhos do outro. Este
observava-o com curiosidade tranquila, reparou ele. Não parecia inquieto
com as bombas que caíam lá fora. Ouviu-se outro rebentamento muito
próximo, como se tivesse explodido na própria rua.
– Valha-me Deus – murmurou o encarregado. Não era uma expressão
usual naqueles dias. Tremiam-lhe as mãos, que apoiava na borda da mesa.
– Saia daqui – disse-lhe Portela, com despeito.
– Agora já não posso ir para o refúgio – lamentou-se o encarregado.
– Então desça para a cave, porra.
O fulano não precisou que lho repetissem. Pegou nas suas quatro pesetas
e afastou-se a toda a pressa entre as mesas, virando a cabeça.
– Vocês são muito corajosos.
Quando Falcó voltou a sentir o olhar do outro fixo nele, deu a tacada com
muita energia. A pancada saiu perfeita. A bola bateu e chegou a meio da
tabela longa, ganhando ali efeito para continuar em linha reta até ao pino
número um.
– Trinta e uma exatas – disse ele.
*
Saíram a caminhar juntos quando parou o alarme. Sem falar, quase de
mútuo acordo, andaram até chegarem à base da escadaria que levava à
catedral velha. Uma bomba tinha caído mais abaixo, entre os edifícios da
calle del Cañón, orvalhando as fachadas com varíola de metralha, curvando
para dentro as persianas metálicas das lojas e cobrindo o chão de vidros
partidos e cabos de elétricos derrubados. De forma quase simbólica – o
acaso prega-nos destas partidas, pensou Falcó –, os impactos também
tinham esburacado a faixa inferior, roxa, da bandeira tricolor que uma
tabacaria ostentava sobre o dintel. Havia moradores que observavam os
danos e miúdos a correr por todos os lados à procura de estilhaços
retorcidos de bomba.
– Um copo de vinho? – propôs Falcó.
– De acordo.
A taberna fazia esquina junto à escadaria: balcão de mármore, grandes
tonéis escuros, o cartaz de uma corrida de touros realizada em 1898.
Cheirava a serradura suja e a vinho mau. Pediram dois tintos e conversaram
um bocado sobre coisas sem importância. Nenhum dos dois referiu o bilhar
nem as bombas. Falcó interessou-se pela vida do outro, e este contou que
trabalhava na alfaiataria do pai, muito conhecido na calle Mayor. Um
negócio que corria bem antes da guerra, e que agora tinha dificuldades.
– Nestes tempos, as pessoas já não se preocupam tanto com o que
vestem... Não faltam clientes, claro. Apesar de os pedidos de fatos
elegantes, com bom estilo, escassearem. Não é bem visto.
– Mas há ainda os uniformes, não?
– Com isso recuperámos um pouco. O mesmo aconteceu ao dono da loja
que tem o anúncio grande de Borsalino na porta... Antes vendia chapéus, e
agora boinas e bonés.
– É natural. O povo tem outras necessidades.
Portela olhava para a insígnia com a foice e o martelo na lapela de Falcó.
– A que é que o senhor se dedica?
– Fui mobilizado.
– É daqui?
– De Granada.
– Não me estou a queixar – disse Portela momentos depois. – As coisas
devem ser assim. Mas suponho que tudo isto irá passar e voltaremos à
normalidade.
– A que normalidade é que se refere?
– A não caírem bombas e as pessoas se vestirem como quiserem.
– Como Deus manda?
O silêncio que se seguiu foi quase desagradável. Portela tinha baixado os
olhos e fitava o seu copo de vinho. Por fim ergueu-o de novo, brusco.
– Apesar da insígnia, não pensei que o senhor fosse desses.
– De quais?
– Dos que negam aos outros a liberdade de se expressarem como lhes
apetecer.
– E o senhor é de quais?
Outro silêncio. Agora Portela erguia-se, quase desafiador.
– O senhor viu nos bilhares de quais sou.
Falcó olhava para ele sem dizer nada. O outro encolheu os ombros como
se desse algo por perdido.
– Sempre acreditei que há coisas que irmanam as pessoas – disse ele.
– Está a falar da coragem?
– Essa é uma.
– Acima de ideologias?
– Poderá ser.
Falcó bebeu um golo de vinho.
– Incluindo fascistas e antifascistas?
Sentia fixo em si um olhar diferente, penetrante. Havia nele inquietação,
reparou.
– Já nos conhecemos antes? – perguntou Portela com brusquidão.
– Não creio.
– Mas, com um raio, quem é o senhor?
– É como vê. – Falcó esboçava um sorriso frio. – Um tipo que joga bilhar
e passeia com uma insígnia do partido na lapela.
– Está a provocar-me?
– De todo.
– Agora que penso nisso, parece um polícia.
Falcó soltou uma gargalhada.
– Faça o favor de não insultar.
O outro também se ria entre dentes, embora seco. Com pouco humor.
– Tem razão – disse ele. – Nem sempre as coisas são o que parecem.
– É verdade. Nem sempre.
Portela olhou de lado para o taberneiro, que lavava copos numa pia.
– Suponho que sabe – disse ele em voz baixa – que uma conversa assim
pode acabar comigo levado de casa em pijama às três da madrugada.
– Isso preocupa-o?
– Diga-mo o senhor. – Olhou para ele, provocador. – Deveria preocupar-
me?
Falcó não disse nada. Acabava o resto do vinho no seu copo.
– O que pretende de mim? – insistiu Portela.
– Foi uma partida de bilhar interessante. – Falcó pousou o copo em cima
do mármore. – E é tudo.
Portela ainda olhou um pouco mais para ele de forma inquiridora, e por
fim pareceu desistir. Soltando um suspiro de desalento, quase cansado,
introduziu a mão num bolso e perguntou ao taberneiro quanto é que lhe
devia.
– Eu ofereço – disse Falcó.
O outro foi-se embora sem agradecer nem se despedir. Apreensivo e
silencioso. Recostado na porta da taberna, Falcó ficou a vê-lo afastar-se
pela rua abaixo.
4 Pistola-metralhadora MP 28 II produzida em Espanha, ao serviço dos
republicanos durante a Guerra Civil. (N. dos T.)
8

HÁ CAMINHOS E CAMINHOS
O homem que se aproximava ao longo do muro era uma sombra ao luar. O
muro estava caiado em grande parte e isso facilitava avistar a silhueta
que caminhava apressada, cada vez mais próxima. Sentado na parte da
frente do Hispano-Suiza estacionado na escuridão, aproximando o
mostrador do relógio do cigarro que fumava oculto na concavidade da mão,
Lorenzo Falcó aspirou profundamente para avivar a brasa e ver as horas.
Faltavam quinze minutos para as dez da noite.
– É ele – disse Cari Montero.
Era ela quem estava ao volante do automóvel. Não era fácil conseguir
um, mas alugara-o com dinheiro de Falcó, sob pretexto de uma viagem
familiar a Múrcia com transporte de bens: mil pesetas ao responsável de
uma garagem onde havia uma dúzia de carros e camionetas confiscados
pela UGT, o depósito cheio com dois bidões extra de gasolina e um
documento selado que autorizava o seu uso durante uma semana.
– Vem sozinho – acrescentou a jovem.
– É o que parece.
Recostado no banco, Falcó manteve-se imóvel durante um pouco mais,
observando a rua, até que o homem penetrou no edifício que ficava no final
do muro. Era um pequeno hotel de tijolo e gradeamentos de ferro situado
nos arredores da cidade, confinando com um descampado, entre o bairro de
Santa Lucía e o cemitério. Não havia luz nas janelas. Falcó tinha explorado
o lugar pouco antes de anoitecer, para ter tudo previsto. Rotas de chegada e
de fuga, hipóteses prováveis e perigosas. Rotina de segurança.
– Fica aqui – ordenou ele a Cari. – Certifica-te de que ninguém nos vem
incomodar. E se houver movimento de milicianos...
– Já sei. Buzino e vou a toda a pressa.
– É isso. Deixa os heroísmos para o cinema. Se as coisas se complicarem,
nós temos previsto por onde irmos.
– Não te preocupes. – Ela falava com naturalidade. – Sei o que tenho de
fazer.
– Só deves aproximar o carro da porta quando te avisarmos.
– Sim. De acordo. Boa sorte.
Falcó gostou que ela não ficasse melodramática num momento como
aquele. A tentação era poderosa, supôs. Aventura e perigo. Mas Cari
Montero, como o seu irmão, sabia comportar-se. Era serena e corajosa. Não
se explicava de outro modo que fosse capaz de suportar a tensão e o medo
de atuar em zona inimiga, arriscando-se diariamente a cair nas mãos dos
vermelhos e a ser torturada numa checa antes da inevitável execução.
Falangista capturado era falangista morto; e raramente morria com rapidez.
Era necessária uma fibra especial para suportar isso, e ela tinha-a. Como
também Eva Rengel, pensou fugazmente enquanto apagava o cigarro no
cinzeiro do automóvel. Depois carregou a Browning com uma bala na
câmara, travou-a e voltou a metê-la no bolso direito do blusão. Abriu a
porta e seguiu para casa.
Gostava daquela sensação familiar reencontrada, pensou ele enquanto
caminhava: a pulsação ritmada nos tímpanos e o formigueiro nas virilhas, a
insólita claridade dos sentidos postos em alerta máximo, suspensos do
menor indício de perigo próximo. Só alguns copos, alguns cigarros e
algumas mulheres, consoante o momento, causavam um efeito parecido.
Mas aquele era muito mais intenso. Nenhum dos outros fazia atingir aquele
clímax perfeito, polido e tão liso como o mármore de uma lápide: a certeza
de se mover à vontade por uma paisagem hostil, desolada como a própria
vida, com a confortável sensação de que nada deixava de si para trás, e nada
havia pela frente tão terrível que refreasse o passo a qualquer um. Aquelas
eram a liberdade e a independência totais, sem passado nem futuro; com a
memória, os bolsos, a mente, vazios de tudo o que era prescindível, liberto
até à limpeza absoluta de tudo quanto não fosse útil para a sobrevivência
imediata. E desse modo feliz, sentindo o grato peso da pistola no bolso, que
tinha abraçada entre os dedos, longe ainda o indicador do gatilho, tranquilo
e letal como se levasse ao ombro o arco e as flechas do arqueiro invisível,
com o rosto convertido em máscara de sombras, Falcó avançava semelhante
à noite.
*
A porta não estava fechada com ferrolho, só encostada. Rodou o trinco
atrás de si, atravessou o vestíbulo e meteu-se pelo corredor. Nos degraus de
uma escada que ficava à sua esquerda ardia uma vela meio consumida
numa palmatória. A casa, contaram-lhe os Montero, pertencia a uns
parentes surpreendidos pelo 18 de julho em zona nacional. Os milicianos
tinham-na saqueado durante o verão, sem se excederem muito. Havia
marcas de quadros desaparecidos nas paredes e alguns móveis com as
gavetas abertas. Debaixo dos pés rangia o parquet com restos de porcelana
e de vidro. Falcó empurrou a porta no fim do corredor e entrou numa sala,
iluminada por uma simples lâmpada: uma mesa, meia dúzia de cadeiras,
uma cómoda e um rádio de galena Emerson. Naquele momento extinguia-se
a música do final das notícias da guerra da Rádio Sevilla e ouvia-se a voz
do general Queipo de Llano na sua alocução de todas as noites, destinada a
ouvir-se na zona vermelha: «Boa noite, senhores...».
Falcó tinha meditado muito sobre o que ia fazer. E como fazer. Passou
sem descolar os lábios junto de Ginés Montero e de Eva Rengel, que
estavam sentados diante da mesa, foi até ao rádio e desligou-o. Depois
virou-se para Juan Portela que, da sua cadeira, olhava para ele com espanto.
Levava a mesma roupa que trazia de manhã, nos bilhares: camisola e
camisa com gravata. Alargara o nó, e tinha o casaco no espaldar da cadeira.
Primeiro mostrara alarme ao ver Falcó irromper na sala. Depois, ao
reconhecê-lo, a sua expressão tornou-se estupefacta.
– O que é que o senhor faz aqui? – perguntou, espantado.
Falcó bateu-lhe na têmpora com o punho da mão esquerda, enquanto com
a direita tirava a pistola do bolso. Foi uma pancada curta e seca,
calculadamente brutal, que deixou a cara do outro à banda e o empurrou
para o lado, fazendo-o cair ao chão com a cadeira e o casaco. Sem lhe dar
tempo de se refazer, Falcó caiu-lhe novamente em cima, ajoelhando-se
sobre o seu tronco. Tinha experiência naquilo. A questão era não o deixar
pensar; esmagá-lo tanto e de forma tão seguida que não tivesse tempo de se
preparar mentalmente para o que o esperava. Por isso voltou a bater-lhe,
desta vez atravessando-lhe a cara com uma violenta bofetada que estalou
como uma chicotada. Depois pôs-lhe o cano da pistola entre os olhos.
– Traz armas? – perguntou aos outros.
– Creio que não – disse Ginés.
Parecia tão espantado como Eva. Para se certificar – mais valia prevenir
do que remediar – Falcó revistou com rapidez o homem caído, que olhava
para ele aterrado, sem compreender o que estava a acontecer. Escorria-lhe
um fio de sangue da orelha direita, sujando-lhe o colarinho da camisa. Só
trazia um canivete e umas chaves nos bolsos das calças. Falcó atirou-os
para o outro lado da sala, afastou a pistola da cara de Portela e voltou a
bater-lhe, três vezes. Fê-lo sem especial enfurecimento, só com a violência
adequada. Sistematicamente. Depois pôs-se em pé.
– Sentem-no numa cadeira.
Sem dizer palavra, Ginés e Eva inclinaram-se sobre o homem caído,
ergueram-no pelos braços e sentaram-no. Fizeram aquilo quase com
delicadeza, observou Falcó, apesar de tudo, de velhos camaradas. Aturdido,
dócil, Portela deixava-se levar olhando para eles com olhos turvos enquanto
Ginés se situava atrás dele.
– Segura-o bem – ordenou Falcó.
Ginés continuava pálido, com um ar tão confuso como se também lhe
tivessem batido a ele, e Falcó compreendeu que o jovem falangista não
esperara semelhante brutalidade com o outro, apesar da sua traição. De
forma alguma, é claro, começar a questão daquele modo selvagem.
Certamente imaginara uma aproximação subtil com fumo de cigarros,
perguntas hábeis e respostas a princípio evasivas e depois mais explícitas.
Uma coisa mais progressiva que os fosse levando a todos, de modo natural
e com a consciência assegurada, ao desenlace. Confissão e castigo. Aquela
era sem dúvida a sua primeira vez, e isso arrancou uma expressão malévola
a Falcó. Evitava olhar para Eva Rengel. Perguntou-se se aqueles jovens
idealistas, se ele não interviesse, teriam sabido enfrentar tudo aquilo. À
força acabava por aprender-se, claro. O problema era que, naquele tempo e
circunstâncias, podia não se chegar a viver o suficiente para aprender a
ponta de um corno. Tique, taque, tique, taque. O senhor Tempo voava para
todos, e junto ao relógio de areia trazia uma gadanha.
Deu outra bofetada a Portela, desta vez não muito forte. Fez plaf. Acima
de tudo, para manter o ferro dúctil na forja. Não era bom deixar que
arrefecesse.
– Segura-o melhor – disse a Ginés.
– Faço o que posso.
– Já disse para o segurares, foda-se. Ou queres trocar de sítio?
Enquanto guardava a pistola no bolso das calças – podia ter de tirar o
blusão devido ao exercício, e não gostava de a deixar longe –, Falcó decidiu
por fim olhar para Eva Rengel. A jovem afastara-se até apoiar as costas na
parede. Usava uma camisola cinzenta de gola alta, como a dos pugilistas,
que lhe marcava o busto pronunciado e lhe moldava as ancas sobre uma
saia negra e uns sapatos quase masculinos, sem salto. Tinha cruzado os
braços e não olhava para o homem sentado na cadeira, mas sim para Falcó.
Observava-o com uma tensa curiosidade. Por momentos, incomodado, ele
pensou que não gostava que ela o visse a fazer aquilo. Não era de todo o
que ele gostaria de lhe ter mostrado. Mas naquela noite ninguém podia
escolher. Todos estavam a arriscar demasiado.
– O documento – disse ele, estendendo a mão.
Ginés deu-lho, dobrado em quatro. Falcó desdobrou-o diante dos olhos
desorbitados do prisioneiro.
– Sabes o que é isto?
– Não.
Quando Portela falou, escorreu-lhe um fio de saliva de uma comissura da
boca. Era uma saliva rosada, com rastos de sangue. O que lhe saía da orelha
era vermelho e intenso. Talvez, pensou Falcó, eu lhe tenha rebentado um
tímpano. Por isso aproximou a boca do ouvido são.
– Lê-o, anda. Demora o tempo que quiseres.
Esteve a ver os olhos do outro a moverem-se à medida que percorriam as
linhas. Quando acabou, Portela atirou a cabeça para trás, espantado.
– Isto é mentira – balbuciou.
Falcó tornou a bater-lhe. Portela gesticulou, remexendo-se entre gemidos,
e Ginés teve de o segurar pelos braços com mais força. O prisioneiro estava
a ficar com a cara inchada das pancadas, por isso daquela vez Falcó
desferiu-lhe um murro no plexo solar que lhe cortou a respiração, forçando-
o a inclinar-se com violência, asfixiado, e depois a retorcer-se na cadeira
atirando o corpo para trás, abrindo a boca à procura de ar.
– Diz-nos quem é que tu denunciaste mais... o Ginés e a Cari? E a Eva?
O outro negava com a cabeça, tentando respirar. Falcó esperou um pouco
que ele se acalmasse. Doíam-lhe as mãos por causa das pancadas.
– Não queres dizer?
– Não... denunciei ninguém.
Agarrou outra vez na pistola, extraiu o carregador, retirou a bala da
câmara, agarrou na mão de Portela em cima da mesa e esmagou-lhe um
dedo com uma coronhada.
– Jesus Cristo! – exclamou Ginés.
O outro tinha ficado tão transtornado com o golpe que abriu muito a boca
e os olhos, sem emitir qualquer som. Como se as suas cordas vocais se
tivessem bloqueado. Poucos segundos depois, começou a gritar, dando
guinchos, por isso Falcó agarrou-o pelo cabelo e meteu-lhe um lenço na
boca. Sentia os olhos de Eva Rengel fixos nele. Ginés, pelo seu lado, tinha
ido para um canto, onde tentava sufocar as náuseas. Parecia prestes a
vomitar.
– Devias sair por uns momentos – disse-lhe Falcó com suavidade.
O outro concordou, e ao passar a seu lado parou, evitando olhar para o
prisioneiro.
– É um camarada – murmurou.
– Era – contestou Falcó. – E estamos todos a arriscar a vida.
O jovem vacilava. A luz nua da lâmpada refletia-se nos seus óculos,
imprimindo um tom oleoso à palidez do seu rosto.
– É preciso tudo isto?
– Vai fazer-te bem apanhar ar – disse Falcó.
Ginés abriu a boca como que para dizer qualquer coisa, ou respirar fundo.
Mas não disse nada. Depois foi-se embora, fechando a porta. Falcó olhou
para Eva Rengel, que continuava apoiada na parede com os braços
cruzados, a observá-lo.
– O Ginés não se alistou na Falange para isto – disse ela.
– E tu?
– Eu também não. É repugnante.
– É.
Falcó tirou o lenço da boca a Portela. Ao fazê-lo, saiu da garganta do
prisioneiro um lento e longo gemido. Falcó olhou para Eva Rengel.
– Os vossos camaradas salvadores de Espanha – comentou devagar –
fazem o mesmo no outro lado, todos os dias. Sem pestanejar.
– Tu porventura já viste? – perguntou ela com brusquidão.
– Claro que vi.
– E tu?... Porque é que tu o fazes?
Falcó não respondeu àquilo. Tinha aproximado muito a sua cara da de
Portela e olhava-o de perto, fixamente. Tentando ler naquelas pupilas
vidradas pela dor e pelo espanto.
– Tanto o Ginés e a Cari como eu não nos importamos de cair –
acrescentou a jovem. – Já assumimos isso. Mas isto...
Com a cabeça descaída sobre o peito, a segurar a mão, Portela continuava
a gemer como uma besta ferida, cego de dor e desespero. Uma mancha
húmida estendia-se pela perna esquerda; estava a urinar-se. Nada tinha a
ver, pensou Falcó, com o homem calmo que jogava bilhar de manhã
enquanto as bombas caíam na rua. Havia caminhos e caminhos, disse para
si, e cada um deles era diferente dos outros. Nem todos os homens
quebravam da mesma maneira. Era tudo uma questão de seguir pelo
adequado, ou falhar. E aquele caminho era bom. O atalho inicial ajudara
muito. Aquela dignidade destruída sem tempo para pensar nela. Com o
lenço que tinha tirado da boca do prisioneiro, Falcó limpou-lhe a baba
sanguinolenta da cara.
– Isto é o que eles farão se nos apanharem – disse ele a Eva Rengel,
atirando o lenço para cima da mesa. – A eles e a ti, a todos. E a vocês,
mulheres, será pior.
– Eu sei. Por isso é que estou aqui, a olhar para ti... A aprender coisas.
– Com quem?
– Comigo mesma.
Estava linda, concluiu. Apoiada na parede, ainda de braços cruzados, com
os seus ombros de nadadora, as pernas fortes e bonitas, e aquele cabelo
louro tão curto como o de um homem, que lhe dava um estranho atrativo
andrógino, dúbio. Equívoco. Uma singular densidade carnal.
Fazendo um esforço quase físico, Falcó regressou à realidade imediata.
Respirou fundo várias vezes e olhou para o prisioneiro.
– Comecemos outra vez, camarada... Quem é que denunciaste mais?
*
Quinze minutos mais tarde saíram para o corredor, onde se juntaram a
Ginés Montero. Deixaram Portela atado a uma cadeira pelos pulsos. Tinha
desmaiado um momento antes.
– Não fala – disse Falcó. – E continuar é inútil. Acabaria por confessar
qualquer coisa. A partir de certo ponto, todos o fazem.
– Talvez tenha dito a verdade – disse Eva.
Ginés olhava para ela com surpresa.
– Viste o documento, como nós – contrapôs. – Não deixa lugar a dúvidas.
O jovem falangista tinha-se recomposto. Agora mostrava uma firme
determinação, ou aparentava. Como se pretendesse, deduziu Falcó, fazer
esquecer a sua fraqueza de antes.
– O documento pode ser falso – argumentou Eva.
– Mas se foste tu própria quem o trouxe.
– Podiam tê-lo posto ali de propósito.
– Para que tu o encontrasses? Acreditas mesmo nisso?
Ela ergueu as mãos num gesto de impotência.
– Não... A verdade é que não acredito.
Olharam os três uns para os outros. A vela que ardia nos degraus da
escada diluía sombras púrpuras nos seus rostos graves. Conciliábulo de
assassinos, pensou desapaixonadamente Falcó. Um profissional e dois
amadores. A ideia arrancou-lhe um sorriso cruel. Uma expressão distante.
Notou que Eva reparava naquele sorriso.
– E o que é que fazemos agora? – perguntou ela.
Olhava para ele. Pelo seu lado, Ginés engoliu em seco. Nem sequer o
efeito avermelhado da luz da vela disfarçava a sua palidez.
– Já foi sobejamente dito – respondeu ele. – Temos de acabar isto.
– Serás tu a fazê-lo?
– Pois claro que serei eu.
Já há um bocado que Ginés acabava as frases, até as afirmativas, com
uma certa perplexidade, num jeito de ligeira interrogação. Eva olhava para
ele, hesitante.
– E a Cari?
O jovem não respondeu àquilo.
– Será melhor que vocês, raparigas, se vão embora – interveio Falcó. – A
pé. Ele e eu ficamos com o carro.
– Onde é que vocês vão fazer isso?
– Tanto faz – disse Ginés com brusquidão. – Aqui mesmo. E depois...
– Não é prático – interrompeu-o Falcó.
Ficaram os dois a olhar para ele. Malditos amadores, pensou ele de novo.
Tinham-se metido naquilo tudo pensando que brincar aos heróis em zona
vermelha era agir como nos filmes ingleses de espiões. Que eram Robert
Donat e Madeleine Carroll. Mas não estava a ser assim tão fácil para eles. A
realidade nunca era. O sangue afinal era pegajoso e colava-se aos dedos e à
memória. E muitas vezes o que antecedia o sangue ainda era pior. Não era
fácil meterem-se no crime. Para isso era preciso ser de uma fibra adequada.
Embora fosse muito o que podia conseguir-se com motivações, hábito e
paciência, nem todos os seres humanos nasciam assassinos.
– Não é a mesma coisa carregar com um corpo morto – acrescentou – ou
com um homem vivo capaz de caminhar. É melhor levá-lo assim... Além
disso, o cadáver sujaria o carro.
As sombras apoderaram-se com violência do rosto de Ginés. Deu quase
um passo atrás. Então Falcó encontrou o olhar de Eva.
– Eu vou contigo – disse a jovem com muita serenidade. – Encontrei o
documento e trouxe-o. Sou responsável.
Ginés virara-se para ela, estupefacto.
– Mas tu... – começou ele a dizer.
O olhar desdenhoso. Superior. Eram precisos milhares de anos, pensou
Falcó, para olhar assim.
– Sou uma mulher, queres tu dizer?
Seguiu-se um silêncio que pareceu eterno. Falcó quebrou-o.
– Tanto me faz quem é que vem, mas preciso de alguém. E já se faz tarde.
– Vamos os três – decidiu Ginés.
– De acordo – concluiu Falcó. – Eva, sai e diz à Cari para ir para casa.
Depois leva o carro até junto da porta.
Como se não o tivesse ouvido, ela continuava a olhar para Ginés.
– Tu não vens – disse-lhe ela com inesperada firmeza. – A Cari pode
encontrar uma patrulha, por isso vai com ela. É quase meia hora de
caminho. – Apontou para Falcó. – Eu fico com ele.
– Isso é absurdo – protestou Ginés. – Eu...
– Basta – atalhou Falcó, tomando uma decisão. – Tu vais com a tua irmã
e a Eva vem comigo.
– Não creio que...
– É uma ordem que eu dou. Compreendes?... Cumpre-a.
Ginés pestanejou, olhando para ambos. Sob a sua expressão incomodada,
quase humilhada, Falcó apercebeu-se do alívio. Por fim foi-se embora sem
dizer uma palavra. Falcó e Eva ficaram frente a frente.
– Tens uma arma? – perguntou ele.
Ela mostrava-se, verificou ele com surpresa, tão serena como se lhe
tivesse perguntado se tinha cigarros.
– Sim – respondeu ela. – No bolso da gabardina.
– Então, vamos.
*
– Vocês vão matar-me – gemia Portela. – Vocês vão matar-me.
Ia no banco de trás, com as mãos atadas. Falcó fumava a seu lado. Eva
conduzia em silêncio.
– Eu não traí ninguém... Juro.
Os faróis do automóvel revelavam descampados e depósitos de
escombros de um lado e do outro do caminho, que era de terra, irregular e
com muitos buracos. O Hispano-Suiza saltava e rangia muitas vezes,
guinchando sobre a suspensão. Havia sombras negras de montanhas altas
muito próximas, massas escuras sob o luar incerto quase velado pelas
nuvens. No fim de uma curva prolongada, os faróis iluminaram uma parede
de tijolo meio caída. Mais além, vislumbrava-se a silhueta alta de uma
chaminé.
– É aqui – disse Eva.
Falcó inclinou-se sobre o prisioneiro para abrir a porta daquele lado, e
empurrou-o para fora. Eva já tinha saído do automóvel.
– Canalhas – disse Portela.
Falcó saiu do carro. O outro caíra ao chão e Eva ajudava-o a levantar-se.
– Puta – insultou-a este, remexendo-se como pôde. – Puta suja!
Sem violência, Falcó agarrou-o por um braço para o afastar alguns
passos. Depois obrigou-o a ajoelhar-se na escuridão, de ombros e cabeça
perfilados pela claridade confusa do luar. Em momentos como aquele
procurava não pensar, manter a mente longe de tudo quanto fazia ou se
preparava para fazer, tirando os pormenores práticos do assunto. Lugar,
oportunidade, meios. Os aspetos morais deixava-os para mais tarde, quando
fosse possível observá-los à transparência de um copo e entre o fumo de um
cigarro. Ali, a quente, aquela parte não servia senão para interferir nos
factos. Complicá-los. E os factos deviam ser o mais concretos possível: uma
bala, uma faca, uma corda de piano, as mãos nuas. E a vontade de o fazer.
Matar um ser humano não se distinguia em grande coisa, na questão
técnica, de matar um animal qualquer. O único inconveniente sério era que
às vezes o ser humano se apercebia do que ia acontecer. Não era a mesma
coisa matar alguém que tinha consciência de que ia morrer, ou fazê-lo a
alguém que não sabia. E o homem que estava ajoelhado à sua frente sabia
isso perfeitamente.
– Tenho uma menina, filhos da puta!
Não se pode pensar, disse para si novamente Falcó. Seria um erro tático.
Deter-se nesse tipo de coisas não é compatível com o que me disponho a
fazer. Aqui não há espaço para filhos, nem para futuras viúvas, nem para
mães que dentro de um momento terão perdido o seu filho. A vida é dura, a
paisagem cruel, e limito-me a cumprir as regras do mesmo modo que, em
qualquer instante, alguém as pode cumprir comigo. Ninguém disse que
movermo-nos num mundo cão era fácil ou gratuito. E menos ainda em
tempos como estes.
– Tenho uma filha.
Já não era um grito, mas sim um gemido. Uma súplica. Detrás da sombra
ajoelhada, Falcó tirou a pistola do bolso. Recordou que antes, durante o
interrogatório, retirara a bala da câmara, por isso puxou o ferrolho atrás e
soltou-o, introduzindo uma. O estalido da arma soou sinistro na noite.
– Arriba...
O estampido e o clarão sobressaltaram Falcó. Não tinha sido ele a
disparar. Portela caiu de bruços, sombra entre as sombras do chão. Eva era
outra silhueta negra ao lado de Falcó e ele sentiu o cheiro acre da pólvora
queimada.
Passaram-se cinco segundos.
– Isto era comigo – disse ela por fim, com voz opaca.
*
Deixaram o Hispano-Suiza na garagem da subida da muralha e saíram
para a rua quando o sino do relógio da Câmara dava a uma da madrugada.
– Vivo muito perto – disse Eva.
– Acompanho-te até à porta de entrada.
– Como queiras.
Falcó fechou o blusão.
– O que é que fizeste à pistola? – quis ele saber.
– Escondi-a debaixo do banco do carro. E a tua?
– Com a minha não te preocupes. Tenho licença de porte de armas.
Eram as primeiras palavras que pronunciavam desde que ela matara
Portela. Depois de abandonar o cadáver – ao qual Falcó pusera um papel
com a frase Executado por ser fascista, para confundir o rasto –, a jovem
tinha conduzido o automóvel sem que o pulso lhe tremesse, fumando o
cigarro que Falcó lhe pusera nos lábios já aceso. Sem olhar para ele nem
comentar nada. E tão silencioso como ela, durante os quinze minutos que a
viagem durou, estivera a observar o seu perfil iluminado pelo clarão dos
faróis, o ponto vermelho da brasa do cigarro avivado de cada vez que ela
aspirava o fumo. Estudando aquela mulher como se a visse pela primeira
vez. Fazendo a si mesmo uma infinidade de perguntas sem resposta.
– É aqui.
A casa de Eva ficava numa praça que antes da guerra se chamava del Rey,
e agora de la República. Do outro lado e longe, atrás das silhuetas escuras
de umas palmeiras, entre as trevas da cidade escurecida perante as incursões
aéreas, adivinhavam-se os muros e a torre da porta do Arsenal. Uma vez
deixado atrás o piquete de milicianos da Câmara, que eles franquearam sem
que ninguém os incomodasse – na realidade eram dois, um do Partido
Comunista e outro de anarquistas da FAI –, chegaram à praça caminhando
pelas ruas desertas, em que ecoavam os seus passos. Ao chegar perto do
piquete, ela tinha dado o braço a Falcó para que tudo parecesse mais
natural, e depois mantivera-se assim, cadenciando ambos o passo, roçando
de vez em quando os corpos ao caminhar.
– Boa noite – disse ela.
Soltara-lhe o braço.
– Não queres falar do que aconteceu? – perguntou ele.
– Não preciso.
Era um tom de voz neutro, o dela. Desapaixonado e impassível. Havia ali
uma nota discordante, pensou Falcó de repente. Algo estranho. Algo mais.
Eva parecia mergulhada num estado hipnótico, ou de sonho, alheio à
realidade imediata. Por momentos perguntou-se se ela estaria
completamente consciente do que tinha feito. Ou talvez isso mesmo a
mantivesse assim. Podia ser. Não era fácil, recordou ele, matar pela
primeira vez. A sua havia sido dez anos antes, no México. Um disparo de
longe, a dez passos, e depois aproximara-se para ver o resultado. Dessa vez
esteve quase meia hora sentado junto ao cadáver, olhando para ele
demoradamente. Estudando o segredo daqueles olhos entreabertos e
imóveis, cujo brilho se ia tornando mate à medida que o pó do caminho se
depositava sobre eles. Interrogando a esfinge.
– Podes subir – disse Eva de repente.
Falcó olhou para ela desconcertado.
– Ia saber-me bem uma bebida – disse ele. – Ou um café.
– Não tenho bebidas nem café. Mas podes subir, se quiseres.
Subiram pelas escadas às escuras, guiando-se pelo corrimão de madeira.
Quando chegaram ao patamar do terceiro andar, Falcó acendeu um fósforo
enquanto Eva procurava a fechadura da porta e introduzia a chave. Lá
dentro, ela correu as cortinas e acendeu uma luz. Um candeeiro de pé
situado junto a um sofá, móveis convencionais, gravuras marítimas nas
paredes e um quadro de mau gosto com dois cervos num bosque. Havia
uma braseira de cobre pronta para ser acesa, com o seu montinho de picão
sobre o carvão. Pela porta aberta de outra divisão via-se um quarto com
uma cama de casal, a colcha posta, um crucifixo na parede.
– Há quanto tempo é que vives aqui? – perguntou Falcó.
– Três meses. A casa não é minha.
Ele aproximou-se da janela.
– Deves ter uma boa vista do Arsenal. Perfeita para controlar o que sai e o
que entra.
– Sim. Mas não abras a cortina. Se veem luz, teremos aqui um piquete
dessa gentalha em cinco minutos.
– Não te preocupes.
Olhavam um para o outro, de cada lado da sala. Ela tinha tirado a
gabardina.
– Já o tinhas feito antes? – perguntou ele.
Ela demorou a responder. Continuava a olhar para ele fixamente, como se
pensasse noutra coisa.
– O quê? – perguntou ela finalmente.
– Disparar.
– Contra um homem, queres tu dizer?
– Ou contra uma mulher. Alguém.
Ficou calada. Parecia estar a procurar na memória, como se fosse uma
coisa imprecisa de recordar. Concluiu num sorriso amargo.
– Não digas parvoíces – disse ela.
Falcó tirou a cigarreira e ofereceu-lhe um cigarro. Ela recusou com a
cabeça.
– Como é que te chamas mesmo? – perguntou.
Falcó acendeu o cigarro e sacudiu o fósforo para o apagar. Depois pô-lo
num cinzeiro de vidro com rótulo da Transmediterránea.
– Não esperes que responda a isso.
– Não esperava – contrapôs ela. – Só que gostaria de saber.
Deu uns passos pela sala e parou de novo. A luz lateral do candeeiro fazia
ressaltar as formas dos seus seios debaixo da camisola de gola alta.
– Chames-te como te chamares, esta não é a tua causa – acrescentou ela.
Falcó deu uma longa passa no cigarro.
– Isso não tem muita importância.
– Para mim, sim, tem. Como para o Ginés e a Cari.
Ela continuava a olhar para ele com tanta intensidade que Falcó, apesar
do seu sangue-frio, começou a sentir-se incomodado.
– Estamos do mesmo lado – comentou ele. – Isso deveria chegar.
– Não.
– Tanto faz. Ninguém te disse que podias escolher. Nenhum de vocês
pode... Queriam brincar aos soldadinhos e é o que já estão a fazer. Esta
guerra é assim.
– Demasiado suja. Cansa de tão suja que é.
– São todas. Vi algumas. Ou talvez seja sempre a mesma.
– Não gostas de nós, pois não? – O seu sorriso era amargo. – Apercebi-
me disso.
– Isso é absurdo.
– Não é. Para ti somos amadores. Qualquer um que tenha fé assim te
parece. Não é verdade?... Só respeitas os que não acreditam. Os
mercenários como tu.
Chegou a vez de ele sorrir.
– Esta noite fizeste-te respeitar.
Eva pareceu estremecer ao ouvir aquilo.
– Talvez – disse ela.
– Pode ser que o Juan Portela tivesse fé. Ou talvez só tivesse medo.
– Olha para mim. – Ela apontava para a sua própria cara. – Eu tenho
medo.
– És uma mulher estranha, Eva.
– Tu também és um homem estranho. Chames-te como te chamares.
Continuavam a olhar um para o outro de cada lado da sala. Ela tinha
cruzado os braços e estava muito séria. Uns momentos depois, ergueu
levemente uma mão.
– Desculpa – escusou-se ela. – Tenho calor.
Deu a volta e encaminhou-se para o quarto. Falcó apagou o cigarro no
cinzeiro e foi atrás dela, seguindo-a até à alcova onde ela estava a tirar a
camisola, com os braços levantados por cima da cabeça. Na
semiobscuridade conseguiu ver a pele clara que se despojava do tecido de
lã, a alça larga e branca do sutiã apertado nas costas, o contorno dos
músculos ao libertarem-se da peça de roupa. Também a expressão
surpreendida da mulher quando a levou a dar a volta, lhe pegou na cara
entre as mãos e a beijou de uma forma intensa e prolongada. Eva ficou
tensa a princípio, numa rejeição violenta, e então ele baixou os braços até às
suas costas e apertou-a com mais força, sentindo contra o seu peito o calor
morno do tronco seminu e a turgência dos seios. Querendo soltar-se, a
jovem ergueu uma mão até agarrar Falcó pelo cabelo, obrigando-o a deitar a
cabeça para trás e afastou a outra mão como se fosse bater-lhe. Nessa altura,
ele já tinha desprendido os colchetes do sutiã, pondo-o de lado de um só
golpe e os seios nus e pesados da mulher oscilaram livres. Isso deixou-o
louco. Cego de fúria e desejo empurrou-a para a cama, caindo-lhe em cima;
e no próprio momento de cair, ela conseguiu por fim bater-lhe na cara, um
murro que lhe fez sangrar o nariz. Falcó sentiu as gotas quentes a
deslizarem pelo lábio e pela boca, e também sobre a jovem, sujando-lhe os
seios e o rosto com grossos salpicos escuros. Ela apercebeu-se e ficou
imóvel de repente, olhando para ele de muito perto na penumbra, com os
olhos desorbitados. Parecia sobressaltada. Assustada. Esteve assim um
instante; e depois, de improviso, aproximou a boca da sua cara com
brusquidão, beijando-lhe o sangue enquanto respirava roucamente,
entregue. De repente, passiva. Então, Falcó levantou-lhe a saia até às ancas,
arrancou-lhe as cuecas, despojou-se da roupa e trespassou várias vezes
aquele corpo esplêndido, com urgência e desespero, tão fundo como se a
vida se lhe fosse nisso. Cerrava os dentes para não uivar de prazer e
loucura, enquanto Eva lambia o seu sangue gemendo como um animal
ferido.
*
Quando tocou o alarme aéreo, Falcó acendeu um cigarro e olhou para o
relógio. 4h45 da madrugada. A mulher, nua a seu lado, respirava
ritmadamente. Parecia dormir. A luz do candeeiro da sala estava apagada,
certamente porque na cidade a energia elétrica tinha sido cortada. Falcó
acendeu um cigarro, pôs-se de pé e foi nu e descalço até à janela. A divisão
cheirava a carvão consumido da braseira, ainda quente. Ocultando a brasa
do cigarro, entreabriu a cortina para observar o exterior. Como em quase
todas as casas daquela cidade, a janela era na realidade uma porta
envidraçada que dava para uma varanda ou sacada, e aquela tinha uma
varanda com gradeamento de ferro. A sirene do alarme acabara, mas sobre
as formas escuras das montanhas que ficam do outro lado do Arsenal
resplandeciam os breves clarões luminosos da defesa antiaérea. Chegava
um distante bum-bum pouco depois de cada brilho, e Falcó calculou a
distância: com o som a viajar a trezentos e quarenta e três metros por
segundo, isso pressupunha menos de dois quilómetros. E aproximavam-se.
Durante um momento, iluminada por alguns clarões entre as nuvens
desgarradas que o vago brilho do luar recortava, pareceu-lhe ver a silhueta
distante de um avião.
Ela estava a seu lado. Descalça, não a ouvira aproximar-se. Tinha vestido
a camisa dele, sem a abotoar. Sentiu, entre o fumo do tabaco, o cheiro
intenso da sua pele – o cheiro de ambos, sémen, fluxo e suor misturados
nela – um momento antes de Eva o abraçar por trás, com o seu corpo cálido
e forte colado ao seu.
– Estão a aproximar-se – comentou ele.
Como se alguém o tivesse ouvido lá fora, um brusco clarão recortou por
instantes a torre do Arsenal. O estrépito chegou dois segundos depois.
– A base de submarinos – disse Eva.
– Queres descer até ao refúgio?
– Não. Dá-me esse cigarro.
Falcó passou-lho, sempre a ocultar a brasa, e ela deu-lhe duas passas
antes de lho devolver. Ele abriu as janelas para evitar que uma onda
expansiva partisse os vidros. Estava frio. Ficaram ali abraçados, a olhar
para o bombardeamento.
– A guerra é todo um espetáculo – disse ela.
– É, sim.
Os clarões da artilharia antiaérea tinham-se ido deslocando pouco a pouco
e agora rebentavam sobre o Arsenal, quase em cima da própria praça.
Quase não passava tempo entre o resplandecer de cada explosão e o bum-
bum do som. Uma bomba caiu num lugar próximo, fora do seu campo de
visão, com um rebentamento muito mais forte que fez vibrar, apesar de
estarem abertos, os vidros das janelas. Nesse instante, sim, conseguiu ver-se
com clareza, iluminada por um clarão próximo, a silhueta sinistra de um
avião que passava sobre a torre de entrada do Arsenal.
– Deem-lhes duro, amigos – murmurou Eva olhando para o céu, como se
rezasse.
O crepitar da artilharia, que agora era muito intenso, com rasto de balas
traçadoras ascendendo lentas para cima, iluminava-lhe o rosto, refletindo-se
nos seus olhos. Falcó acariciou-lhe o pescoço longo e nu, o arranque dos
seios e os ombros fortes. Depois pensou no homem que ela matara há
quatro horas, e sentiu-se estranho. Tirar a vida, derramar vida. Ao fim de
uma infinidade de beijos e abraços, quando considerou que para ela era
suficiente, Falcó tinha-se afastado húmido e satisfeito do seu interior para,
apoiado no ventre suave da mulher, esvaziar-se ali, no fim, com a
momentânea perda de consciência de quem se deixa deslizar por um poço
acolhedor, profundo e escuro, feito de esquecimento e promessas de paz. E
ela tinha permanecido muito tempo imóvel com ele em cima, derrotado e
exausto, acariciando-lhe as costas.
Houve um assobio perfeitamente audível, seguido de um retumbar
intenso. Dessa vez a bomba também caíra perto; tanto que o estrépito e o
clarão foram simultâneos do outro lado do muro do Arsenal. As janelas
voltaram a vibrar, embora se tivessem mantido intactas; mas lá fora ouviu-
se barulho de vidros partidos a cair à rua. Traçadoras e explosões
pontilharam de novo o céu com os seus fogos artificiais.
– Afastemo-nos daqui – disse Falcó.
Fechou as cortinas e foram até à alcova, abraçados. Às escuras. Ao
chegarem, Falcó beijou o cabelo da mulher.
– Fiquei sem sono.
– Eu também – disse ela.
9

CINZAS NO CONSULADO
P ela chaminé do consulado alemão saía demasiado fumo; e Falcó, que
tinha reparado nisso quando estava a chegar, fê-lo notar a Sánchez-
Kopenick.
– Já não me importo – disse o cônsul. – Queimei quase tudo.
Conduziu-o ao gabinete, que era uma desordem de gavetas abertas e
arquivadores vazios junto à lareira cheia de cinzas. Havia restos de cinzas
de papel por todo o lado, atapetando o chão e os móveis com uma camada
de poeira preta e cinzenta.
– Daqui a uma hora vou-me embora – acrescentou Sánchez-Kopenick. –
Antes do meio-dia, a Alemanha reconhecerá o governo de Franco.
Tinha círculos escuros debaixo dos olhos e o seu aspeto era de ter passado
a noite acordado. Falcó dirigiu um olhar ao retrato do chanceler Hitler
emoldurado sobre a consola da lareira. Estava enegrecido pelo fumo de
meio corpo para baixo, e deduziu que o cônsul tinha experimentado algum
prazer malicioso deixando-se defumar ali enquanto queimava documentos.
Pela porta aberta que dava para uma divisão contígua via-se duas malas, um
sobretudo e um chapéu em cima delas.
– Vai por terra?
– Por mar. Tenho pressa em sair daqui, pois as reações locais podem ser
imprevisíveis... Tenho uma lancha à minha espera no porto para me levar ao
Deutschland.
Falcó arqueou uma sobrancelha, interessado. Por fim, tudo se ia
definindo. Abaixo as máscaras. O Deutschland era um potente couraçado
alemão, e até àquele momento ele não sabia que navegava por aquelas
águas. Isso significava que o Governo do Reich tomava precauções sérias.
Proteger os súbditos que estivessem em zona vermelha e de passagem
mostrar os dentes. Era o sorriso perigoso de um tubarão, disposto já a
morder sem disfarçar.
– Tenho uma coisa para si – disse o cônsul. – Ainda bem que veio cá.
Foi até à caixa-forte situada num canto do gabinete, que estava aberta –
havia uma pistola Luger lá dentro, observou Falcó –, e tirou um sobrescrito
que lhe entregou. Continha duas folhas de papel.
– É a última comunicação que recebi de Salamanca, via Berlim. Há três
horas.
Falcó deu uma vista de olhos às mensagens. Estavam em código. Grupos
de letras e de números. Precisaria do livro de códigos e de uma boa meia
hora para esclarecer aquilo.
– Já não haverá forma de responder, suponho – aventurou ele.
– Supõe bem. Acabo de inutilizar o telétipo. E não me atrevo a usar o
telefone.
Da mesma caixa-forte tinha tirado uma caixa de charutos Partagás.
Restavam três. Ofereceu um a Falcó, pôs outro na boca e introduziu o
terceiro no bolso superior do casaco, onde espreitava a dobra branca de um
lenço.
– Estes a República não os fumará – disse enquanto Falcó lhe dava lume.
Depois foi até à mesa do gabinete, abriu uma gaveta e regressou com uma
garrafa de Courvoisier e dois copos sobre os quais soprou para os limpar de
cinzas.
– Bebe conhaque?
– Bebo o que houver.
– Pois façamos uma despedida como deve ser. Prosit.
Fumaram e beberam sem pressa. Do outro lado da janela, no esplêndido
panorama do porto que se via junto à muralha, o sol iluminava os armazéns
portuários, as gruas e as silhuetas cinzentas dos barcos de guerra fundeados
deste lado do quebra-mar. Havia nuvens escuras que se insinuavam ao
longe, no horizonte do mar e atrás das montanhas coroadas de castelos.
– Tenho pena de me ir embora – disse o cônsul. – São três gerações da
minha família aqui, compreende? Mas são tempos maus... Sabe que
apareceu outro cadáver junto ao cemitério, esta manhã?... Ontem à noite
deram o passeio ao filho de um alfaiate da calle Mayor. Dizem que era por
ser falangista.
Impassível, Falcó deu um golo no conhaque. Era velho e de qualidade.
Confortava. E o charuto tinha um aroma excelente. Era bom estar vivo,
disse para si, a fumar um charuto cubano e a beber conhaque francês, e não
deitado sobre o mármore branco do depósito com uma ficha de cartão atada
ao dedo grande de um pé.
– É um trabalho curioso, o seu – comentou Sánchez-Kopenick, com ar
distraído. – Mas é claro que não o troco pelo meu. Pelo menos, eu tenho
passaporte diplomático.
Falcó fez uma careta.
– Isso em Espanha não significa grande coisa.
– Tem razão. – O cônsul apontava para as cinzas da lareira e para as
malas da outra divisão. – Por isso prefiro arriscar até um certo ponto. Daqui
a umas horas, se tudo correr bem, estarei a ver, como dizem aqui, os touros
da barreira.
– Invejo-o. Sim.
O cônsul dirigiu-lhe um olhar inquiridor, como se não tivesse a certeza de
que Falcó realmente o invejava.
– Quando é que vai decifrar essas mensagens que lhe entreguei? –
perguntou ele uns momentos depois.
– Assim que chegar à minha pensão.
O outro esboçou um sorriso cúmplice e cansado.
– Não penso que tenha ilusões acerca do sigilo daquilo que contêm, não é
verdade?... Sobretudo vindo, como vêm, via Berlim.
– Claro que não. – Falcó olhou para o cônsul com um interesse súbito. –
Pode avançar-me alguma coisa?
– Oficialmente não sei nada. Na realidade, nem sequer lhe entreguei a si
qualquer mensagem.
– Pode saltar-se essa parte. A do prólogo. Ser-me-á útil saber o que sabe.
Pensativo, Sánchez-Kopenick fumava o seu charuto. Por fim pareceu
decidir-se.
– Depois de amanhã, uma hora e quinze minutos depois da meia-noite, o
Deutschland bombardeará o porto de Alicante, a estação ferroviária e os
depósitos de Campsa. De passagem, como que por acaso, irá enviar algum
tiro de canhão solto para as proximidades da prisão. O suficiente para que
ali ninguém ponha o nariz de fora durante um bocado.
Falcó inquiriu o motivo oficial daquela atuação abertamente hostil, e o
outro disse-lhe. O bombardeamento ia justificar-se como uma represália
pelos atos de violência que, com toda a certeza, seriam levados a cabo
contra interesses do Reich em território da República horas depois de a
Alemanha reconhecer o governo de Franco. As informações da Abwehr
previam um assalto à embaixada alemã em Madrid, onde havia meia
centena de espanhóis refugiados. O pessoal diplomático estava a ser
evacuado naquele momento.
– E o que é que acontecerá aos refugiados? – interessou-se Falcó.
O cônsul sorriu, lúgubre. O modo como ergueu o copo em jeito de brinde
parecia-se muito com o de um funeral.
– Eu não gostaria de ser um deles. E você também não. A esses não há
forma de os tirar de lá. E além disso, não se pode descartar a hipótese de se
encontrarem armas e material subversivo na embaixada.
Falcó olhou para a pistola que estava na caixa-forte aberta.
– Ou seja, os senhores passam de neutralidade duvidosa a beligerância
indubitável...
– Mais ou menos. E há um pormenor importante para si. O nosso
consulado em Alicante também está a ser evacuado.
– Era de esperar.
– Ali nada poderemos fazer por si.
– Claro.
– Pois é tudo o que lhe posso dizer.
Seguiu-se um silêncio de charutos fumados e de pequenos sorvos de
conhaque. Falcó olhava para o retrato chamuscado do Führer. Mais tarde
ou mais cedo, pensou com o fatalismo da sua fria natureza, acabava por ir
tudo para o caralho. Lareiras cheias de cinzas e cofres vazios. Corpos
atirados para as valetas e junto aos muros dos cemitérios. Então, chegava o
momento das pessoas como ele. Lobos e ovelhas. Em tempos como
aqueles, ser lobo era a única garantia. E nem sempre. Por isso acabava por
ser útil uma discreta pelagem parda. Ajudava a sobreviver. A mover-se
inadvertido entre a noite e o nevoeiro. De repente, sentiu-se vulnerável,
ansiando voltar a esse nevoeiro de onde o tinham obrigado a sair. Estava há
demasiados dias em zona hostil, exposto em excesso. Com um
estremecimento melancólico, teve saudades da velha máxima que Niko, o
seu antigo instrutor romeno – em 1931, por indicação do Almirante, Falcó
tinha passado um mês em Tirgo Mures, um campo secreto da Guarda de
Ferro cujo treino incluía sabotagem e assassínio –, costumava resumir em
três frases fetiche a que chamava o código do escorpião: olha devagar, pica
rapidamente e sai mais rapidamente ainda.
– De acordo – disse ele. – Então o assalto à prisão será depois de amanhã
à noite, e o Deutschland dará cobertura com um bombardeamento de
diversão... Sabe mais alguma coisa?
O cônsul encolheu os ombros.
– Só que entre as onze e a meia-noite o torpedeiro da Kriegsmarine, Iltis,
se aproximará da costa para o grupo de assalto desembarcar, e estará no
lugar combinado para os receber antes do amanhecer. – Apontou para o
bolso onde Falcó tinha guardado as mensagens. – Terá aí os pormenores...
Se houver mais alguma coisa, de última hora, ser-lhe-á transmitido em
código depois do noticiário da Rádio Sevilla, suponho. Os amigos de Félix,
já sabe. Tudo isso.
Falcó olhou brevemente para o relógio. Estava na hora de ir. Já há um
bocado que assim era.
– Obrigado por tudo – disse ele, pousando o copo vazio em cima da mesa.
O outro olhou de relance para o Führer chamuscado e depois para Falcó.
– Só faço o meu trabalho.
– Há trabalhos difíceis de fazer.
– Mais o seu do que o meu. Desejo-lhe sorte, estimado amigo.
– E eu a si, senhor cônsul.
Sánchez-Kopenick fez um gesto resignado.
– Se subir sem problemas para esse barco que espera no porto dar-me-ei
por satisfeito. No seu caso será preciso um pouco mais do que sorte. –
Indicou a Luger no cofre-forte. – Pode vir a ser-lhe útil?... É uma arma
estupenda, recordação de família, mas não posso levá-la comigo. E
aborrece-me imaginá-la ao cinto de um desses heróis proletários de
retaguarda.
Falcó pensou naquilo durante três segundos. Levava a sua Browning de 9
mm no bolso do blusão, mas aquela era uma arma de guerra formidável.
Muito adequada para o que estava para vir.
– Nunca é demais – admitiu.
– Levou-a um tio meu, em Verdún. Com licença. Tem o carregador cheio.
Foi buscá-la e de caminho tirou de uma gaveta uma caixa de cartuchos.
Pôs tudo nas mãos de Falcó. Era uma P-08 semiautomática de 9 mm
Parabellum, com culatra de madeira. Uma arma pesada e robusta,
confirmou este. Sinistramente bela.
– Procure que não lha...
Sánchez-Kopenick interrompeu a frase quando os seus olhos encontraram
o olhar irónico de Falcó. Sem dizer nada, com o charuto entre os dentes,
este guardou a Luger na parte de trás da cintura, sob o blusão, e meteu a
caixa de munições num bolso. Depois subiu o fecho éclair. Se me detiverem
com tudo o que levo comigo, pensou, documentos em código, papéis falsos,
munições e duas pistolas, vou ter mais qualquer coisa além de problemas
com a República.
– Suponho que terá consciência – fez notar o cônsul – de que a partir de
agora já não terá comunicação direta com Salamanca. Fica abandonado aos
seus próprios recursos.
– É o habitual – concordou Falcó.
*
A prisão da província de Alicante era uma construção maciça de vários
corpos e muros caiados. Tinha três andares na parte da frente. Uma alta
parede com guaritas rodeava-a por trás, e de ambos os lados da fachada
havia uns jardinzinhos protegidos pelas grades de ferro. Ficava nos
arredores da cidade, rodeada de árvores, no princípio da estrada de Ocaña.
– Não pares o carro – disse Falcó.
Era Ginés Montero quem conduzia. O Hispano-Suiza passou devagar em
frente do edifício enquanto Falcó reparava em todos os pormenores. Havia
uma guarita de madeira com dois milicianos e o portão estava fechado.
Cada uma das sentinelas trazia uma Mauser ao ombro.
– Usam lenços da FAI – disse Falcó.
– Sim. Substituíram os funcionários por milicianos de confiança. Isso
complica as coisas.
– É gente com experiência de combate?
– Nem pensar. Chusma de retaguarda.
– Melhor assim, do mal o menos.
Rodearam o edifício por um caminho lateral, a coberto das árvores, antes
de regressar à estrada.
– O José Antonio estava com o seu irmão Miguel na cela número 10 da
primeira galeria – comentou Ginés. – Mas a ele levaram-no para baixo há
uns dias para uma cela individual no rés do chão. Incomunicável.
– Poderemos chegar até lá sem muitos destroços?... Não será coisa de
rebentar porta atrás de porta.
– Acho que sim. Que podemos. Graças ao funcionário de prisões que é
dos nossos, fizemos moldes de cera e temos as chaves da galeria e da cela.
Falcó virou-se para dar uma última vista de olhos ao edifício que
deixavam para trás.
– A questão é chegar ao nosso homem antes de os guardas o matarem, se
perceberem que vamos libertá-lo.
– Acho que nos dará tempo – tranquilizou-o Ginés –, desde que os do
grupo de assalto de Fabián Estévez se movam rapidamente.
– É para isso que eles vêm. Para se moverem rapidamente.
O falangista conduziu um bocado em silêncio. Olhou duas vezes de
soslaio para Falcó e à terceira falou de novo.
– Conheceste o Fabián antes de vir para cá?
– Conversámos um bocado.
– É um bom tipo. Camisa velha de primeira hora. Dos poucos camaradas
de então que não estão mortos ou na prisão. – O tom era de absoluta
admiração. – A Cari e eu conhecemo-lo em Múrcia, durante um comício no
Teatro Romea... Passou um tempo a organizar as esquadras de Levante. E
pelos vistos esteve a combater bem.
– Sim. É o que dizem.
– Vou gostar de voltar a vê-lo... E se tudo correr bem, embarcaremos
convosco. A Cari, a Eva e eu.
– E o que é que acontece à vossa mãe?
– Irá com uns parentes para Lorca. Na realidade, sai amanhã para lá,
porque depois disto arderá Troia. Os vermelhos vão virar tudo de pernas
para o ar.
– Não tenhas dúvidas.
Montero reduziu a velocidade. Aproximavam-se do centro da cidade.
– Também vais entrar na prisão, durante o ataque? – quis saber.
– Continuo sem ter a certeza – Falcó tinha demorado um pouco a
responder. – Depende.
– De quê?
– De fazer falta ou não.
– Esta aventura não te excita?
– Nem um pouco.
– Não te compreendo. É a coisa maior que alguma vez se tentou.
– Sim... Vira à esquerda.
– O quê?
– À esquerda. Assim evitamos o controlo anterior.
O outro virou o volante para seguir por uma rua lateral, evitando assim a
principal, onde à ida, num posto da UGT, lhes tinham pedido a
documentação. Sem consequências, mas era melhor não abusar da sorte.
– Estivemos a falar sobre ti – disse o jovem ao fim de um momento.
– Quem?
– A Cari e eu. A Eva também. E as nossas conclusões...
– As vossas conclusões não me interessam.
– Bom... Ouve, somos uma esquadra. Uma equipa.
– Vocês são uma equipa. De três. E eu estou no comando, por agora. E
mais nada.
Ginés não se dava por vencido. Engoliu em seco.
– Aquilo da outra noite, com... Bom, já sabes. Do Juan Portela... Isso
uniu-nos um pouco, não te parece?
Falcó olhou para ele com dureza.
– Achas mesmo que matar alguém une aqueles que o matam?
– Há certas coisas...
– Não me fodas. – Falcó acendeu um cigarro. – Sê bom rapaz, vá lá. Faz a
tua guerra, salva o José Antonio e salva Espanha da horda marxista, se
puderes. Mas não me fodas.
*
De volta ao centro da cidade, deixaram o carro debaixo das palmeiras na
Explanada de Espanha. Eva e Cari estavam à espera deles sentadas na
esplanada de uma geladaria italiana que ficava junto à sucursal do Banco
Hispano Americano. Enquanto Falcó e Ginés estudavam a prisão, elas
tinham ido ver os depósitos de Campsa da avenida Loring – um dos
objetivos do Deutschland para a noite do dia seguinte –, situados em frente
da estação de Múrcia.
– Arderão milhões de litros de petróleo – comentou Cari em voz baixa,
com satisfação. – Os vermelhos vão ter mesmo com que se entreter!
Elas bebiam cevada e os dois homens pediram garrafinhas de cerveja. Era
meio da tarde. Havia nuvens que cobriam parte do céu, mas de vez em
quando o sol brilhava e a temperatura era agradável.
– Qual é o plano, agora? – quis saber Eva.
– Todos olhavam para Falcó. Tinha o boné inclinado sobre o nariz. Bebeu
um golo do seu copo e olhou para o relógio.
– É preciso dar uma vista de olhos ao local do desembarque.
– Podemos fazer isso amanhã – disse Ginés.
– Prefiro ir agora. Ainda há luz suficiente.
– São nove quilómetros – sublinhou Cari. – Precisarão de meia hora para
ir até à praia, e outro tanto para voltar. Isso, se não vos atrasarem num
controlo da estrada. Há um perto do aeródromo que a Air France tem em El
Altet.
– Pode evitar-se por uma pista de terra secundária – disse o irmão. – É a
que usaremos amanhã para trazer as pessoas que desembarcarem.
– Está confirmado o transporte? – inquiriu Falcó.
– Sim. Um camião e dois carros. É o suficiente. Uma hora antes iremos
colocá-los entre os pinheiros, camuflados.
Falcó acabou a cerveja, pensativo. Sob a pala do boné, atentos como de
costume à paisagem, os seus olhos procuravam indícios hostis. Estudavam
as pessoas que passeavam pela Explanada, os vendedores de camarões, os
apanhadores de beatas, os engraxadores com lenços anarquistas ao pescoço
e a bandeira republicana pintada na caixa – o proletariado também gostava
que lhe limpassem os sapatos –, e a venda de jornais com o Diario de
Alicante e El Luchador pendurados com molas da roupa. Havia dois
retratos enormes de Lenine e de Marx por cima da fachada do café Central,
e as montras das lojas tinham longas tiras de adesivo atravessadas para
proteger as pessoas dos vidros em caso de bombardeamento.
– Não iremos os quatro – disse ele. – Juntos chamaríamos demasiado a
atenção.
– Nós os dois? – sugeriu Ginés.
– É melhor que vá eu – propôs Eva. – Um casal debaixo dos pinheiros
acabará por ser mais natural.
Disse aquilo em tom neutro. Impassível. Falcó surpreendeu um olhar
rápido entre Ginés e Cari. Talvez suspeitassem de alguma coisa, pensou. Do
ocorrido. No final de contas, para efeitos de cobertura, ele e Eva tinham-se
registado naquele meio-dia no Hotel Samper como casal. Poderia ser que os
dois irmãos – que estavam alojados em casa de um familiar – supusessem o
que acontecera na noite anterior em Cartagena, ou talvez a própria jovem o
tivesse comentado com a sua amiga; embora Falcó não a imaginasse a fazer
aquele tipo de confidências. Alguma coisa no seu instinto lhe dizia que não.
De qualquer modo, tanto fazia. Nesta altura.
– Iremos a Eva e eu – decidiu.
– Têm de estar de volta com tempo para ouvir o noticiário nacional –
recordou Ginés, baixando muito a voz. – É muito possível que haja
mensagem para nós.
Deliberaram sobre isso, combinando verem-se todos à última hora,
discretamente, nas traseiras de uma livraria alfarrabista da calle Ángel
Pestaña. O proprietário era um familiar dos Montero, simpatizante do
Movimento – tinham-lhe fuzilado um irmão carlista a 19 de julho –, em
cuja casa se alojavam os dois irmãos. Ali, sintonizando a Rádio Sevilla,
poderiam verificar depois da conversa noturna do general Queipo de Llano
se o quartel-general de Franco tinha alguma mensagem para os amigos de
Félix.
– Gosto de pensar – disse Ginés – que o José Antonio está muito perto
daqui, na sua cela. Sem saber que amanhã à noite nós, os seus camaradas,
iremos libertá-lo.
Era um tom quase emocionado, o do jovem. Corajoso, e ao mesmo tempo
comovido pela perspetiva. Os seus olhos brilhavam ao encontrar os de Eva
e os da sua irmã. Mas aquele tom e aquele olhar irritaram Falcó. Para o que
ia acontecer no dia seguinte não se requeria entusiasmo, mas sim sangue-
frio. Em assuntos como este, disse para si uma vez mais, as emoções
matam. Muito.
– Prefiro que penses no que nos espera. No que vamos fazer.
– Está tudo estudado de frente para trás e de trás para a frente. Não fiz
outra coisa nos últimos dias.
– Então continua a fazer. De certeza que ainda há alguma ponta solta.
O jovem olhou para ele, incomodado.
– Tu nunca deixas pontas soltas?
– Nunca.
Falcó recostou-se na cadeira enquanto seguia atento à Explanada,
ignorando deliberadamente o olhar silencioso que Eva lhe dirigia. Havia um
homem com boina e casaco cinzento que passara duas vezes junto deles,
deixando-o alerta. Acalmou-se um pouco ao vê-lo afastar-se com
naturalidade, pela Explanada abaixo, folheando um jornal.
– Alguém – comentou ele instantes depois –, um romano ou assim, disse
que em coisas militares é inútil desculpar-se depois com um «não tinha
pensado nisso».
Ginés tomou aquilo como uma censura.
– Pensámos em tudo – protestou. – Como te disse, até temos as pistolas
na cave da livraria, o meu revólver e a caixa de granadas Lafitte.
Muito sério, Falcó virou-se para ele.
– Que nem vos passe pela cabeça ir pela rua com armas. A Eva já
devolveu a dela. Não vamos estragar tudo.
O jovem dirigiu um olhar ofendido ao bolso do blusão de Falcó.
– Pois tu bem que andas com pistola – disse ele entre dentes. – Uma
escondida no carro e outra contigo.
Falcó olhou para ele com dureza.
– Não tens nada a ver com o que eu ando ou não.
Ao virar o olhar, encontrou os olhos de Eva. Havia, reparou ele, um
levíssimo sorriso na boca da jovem.
– Cipião, o Africano – disse ela, de repente.
Falcó pestanejou desconcertado. Apanhado sem querer.
– Desculpa?
– Turpe est in re militari dicere non putaram – citou Eva. – A frase é
dele, de Cipião... «Em questões de guerra é vergonhoso dizer: não tinha
pensado nisso.»
Ginés soltou uma gargalhada vingativa. Estava deliciado.
– Engole lá essa – disse ele.
*
A praia era arenosa, extensa, e os pinheiros chegavam quase à beira-mar,
lambida por uma ondulação suave. De um lado ficavam as alturas do cabo
de Santa Pola e do outro, Alicante, azulado e nublado na distância. O
Mediterrâneo estendia-se mais para longe, azul-cobalto, sob um céu onde as
nuvens começavam a avermelhar-se para poente.
– O carro pode ficar atolado na areia – disse Falcó a Eva. – Prossigamos a
pé.
Caminharam sob as copas frondosas dos pinheiros, mergulhando os pés
no chão mole. Ela tinha tirado os sapatos. Levava uma saia confortável,
larga, e uma blusa. A areia colava-se aos seus pés cobertos por meias cor de
fumo.
– É um bom sítio – admitiu Falcó.
Media com os olhos eventualidades, riscos e vantagens. O lugar estava
deserto e até uma casinhota de carabineiros em ruínas que tinham visto ao
chegar, do caminho, ficava longe e oculta pelas dunas e pelas árvores. Na
escuridão da noite, o torpedeiro alemão podia aproximar-se da praia; e o
camião e os dois carros ficariam ocultados entre os pinheiros enquanto
esperavam. O lugar era discreto e fácil de defender.
– Um sítio bastante bom – repetiu, satisfeito.
Eva estava diante dele, ligeiramente adiantada, olhando para o horizonte.
A brisa do mar fazia ondular a sua blusa, revelando-lhe o pescoço. Falcó
observou a raiz do cabelo na nuca, os lóbulos das orelhas sem buracos de
brincos, a linha suave de pele e a carne que avançava debaixo da blusa para
os ombros. Tudo transmitia uma sensação de solidez física. De vigor
extremo. Recordou aquele corpo musculado e nu, debilitado na sua
esplêndida firmeza pelos abandonos prolongados do prazer, a carne macia
relaxada pelas suas carícias e os impulsos que pareciam despertá-la em
intervalos violentos uma vez e outra, enquanto se abraçavam na cama dela,
com as bombas franquistas a rebentar na rua, o clarão dos disparos da
defesa antiaérea, o ulular de sirenes quando por fim tudo acabou e os dois
permaneceram imóveis, exaustos, ele sobre ela, sentindo o suor aprisionado
pele contra pele, uma mão da jovem que por momentos lhe acariciou as
costas, mas que de repente deixou de o fazer, e um instante depois deslizou
para o lado, imóvel sobre os lençóis enrugados, e já não voltou a tocar-lhe
antes de chegarem o sono e o resto da noite.
– Tens cicatrizes – disse Eva.
Olhou para ela, surpreendido. Tinha-se virado para ele e a brisa
continuava a agitar-lhe o tecido leve da blusa. O arranque dos seios era
fundo, firme, de aspeto cálido. Falcó sentiu o desejo físico regressar, mas
relegou-o de imediato para um lugar de si mesmo onde não perturbasse o
seu bom juízo. A sua necessária equanimidade operativa. Tinha prática
nisso.
– Perdão?
– Cicatrizes – repetiu ela com muita calma. – Num braço e numa perna.
Apercebi-me.
Os olhos castanhos estudavam-no, avaliadores. Com mais atenção do que
curiosidade. Falcó fez um gesto evasivo.
– Tive uma infância agitada – disse ele com simplicidade.
– Com facas incluídas?... A marca da coxa direita parece uma navalhada.
Ele permitiu-se um vago sorriso. Tinha sido exatamente isso, recordou.
Em 1929, mesmo à porta do Hotel Metropole de Slatni Pyassutsi, um
sicário búlgaro falhara a sua artéria femoral apenas por três centímetros, por
causa de uma questão de rivalidade desleal envolvendo 90 000 dólares de
negócio com a empresa checa Tecnoarma.
– Éramos meninos perigosos.
Ela olhava para ele, séria.
– Isso parece... E a outra?
– Qual outra?
– A do braço esquerdo.
– Ah, essa.
Falcó não disse mais nada. Olhou para um lado e para o outro da praia,
como se o estudo atraísse por completo a sua atenção, e moveu a cabeça
com ar falsamente distraído. Não era uma coisa de se pôr ali a contar a sua
vida, embora aquilo do braço esquerdo tivesse estado quase a custar-lha, se
a infeção – resultante de uma ferida de metralha – não tivesse por fim
revertido no hospital de Novorosisk, a 13 de março de 1920, precisamente a
tempo de Falcó reunir as forças físicas suficientes para abandonar a sua
cama e chegar ao porto, onde os restos do exército russo branco do general
Denikin eram evacuados para a Crimeia.
– Falta-te um bom bocado – disse Eva, objetiva.
Era mesmo verdade. A cicatriz era grande, pois a metralha levara-lhe
parte do bíceps, deformando-o um pouco. Envergonhado a princípio, Falcó
evitara mostrar-lha durante algum tempo. Até com as mulheres, quando era
possível, procurava despir-se com pouca luz. Dezasseis anos depois tinha-se
habituado e não lhe dava importância. Ele logo se ocupava de que não
tardassem a ver-se distraídas por outros pormenores.
– Fui mordido por um cão grande.
– Devia ser mesmo. Foi um grande bocado.
– Nem imaginas.
Na realidade, pensou ele sarcástico, não mentia totalmente. Recordava a
ferida como uma mordedura, o impacto de um estilhaço de granada
artilheira no porto, quando ele estava a carregar caixas de carabinas no
vapor Turas. Depois, onze dias entre a vida e a morte sobre um enxergão,
amontoado entre moribundos pelas feridas e pela febre tifoide, os gritos
assustados de «para os barcos quem puder, estão a chegar os vermelhos», e
a corrida final com os últimos retardados, entre o vento gélido e o fumo
negro dos incêndios, canhões inutilizados, vagões de comboio rebentados,
malas desfeitas e cavalos de tiro que arrastavam restos de furgões, até
embarcar no Kornilov.
– Porque é que fazes isto? – perguntou Eva.
Falcó pensou por uns instantes.
– Dou-me bem assim – respondeu por fim.
– Desde quando é que te dás bem assim?
– Não sei. Desde sempre, suponho. Desde o princípio.
– E qual foi o princípio?
– Também não sei. Talvez um barco que passava no mar, ao longe.
Porventura um livro de viagens ou de aventuras. Já me esqueci.
Houve um silêncio longo. Só o rumor da água à beira-mar.
– Não acreditas nisto, não é verdade? – comentou ela, por fim. – No que
fazes.
– Em que é que havia de acreditar? – Falcó emitiu um riso desagradável.
– Nuns generais chamados por Deus para salvar a Espanha da horda
marxista? Numa República proletária, bondosa e honrada que defende a sua
liberdade?... Isso deixo-o para vocês. Para os jovens com fé.
– Tu não sabes nada da minha fé.
A rapariga olhava para o mar, para as nuvens cada vez mais vermelhas e
escuras que se acumulavam no horizonte.
– Há causas – acrescentou ela em voz baixa. – Razões mais complexas.
Falcó fez um gesto de indiferença.
– De qualquer modo – frisou –, a tua fé e as tuas razões complexas não
me interessam. Do que eu preciso é da tua eficácia, como da dos outros.
– Eficácia é a palavra?
– Que outra palavra podia ser?
Olhava para ele muito séria. Falcó reparou que ela lhe estudava os olhos,
a boca e as mãos.
– Diz-me uma coisa, Rafael ou como realmente te chames... O que é
exatamente isto para ti?
– Julgava que era muito claro desde o princípio: um trabalho.
– E o que sou eu?
– A melhor parte desse trabalho.
Eva continuava a observá-lo fixamente.
– Ontem à noite observei-te enquanto dormias – disse ela. – Ou fingias
dormir.
– Eu sei. Apercebi-me.
– Eu também fingia dormir. Até quando te levantavas silencioso e
caminhavas pela sala como um lobo sem sono... Via as pontas vermelhas
dos teus cigarros junto à janela, na penumbra. O brilho no teu rosto ao
acendê-los.
– Eu ouvia a tua respiração. Rítmica quando dormias, diferente quando
não.
– Dois farsantes na escuridão.
– Sim.
Depois de dizer aquilo, a rapariga manteve um longo silêncio. Continuava
a estar muito séria. Também havia algo duro nela, verificou Falcó. Era de
outra fibra, é claro, diferente da dos irmãos Montero. Muito diferente, e não
só no físico. A fria execução de Juan Portela teria bastado para o
demonstrar; mas até sem isso Falcó teria reparado antes nos sinais.
Palpitava em Eva Rengel algo sólido e escuro que ele podia reconhecer com
facilidade porque era feito da mesma matéria. Tinha consciência de que
horas antes estivera a abraçar um mistério, e soube que ela se apercebia de
que ele notava isso. Nem sequer a fazer amor se tinha chegado a abandonar
totalmente, exceto uns instantes de cada vez e recuperando imediatamente o
controlo de si mesma. Como terá dito o Almirante, concluiu Falcó com uma
sarcástica expressão interior, ela era dos seus, da sua casta, sem dúvida
nenhuma. Aquele desapego frio. Um dos nossos.
– Eva... O teu passado começa muito antes desta guerra, não é verdade?
A rapariga aguentou o olhar dele, imóvel, sem pestanejar sequer. Em
silêncio. Depois desviou os olhos para o mar, e ele teve de fazer um esforço
para não lhe beijar o pescoço nu, ali onde o agitar da blusa o destapava.
Sentiu outra vez, agora com muita violência, o acicate do desejo físico, e
desejou desesperadamente deitá-la na areia, sobre as agulhas de pinheiro;
afastar as suas coxas e voltar a estar lá dentro, regressar ao calor suave e à
palpitação da carne morna – tinha sentido bater a pulsação dela contra a sua
no sexo, na noite anterior –, penetrando de novo, em demanda de consolo,
paz e esquecimento, aquele corpo tão sólido e tão forte.
– Eu não tenho passado – disse ela uns momentos depois.
– Ontem à noite criaste um.
Referia-se a Juan Portela ajoelhado diante deles, o clarão e o corpo caído
de bruços. E soube que a jovem compreendeu do que ele falava.
– Não senti nada – ouviu-a dizer.
O tom mantinha-se neutro. Quase indiferente. Continuava a contemplar o
mar.
– Pensei que sentiria alguma coisa – acrescentou. – Mas enganava-me.
Senti mais depois, contigo. Aqueles disparos lá fora, e nós.
Calou-se e abanou a cabeça, como se pretendesse sacudi-la de
pensamentos que impedissem de encontrar a palavra exata.
– Tão vivos – murmurou por fim.
– Podendo morrer a cada momento, queres tu dizer.
– Sim. É isso.
Estava muito bela, pensou ele. Especialmente bonita na brisa salina.
Aproximou a sua boca da dela, beijando-a com suavidade. Mas ela
manteve-se fria e imóvel, com os lábios inanimados.
– Nunca tinha matado antes – disse ela quando Falcó retirou a sua boca.
Olhava fixamente para o mar. Tinha os sapatos na mão, e as meias de
seda translúcida que lhe cobriam os pés descalços estavam salpicadas de
areia dourada como partículas de ouro. O desejo de Falcó tornou-se mais
intenso. Pôs-lhe as mãos nas ancas.
– Agora não – disse ela.
Falcó fez caso omisso. Que se lixe tudo, dizia ele para si. Não sei quanto
tempo mais é que vou viver e ela está aqui. Ao meu alcance. É o troféu dos
meus medos e perigos. O meu prémio por continuar vivo. Por isso estreitou-
a contra ele com mais força, fazendo-a sentir a urgência do seu desejo. Ela
resistiu por momentos e por fim cedeu, de repente submissa, abandonando-
se, obediente. Quando Falcó olhou para os seus olhos, não leu neles mais do
que um completo vazio, mas não se importava. Nada mesmo. Não naquele
instante. Por isso, agarrando na jovem com uma mão, usou a outra para lhe
levantar a saia. Então ela retrocedeu.
– Espera. Assim não... Espera.
Ajoelhou-se diante dele muito devagar, com a mesma calma de antes.
Com uma lentidão quase exasperante. Tinha deixado cair os sapatos sobre a
areia e desabotoava as calças do homem. A carne emergiu tensa, disposta, e
ela acariciou-a devagar com a boca. Depois, retirando-se, erguido o rosto
para olhar o de Falcó com indiferença, masturbou-o friamente até que ele se
derramou entre os seus dedos com um gemido.
10

NOITES LONGAS PARA PENSAR


D eSamper
regresso a Alicante, deixaram o carro na garagem atrás do Hotel
– a Luger do cônsul alemão estava escondida debaixo de um
banco – e foram para a Explanada rodeando o edifício em direção à fachada
principal. Faltava quase uma hora para o recolher obrigatório. A cidade
estava sem luzes por precaução pelos bombardeamentos, o céu negro e
coberto, a rua cheia de sombras, e as palmeiras em frente ao porto pareciam
fantasmas a agitar os braços pelo efeito da brisa. Passou um elétrico às
escuras, quase inadvertido se não fosse o som de rodas e as breves faíscas
nos cabos. Mal se conseguia distinguir o passeio da rua, e Falcó deu o braço
a Eva para a ajudar a caminhar.
– A que horas é que combinámos estar com o Ginés e a Cari na livraria? –
perguntou a rapariga.
– Às dez. E o noticiário da Rádio Sevilla acaba meia hora depois. Temos
tempo de sobra.
– Tu achas que...?
Ele, subitamente tenso, apertou-lhe o braço.
– Cala-te.
Foi o seu instinto que detetou o perigo antes dos seus sentidos.
Acostumado a farejá-lo como um cão cheira a caça, apercebeu-se de que
qualquer coisa estava mal. Primeiro foi uma sombra furtiva que se movia à
esquerda, e depois um ruído de passos demasiado rápidos atrás de si. De
repente, as sombras eram duas, e uma perfilava-se à frente, na esquina,
cortando-lhes a passagem. Distinguiu-a a mexer-se depressa, um pouco
mais negra do que a escuridão do porto situado atrás da Explanada e das
palmeiras, onde o mar próximo retinha um resto de claridade do crepúsculo.
Três homens, calculou com rapidez. Pelo menos.
Se tivesse estado sozinho, a sua reação teria sido outra: atacar ao passar e
correr à procura de proteção ou de uma fuga rápida. Mas ela também
estava. A mulher que ele ainda segurava pelo braço. Confrontaram-se dois
impulsos instintivos, numa fração de segundo, na sua cabeça treinada para
situações críticas. Um era a própria sobrevivência; o outro, a proteção da
mulher. Se tivesse tido tempo para isso teria amaldiçoado este último,
resignado à fatalidade; mas não teve. Aconteceu tudo muito rapidamente.
Na verdade tinha a mente em branco, limpa e disposta para lutar, quando
soltou o braço da jovem enquanto sentia os músculos e as virilhas a
endurecer. Era o que podia fazer por ela.
– Vai!... Corre, corre!
Entretê-los um instante e depois correr também, era a ideia. Ocupar-se de
si mesmo. Desferiu um pontapé quase às cegas contra a sombra que tinha
mais perto – um impacte violento e um grunhido foram o resultado – e
depois atirou-se sobre a que se aproximava pela esquerda, batendo primeiro
com as mãos, quatro murros seguidos, um atrás do outro, antes de meter a
mão direita no bolso do blusão à procura da Browning. O plano – o reflexo
automático, na verdade – era empunhá-la enquanto desatava a correr para
ganhar distância aos atacantes, virar-se, disparar em movimento e continuar
a correr. Algo cem vezes treinado e algumas posto em prática. Mas não
chegou a tirar a pistola. Os passos que se tinham aproximado por trás
chegavam já às suas costas, e uns braços fortes caíram-lhe em cima,
rodeando-o enquanto o imobilizavam. O agressor era corpulento, respirava
com força e cheirava a suor e a tabaco. Falcó debateu-se com violência,
erguendo os pés, e com um pontapé na parede conseguiu que ambos
caíssem no chão, onde continuou a tentar sacar da arma. Mas outra sombra
veio até ele, e depois outra. Seguraram-no com firmeza pelos braços e pelo
pescoço; e por fim, quando conseguiu tirar a pistola do bolso, arrebataram-
lha das mãos.
– Está quieto, cabrão! – mastigou uma voz áspera. Relaxou de repente os
músculos, como se se desse por vencido. Velha treta, treino básico. Isso fez
com que os outros afrouxassem um pouco a prisão, o suficiente para que
Falcó, com uma violenta e repentina sacudida, libertasse uma mão, a
fechasse num punho e o disparasse contra o lugar onde calculou que devia
encontrar-se a cara do homem que tinha mais próximo. Seguiu-se um
impacte, um desagradável estalido nos nós dos dedos e um grito de dor
alheio.
– Filho da puta!... Partiu-me um dente!... Cabrão filho da puta!
Uma pancada terrível no crânio encheu a escuridão de pontinhos
luminosos que cintilavam enlouquecidos dentro dos seus olhos. Os seus
tímpanos haviam ressoado como a pele de um tambor. Tinham-lhe dado
com qualquer coisa contundente, pensou, talvez uma cachaporra de couro
ou algo parecido. Sobrepondo-se como pôde à dor, atirou outro murro às
cegas que desta vez se perdeu no vazio, antes de lhe prenderem novamente
os braços e a pressão em volta do seu pescoço se tornar tão insuportável que
pensou que ia morrer por asfixia. Abriu a boca à procura de ar. Quis bater,
mas agora estava completamente imobilizado. A cachaporra, ou lá o que
era, voltou a abater-se sobre o seu crânio provocando outra irrupção de
luzes.
– Facho filho da puta... Dá-lhe outra vez, foda-se. Dá-lhe com força.
Tump, ouviu-se. A terceira pancada fez com que fosse acometido por uma
náusea violenta. Estava imóvel e esmagado no chão, a cara contra o
empedrado, mas tudo lhe andava às voltas. Já não havia nada que ele
pudesse fazer, por isso deixou-se ir resignado, triste, como quem desliza ao
longo de um poço profundo e escuro. Chegaste até aqui, concluiu. Boa
viagem. Antes de desmaiar teve tempo de pensar em três coisas: que
aqueles homens o queriam vivo, que a ampolazinha de cianeto estava no
tubo de cafiaspirinas, demasiado longe das suas mãos e da sua boca, e que
talvez Eva Rengel tivesse conseguido fugir.
*
Quando acordou, doía-lhe a cabeça como se lhe estivessem a espetar
todos os tridentes do inferno. A pulsação, descontrolada, batia nas suas
têmporas de um modo insuportável. Estava sentado numa cadeira de
espaldar alto, atado a ela com arames pelo pescoço – isso imobilizava-lhe a
cabeça – pelos tornozelos e pelos pulsos, e nu da cintura para cima; num
aposento de paredes caiadas sem outra decoração nem mobiliário para além
de cabos elétricos presos por isolantes à parede nua que Falcó tinha em
frente, onde havia umas manchas escuras quase ao nível do chão, e uma
mesa de madeira, ao lado da qual jazia o resto da sua roupa feita um
farrapo. Em cima da mesa estavam os documentos e a Browning. Uma
lâmpada simples, sem abat-jour, de poucos watts, pendia do teto e dava à
divisão uma sinistra luz amarelada, iluminando a cabeça careca de um
homem que estava em pé ao lado da mesa.
– Já está a acordar – disse este.
Atrás de Falcó ouviu-se um riso curto, húmido, semelhante a um
grunhido satisfeito. Não conseguia ver o homem que se rira, mas o que
estava em frente era baixo e tinha o rosto barbeado. A luz zenital fazia-lhe
brilhar a careca, rodeada por uma franja de cabelo negro e espesso. As
sobrancelhas também eram espessas, o que intensificava o efeito de sombra
nos seus olhos, que estudavam o prisioneiro com curiosidade.
– Sabe defender-se – disse a voz que estava atrás.
Havia nela um rancor maldisfarçado, e Falcó supôs que era um dos que se
tinham atirado para cima dele na rua. Talvez o do dente partido. Aquilo,
concluiu com um suspiro interior, não ia ser agradável. Uma vez mais
maldisse-se por não ter tido tempo de partir a ampola de cianeto com os
dentes. Adeus, rapazes. Estaria tudo resolvido àquela hora, e ele teria
podido evitar o que tinha a certeza que viria a seguir. De qualquer forma, o
tubo de cafiaspirinas não estava em cima da mesa, verificou ele com uma
vista de olhos. Para aqueles tipos devia continuar a ser um inofensivo
medicamento num bolso do blusão caído no chão. E ainda lhe restava outro
recurso – para ele ou para outros – se descobrisse ocasião: a lâmina de
barbear continuava oculta no cinto que não lhe tinham tirado.
– Vamos conversar um bocado – disse o homem careca, aproximando-se.
Trazia as mangas da camisa arregaçadas e tinha umas mãos brutais. Falcó
pôs os músculos tensos à espera da primeira pancada da nova série, mas
esta demorou. O homem inclinara-se diante dele, olhando-o de muito perto.
– Poupa lá isso de te chamares Rafael Frías Sánchez e que estás colocado
na DCA de Cartagena... Acabámos de falar por telefone com os teus
supostos superiores, e lá ninguém te conhece.
– É um erro de alguém – respondeu Falcó, sereno. – A sério que me
chamo Rafael Frías.
– Uma merda! Mas de qualquer maneira, mesmo que te chamasses assim,
conta-me o que é que faz um artilheiro de La Guía em Alicante, a cento e
tal quilómetros do seu posto.
– Tenho aqui família.
– Sim. E para os visitares, vens com pistola.
Embora não pudesse mexer a cabeça, Falcó apontou para a mesa com o
gesto e o olhar.
– Ali está a minha licença de porte de arma.
– Já a vi. E também me contaram como resististe à detenção.
– Não sabia quem vocês eram. E continuo sem saber.
O outro emitiu um riso obscuro.
– Queres saber quem somos?... Ena! Para começar, não somos esses
palhaços dos anarquistas com o seu exército de Pancho Villa. Nós somos
gente séria, com pouca vontade de brincadeira – ergueu-se para dirigir um
olhar ao homem que estava atrás de Falcó. – Não é verdade?
– Bem verdade – disse o outro.
O homem careca apontou para os objetos em cima da mesa.
– Andas com uma insígnia do partido na lapela do blusão, e na carteira
tens um cartão do Agrupamento de Milícias de Levante. Isso deixa duas
possibilidades: que sejas mesmo um camarada ou que te faças passar por
isso.
– Sou comunista. Como vocês.
O outro suspirou, enfastiado.
– Olha, Rafael, ou lá como tu te chamas. Não sei se és comunista, mas do
que podes ter a certeza é de que não és como nós.
– Tresanda a quinta coluna – disse o de trás.
– É o que eu penso. E acontece que esta é a checa da Misericórdia. –
Voltou a inclinar-se para Falcó. – Não me digas que o nome não tem piada,
hã?... Sabes o que é uma checa?... Olha, é um sítio onde, pelas mãos do
povo, os mudos falam e os gagos cantam La Bienpagá. Aqui
proporcionamos aos clientes longas noites para pensar. Por isso começa.
– A fazer o quê?
Falcó já tinha sido interrogado antes noutros lugares, embora nunca ao
extremo da tortura. E em várias ocasiões – a última, quarenta e oito horas
antes – havia sido ele a comandar a questão. Por isso sabia que se acabava
sempre por falar. Sabia até demais. Só a falta de jeito do interrogador, ou a
pressa, dava ao interrogado o benefício de uma morte rápida. De modo que,
fazendo um esforço para controlar as suas ideias no meio da terrível dor de
cabeça, estabeleceu uma série de linhas de defesa. De trincheiras
sucessivas. Calculou o que a partir de certo momento podia começar a
contar, administrando-o passo a passo; procurando dilatar os prazos o mais
possível, se é que era capaz de resistir de modo razoável. Decidiu assim os
últimos argumentos, as mentiras finais atrás das quais se ia escudar antes de
começar a contar parte da verdade. Ou a contá-la toda. Tudo dependia do
que fosse capaz de aguentar enquanto procurava morrer o mais rápido
possível, exasperando os verdugos até estes cometerem o erro que, com um
pouco de sorte, lhe daria paz definitiva. Mas se os esbirros fossem tão
eficientes como pareciam, a coisa podia tornar-se bestialmente longa. E
aquela maldita dor de cabeça não ia ajudar nada.
– Então, falas? – O homem careca apontava agora para a parede. – Vês
aquelas manchas?... Vamo-las deixando aí de propósito. Para que os
espertos como tu possam ter uma ideia... Tens ideia do que vai acontecer?
– Tenho. – Fechou as pálpebras, resignado, e voltou a abri-las. – Mas
vocês estão a cometer um erro enorme. Chamo-me Rafael Frías e sou do
partido.
– E a mulher?
– Não sei de quem falas.
– A que ia contigo e saiu a correr.
Falcó tentou disfarçar o seu alívio.
– Não ia ninguém comigo.
O outro ergueu a vista, olhando para o que estava atrás dele, e nesse
instante desferiu uma bofetada brutal na têmpora direita de Falcó, fazendo-
lhe latejar o tímpano como se o tivessem perfurado. A dor de cabeça
tornou-se insuportável e sentiu outra náusea a agitar-lhe o estômago. Ao
terceiro arranque deitou um jato de bílis – agradecia agora não ter comido
nada desde o pequeno-almoço – que se derramou sobre o seu peito nu e isso
fez o homem careca retroceder um passo, enojado.
– Vais muito depressa, camarada – disse ele, sarcástico. – Nós ainda nem
sequer começámos!
– Pois quando começarem – respondeu Falcó depois de tossir e respirar
muito fundo – podes fazê-lo chupando-me a verga.
*
Desmaiou mais duas vezes, e das duas esperaram que ele despertasse.
Batiam-lhe sistematicamente na cabeça e na barriga, às vezes com os
punhos e às vezes com uma meia cheia de chumbinhos cujas pancadas
retumbavam no seu interior como se o cérebro estremecesse chocando
contra o osso do crânio. O arame em volta do pescoço estrangulava-o até
quase lhe seccionar a traqueia.
– Isto é o princípio, camarada – dizia o homem careca. – Só o princípio.
Estavam a amolecê-lo para o que viria depois, ainda que Falcó se sentisse
já muito mole. Demasiado. O sangue que lhe brotava do nariz deixava um
sabor a ferro velho ao chegar-lhe à boca. O arame espetava-se no pescoço,
nos pulsos e nos tornozelos esfolando-os. Sentia um formigueiro infernal
nas mãos e nos pés, inchados pela falta de circulação. A dor de cabeça
tornava-se tão atroz que superava a das pancadas na barriga, e teve de gritar
várias vezes para libertar a energia e o desespero presos interiormente pela
tortura. Nos momentos de lucidez, nas pausas entre pancada e pancada,
compreendia que os seus carrascos eram profissionais, que não tinham
pressa nem iam cometer erros e que ele ia demorar a morrer muito mais do
que o necessário. Por isso, predispôs-se para começar a falar, pronto para
abandonar a primeira linha de defesa e entrincheirar-se na segunda. Não me
chamo Rafael Frías Sánchez. Chamo-me Juan Sánchez Ortiz. Sou desertor
do batalhão de milícias Balas Rojas, da Izquierda Republicana. Estava na
frente de batalha de Talavera quando decidi fugir. Comprei os papéis a um
amigo.
Por agora, não foi necessário. As náuseas cobriram-no de um suor frio e
desmaiou pela quarta vez. Quando recuperou a consciência, o homem
careca não estava à sua frente. Entre as névoas da sua cabeça sentiu um
rumor de conversa atrás de si. Várias vozes pareciam deliberar em
sussurros. Ao fim de um momento, dois rostos apareceram diante dele. Um
era o homem careca, e o outro, um tipo corpulento, vestido com casaco
cinzento e com o colarinho da camisa aberto, que tinha o lábio superior
inflamado e cosido com três pontos e que olhava para ele com rancor.
– Hoje é o teu dia de sorte – comentou o careca.
O do lábio rasgado deu uma bofetada a Falcó que ecoou, sonora. Depois
tirou do bolso do casaco um alicate, abriu-o e, quando o prisioneiro contraía
os músculos, angustiado, esperando uma nova e maior atrocidade, cortou o
arame que lhe aprisionava o pescoço. Depois fez o mesmo com as mãos e
os tornozelos. O retorno do sangue às articulações inchadas arrancou um
gemido de dor a Falcó.
– Pega na merda das tuas coisas e desaparece daqui – disse o homem
careca.
Falcó olhou para ele com olhos turvos, sem compreender. Quando,
finalmente, o que estava a acontecer abriu passagem no seu cérebro
confuso, emitiu um suspiro rouco e tentou pôr-se desajeitadamente em pé.
Mas as pernas fraquejaram e os dois homens tiveram de o segurar para que
não caísse ao chão.
*
Ao caminhar muito devagar, inseguro, no meio da luz incerta do
amanhecer, Falcó tiritava por causa do suor frio que ainda sentia a molhar-
lhe a roupa por dentro. Parou diante de uma fonte pública, carregou no
botão de bronze para obter um esguicho de água, e com mãos trémulas
procurou o tubo de cafiaspirinas – a ampola de cianeto estava ali, intacta –,
tomou duas e ingeriu-as com um longo e precipitado golo, bebendo
diretamente do cano com ânsias de animal. Depois, desfalecido, sentou-se
no passeio e esteve um bom bocado imóvel, à espera que o ácido
acetilsalicílico e a cafeína fizessem efeito. Só então, quando a primeira luz
clareava com reflexos cinzentos por detrás dos edifícios num céu de levante
coberto de nuvens baixas, acendeu um cigarro e fumou enquanto a dor de
cabeça retrocedia até limites suportáveis e os pensamentos se ordenavam
depois da confusão, do sofrimento e do medo das últimas horas.
Podia ter-se tratado de um erro, concluiu: mas no seu mundo, com a vida
sempre numa roleta russa, a palavra erro podia tornar-se perigosamente
tranquilizadora. Demasiado arriscada. Tinha sido uma detenção casual? Um
equívoco de pessoa? Não encontrava elementos que justificassem aquela
libertação inesperada, depois da firmeza inicial dos seus verdugos. Talvez
não tivessem encontrado mais nada além da sua falsa vinculação a uma
unidade militar; mas isso teria significado, pelo menos, um calabouço para
esclarecer as coisas. Ou talvez o tivessem tomado realmente por um
membro do Partido Comunista nalgum tipo de missão na qual, naqueles
tempos de desordem e serviços cruzados, onde cada agrupamento político
possuía as suas próprias milícias e os seus próprios serviços secretos, não se
atreviam a interferir. Embora também pudesse ser que o tivessem soltado
para lhe seguir o rasto, como isco.
Este último pensamento avivou os instintos ainda aturdidos do ofício de
Falcó. Deu uma longa vista de olhos em volta, à claridade cinzenta que ia
aumentando, sem notar rastos suspeitos. Para ter a certeza, pôs-se de pé e
andou à volta do quarteirão antes de regressar ao sítio onde estava,
desfazendo o caminho enquanto vigiava se havia qualquer indício
alarmante. Mas não viu nada. Olhou para o relógio de pulso – tinham-lho
devolvido, surpreendentemente, tal como a pistola e tudo o mais – e pensou
que os irmãos Montero e Eva Rengel deviam estar muito preocupados. E
mortos de medo. Por instantes tentou imaginar o que lhes teria contado a
rapariga. Como conseguira fugir, talvez estivesse com eles na livraria onde
tinham marcado encontro na noite anterior. Também podia ser que ela
tivesse voltado ao hotel. Ou que todos tivessem fugido a toda a pressa de
Alicante, para se esconderem. Perguntou a si mesmo se na noite anterior a
Rádio Sevilla teria emitido alguma mensagem para os amigos de Félix. Se o
plano prosseguia ou se fora tudo para as urtigas.
Demasiada incerteza, disse para si mesmo. Demasiada confusão.
Precisava de desanuviar a cabeça, pensar com frieza. Reunir factos a que se
agarrar. Também assegurar-se de que não estavam a segui-lo para que os
conduzisse até aos seus companheiros de aventura. Por isso dirigiu-se para
o hotel, que ficava a quatro quarteirões dali. Não se cruzou com ninguém no
caminho. Andou debaixo das palmeiras da Explanada, junto às linhas do
elétrico, até parar em frente da fachada: Hotel Samper Restorán Café. O
edifício tinha uma esplanada e três andares, e o quarto que Falcó e Eva
Rengel ocupavam, que dava para a esplanada, tinha as cortinas abertas e
estava sem luz. Não parecia ter alguém lá dentro. Depois de aguardar uns
momentos, olhando prudentemente para um lado e outro, atravessou a rua e
chegou ao hotel. Atrás de si, no porto, um barco que zarpava fez soar a sua
sirene. Então, com um estremecimento de inquietação, recordou que só
faltavam quinze horas para que o torpedeiro alemão Iltis fizesse
desembarcar o grupo de assalto.
*
Ainda estava o porteiro da noite atrás do balcão, a dormitar debaixo de
um calendário da Unión Española de Explosivos. Olhou para Falcó com
olhos sonolentos.
– Tem uma mensagem.
Com a chave entregou-lhe um sobrescrito fechado que estava no
chaveiro. Falcó observou o envelope com receio, ao mesmo tempo que o
porteiro olhava para ele com desconfiança. Para a sua cara maltratada.
– Um namorado ciumento – comentou Falcó.
– Estou a ver.
– E da FAI.
O outro olhou para a sua insígnia da foice e do martelo na lapela.
– Esses são os piores – disse ele.
Falcó tamborilava com os dedos no sobrescrito sem o abrir.
– O bar deve estar fechado, calculo.
– Calcula bem.
Tirou a carteira e mostrou uma nota de vinte e cinco pesetas entre o
polegar e o indicador. Nem sequer no dinheiro, coisa invulgar, tinham
tocado, na checa.
– Preciso de uma garrafa de conhaque.
– A estas horas?
– A estas.
Depois de uma breve hesitação, o porteiro foi até ao bar americano, que
estava às escuras. Voltou com uma garrafa de Fundador.
– Obrigado, amigo. – Falcó sorria, agradecido. – Fique com o troco.
– Saúde – disse o outro, guardando a nota.
– Isso é o que hoje me faz falta. Saúde.
Enquanto ia a subir as escadas com a garrafa debaixo do braço, abriu o
envelope. Lá dentro havia uma folha com timbre do hotel e o número 12
escrito a lápis. Ao chegar ao primeiro andar foi reparando nos números dos
quartos. O 12 ficava no corredor, à direita. Foi até à porta, refletiu por
instantes e, depois de tirar a Browning do bolso, montou-a com uma bala na
câmara, procurando não fazer barulho. Depois voltou a guardá-la e bateu
suavemente com os nós dos dedos, três vezes. Por fim, a porta abriu-se e
Falcó ficou estupefacto porque no umbral, em pijama às riscas e pantufas,
com uma redezinha de dormir no cabelo perfumado com brilhantina, estava
Paquito Araña.
*
Quando Falcó saiu da banheira do seu quarto a pingar água e se secou
com uma toalha, Araña estava sentado num banquinho, a observá-lo. Tirara
a redezinha do cabelo e vestia um robe de seda sobre o pijama. Parecia
descontraído, como que na sua própria casa.
– Deixaram-te que nem um Cristo – comentou ele, equânime. – Tens
marcas por todos os lados.
Falcó desembaciou com a palma da mão o espelho por cima do lavatório
e estudou-se, crítico. Tinha círculos violáceos debaixo dos olhos e
contusões leves que lhe arroxeavam as maçãs do rosto e a testa. O pescoço,
os pulsos e os tornozelos mostravam feridas profundas dos arames. Todo o
ventre, até às costelas, era uma imensa pisadura.
– Hoje não estás tão bonito como é costume – disse Araña, com má
intenção.
Tinha feito um trejeito de prazer com a boca, e Falcó olhou para ele
desconfiado através do espelho. Não tinham voltado a ver-se desde que
Araña o levara de carro de Salamanca para Granada. Encontrá-lo em
Alicante era a última coisa que esperaria. Embora talvez, concluiu quando
acabava de se secar, aquilo explicasse certas coisas. Ou apontasse para as
explicar.
– Ainda não me disseste o que é que fazes aqui.
– É verdade. – Araña passou um dedo pelas sobrancelhas depiladas. –
Não te disse.
Os dois conheciam-se um pouco. Estavam há quatro meses juntos no
Grupo Lucero, ainda que Araña fosse um simples executor e correio
ocasional, sem patente. Um assassino apenas, endurecido na luta
antissindical da Barcelona de antes da guerra. Até àquele momento – cada
coisa a seu tempo –, enquanto Falcó tomava um banho acompanhando-o de
golos de conhaque e outras duas cafiaspirinas, a conversa tinha versado em
torno da sua detenção e estranha libertação. De modo singular, Araña não se
mostrara surpreendido em excesso com este último ponto, tal como pela
captura de Falcó à noite, em plena rua.
– Tiveste muita sorte – disse ele.
Era o que dissera o homem careca, recordou Falcó. O teu dia de sorte.
Levou à boca o gargalo da garrafa de conhaque e bebeu outro golo.
Estudava o sicário com desconfiança.
– O Almirante manda-te cumprimentos – disse Araña.
Falcó continuava a observá-lo desconfiado. Estava a ligar as pontas e não
gostava do que estava a ligar.
– Não respondeste à minha pergunta. O que é que fazes aqui?
– Pensei que sabias, porque ontem à noite mandaram-te uma mensagem
pela Rádio Sevilla. Aos amigos de Félix, já sabes.
– Ontem à noite não ouvi a rádio. Como acabo de te contar, estavam a
partir-me a cara numa checa.
– Que pena. Era uma mensagem simpática. Foi o Almirante em pessoa
quem se lembrou dela, para te anunciar a minha chegada e apoiá-la.
«Paquito leva-vos chocolate.» Captas o jogo de palavras?
Assobiou uns compassos de Paquito el Chocolatero, com um sorriso
untuoso. Falcó tinha ido ao guarda-roupa do quarto e vestia-se: cuecas,
meias, calças de bombazina. Um polo escuro, de manga curta. Tinha à sua
frente longas horas de ação e era preciso vestir roupa confortável.
– Segue tudo em frente – fez notar Araña. – Uma segunda mensagem de
rádio confirmava ontem à noite o desembarque: «Os amigos de Félix
tomarão café à hora prevista». Que pena não teres ouvido... Ainda que os
outros devam ter ouvido, suponho. A tua gente.
– E o que é que tu sabes da minha gente?
– Sei alguma coisa. Que controlas uma equipa de apoio para o grupo que
desembarca. Falangistas, como eles. Esses com quem dizes que ias reunir
ontem à noite e que não chegaste a fazê-lo.
– Talvez tenham fugido ao saber o que me aconteceu.
– Tanto faz. O desembarque terá lugar de igual modo, até sem eles. –
Araña fez uma pausa enigmática e deliberada. – Até sem ti.
– O que queres dizer?
– Mandaram-me a mim porque o Almirante quer ter a certeza de que
acreditas nas novidades. Que cumpres as instruções... Para te convencer de
que tudo é verdade, tenho de te dizer que ele pôs no álbum o selo número
um de Hannover. Negro sobre azul – dirigiu-lhe um olhar desconfiado. –
Sabes do que se trata?
– Sim.
– Ainda bem. – O sicário parecia aliviado. – Porque eu não faço a mínima
ideia.
Falcó atava as botas inglesas de lona e couro. Ergueu a cabeça e ficou
imóvel, a olhar para o outro.
– Além disso do selo, não percebo patavina... De que novidades é que
estás a falar?
– Há mudanças.
– De que género?
– Relativas. O desembarque falangista vai fazer-se, mas as ordens
mudaram. Já não deves acompanhá-los até aqui.
– Porquê?
– Porque os vão matar a todos.
Falcó, que estava a levantar-se da cama, voltou a sentar-se.
– Quem?
– Os vermelhos.
– E como é que o Almirante sabe isso?
– Porque foi ele próprio quem preparou.
Falcó olhava para ele, atónito. Incrédulo.
– Estás a dizer-me que o chefe de espionagem naval, ou seja, o nosso,
montou uma operação para libertar o chefe da Falange, e que ele mesmo vai
procurar que fracasse?
Araña parecia estar a gostar daquilo. Do seu papel de mensageiro com
coelho na cartola.
– É precisamente isso que te estou a dizer.
– E o que faço eu aqui? Para que é que me enviaram para esta missão?
– Mandaram-te para isso mesmo. Para que ajudes a fazê-la fracassar.
Falcó continuava sentado, com as palmas das mãos apoiadas nas coxas.
Incapaz de se levantar. O conhaque, as aspirinas, o cansaço, o que Araña
acabava de contar, tudo isso fazia com que a sua cabeça andasse às voltas.
– Merda – disse ele, e caiu em cima da colcha.
Araña foi sentar-se aos pés, com ar solícito. Chegou a Falcó o seu cheiro
a brilhantina e perfume.
– Sentes-te bem?
– Sinto-me até aos tomates.
– Tem calma.
– Isto é um disparate.
– Nem tanto. Queres que te diga como é que eu vejo a coisa?
– Ajudava.
Então Paquito Araña contou como é que ele via aquilo, juntando as suas
deduções ao que sabia ao certo. A ideia de libertar José Antonio vinha dos
comandos da Falange, e o quartel-general do Caudilho não tinha
conseguido opor-se ao projeto; mas supunham que José Antonio, uma vez
libertado e em Salamanca, iria questionar o controlo que Franco tinha sobre
tudo. Demasiados galos no galinheiro. Por isso tinham dado corda aos
camisas azuis, mas nunca sem fazer de modo a que tivessem êxito.
– Estás a ver a ideia?
Falcó assentiu. Estava. E agora era capaz de preencher os espaços em
branco. O Almirante era íntimo de Nicolás Franco, o irmão do Caudilho,
que supervisionava os serviços de informação. E este tinha passado a
questão para ele. Alta política e jogo em várias fações: alemães, falangistas
e etecetera. Uma encenação bem montada. Ficavam todos bem vistos e
punham a culpa nos vermelhos.
– Estão prevenidos?
– Os vermelhos?... Não sei. – Araña verificava o arranjo das suas unhas. –
Mas sabendo como isto funciona, não estranhes... Uma denúncia, uma
emboscada no caminho, o chefe da Falange continua bem guardadinho na
prisão e os seus rapazes cantam o Cara al Sol enquanto se convertem em
mártires da causa. – Beijou a ponta dos dedos como se tivesse provado um
manjar requintado. – Tudo uma beleza.
– Mas são mais de vinte pessoas, contando os que vêm e os que já cá
estão.
– Razão de Estado, companheiro.
– E tenho de os levar a uma emboscada?
– Receio que sim.
– Duas dezenas de vidas... Compreendes o que estás a dizer?
Araña franziu a boca, cínico.
– Os generais de Franco sacrificam-nos todos os dias às centenas. E aqui,
não te admires. Tu também não tens fama de que te preocupem vidas
alheias a mais ou a menos.
– E a ti?
O outro limitou-se a responder com um sorriso matreiro.
– Então por isso é que me libertaram – deduziu Falcó. – Os vermelhos
têm a denúncia e preferem que esteja solto.
Endireitou-se na cama. Estava furioso.
– Foste tu, não é verdade?... O mensageiro. Por isso é que foram à minha
procura. E tu fizeste com que me soltassem.
– Ui! Já te passaste da cabeça.
– Mentes.
– Já te disse quem me envia e para quê. Ponto final.
Falcó pôs-se de pé. Apertava os punhos. Precisava de alguém em quem
descarregar a sua frustração e a sua cólera. A noite que tinha passado a
julgar que seria a última, e a comichão do engano.
– Foste tu, maricas de merda.
Sem se perturbar, Araña mantinha-se sentado. Por artes de magia, na sua
mão direita tinha aparecido uma navalha. Estava fechada, e não fez com ela
qualquer gesto ameaçador. Avaliava-a olhando para ela com curiosidade,
como que a perguntar-se de que maneira é que chegara até ali.
– A mim deixa-me em paz – limitou-se ele a dizer, muito tranquilo. –
Arranja-te para voltares a Salamanca, e ali reclamas o que quiseres. Eu sou
o que sou, como tu és o que és.
– Dois canalhas, é o que nós somos. – Falcó riu-se pela primeira vez,
amargo. – A fazer o nosso ofício sujo.
Araña encolheu os ombros e voltou a guardar a navalha no bolsinho do
robe.
– Tens umas ordens de que não podes duvidar. – Voltou a olhar para as
unhas. – Por isso, agora é contigo. Eu já cumpri a minha parte... Além
disso, não vejo porque é que ficas tão melindrado. Já fizemos cenas destas
assim anteriormente.
– Desta dimensão, não.
O outro dirigiu-lhe um sorriso cínico. Quase filosófico.
– Coçar e matar, é uma questão de começar. Tu deverias saber disso.
– Anda lá e vai levar no cu.
– Hoje já não tenho tempo, galã!
Falcó vestiu o blusão, foi até à cómoda onde estavam as suas coisas e
começou a metê-las nos bolsos. Antes de guardar a pistola introduziu uma
bala na câmara e acionou outras seis vezes a corrediça, fazendo saltar uma a
uma as munições de 9 mm sobre a colcha. Depois extraiu o carregador,
voltou a carregá-lo e introduziu-o na arma, travando-a.
– É a mataduques? – interessou-se Araña com curiosidade profissional.
– É.
– Bonita ferramenta.
Falcó correu o fecho éclair do blusão e olhou em volta. Tinha consigo
tudo o que precisava. O resto podia deixar ali.
– Como é que vais sair de Alicante? – perguntou ele a Araña.
Este fez uma expressão satisfeita.
– Tenho um passaporte francês.
– Terra ou mar?
– Há um barco que vai para Orán, ao meio-dia. Em três dias estarei em
Cádis, no meio de legionários, mouros e italianos bonitos.
– E há alguma coisa prevista para mim, ou tenho de me desenrascar
sozinho?
– Deixam-te escolher entre regressares à zona nacional pelos teus
próprios meios ou embarcar esta noite no barco alemão... Para que as
aparências estejam cobertas até ao fim, o grupo de assalto desembarcará e
voltará à hora combinada para recolher o que dele restar. Pela
Kriegsmarine, porque tem de ser. Já sabes como é que eles são: de cabeça
dura, como a Guarda Civil. Mas, segundo parece, serás o único passageiro
de volta.
– Ena! Tão atenciosos.
Araña pusera-se em pé, alisando o roupão. Era uma cortesia pessoal do
Almirante, sublinhou. Pelos vistos, o plano proposto pelo quartel-general do
Caudilho era que ninguém avisasse Falcó, deixando-o à mercê da mesma
sorte que o resto. Mas o chefe do SNIO tinha recusado terminantemente.
– Na realidade – acabou de contar Araña –, se estou aqui é por tua causa,
em parte. Porque o chefe não quer deixar-te caído como aos outros. –
Observou a expressão de Falcó, acentuando a expressão. – E, sim, não digas
nada... Adoras este ofício de merda. Como eu.
Falcó olhou pela janela. Para lá da esplanada e das copas das palmeiras
viam-se os barcos atracados no cais, o quebra-mar e o mar.
– Há duas mulheres – objetou sem se virar. – Duas raparigas falangistas.
Araña emitiu um risinho estridente. Feminino.
– Ui! Estou a ver-te sentimental, por isso tem cuidado com isso.
Tratando-se de mulheres, em ti não me surpreende. Embora aquela do
comboio de Narbonne...
– Estas são um problema – interrompeu-o Falcó. – Não posso deixar que
se metam na armadilha.
– Então arranja-te de maneira a que fiquem para trás ou que vão contigo.
Sei lá eu. São um problema teu.
– E como é com o chefe do grupo de assalto? Conheci-o antes de vir.
– Cheira-me que esse não passa desta noite, tal como o resto. De qualquer
forma, consola-te pensando que se não forem os vermelhos a matá-lo pode
acabar fuzilado em Salamanca. Aqui, pelo menos, cairá como um herói. E
se o mandam a ele, por alguma coisa será. Não deve ser daqueles que
causam boa impressão nos gabinetes.
– Foi o que me pareceu.
Araña estava prestes a sair do quarto. Parou por momentos, com a mão no
puxador da porta.
– Pois a verdade é que, tirando o Almirante, tu também não causas
melhor impressão... A diferença é que de ti ainda precisam. E, pelos vistos,
dele não.
*
Entrou na livraria a sacudir a água da roupa, pois lá fora as nuvens baixas
escureciam e começava a chuviscar. Ia ser, pensou incomodado, uma noite
de chuva. Ao vê-lo aparecer, o livreiro deslizou sobre ele um olhar de
calculada indiferença e virou-se de costas sem responder ao seu
cumprimento enquanto Falcó se dirigia para as traseiras. Quando lá chegou,
a primeira coisa que viu foi o cano de um revólver apontado para ele.
– Afasta isso – disse ele a Ginés Montero. – Sou eu.
Estavam os três: os dois irmãos e Eva Rengel, entre pilhas enormes de
livros que cheiravam a papel velho. Tinham-se levantado ao ouvi-lo chegar.
Ginés deixou de apontar para ele.
– Libertaram-te – disse ele, surpreendido.
– Consegui convencê-los.
– Conseguiste o quê?
– Eram comunistas. – Falcó tocou na insígnia da lapela do blusão. –
Como eu.
– E porque é que te prenderam?
– Um erro de identificação. E porque a princípio opus resistência.
– Foi graças a ele que eu pude fugir – disse Eva.
Olhava para ele, pensativa. Agradecida. Falcó recordou a sua sombra a
desvanecer-se na escuridão enquanto ele entretinha os esbirros. Estava
contente por a jovem ter conseguido fugir, pois com ela na checa as coisas
teriam sido diferentes. Dirigiu-lhe um sorriso breve, tranquilizador, e Eva
sorriu também. Falcó apontou para o embrulho envolvido em papel de
jornal que ele deixara em cima de uma cadeira. Ao lado havia uma mesa
com um termo de viagem e chávenas com restos de café.
– Trouxe-te alguma roupa – disse ele a Eva. – Fizeste bem em não ir ao
hotel, e penso que não deves voltar lá.
– Obrigada – disse ela.
– Estiveste bem, ontem à noite... Foste corajosa e rápida.
Não respondeu. Continuava a olhar para ele fixamente, e só após uns
instantes é que esboçou outro leve sorriso. Por seu lado, Ginés guardava a
arma. Era o revólver pequeno e niquelado, de bolso, que Falcó já tinha visto
antes.
– Passámos uma noite horrível – disse Ginés. – Não sabíamos nada de ti.
Falcó tocou na cara maltratada.
– Para mim a noite também não foi cómoda.
– O que é que te fizeram? – perguntou Cari.
– O normal. Umas perguntas e algumas bofetadas.
– Canalhas... Chusma canalha.
– Tudo se esclareceu no final. Eu até digo que estavam à procura de
outro.
Tentava pensar. Ou continuar a fazê-lo, pois não tinha feito outra coisa
enquanto caminhava do hotel para a livraria. Olhar para os três com a
equanimidade necessária, do ponto de vista do que acabava de saber nas
últimas horas. Das ordens recebidas. De sabê-los condenados à morte. Eles
eram apenas, disse para si, material de trabalho. Na realidade, não sentia
remorsos – não eram próprios do seu caráter em tais alturas da vida –, mas
sim uma cólera fria e tranquila: um ódio intenso para com as pessoas que
em Salamanca tinham disposto de forma a que as coisas acontecessem
como iam acontecer. Para com aqueles que os manejavam a todos como
marionetas. Olhou novamente para Eva, recordou o seu corpo macio e
pensou em duas coisas: que ele, Lorenzo Falcó, ia comportar-se nas
próximas horas como um verdadeiro filho da mãe – o que também não era
uma novidade a assinalar –, e que pelo menos tentaria salvá-la a ela.
– Houve mensagem ontem à noite?
– Havia duas – respondeu Ginés. – No fim da sua conversa, Queipo de
Llano mandou saudações aos amigos de Félix e disse «Paquito leva-vos
chocolate» e «Tomarão café à hora prevista»... A segunda mensagem é fácil
de entender, porque café significa entre nós Camaradas Arriba Falange
Española... Mas aquilo do chocolate não compreendemos.
– É uma mensagem para mim, previamente combinada – mentiu Falcó.
– Mas quem é o Paquito?
– O Iltis. O torpedeiro alemão. A mensagem tem a ver com o grupo de
assalto.
– Ah.
– Está tudo em ordem.
Houve um silêncio; os três observavam Falcó, expectantes. Este olhou
para o relógio.
– Temos de começar a mexer-nos – disse ele. – Como está o transporte?
Estava confirmado, explicou Ginés. Os três camaradas que vinham de
Múrcia iam estar com o seu camião no pinhal de El Arenal à hora prevista:
eram os primos Balsalobre e um guarda de assalto chamado Torres. Ricote,
o estudante que vinha de Alhama, também trazia um carro. Um velho Ford.
– Um camião e dois carros, contando com o nosso – recordou Ginés. –
Essa é a força móvel. Suficiente para transportar os quinze que
desembarcarem... No camião, os Balsalobre irão trazer pistolas e granadas.
Tinha afastado o termo e as chávenas para estender três plantas em cima
da mesa: uma geral da costa, outra de Alicante e o croqui do interior da
prisão. Todos se aproximaram a vê-los. Com um dedo, apontou para a
distância entre El Arenal e Alicante.
– Como estava combinado, a Cari e o camarada Ricote ficarão na praia
para fazer sinais ao barco, e nós...
Já está na hora de dizer, pensou Falcó. De modo que disse.
– Há uma alteração.
O tom fez com que olhassem para ele surpreendidos a princípio, inquietos
depois. Falcó indicou o croqui da prisão.
– Eu não irei com o grupo de assalto.
Ginés fez cara de estupefação.
– Porquê?... Disseste-nos...
– Mudança de plano. – Falcó explicava-se com muita calma. – A
mensagem do chocolate quer dizer que devo passar o comando ao Fabián
Estévez e ficar de fora. Por isso serei eu quem estará na praia com a Cari
para fazer sinais ao torpedeiro. A Eva também ficará connosco.
– Isso não era o previsto – protestou a rapariga.
– Mas é o que vamos fazer. São as minhas ordens. E até que o Estévez
desembarque com os seus, como eu disse, estou eu no comando.
Ginés tinha tirado os óculos para os limpar com um lenço. Os seus olhos
míopes perfuravam Falcó.
– Ordens de Salamanca ou decisão tua?
– Um pouco de tudo – ironizou Falcó.
– Não haverá muito perigo nessa praia – fez notar o jovem, cáustico.
Muito tranquilo, Falcó acendia um cigarro.
– Tu é que és o falangista e não eu – apagou o fósforo sacudindo-o no ar.
– Trata-se de libertar o teu chefe e não o meu. Eu só estou aqui de
passagem.
– Não me consultaste sobre onde é que eu quero estar – disse Eva.
Demorou três segundos a erguer o olhar para ela.
– É verdade. Não o fiz.
– Tínhamos decidido que eu iria convosco... Com o grupo de assalto.
– Não é lugar para uma mulher.
– Também não é lugar para ti, segundo parece.
– Certo. – O sorriso de Falcó era tranquilo. – Também não é lugar para
mim.
Todos o observavam como se o vissem pela primeira vez. Deu uma passa
no cigarro e deixou sair o fumo devagar. Tanto lhe fazia a forma como o
vissem. Eva, talvez. Só a deceção dela o fazia sentir-se incomodado. Um
pouco. O exato.
– Cari, tu e eu na praia, enquanto eles lutam... – comentou a jovem. – É o
que estás a dizer?
Falcó assentiu.
– É essa a ideia.
– Posso ir eu com o grupo de assalto – propôs Cari. – Conduzir o
Hispano-Suiza.
– Não.
Ginés tinha posto novamente os óculos.
– Tem razão – disse ele. – É melhor que vocês fiquem atrás... Com ele.
Nem se dava ao trabalho de disfarçar o seu desprezo. E Falcó conseguia
compreendê-lo perfeitamente. Mas o desprezo ou a admiração de Ginés
Montero não eram problema dele. Não eram cartas que entrassem naquele
jogo.
– Tinha uma ideia errada de ti – acrescentou o rapaz.
– Não me digas.
– Digo, sim. – Ginés mostrava os dentes num sorriso que não o era. – Isto
não é como matar o Juan Portela, não é verdade?... Como torturar um
homem e depois dar-lhe um tiro na cabeça.
Falcó percebeu que Eva não lhes dissera quem é que executara realmente
o traidor. Que ainda pensavam que tinha sido ele.
– Claro que não – respondeu com suavidade. – Isto desta noite é uma
ação de guerra, não é verdade?... Requer heróis e gente assim. Disposta a
hacer guardia sobre los luceros.
A alusão – uma estrofe do Cara al Sol referente aos falangistas mortos –
não pareceu agradar a Ginés, porque um relâmpago de ira lhe crispou o
rosto. O rapaz tinha-se aproximado mais de Falcó e agora estava à sua
frente, muito perto, imóvel mas com expressão agressiva. Quase por
instinto, Falcó levou a mão direita ao cigarro que tinha na boca. Para o que
desse e viesse. O cigarro atirado à cara e uma joelhada nos testículos:
defesa preventiva de manual. Uma cabeçada não era oportuno: podia partir
os óculos ao rapaz na cara, e não era a altura de complicar as coisas. Mas,
por sorte, tudo ficou por ali. Só um olhar de desprezo muito duro e viril,
muito esquadrista, por parte de Ginés. Deixando tudo claro.
– Tu não tens nada de herói – comentou o jovem –, pelo que vejo.
Falcó expulsou uma baforada de fumo. Por cima do ombro de Ginés,
olhava para Eva e para Cari. Sentiu vontade de rir.
– Pois não, já que o dizes. Não tenho mesmo nada.
11

CHOCOLATE E CAFÉ
L orenzo Falcó reprimiu uma maldição. Continuava a chover. Não de uma
forma intensa, mas suficiente para que a água se tornasse incómoda e
começasse a enlamear os caminhos de terra. Abriu a porta do Hispano-
Suiza, pôs o boné e levantou as golas do blusão, e olhou em volta. A luz do
carro fazia destacar as rajadas de chuva que caíam entre os pinheiros.
– Apaga os faróis – ordenou.
Ginés Montero desligou o contacto, o motor ficou em silêncio e parou o
ruído das escovas no para-brisas.
– Que azar, com esta chuva! – disse Cari atrás dos dois homens. Estava
no banco de trás, com Eva Rengel. Ninguém tinha descolado os lábios na
última meia hora, enquanto o carro, depois de evitar o controlo militar de El
Alter, percorria o caminho secundário para atravessar o pinhal.
– Melhor assim – disse Falcó. – A chuva irá manter toda a gente abrigada
e com pouca vontade de bisbilhotar.
Saiu do carro e andou uns passos, sentindo a água a gotejar sobre o rosto
da pala do boné. Entre as árvores, a pista de terra ia morrer num chão
arenoso pelo que o pinhal se estendia até à beira mar, que se encontrava a
uns duzentos metros. Ali, a areia formava dunas que quase alcançavam a
altura de um homem e o repicar da água no chão era mais suave e
amortecido. Estava tudo escuro e Falcó andou às cegas, a princípio, até que
as suas retinas se acostumaram à escuridão.
– Como boca de lobo – comentou Ginés Montero.
Caminhava atrás dele, mergulhando os pés na areia. Na negrura, à direita,
ouviu-se o som inconfundível de uma pistola a ser armada. Falcó tirou a sua
– também levava a Luger do cônsul metida no cinto, atrás – e agachou-se
devagar, com os sentidos alerta. Sentiu que Ginés fazia o mesmo.
– Quem vem? – interrogou uma voz masculina.
– Café – disse Ginés.
Destacaram-se três silhuetas na escuridão, aproximando-se sobre o fundo
claro das dunas. Falcó manteve o dedo no gatilho até que chegaram junto
deles e houve apertos de mão e saudações em voz baixa. Eram os primos
Balsalobre e o guarda de assalto Torres, que estavam ali há meia hora e
tinham o camião – um Opel Blitz de seis cilindros, disseram – escondido
um pouco mais longe, no meio dos pinheiros. Traziam as pistolas e as
bombas de mão. Falcó não podia ver-lhes o rosto, mas os primos tinham
vozes juvenis e excitadas. Quanto ao guarda de assalto, vinha equipado com
a sua respetiva Mauser e era de poucas falas: alguns monossílabos, quando
muito. Voz de homem corpulento. Tranquilo. Falcó supôs que era o único
profissional de todo o grupo. Um dos primos segurava na boca o ponto
vermelho da brasa de um cigarro.
– Apaga isso – ordenou Falcó, seco.
– Porquê?
– Porque ele é o chefe – respondeu Ginés, sarcástico. – Por enquanto.
A brasa extinguiu-se no chão, debaixo dos pés do primo. Falcó disse-lhes
que esperassem ali e caminhou um pouco até à praia. Primeiro ouviu o
barulho da água na margem e depois conseguiu distinguir a massa extensa e
escura para além da borda clara das dunas. A agitação marítima parecia ser
pouca, como se a chuva aplanasse o mar, e isso facilitaria o desembarque.
Não se via qualquer luz, exceto a distante cintilação periódica do farol de
Santa Pola, à direita da enseada, aceso apesar da guerra. Devia faltar,
calculou Falcó, uma hora para que o Iltis se aproximasse da praia, se
verdadeiramente ninguém cancelasse a operação e tudo prosseguisse.
Certamente que o seu comandante mantinha o torpedeiro a pairar mar
adentro, sem luzes na noite, à espera da hora com o pessoal preparado na
coberta. Deveria estar perto, a menos de uma milha, ainda que invisível na
escuridão. Falcó virou-se a observar a mancha escura do pinhal enquanto se
interrogava onde é que os vermelhos iriam montar a emboscada. Oxalá,
disse para si inquieto, não fosse demasiado perto dali.
Voltou para trás caminhando com dificuldade pela areia, reuniu-se ao
grupo e todos regressaram ao sítio onde Eva e Cari esperavam. Havia agora
outro carro junto do Hispano-Suiza, com o motor e as luzes apagadas, e as
duas mulheres apresentaram Falcó ao condutor: uma sombra que respondia
pelo nome de Andrés Ricote, uma voz juvenil, um nervoso aperto de mãos.
Ricote levava gabardina e ia bem protegido da chuva, por isso Falcó
enviou-o para vigiar o caminho, até ao limite interior do pinhal, depois de
se assegurar de que não ia armado e não lhe fosse fugir um tiro com os
nervos. Os primos Balsalobre e o guarda de assalto aproximaram o camião
sem acender as luzes, juntando-o sob os pinheiros aos dois carros, e todos
se protegeram neles, os primos e o guarda na cabina do camião e Falcó com
os irmãos Montero e Eva no Hispano-Suiza, ouvindo cair a chuva sobre o
tejadilho de chapa do automóvel. À espera.
– São todos boa gente – comentou Ginés, sentado ao volante. – Fiéis
camaradas.
Falcó não disse nada. Fumava com a brasa do cigarro oculta na
concavidade da mão e adivinhava, na penumbra, as rajadas de água a
deslizar pelo vidro do para-brisas. Notava as pernas das calças húmidas de
chuva. Sentia atrás de si a presença próxima e silenciosa de Eva Rengel.
Falcó tinha a cabeça ocupada numa complexa distribuição de horários e
acontecimentos por vir, de problemas táticos e soluções práticas: uma vasta
partida de xadrez em que a maior parte das peças iam ser sacrificadas
enquanto ele procuraria que sobrevivessem duas delas. Três, concluiu, se
conseguisse salvar Cari Montero.
– Meu Deus – disse Ginés. – Pensar que falta tão pouco. Que, se tudo
correr bem, o José Antonio estará livre daqui a umas horas...
Falcó reconhecia os sintomas. A loquacidade do jovem falangista corria a
par com os nervos, a tensão do que ia acontecer. Decidiu deixá-lo falar, para
que se acalmasse um pouco. Soltasse a pressão.
– Vai correr tudo bem – disse a irmã.
Também a ela se adivinhavam os nervos. O peso da emoção, à medida
que o momento se aproximava. Só Eva se mantinha em silêncio e Falcó
interrogou-se como é que a jovem reagiria quando compreendesse que a
operação era um fracasso e que Ginés e os outros, que nessa altura já teriam
partido para Alicante, nunca iriam regressar. E que não lhe restava outra
alternativa senão fugir com ele a bordo do Iltis.
– Quanto falta? – perguntou Ginés.
Ao breve clarão de um fósforo, inclinando-se sob o tabliê, Falcó olhou
para o seu relógio de pulso.
– Temos de ir já – disse ele.
Pegou numa lanterna que estava no porta-luvas, abriu a porta e saiu
debaixo de chuva. Antes de a fechar inclinou-se novamente para o interior,
tirou a Luger que levava no cinto e dirigiu-se a Eva.
– Vais armada?
– Não. As pistolas são para os que vão para Alicante.
Entregou-lhe a arma. As suas mãos tocaram-se na escuridão, em torno do
metal frio.
– Lembras-te como é que esta funciona?
– Sim.
– Tem oito balas no carregador. – Armou a pistola com um estalido do
fecho da culatra e acionou a segurança. – Agora tem sete e uma na câmara.
Tiras a segurança, disparas a primeira e as seguintes vão entrando
sozinhas... Compreendido?
– Claro.
A voz da jovem parecia serena, e isso tranquilizou Falcó.
– Digam aos primos e ao outro que ponham o camião e os carros prontos
para sair, virados para o caminho. Estaremos de volta daqui a meia hora.
Fechou a porta, subiu o fecho do blusão e começou a andar entre os
pinheiros, em direção à praia. Atrás de si ouvia os passos de Ginés. Parou
ao chegar à margem, entre as dunas. À esquerda, a cidade e o porto
destacavam-se em traços de sombra, apesar do escurecimento antiaéreo. À
direita, o farol distante continuava a dar fachos de luz periódicos. Olhou
para a superfície negra do mar sem ver nada. Sem ouvir outra coisa além do
marulhar e do barulho da chuva amortecido na areia.
– Espero que estejam aí – sussurrou Ginés, preocupado.
Falcó ergueu a lanterna apontando-a num ângulo de noventa graus
relativamente à cintilação do farol, com as costas da mão limpou as gostas
de água dos olhos e emitiu em código morse cinco vezes a letra T: cinco
cintilações triplas longas – um traço cada um – com o significado Estou
disposto a receber. E assim que emitiu o último, do mar escuro
responderam com a letra L: um ponto, um traço, dois pontos: Tenho algo
importante para si. Tudo conforme o combinado.
– Meu Deus – exclamou Ginés, emocionado.
Um pouco depois, destacou-se entre as sombras do mar a de uma lancha e
chegou até eles o som de remos na água. Com uma careta de desagrado,
lúgubre, Falcó pensou na barca de Caronte. A que conduzia as almas dos
mortos através da lagoa Estígia.
*
Um chapinhar na margem, sob a chuva. Ruído de remos no trincaniz de
madeira ou sobre os bancos da embarcação, antes de esta se afastar de novo
– Falcó perguntou-se se na lancha vogariam remadores alemães ou
espanhóis. Sons metálicos de armas e apetrechos. Comentários em voz
baixa e uma ou outra ordem quase sussurrada.
– Que ninguém fume.
Falcó tinha reconhecido a voz de Fabián Estévez: tranquila, segura de si.
Voz de comando feita a exercê-lo. Disciplina silenciosa, como resposta.
Obviamente, era gente treinada. Tropa de elite. Silhuetas negras passavam
agora furtivas, recortadas sobre a claridade das dunas. Reflexos de armas e
impermeáveis húmidos. Roçar de corpos, barulho de passos amortecido
pela areia e pelo gotejar da chuva. Quinze homens que iam morrer.
– Depressa. Mexam-se depressa.
Um encontro na escuridão, sem verem as caras. O traço um pouco mais
claro de uma gabardina brilhante de água. Uma mão de Estévez num ombro
de Falcó e outra a apertar-lhe a direita. O mesmo para Ginés Montero, que
estava ao lado.
– Obrigado por tudo.
Felizmente, pensou Falcó, era de noite. À luz do dia, talvez nem mesmo
ele tivesse sido capaz de aguentar o seu olhar. O aperto de mão de Estévez
havia sido duro, muito ao estilo falangista. Quase romântico, disse para si
com desassossego. Algo do tipo arma ao ombro e no céu os astros, sobre a
camada de nuvens baixas que continuava a derramar água na costa. Toda
aquela retórica fascista, sempre a argumentar entre a vida e a morte. A
primavera voltará a sorrir, etecetera. Interrogou-se se os recém-chegados
usariam camisas azuis com o jugo e as setas bordados sobre o coração ou
roupas civis. Sem luz era difícil averiguar. Mas que interessava isso?
– Onde estão os veículos?
– Entre os pinheiros – disse Ginés. – Sigam-nos.
Conduziram-nos até ao arvoredo. Ninguém pronunciava muitas palavras.
No último troço, Estévez perguntou como é que estava o caminho para
Alicante.
– Desanuviado – disse Ginés. – Só é preciso dar uma volta para evitar o
controlo do aeródromo.
– E como é que se sentem os camaradas daqui?
– Já os vais ver. Estão calmos e às tuas ordens.
Falcó não dizia nada. Recordava a figura melancólica de Fabián Estévez
quando se despediram em Salamanca, as mãos nos bolsos do escuro
sobretudo e a cabeça descoberta, afastando-se envolto na aura dos mártires
predestinados. Agora, o herói do Alcázar caminhava por fim para o seu
Getsemani, embora não suspeitasse disso. Ou talvez lhe fosse indiferente.
Podia ser, inclusivamente, que até o procurasse. Os homens como aquele
levavam a sua última noite consigo para todo o lado, como uma mochila
inseparável. Como uma sentença de morte adiada.
– Já chegámos. Ali estão.
Os dois carros e o camião encontravam-se agora juntos, numa pequena
clareira do pinhal, com a chuva a repicar sobre a chapa. A chegada do
grupo de assalto suscitou um ou outro emocionado Arriba Espanha, abraços
e mais apertos de mão. Respirava-se excitação e patriotismo, observou
Falcó com espírito crítico. Todos davam por assente que o Chefe Supremo
ia estar com eles dali a poucas horas. Favas contadas, repetia um dos primos
Balsalobre, cheio de ardor. Arriba Espanha, camaradas. Favas contadas.
– Informe-nos – pediu Estévez a Falcó.
– Claro. Venha aqui.
Subiram até à cabina do camião, protegidos pela lona, Falcó, Estévez,
Ginés e mais alguns homens. O restou ficou de fora com as duas mulheres,
protegendo-se da chuva nos carros e debaixo dos pinheiros. Falcó acendeu
uma lanterna e abriu as plantas no chão: estrada, cidade, prisão. Os rostos
cansados, gordurosos devido à vigília e à permanência no mar, inclinaram-
se sobre elas. Discutiram a fundo os pormenores da operação. O percurso,
os horários, a forma do ataque. Como estava previsto, um grupo chegaria à
porta da prisão no Hispano-Suiza, com o pretexto de entregar um detido. O
grosso da força atacaria assim que passasse o portão, a caminho da cela
onde estava José Antonio. Também tentaria libertar-se o seu irmão Miguel,
no andar de cima, cela número 10.
– E todos os camaradas presos que pudermos soltar – fez notar Ginés
Montero.
– Não – disse Estévez com calma.
– Porquê?
– São essas as minhas ordens. Tirar o José Antonio e, se for possível, o
seu irmão. Não temos aqui meios para levar outras pessoas.
A luz da lanterna fazia brilhar os óculos de Ginés. Acentuava o despontar
da barba que começava a escurecer-lhe o queixo. O seu gesto de
indignação.
– Mas ali há muitos mais – protestou. – Falangistas, monárquicos,
militares, gente de direita... Serão fuzilados como represália se os
deixarmos para trás.
– Não podemos perder tempo – respondeu Estévez. – Se for possível,
entregar-lhes-emos as chaves para que se desenvencilhem por sua conta.
Mas não podemos levar ninguém.
– Isso é injusto.
– Injustas ou não, as ordens cumprem-se. E essas são as nossas.
Falcó observava, finalmente, as feições de Estévez à luz da lanterna. A
luminosidade desta iluminava o seu rosto de baixo, sulcando-o de sombras
angulosas que o faziam parecer mais magro do que em Salamanca; ou
talvez estivesse realmente. Levava um cinto com pistola e duas granadas de
mão italianas Breda, e tinha pousado a seu lado, no chão do camião, uma
pistola-metralhadora Star RU35. Os dois que o acompanhavam – um muito
novo, ruivo, e outro mais velho, de bigode recortado, certamente chefes de
esquadra – iam equipados de forma semelhante; e pelas golas das suas
gabardinas e impermeáveis molhados espreitava o azul das camisas
falangistas. Os profundos olhos escuros de Estévez, reparou Falcó, tinham
um brilho apagado. Reflexivo. Às vezes erguia o olhar para consultar
silenciosamente os seus dois companheiros e depois voltava a olhar para os
planos com tranquila objetividade, como se não tivesse muitas ilusões sobre
o que aqueles traços significavam em perigo, combate, vida ou morte. Êxito
ou fracasso. De vez em quando aqueles olhos detinham-se em Falcó, e este
precisava de fazer um esforço interior quase doloroso, que lhe crispava os
músculos das costas e do pescoço, para aguentar aquele olhar sem afastar o
seu.
– Você falou o tempo todo na terceira pessoa – disse-lhe, de repente,
Estévez. – Significa isso que não estará connosco no assalto à prisão?
O esforço interior tornou-se maior. Falcó fitava os olhos cansados do
falangista, sem pestanejar.
– Fico aqui.
Estévez considerou aquilo em silêncio.
– Ordens ou decisão pessoal? – inquiriu por fim.
– Ordens.
– Ele fica aqui com as mulheres – disse Ginés, com rancor mal contido. –
O que acontece é que...
– Cala-te, camarada – disse Estévez.
O jovem engoliu em seco.
– Às tuas ordens – balbuciou.
Com um gesto pensativo, Estévez continuava a observar Falcó.
– As ordens são para ser cumpridas – disse o cabo. Olhou para os seus
dois companheiros e voltou a olhar para Falcó.
– Claro – disse este, com calma.
– Você não é falangista. Não está sob o meu comando.
– É verdade. Não estou.
O outro tinha dobrado as plantas e guardava-as dentro da gabardina.
– Assegurará, então, o nosso reembarque. – Olhou para o relógio. –
Dentro de uma hora e meia.
– Naturalmente.
– Precisa que lhe deixe mais alguém?... Porque me vai fazer falta até o
último homem.
– Com a Eva Rengel e a Cari Montero será suficiente – tranquilizou-o
Falcó. – Trata-se de fazer sinais ao Iltis e controlar este lugar até vocês
voltarem.
– Eu não confio – disse Ginés. – Deveria ficar mais alguém.
– Tu? – perguntou Estévez.
– Não, eu quero ir. Devo ir. Digo alguém de confiança. Um do meu
grupo... O Ricote, por exemplo. É o mais novo e o mais nervoso. Não vai
ser muito útil em Alicante.
O outro pensou por momentos.
– De acordo... Esse rapaz está armado?
– Podemos deixar-lhe uma pistola e algumas granadas.
– E as duas mulheres?
– A minha irmã não tem armas, mas a Eva tem uma Luger.
– E você?
Falcó deu uma pancadinha no bolso direito do blusão.
– Estou armado – disse ele.
– Será suficiente. – Estévez olhou para todos um a um, reservando o
último olhar, ainda pensativo, para Falcó. – Está tudo claro?... Então vamos
a isso.
Olharam para os relógios sincronizando as horas, apagaram a lanterna e
abandonaram o camião, novamente debaixo de chuva. Estévez ficou um
pouco à parte com Falcó.
– Há alguma coisa que eu não saiba? – perguntou ele em voz baixa.
– Nada de especial. Tenho novas ordens, como lhe disse.
Um silêncio. Só barulho de chuva. Depois o falangista soltou um suspiro.
– Fico surpreendido. Você não é dos que ficam atrás.
– Esta noite fico.
Outra pausa. A voz de Estévez parecia agora fria. Distante.
– Lá terá os seus motivos.
– Já disse. Tenho ordens.
– É claro. Ordens... Vai desejar-me boa sorte, pelo menos.
Notou que a mão do falangista procurava a sua, para a apertar. E então,
sentindo uma profunda irritação para consigo mesmo, envergonhado até à
medula, Falcó apertou-a com firmeza.
– Pois claro – disse ele. – Boa sorte.
Ardiam-lhe a mão e o rosto sob as gotas de chuva. Separaram-se sem
mais palavras. O chão já estava muito enlameado. As sombras que se
protegiam nos carros e debaixo das árvores congregaram-se em volta de
Estévez. As roupas e as armas molhadas brilhavam suavemente na
escuridão.
– Vamo-nos embora – disse o falangista. – O primeiro grupo irá comigo
no carro dianteiro, o grosso da força no camião e o segundo automóvel
fechará a marcha. Ninguém pode acender os faróis... Ficam aqui as duas
meninas e o camarada Ricote.
Cari e o rapaz protestaram, mas Estévez mandou-os calar com secura.
Eva foi colocar-se ao lado de Falcó sem abrir a boca.
– Em marcha – disse Estévez. – E Arriba Espanha.
*
Tinha deixado de chover, e das copas dos pinheiros caíam as últimas
gotas. Falcó levantou o rosto e observou que por uma abertura do céu negro
espreitavam as estrelas. Andou uns passos até às primeiras dunas da praia,
olhando para a extensão sombria onde o marulhar das águas ecoava
debilmente. Estava frio, e as suas roupas molhadas intensificavam essa
sensação. Meteu as mãos nos bolsos. Desejava fumar, mas não se atrevia a
acender um cigarro. Não naquele momento, claro. De qualquer modo, só
lhe restavam dois, recordou. E ainda havia noite pela frente.
– Olhem! – exclamou Eva Rengel.
De repente, nalgum lugar do mar escuro, milhas adentro em frente de
Alicante, brilhavam clarões que se sucediam com rapidez. Relâmpagos
minúsculos, silenciosos a princípio, que dali a poucos segundos se deixaram
ouvir como trovões distantes, sincopados: bum-bum, bum-bum. No meio
dos estrépitos chegava também, amortecido pela distância, um ruído
semelhante ao de tecido que se rasgasse: fazia bum-bum, bum-bum,
raaaash, raaash. Nesse instante, começaram a ver-se clarões na cidade e a
subir labaredas. Os estrépitos também chegaram com atraso, um pouco
depois, na distância. E como num espetáculo irreal, a ladeira do castelo de
Santa Bárbara surgiu iluminada a intervalos.
– Meu Deus – murmurou Cari Montero.
– O Deutschland – disse Falcó. – Na sua hora em ponto.
– Isso manterá os vermelhos entretidos enquanto os nossos chegam.
– Suponho.
Ricote, o rapaz falangista que tinham deixado com eles, aproximava-se
também.
– Que barbaridade! – comentou ele. – Nunca tinha visto antes um
bombardeamento.
Tinha uma voz quase adolescente. Falcó ainda não lhe vira o rosto: só
distinguia a sua voz e a mancha clara de uma gabardina. Não sabia nada
dele, exceto que era estudante e viera de Alhama trazendo o segundo carro.
Tinham-lhe deixado uma das Astra de 9 longo e duas granadas Lafitte, mas
Falcó nem sequer tinha a certeza de saber usá-las.
– Deverias... – começou a dizer.
Foi interrompido por um disparo que se ouviu ao longe, terra adentro. Do
outro lado do pinhal e na direção da estrada de Alicante. Um barulho
apagado pela distância, talvez a uns dois quilómetros.
– Meu Deus! – exclamou Cari.
Ao disparo isolado sucedia-se agora um crepitar furioso de armas de
fogo. Um tiroteio intenso, prolongado, que a distância amortecia.
– Na estrada. – A voz de Eva parecia angustiada. – Perto do aeródromo.
O barulho dos disparos era agora muito intenso, como uma matraca de
petardos que rebentassem ao mesmo tempo durante um grande bocado. Às
vezes parecia interromper-se uns segundos para começar de novo. E a
espaços era pontilhado por outros estrépitos mais surdos e mais secos, que
Falcó reconheceu como de bombas de mão. Combatia-se a curta distância.
– São eles – gemeu Ricote. – Os nossos.
Cari Montero lançou um gritinho agudo, penetrante, que obrigou Falcó a
agarrá-la pelos ombros e a abaná-la com violência.
– Cala-te!
– Não chegaram a Alicante!... Descobriram-nos!
– Cala-te, já disse!
– O meu irmão!... O meu irmão e os outros camaradas!
Bateu-lhe sem violência, na têmpora. Uma única vez. A rapariga caiu na
areia.
– Toma conta dela – disse a Eva.
– Não lhe devias ter batido.
– Se ela voltar a gritar, mato-a.
– Não digas barbaridades.
– Não percebeste... Mato-a mesmo!
Mar adentro o fogo do Deutschland tinha parado, e à distância viam-se
labaredas na cidade. Certamente que ardiam os depósitos de combustível
atingidos no porto. Quanto ao tiroteio de terra, agora era esporádico. Os
disparos soavam mais irregulares e espaçados, e não se ouvia bombas de
mão a rebentar.
– Como é que estás de ânimo, rapaz?
Falcó virara-se para Ricote. A voz do jovem falangista pareceu indecisa.
– Estou bem.
– Ouve. Descobriram-nos, por isso certamente que os sobreviventes, se os
houver, correrão para aqui... Estás em condições de cumprir o teu dever?
– Claro que sim.
– Bom, então monta a pistola e prepara as tuas granadas... Sabes usá-las?
– Sim. Depois de tirar as espoletas, atiro-as para acionar o pavio, para o
mais longe que puder.
– É isso. Vai para o outro lado do pinhal, como fizeste antes, e fica lá a
vigiar. Se chegar alguém, pergunta primeiro e atira depois, se não te
convencer o que ouvires. Mas tem cuidado para não atingires a nossa
própria gente... Ainda falta um pouco para que a lancha se aproxime para
nos vir buscar, e é preciso esperar. Iremos avisar-te.
– De certeza?... A lancha virá?
– Absoluta.
Tenso, o jovem agarrou-o por um braço.
– Não me vão deixar para trás?
– Tens a minha palavra de honra. E agora, vai para lá.
O outro resfolegou, decidido.
– Às suas ordens.
A mancha clara da gabardina desapareceu entre as árvores. Bom alvo na
escuridão, pensou Falcó de modo automático. Depois virou-se para Eva e
Cari. Estavam as duas ao pé de uma pequena duna, duas sombras na areia.
Cari queixava-se com um lamento aturdido e longo. Dali a pouco começou
a soluçar.
– Eu cuido dela – disse Eva.
– Muito bem.
– Quanto é que falta para vir a lancha?
A voz da jovem parecia serena. Dona de si. Isso confortou Falcó.
– Não sei.
Sacou a lanterna, apontou para a negrura do mar e carregou várias vezes
no interruptor. Um ponto, um traço, dois pontos. Era demasiado cedo, mas o
tempo urgia. Esperou um bocado sem obter resposta. Espero bem, pensou
ele, que nos planos do Comando não esteja previsto deixá-lo também a ele
abandonado à sua sorte, como a Estévez e ao resto dos homens que àquela
hora já estariam mortos ou prestes a morrer. Ainda que fosse possível que o
comandante do Iltis, como bom alemão, mantivesse o combinado e não
enviasse ninguém para os recolher senão quando se cumprisse o prazo
estabelecido. O problema, dado o curso dos acontecimentos, era que nessa
altura podia ser demasiado tarde. Se houvesse sobreviventes da emboscada
e os vermelhos viessem atrás, aquela praia ia converter-se num inferno
antes de alguém os tirar dali.
Agachou-se na areia até ficar de cócoras. Tiritava debaixo do blusão e das
calças de bombazina molhadas. Estava encharcado por fora e
desconfortável por dentro. Muito. O seu endurecimento, o seu cinismo
realista, fruto de anos, de jogadas, de mulheres e de vida serviam para
manter muitas coisas na linha, mas não solucionavam tudo. De todo.
Baixezas como aquela é claro que não. Para manter a frieza de julgamento
necessária, Falcó obrigou-se a não pensar nas pessoas do grupo de assalto –
já não se ouvia disparos terra adentro – em Ginés Montero e nos seus
óculos de míope, nos primos Balsalobre e no silencioso guarda de assalto
Torres, no jovem ruivo e no chefe de esquadra de bigode que tinham visto
as plantas à luz da lanterna. No rosto melancólico de Fabián Estévez antes
de entrar para os veículos e se afastar na noite.
– Achas que se terá salvado alguém? – perguntou Eva da escuridão.
– Não sei... Não creio.
Soltou uma cuspidela amarga. Porcaria de Deus, disse para si. Se é que
existe. E quem dera que exista, para alguma vez lhe pedir contas. Depois
agachou-se um pouco mais, pôs o penúltimo cigarro na boca e acendeu-o
sufocando a chama do fósforo na cavidade das mãos, a coberto da duna.
Para o diabo com aquilo tudo.
Ouviu um roçagar a seu lado. Eva tinha-se aproximado dele. Deitaram-se
sobre a areia húmida, colados um ao outro, a estremecer de frio – ele sentiu
sob as roupas dela a dureza da pistola Luger. Enquanto protegia a brasa
entre as mãos, Falcó aproximou o cigarro dos lábios da jovem, que aspirou
profundamente umas duas vezes. Depois de consumido o cigarro, Falcó
apagou-o com precaução e permaneceram abraçados e imóveis, tentando
dar calor um ao outro, enquanto nos rasgos do céu negro se multiplicavam
as estrelas.
*
Tudo aconteceu quase ao mesmo tempo: barulho de remos perto da
margem, a silhueta escura da lancha a aproximar-se no mar e a noite; Falcó
levantou dando uns passos para a praia e ouviu nesse momento disparos de
pistola muito perto, no caminho, do outro lado do pinhal. Um
estremecimento de alarme sacudiu-lhe o corpo.
– Traz a Cari, Eva!... Corre!
O céu tinha desanuviado um bocado, e um pouco de luar semioculto pelas
nuvens permitia distinguir melhor os contornos da paisagem. A lancha
estava quase na margem, uma sombra negra em que se advertiam as formas
dos tripulantes inclinados sobre os remos.
– Eva, Cari!
Aos tiros de pistola – cinco, seis, ia contando Falcó – unia-se agora um
tiroteio mais potente, de armas compridas. De carabinas e de rajadas de
naranjero. De repente ouviu-se um estrondo de bomba de mão. Fez puum-
ba. Uma Lafitte. Isso fez passar pela boca de Falcó uma breve expressão de
agradecimento. O jovem Ricote estava a vender cara a sua pele. Bom rapaz.
– Venham depressa!
A pistola do falangista disparou o último tiro do carregador e nesse
instante ecoou o estrondo de outra granada. Depois veio o silêncio, e Falcó
deduziu que o jovem estava morto ou vinha a fugir para ali pelo pinhal, com
os vermelhos atrás.
– Para o barco!... Vão para o barco!
Correu para as mulheres, que iam ao seu encontro. Duas sombras a
tropeçar na areia. Uma delas passou ao seu lado e a outra caiu ao chão.
Falcó agachou-se para a levantar. Era Cari. Agarrou-a pelos braços e pô-la
de pé. Muito perto da sua cara passou um zumbido violento e rápido, como
o de um besouro que voasse em linha reta. O som do disparo vinha do
pinhal.
– Subam para o barco!
Agora os besouros de chumbo multiplicavam-se. Ziaaang, ziaaang,
ouvia-se por todo o lado; e no extremo do pinhal, sob as sombras negras das
árvores, brilhavam clarões de disparos. Falcó segurava em Cari a caminho
da água. De repente, a jovem estremeceu ao mesmo tempo que na sua carne
se ouvia um estalido, tchas, pouco audível, e o corpo afrouxou inerte,
caindo ao chão.
– Cari!... Levanta-te, Cari!
Agachou-se sobre ela, puxando-lhe os braços para a arrastar pela areia.
Ouvia-a gemer. Olhou angustiado para trás, temendo que com o tiroteio os
remadores dessem meia-volta, e viu a silhueta de Eva ajoelhada junto a uma
duna, recortada na claridade desta, erguendo as mãos unidas para disparar
com a Luger. Pam, pam, pam. Três clarões e três estampidos. Depois a
jovem retrocedeu uns passos mudando de posição, voltou a ajoelhar-se e a
disparar de novo com aparente calma, espaçando os tiros. Pam. Pam. Pam.
Do mar, da lancha, surgiu uma voz: um grito por cima do tiroteio. Falcó
não entendeu o que dizia, mas sim o significado. Iam-se embora. Sentiu um
vazio agudo nas virilhas e o seu coração transbordou em palpitações
desordenadas. Cari Montero continuava a queixar-se debilmente.
Continuava viva, mas pesava muito. Por isso largou-a e desatou a correr
para a beira da água. Eva já não disparava e também corria à sua frente.
Alcançou-a na água, chapinhando ao lado um do outro na direção da
sombra escura da embarcação, que já parecia retroceder cabeceando na
rebentação. Chegaram com o mar pela cintura. Um disparo de terra bateu na
madeira do trincaniz quando Falcó se impulsionava sobre ela, ajudado por
umas mãos que puxavam pela sua roupa encharcada. O balázio levantou
farpas que saltaram perto da sua cara. Ouviu-se uma ordem em alemão e os
remos ressoaram nas forquetas. Falcó nem sequer olhou para trás. Jazia
exausto sobre o madeiramento do fundo, entre as pernas dos remadores.
Tinha os olhos fechados e a boca aberta em inalações ávidas, procurando
recuperar o fôlego. Os pulmões ardiam-lhe, e a seu lado sentia tremer o
corpo molhado e frio de Eva Rengel.
12

NADA É O QUE PARECE


– F oi Ouma desgraça – disse Ángel Luis Poveda.
chefe da Informação e Investigação da Falange vestia camisa azul,
fato castanho e pistola debaixo do casaco. Os seus olhos pequenos e
desconfiados estavam fixos em Lorenzo Falcó: há vinte minutos que o
estudavam com desconfiança por detrás das lentes redondas dos óculos,
atentos a todo o pormenor enquanto o agente – tinha chegado a Salamanca
na noite anterior – completava a narração dos factos: o relatório de um
fracasso.
– Uma desgraça – repetiu o falangista lamentando-se.
Estavam no gabinete do Almirante. Do outro lado da mesa coberta de
processos, com um cachimbo fumegante na boca, este mantinha-se em
silêncio, recostado na sua cadeira como um árbitro imparcial. Estava
vestido à civil com o habitual casaco de malha. Pela janela, atrás, o vento
abanava os ramos nus das árvores diante da cúpula da catedral.
– Acha que houve uma denúncia? – perguntou Poveda.
Falcó aguentava o olhar dele sem pestanejar. Sentia nele o olhar do
Almirante, recomendando cautela. Muito cuidado, rapaz. Muito cuidado
com esse.
– Não sei – respondeu. – É possível que os vermelhos os descobrissem
por acaso. Havia um controlo militar junto ao aeródromo, e passavam
perto... Pode ter sido um simples azar.
– Mas estavam à espera deles, ou não?
– Eu não estava lá. Não posso saber.
– Passaram-se cinco dias.
– Pois eu ainda sei menos do que o senhor.
– Você teve muita sorte. – Poveda olhava-o com um ar antipático. – Por
não ir com eles.
– Acho que sim. Tive.
– Foi um desastre. – Desolado, o falangista passava a mão pela cara. –
Recebi o relatório ontem à noite. Os vermelhos publicaram-no no Diario de
Alicante: doze mortos no terreno, na emboscada, e nove fuzilados no dia
seguinte.
– A mulher também?
– Sim. Caridad Montero. Executada juntamente com o seu irmão... O
camarada Fabián Estévez caiu no combate, com os outros. Não se deixou
apanhar vivo.
Uma cintilação de melancolia. Incómoda. Talvez fosse remorso. Falcó
cruzou as pernas e olhou pela janela.
– Era algo que se esperava – disse ele.
– Na Falange temos a certeza de que houve uma denúncia. Que foi uma
emboscada.
Falcó voltou a olhar para ele.
– Já insinuou isso antes. Mas o que é que isso tem a ver comigo?
– Você fugiu com a outra mulher.
– Tive essa sorte, sim. E bem me custou conseguir isso.
O Almirante soltou uma densa baforada de fumo do cachimbo. O olho
direito fixava Poveda, mal-humorado, através da nuvem azul-acinzentada
que se desfazia à sua frente.
– Não estará a duvidar da lealdade do meu agente?
– Eu não duvido de nada – defendeu-se o outro. – Mas atenho-me aos
factos. Os meus camaradas estão mortos e o seu homem continua vivo.
– Também a rapariga, a Eva Rengel, é dos seus – objetou o Almirante. –
E conseguiu escapar. Deve ter dado a sua versão.
– Sim – admitiu Poveda. – Coincide em tudo com a vossa.
– E onde é que ela está agora?
– Alojada num andar da Secção Feminina da Falange.
– Até que lhe dê destino, suponho.
– É isso – disse o falangista.
– Pois.
Havia algo estranho, notou Falcó, no tom do Almirante. Uma reticência
singular. Como se ao olhar para Poveda visse coisas que Falcó não via.
– Este desastre deixa-nos em muito má situação – lamentou-se o
falangista. – Tememos pela vida do José Antonio. Pelos vistos, já o estão a
julgar em Alicante... Uma pantomima pseudolegal, é claro.
– O senhor não estará à espera de um julgamento justo – disse o
Almirante. – Numa altura destas.
– Claro que não. Mas a nossa intervenção parece ter precipitado o
assunto. – O outro olhou para Falcó com um rancor maldisfarçado. – Tudo
isto põe as coisas muito feias.
O Almirante indicou Falcó com um movimento do queixo.
– Ele fez o que pôde – sublinhou.
Poveda levantou-se sem responder àquilo. Fugidio, incomodado. Meteu
as mãos nos bolsos do casaco e encolheu os ombros. O gesto revelou mais a
pistola que levava no cinto num coldre de couro.
– Foi terrível... Um golpe terrível. Dizem-me que Franco está desolado.
O Almirante fez um meio sorriso, com um gesto de exagerada
condolência.
– É natural – disse ele.
Poveda foi-se embora sem os cumprimentar nem se despedir. Nem Falcó
nem o Almirante se mexeram dos seus lugares. Ficaram a olhar um para o
outro em silêncio.
– Desolado – repetiu o Almirante com uma expressão sardónica.
Falcó olhava para o retrato do Caudilho.
– Como é que a informação chegou aos vermelhos?
O Almirante semicerrou as pálpebras, cansado.
– Chegou. Não interessa como.
– Foi o Paquito Araña?... Ou foi daqui, diretamente?
Não houve resposta. O Almirante verificava a correta combustão do
cachimbo.
– Não entendo para que é que me mandaram para ali – insistiu Falcó. –
Afinal de contas, não intervim em quase nada. Podiam ter feito tudo sem
mim.
– Houve uma mudança de planos a meio da operação.
– Que mudança?
– Isso não importa. Mas de repente deixaste de ser necessário. Por isso é
que te mandei o Paquito Araña. Descobrimos algo de interesse. Algo que
mudava as coisas.
– O que é que descobriram?
– Isso não te interessa. No quartel-general estão satisfeitos com a forma
como tudo aconteceu e isso é que importa.
– O seu amigo Nicolás Franco, suponho. Senhor almirante.
A insolência arrancou ao Almirante um relâmpago de cólera.
– Fecha essa boca estúpida. Não te metas no que não percebes.
– Às ordens.
– Pois sim, porra, às ordens... Mais te vale.
Seguiu-se um silêncio incómodo. O Almirante tinha acendido um fósforo
e aplicava a chama à fornalha do cachimbo. O seu sobrolho adusto
desaparecia pouco a pouco.
– Como é que te sentes? – interessou-se por fim, noutro tom.
– Cansado.
Baforadas sucessivas de fumo. Novo silêncio.
– E triste, suponho – acrescentou Falcó após uns momentos.
O olho direito e o olho de vidro, agora perfeitamente alinhados,
estudavam-no fixamente. A expressão do Almirante era mais suave. Com
um pouco de consideração. Talvez, pensou Falcó, de afeto.
– Tira uns dias. Salamanca é mais fúnebre do que um cipreste... Vai
descansar para Biarritz. Depois contacto contigo lá.
– Talvez faça isso. – Falcó exibiu uma expressão dura, cheia de ironia. –
Tem interesse em que eu desapareça por uma temporada?
Isso não seria demais, admitiu o Almirante. José Antonio, acrescentou,
iria ser fuzilado com toda a certeza. Muito mais ainda, depois do que
aconteceu. E em Salamanca exigiriam responsabilidades para manter as
aparências. Os comandos da Falange iam matar-se entre eles pela liderança:
havia uma fação dura, radical, e outra disposta a colocar-se sob o comando
de Franco. Todos camaradas, mas cada um à sua maneira. Avizinhavam-se
tempos agitados, ajustes de contas de retaguarda. Consolidação do poder e
eliminação dos que se opuseram ao comando único. O próprio Poveda, que
era da linha dura, tinha a cabeça a cheirar a pólvora. Quando menos se
esperasse, os falangistas iriam desatar aos tiros entre si.
– O Generalíssimo e o seu irmão mexem os cordelinhos – concluiu. – E
esses dois não se detêm com pormenores. Por isso esfuma-te. Prefiro que
não te apanhem no meio.
– E como é que é com a Eva Rengel?
Três passas no cachimbo e um longo silêncio. O Almirante não olhava
para Falcó.
– Agora essa rapariga é assunto de outros – disse ele por fim. – Mantém-
te longe.
– O que quer dizer?
Com mau humor, o olho saudável voltou a pousar em Falcó.
– Digo que já não tem nada a ver contigo... Supondo que tenhas tido algo
a ver.
Falcó bateu com os nós dos dedos na ponta da mesa.
– Pois claro que tivemos – protestou ele. – Corremos muitos perigos
juntos e ela portou-se às mil maravilhas. É uma mulher sólida, de
confiança... Executou um delator, e na praia agiu muito bem. Em vez de sair
a correr para a lancha, cobriu-me disparando da beira da água.
– Foste para a cama com ela?
O Almirante olhava para ele, inexpressivo. Falcó recostou-se na cadeira.
– Com o devido respeito, não tem nada a ver com isso.
– Depende.
– A que se refere?
O outro continuava a observá-lo de forma estranha.
– Esquece-a – disse passados alguns momentos. – Já te disse que agora é
um problema deles... Dos seus camaradas, e dos que não são seus
camaradas.
Falcó ficou de boca aberta. Passa-se alguma coisa, deduziu ele. Alguma
coisa que este retorcido filho da mãe não me quer contar. Alguma coisa que
ele sabe e eu não sei. E seja o que for, é alguma coisa séria.
– Não entendo.
– Nem faz falta. Sai daqui.
Falcó dava voltas à cabeça. Tentava pensar. Tirar conclusões claras de
tudo aquilo.
– Almirante...
O outro indicou, imperativo, a porta com a boquilha do cachimbo.
– Sai daqui, disse eu. Desaparece. Já.
*
O edifício residência da Secção Feminina da Falange ficava na encosta da
Encarnación. Tinha varandas de ferro – de uma delas pendia uma bandeira
vermelha e preta – e uma fachada de pedra desluzida com uma entrada
ampla e escura onde um porteiro manco veio ter com Falcó.
– Venho ver a menina Rengel – disse este, mostrando a sua
documentação.
O outro olhou para ele desconfiado, pegou no cartão e examinou-o em
pormenor. Depois, sem dizer qualquer palavra, desapareceu no interior de
uma guarita envidraçada. Passados uns momentos regressou e devolveu-lhe
o documento.
– Já descem – disse ele.
Falcó esperou na base de umas escadas de degraus de pedra já gastos.
Vinha de algum lado um cheiro rançoso de cozinha, do tipo de rancho de
quartel. Batatas cozidas, pensou. E bacalhau por demolhar. Aquilo não abria
muito o apetite.
– A menina Rengel saiu – disse a mulher.
Tinha descido as escadas devagar, observando o visitante de cima. Era de
meia-idade, com abundantes cabelos brancos que lhe salpicavam o cabelo
curto e ondulado, oleoso, que precisava, apreciou Falcó, de uma lavagem
enérgica. Tinha os lábios muito finos e uns olhos duros no rosto
prematuramente envelhecido, sem rasto de maquilhagem. Saia cinzenta
comprida e sapatos rasos. Poderia muito bem passar por uma freira sem
hábito, se não fosse a camisa azul com o jugo e as setas bordadas a
vermelho sobre o bolso esquerdo.
– E quando é que ela irá voltar?
A linha dos lábios tornou-se ainda mais estreita.
– Não penso que volte.
Falcó ficou a olhar para ela desconcertado. Havia um tom desagradável
na voz da mulher.
– Mas ela acaba de chegar. Está aqui alojada.
– Já não.
– E para onde é que ela foi?
– Não sei.
A seu lado, seguindo a conversa, o porteiro coxo olhava para o visitante
com hostilidade.
– Não compreendo – disse Falcó. – O que é que se passa?
Reparou que a mulher trocava um olhar silencioso com o porteiro.
– Passa-se – disse ela dali a momentos – que terá de a procurar noutro
lado.
Falara em tom estranhamente triunfal, como se tirasse prazer do
desconcerto dele. A expressão velhaca do porteiro indicava que este não
tinha menos prazer nisso.
– Por favor – insistiu Falcó. – Poderia explicar-me o que está a acontecer?
Agora a mulher estudava-o de cima a baixo, desconfiada. E não parecia
gostar do que via.
– É uma amiga sua?
Falcó confirmou e assim que o fez viu que os lábios mesquinhos se
abriam num sorriso de satisfação. De suspeitas confirmadas.
– Pois devia ter cuidado com as suas amizades, porque foi a polícia que a
levou.
– Detida?
– Claro.
Falcó tinha ficado de boca aberta.
– Isso é um disparate – reagiu ele por fim.
– Disparate?... Não sei. O senhor e ela é que devem saber.
– Quem é que a deteve?
– Vieram dois agentes – interveio o porteiro, que estava a desejar meter a
colherada. – E havia outro lá fora, num carro.
Calou-se quando a mulher lhe dirigiu um olhar imperioso e maldisposto.
Falcó perguntou que tipo de polícias eram, mas obteve poucos pormenores.
Polícias, resumiu a mulher, recuperando o controlo da conversa.
Identificaram-se com uma placa.
– E para onde é que a levaram?
– Felizmente, isso já não é um assunto nosso.
A cabeça de Falcó ardia, procurando explicação para tudo aquilo.
Polícias, em Salamanca e naquele tempo, podiam ser várias: Serviço de
Informação da Falange, agentes carlistas, serviço de segurança, serviço de
informação militar, até gente do SNIO. De repente recordou as reticências
do Almirante durante a última conversa. O seu tom estranho ao referir-se a
Eva Rengel. Os seus camaradas, dissera, e os que não são seus camaradas.
– Mas, detida porquê? – insistiu ele. – Os que a levaram deram alguma
razão?
A mulher emitiu um riso duro e malicioso.
– Aqui não fazem falta razões, oiça... Se a polícia a levou é porque
alguma coisa terá feito.
*
O Almirante vivia na calle de la Compañía, no primeiro andar de um
edifício com sacadas envidraçadas que àquela hora refletiam a luz
arroxeada do crepúsculo. Quando Falcó tocou à porta foi Centeno, o
assistente, quem abriu: um suboficial da Armada baixinho, ruivo e com
sardas. Estava em mangas de camisa e com o nó da gravata desapertado.
Era um subalterno disciplinado e silencioso. Segundo Falcó sabia, estava
com o Almirante desde os tempos dos Balcãs. Ou já antes.
– Está em casa? – perguntou Falcó.
– Sim. Entre.
Ao fundo do corredor ouvia-se um gramofone. O Almirante gostava dos
tangos e da copla espanhola. Gosto de tudo o que conta histórias em música
e palavras, costumava ele dizer. E às vezes cantarolava estrofes inteiras.
Agora era a melodia de Ojos Verdes e a voz de Miguel de Molina. Falcó
seguiu até ao salão: aparador com cerâmica e livros, quadros nas paredes,
braços do sofá com renda e cadeirões aveludados. O andar era
convencional, burguês, confiscado depois do fuzilamento do seu
proprietário, um ex-deputado socialista. O Almirante estava sentado numa
cadeira de baloiço junto à lareira onde ardia um grosso tronco de azinho.
Vestia uma camisola de lã, umas calças de flanela muito enrugadas e
chinelos de felpa. Tinha perto um candeeiro flexível aceso, sobre uma
mesinha, e um livro nos joelhos. Sentada em frente, numa cadeira, a sua
esposa fazia tricô com um gato aos pés.
– Ah, és tu – disse o Almirante.
Não parecia surpreendido por ver Falcó ali. Este cumprimentou a mulher
– meia-idade, ainda remotamente atraente, sorriso simpático – e ela
levantou-se, retirando-se tal como Centeno. O gato foi esfregar-se nos
sapatos de Falcó e este ficou em pé em frente do Almirante, que olhava para
ele da cadeira de baloiço. Tinha um cachimbo apagado entre os dentes.
Instantes depois tirou-o da boca e apontou com ele para a cadeira vazia.
– Senta-te, vá... Queres tomar alguma coisa?
– Não, obrigado.
O Almirante fechou o livro depois de introduzir um marcador entre as
folhas e colocou-o junto ao candeeiro. Olhava para Falcó, brincando com o
cachimbo entre os dedos.
– Horas estranhas para uma visita – disse por fim.
O olho de vidro mostrava-se ligeiramente vago, mas o outro estudava
Falcó com extrema fixidez. Este tinha-se sentado, próximo da lareira acesa.
Pensativo, o Almirante passou a boquilha do cachimbo pelo bigode
cinzento manchado de nicotina.
– O que é que lhe fizeram? – inquiriu Falcó à queima-roupa.
O outro parecia não ter ouvido a pergunta. O gato saltara para os seus
joelhos com naturalidade e o Almirante acariciava-o. Continuava a observar
Falcó com interesse. Depois de um longo momento recostou-se um pouco
na cadeira de baloiço, deixou o gato ir-se embora e olhou para o lume.
– Há quanto tempo é que nos conhecemos? – perguntou ele. – Cinco
anos?
– Seis.
– É isso, seis – ergueu o olhar para ele. – Em Istambul, depois da tua
questão em Bucareste. Aquele jantar em casa do embaixador húngaro; com
cuja mulher, é claro, andavas envolvido... Nessa época vendias excedentes
militares aos revolucionários mexicanos e irlandeses, entre outros, e vários
serviços secretos queriam apanhar-te... Lembras-te?
– Claro.
– Pouco depois daquilo tive de escolher entre liquidar-te ou recrutar-te.
Optei pela segunda possibilidade e nunca me arrependi.
Ficou calado, olhando para a fornalha do cachimbo. Depois, inclinando-
se um pouco, esvaziou-a dando pancadinhas no lintel da lareira.
– Isto não é uma sublevação, nem um golpe de Estado que se enreda e se
complica – acrescentou ele. – É uma guerra. E vai ser longa... Longa e
muito dura. Já está a sê-lo. Possivelmente, a antecâmara de outra guerra
maior. Mundial, talvez. Como a de há vinte anos.
O Almirante pusera-se em pé, deixando o cachimbo em cima da mesinha.
A música do gramofone tinha parado, por isso ele foi até lá, retirou o disco
e pôs outro debaixo da agulha. Ouviram-se os primeiros compassos de La
Cumparsita e depois a voz lânguida de Carlos Gardel.
– Estão todos a meter a mão nisto – continuou ele a dizer. – Felizmente,
as democracias europeias mantêm-se na expectativa, sem intervir. No fundo
desejam que ganhemos nós, mas jogam à equidistância. Os outros não
andam com complexos: Hitler, Mussolini... Isto está a encher-se de italianos
e de alemães, e há de ser mais. Por seu lado, os vermelhos têm por trás o
Komintern. E a Rússia.
– Conte-me qualquer coisa que eu não saiba – impacientou-se Falcó.
O Almirante olhou para ele com uma amarga censura.
– Conto-te o que eu quiser e como eu quiser. Entendido?... Estás em
minha casa, seu mentecapto. Se estás com pressa, vais por essa porta e sais.
Os dois aguentaram os olhares em silêncio. Por fim, Falcó pestanejou.
– Sim, senhor.
– Pois claro que sim, senhor. Não faltava mais nada!
O Almirante voltou para a cadeira, balançou-se um momento observando
o lume e depois ergueu o olhar para Falcó.
– A Eva Rengel é uma agente russa.
Durante um longo silêncio, na sala só se ouviu a voz de Gardel e o
crepitar do tronco na lareira. Falcó estava imóvel. Estupefacto. Como se um
estremecimento elétrico lhe tivesse percorrido o corpo.
– Perdão?... Quer dizer que ela trabalha para os vermelhos?
O Almirante fez um gesto de impaciência.
– Quero dizer exatamente o que disse. O seu nome real é Eva Neretva: pai
russo e mãe espanhola... Não trabalha para os vermelhos, mas sim para o
NKVD: o serviço de informação e espionagem soviético. E não informa
Madrid ou Valência, mas sim Moscovo.
– Mas ela... Aquilo da Falange...
– Infiltrou-se no meio dessa gente com muito sangue-frio. E esteve ali o
tempo todo, a espiar para o outro lado. O seu chefe direto é Pavel
Kovalenko, aliás Pablo, assessor soviético em Espanha e chefe local da
Administração de Tarefas Especiais... Um filho da mãe completo.
Falcó alegrava-se por estar sentado porque de pé teria feito má figura.
Sentia um desagradável vazio no estômago. Caramba! Ele era um homem
que se dominava, mas aquilo superava tudo quanto poderia imaginar. A sua
fria lucidez habitual tinha ido parar às urtigas.
– O que aconteceu em Alicante?
Pois tudo corria conforme o planeado, respondeu o Almirante. Contou
que Falcó estava ali para, mesmo ainda sem saber, entorpecer a operação; e
que ninguém queria realmente José Antonio fora da prisão, salvo alguns
ingénuos. O Caudilho e o seu irmão Nicolás tinham deixado andar, mas
sabendo desde o princípio que não ia resultar. E a meio caminho deu-se
uma mudança importante. Graças a uma infiltração – um agente da
República que passou para os nacionais em França –, os serviços secretos
franquistas souberam que o NKVD também estava interessado no assunto.
Nem eles, nem os vermelhos, nem os russos, queriam José Antonio Primo
de Rivera livre e a incomodar em Salamanca. Por isso puseram-se em
contacto e chegaram a um acordo. Um tratamento equitativo. Falcó já sabia
de sobra como eram essas coisas.
– Tu já não nos fazias falta, mas estavas lá... A primeira ideia foi
sacrificar-te e deixar-te arrastar pelo desastre geral, mas eu opus-me e
mandei o Paquito Araña para te prevenir.
Falcó tentava ordenar ideias. Relacionar uns factos com outros. A sua
cabeça era uma enlouquecida gaiola de grilos. O Almirante contemplava-o
com ar compreensivo.
– Já sabes como são estas coisas – repetiu ele. – Como é o jogo... Muitas
vezes nada é o que parece ser.
– Porque é que me detiveram em Alicante?
– Porque os vermelhos já sabiam quem eras. Tivemos de lhes dizer.
– Foda-se!
– Não havia outra maneira.
– E porque é que me deixaram ir quando me estavam a interrogar?
– Sempre foste um tipo com sorte. – O Almirante permitiu-se um leve
sorriso. – Essa jovem fez com que te soltassem.
– Ela?
– Claro.
Carlos Gardel tinha emudecido há um bom bocado. A proximidade da
lareira sufocava Falcó. Sentia o corpo molhado de suor. Pôs-se em pé e deu
uns passos pela sala. O gato, que dormitava sobre o tapete, ergueu a cabeça
para olhar para ele com interesse. Do outro lado da janela, a cidade
anoitecia devagar.
– Foi a Rengel, ou a Neretva, como preferires chamar-lhe – disse o
Almirante –, quem se pôs em contacto com o Kovalenko e conseguiu que te
deixassem ir em liberdade. Não sei com que argumentos... Se não fosse
isso, nunca terias saído dali.
Falcó apoiou a testa no vidro da janela. O frio aliviou-o um pouco.
Recordava agora as vozes confusas atrás de si, quando deixaram de lhe
bater na checa de Alicante. Não vira quem é que falava, porque tinha a
cabeça presa ao encosto da cadeira com uma atadura de arame. Talvez de
propósito, para que não pudesse voltar-se e olhar. Talvez ela tenha estado o
tempo todo ali.
– E porque é que o fez?
– Não faço ideia. A verdade é que já não eras útil a ela nem a ninguém,
mas não há dúvida de que assim foi. Negociou a tua liberdade. – Olhou para
ele com sarcasmo pensativo. – Talvez te achasse simpático, talvez tenhas
ido para a cama com ela mais do que me dizes. A verdade indubitável é que
te salvou a vida.
– Não foi só isso. Na praia, quando íamos a fugir, antes de subir para o
barco parou para disparar, cobrindo-me a fuga. Até me podia ter matado, se
quisesse.
– Deve ter tido os seus motivos. A alma das mulheres é insondável. –
Olhou para o corredor. – Até com a minha, vê bem, eu não percebo nada...
E se ainda por cima forem espias, nem te conto.
Falcó continuava junto da janela. Passou uma carroça pela rua, entre as
sombras crescentes. Ouvia, apagado, o barulho dos cascos da mula no
empedrado.
– E porque é que ela veio comigo para a zona nacional? – perguntou-se
em voz alta. – Porque é que embarcou no Iltis, arriscando-se assim?... Teria
sido mais seguro para ela desaparecer antes, deixando-nos a todos nas mãos
dos vermelhos.
O Almirante mostrou-se de acordo.
– Aí já não temos certezas, só conjeturas. É provável que tivesse ordens
para vir para aqui. Dado que se tinha infiltrado profundamente, pode ser
que o Kovalenko lhe tivesse ordenado prosseguir e estabelecer-se no nosso
quartel-general.
– E como é que vocês souberam que era uma espia russa?
– O fulano que desertou passando para França não falou dela a princípio.
Só disse que havia um agente vermelho no vosso grupo, e nós julgámos que
se referia a esse infeliz que vocês liquidaram lá...
– O Juan Portela.
– Esse mesmo. Mas acontece que não. Por fim, o desertor acabou por nos
contar o filme todo, e soubemos que vocês executaram um inocente. Como
é que fica o teu corpo?... O tal Portela era um falangista irrepreensível. Foi
a Eva Rengel quem arranjou tudo com documentos falsos, culpando-o a ele
para evitar suspeitas.
Falcó fez com a boca uma expressão amarga. A recordação assaltou-o
violentamente, com a vivacidade do clarão que tinha iluminado por
instantes a nuca do falangista. Com o estampido do disparo e o cheiro da
pólvora, rapidamente dissipado no ar. Antes disso, ele tinha torturado
aquele homem.
– Também foi ela quem o matou – disse quase em voz baixa.
O Almirante assentiu, equânime.
– Sim. Ao que parece tem tomates.
– E quando é que souberam que ela era agente do NKVD?
– Ontem à noite. O desertor concluiu a sua história e o nome dela
apareceu. Já a tínhamos aqui, por isso discutimos o que fazer com ela.
– Quem?
– Um pequeno gabinete de crise formado pelo coronel Lisardo Queralt,
chefe da polícia e segurança, que tu já conheces, e por mim. Queralt foi
quem conseguiu que o desertor desse com a língua nos dentes. Disse que
era ele quem se encarregava disso e a mim pareceu-me bem.
– Porque é que o senhor não me disse nada esta manhã?
– Porque é que ia fazê-lo?... Essa rapariga não é um problema teu. Na
realidade, nunca foi.
Falcó afastou-se da janela.
– Tudo isto é uma grandessíssima merda, Almirante.
– Surpreende-me que fiques surpreendido.
– Onde é que ela está agora?
– Que diferença é que isso te faz?
– Onde, Almirante? Tenho o direito.
Tinha ido até à cadeira, mas mantinha-se de pé. Da cadeira de baloiço, o
outro fez um movimento de irritação.
– Tu não tens direito a um caralho – respondeu ele, irritado. – Saíste de
Alicante com o pescoço intacto, coisa que os outros não podem dizer. Dá-te
por sortudo e não remexas no lodo.
– O que é que lhe fizeram?
– Os homens de Queralt é que a têm, já te disse. E tu conheces os
métodos deles. A estas horas não sei em que estado é que se encontrará...
Esse cabrão disse que a levavam para lhe sacar tudo o que ela soubesse, que
deve ser bastante. Mas como parece ser uma rapariga dura, isso vai levar o
seu tempo. Não?
Tinha voltado a balançar-se suavemente na cadeira. Estendeu a mão para
pegar no livro da mesinha, como se desse por terminada a conversa e se
preparasse para continuar a ler. Mas limitou-se a segurá-lo entre as mãos,
pensativo. Por fim, devolveu-o ao sítio onde estava.
– Por isso é que eu quero que saias do meio – acrescentou. – Que faças
uma viagenzinha até que as coisas acalmem. Esse porco do Queralt é capaz
de te lixar a ti também. De me dar um pontapé nas tuas bolas.
– Onde é que eles a têm?
– Ouve. Sabes que eu te aprecio, por isso não abuses da tua sorte. Tira
essas férias que eu te aconselhei e não incomodes mais.
Falcó abanou a cabeça. Tinha metido as mãos nos bolsos das calças e
contemplava o lume.
– Talvez sim – disse ele dali a instantes. – Mas ela salvou-me a vida em
Alicante... Fez com que me libertassem quando podia ter deixado que
continuassem a torturar-me como a um animal. E depois cobriu-me dando
tiros na praia.
O Almirante parecia quase surpreendido.
– Vejo-te muito delicado de sentimentos – fez ele notar. – Não te
reconheço. Acabas de atirar vinte e tal mortos para as tuas costas, com esse
Estévez e os restantes falangistas... Não me digas que essa cadela
bolchevique te preocupa.
– Ela salvou-me a vida uma vez e meia.
– E depois? Alguma coisa ganharia com isso. Por isso esquece e dormirás
melhor. O que, por outro lado, nunca foi um problema para ti. Que eu saiba,
os remorsos nunca te deram insónias... Supondo que conheças a palavra
remorso.
13

O SORRISO DO CORONEL QUERALT


Q uando Falcó chegou ao Gran Hotel ainda faltava uma hora e meia para o
recolhimento obrigatório. Deixou o chapéu e o sobretudo no roupeiro,
foi direito ao bar, que estava animado, e apoiou-se no balcão ocupando um
dos bancos. O barman começou a misturar um hupa-hupa no shaker, sem
perguntar. Falcó aproximou um cinzeiro, tirou a cigarreira e acendeu um
Players. Depois olhou em volta: havia poucas mulheres. A clientela
habitual mostrava-se salpicada por uniformes de oficial de todo o tipo:
regulares, legionários, requetés, falangistas. Ficou surpreendido com alguns
uniformes alemães e italianos. Deviam ter chegado a Salamanca nos
últimos dias, pois era a primeira vez que os via ali. Já não se mantinham
tanto as aparências, disse para si com ironia. Um esbelto capitão italiano,
com bigodinho recortado e camisa negra sob o jaquetão cinzento,
aproximou-se a pedir-lhe lume e agradeceu com um amplo sorriso o
estalido perfeito e a chama do Parker Beacon de Falcó. Pensou este nas
recatadas senhoras da nova e católica Espanha de novena, missa e terço.
Nas viúvas de guerra e nas que tinham o noivo ou o marido na frente de
combate; ou nas que simplesmente tinham fome, filhos ou familiares a
quem alimentar, e a sorte de contar entre as pernas com algo para oferecer:
o recurso eterno das mulheres em todas as misérias e todas as guerras,
desde que o mundo tinha memória. Os tipos como aquele capitão,
raciocinou objetivamente, iam ter muito por onde escolher.
– O seu cocktail, senhor Lorenzo.
– Obrigado, Leandro.
– Fico contente de o ver novamente por aqui.
– Eu também fico contente por me veres.
Procurava não pensar. Ou melhor, para não pensar no que não devia,
esforçava-se por pensar noutras coisas. Por exemplo, disse para si dirigindo
um olhar circular enquanto ajustava o nó da gravata, em tirar o seu próprio
benefício imediato do que as mulheres disponíveis no seu raio de ação
podiam oferecer-lhe. Greta Lenz e o seu marido – a alemã dispensara a
Falcó uma leve saudação de cabeça ao vê-lo entrar – estavam numa das
mesas do fundo, sentados com dois tipos louros que ele não conhecia, um
deles com uniforme da Luftwaffe. Território verboten, portanto. Por isso
continuou a olhar em volta. Foi então que viu Lisardo Queralt.
O coronel da Guarda Civil, chefe da polícia e segurança, também o tinha
visto a ele. Vestia à civil e estava na ponta do balcão, à conversa com um
grupo de indivíduos bem vestidos. Falcó conhecia dois deles de vista: um
marquês de qualquer coisa, dono de grandes quintas na fronteira de
Portugal, e um negociante galego que estava a enriquecer com o
fornecimento de latas de conserva às tropas de Franco. Todos se riam e
fumavam charutos cubanos. Quando os seus olhares se encontraram,
Queralt, que segurava um copo de anis onde humedecia a ponta do charuto,
ergueu-o em forma de brinde irónico na direção de Falcó. Depois bebeu um
golo, colocou-o com muita fleuma no balcão e veio na sua direção.
– Olha, olha! Quem está aqui... O javalizinho do Javali.
Os lábios grossos e pálidos continuavam a sorrir no rosto sombrio, de
olhos perigosos. Um sorriso suíno e satisfeito consigo mesmo, pensou Falcó
enquanto o outro apoiava a sua corpulenta humanidade no banco contíguo.
Queralt usava um anel de ouro com uma grossa pedra azul no dedo mínimo
da mão esquerda, onde ostentava uma unha demasiado comprida. Por
momentos, Falcó perguntou-se o que aquele filho da puta faria com aquela
unha.
– Ainda não falámos, você e eu – disse Queralt.
Falcó molhou os lábios no seu copo e depois deu uma passa no cigarro.
– Não temos nada de que falar – disse ele, deixando escapar o fumo com
as palavras.
– Engana-se. Tinha pensado em convocá-lo de maneira oficial, mas
suponho que se refugiaria no colo quentinho do seu chefe. E eu não quero
complicações, por agora. Mas garanto-lhe que mais tarde ou mais cedo
falaremos.
– Parece uma ameaça.
– Ui! Pois não era a minha intenção. É só um objetivo.
– E de que é que queria falar comigo?
O outro fumava o seu charuto. Olhou para a cinza e voltou a fumar.
– Da mulher, claro.
– Qual mulher?
Queralt olhava para ele, sardónico. Seguro de si. Do seu poder e posição.
– Já lhe contaram quem é na realidade essa Eva Rengel?
– Ninguém me contou nada.
Os lábios de suíno dilataram-se num sorriso malévolo.
– Está a mentir. Claro que lhe contaram. Sabe isso de sobra. A minha
curiosidade é desde quando é que sabe. Essa é uma das perguntas que eu lhe
queria fazer. Que eu me proponho fazer-lhe, claro, quando tiver ocasião.
Uma ocasião mais favorável do que esta... Mais íntima.
Falcó não respondeu. Olhava para as garrafas alinhadas nas prateleiras,
do outro lado do balcão.
– A sério que não quer saber o que lhe estamos a fazer? – insistiu Queralt.
Falcó continuava a olhar para as garrafas, impassível. Mas a sua
impassibilidade era só por fora. Pegaria com imenso prazer, pensava, numa
daquelas para a partir na cara daquele cabrão. Incrustar-lhe o charuto nas
gengivas. Imaginar não custa.
– Enganou-vos bem a todos, hã?... A si, ao seu chefe. Aos falangistas.
Enganou-vos a todos.
Com uma pancadinha do dedo indicador, Falcó deixou cair cinza do
cigarro no cinzeiro.
– Perde tempo comigo – disse ele por fim, apontando com o queixo para
os amigos de Queralt. – Volte para os seus negócios.
– Você e o Javali são uns imbecis... Deixaram-se tourear por uma puta
espia vermelha. Por uma russa.
Falcó virou-se no banco, enfrentando o outro. Sentia os músculos tensos,
prévios ao ataque. Mas sabia que isso era impossível. Com aquele fulano. E
menos ainda naquele lugar. Com tanta gente em volta. Por isso engoliu a
cólera como se fosse uma colherada de bílis.
– Veio provocar-me, coronel?
O rosto dele endurecera e Queralt apercebeu-se. Por momentos olhou
para as mãos de Falcó, como que a tentar prever se devia temer alguma
coisa delas. Mas foi só um instante. O poder próprio e o lugar
tranquilizavam-no, sem dúvida. Davam verticalidade à sua malvadez.
– Agora começamos a saber coisas sobre essa mulher – disse ele devagar,
administrando com deliberada malícia as palavras. – Graças a alguns
amigos franceses, e sempre com pagamento antecipado, porque nisto
ninguém oferece nada, chegou-nos do Deuxième Bureau um dossiê bastante
completo, dentro do possível... Quer que lho resuma?
– Faça o que lhe apetecer.
Queralt começou. A resumir. Apesar da sua juventude, Eva Neretva –
aliás, Eva Rengel – tinha uma ampla experiência como agente ilegal
soviética. O seu pai era um russo anticomunista exilado, e a mãe,
espanhola, professora de literatura em Londres. Pelos vistos, as relações
com o pai não tinham sido boas, e a jovem passou para o outro lado.
Quando era estudante, andou a distribuir propaganda comunista aos
marinheiros nos cais. Isso fez com que reparassem nela. Com dezanove
anos, foi à União Soviética, onde foi recrutada pelo NKVD e recebeu
treino. Depois esteve em Paris, infiltrada em círculos de russos brancos; e
como ali se comportou com eficácia, passou para a Administração de
Tarefas Especiais. Que, como Falcó devia saber de sobra, era o
departamento soviético especializado em infiltração, assassínios e
operações negras em geral. Graças a ela, vários destacados trotskistas foram
sequestrados em França e levados para Moscovo, onde tiveram o que
mereceram numa cave da Lubianka. E quando Espanha começou a agitar-
se, mandaram-na com o primeiro e pequeno grupo de agentes dirigido por
Pavel Kovalenko. Quando se deu o Levantamento, estava ativa há cinco
meses.
– É essa a pérola – concluiu Queralt – que você trouxe de Alicante.
Falcó tinha consumido o cigarro. Esmagou-o muito devagar no cinzeiro, e
ainda demorou vários segundos a fazer a pergunta.
– O que é que lhe estão a fazer?
O outro mostrou-se contente com a sua curiosidade. Soltou uma
gargalhada grosseira e azeda, e a cinza do charuto caiu-lhe em cima do
colete.
– Está interessado nisso? No que estamos a fazer?... Pois veja: Coloquei-a
nas mãos dos meus melhores elementos: uns rapazes calmos, pacientes,
profissionais, dos que sabem fazer as coisas com tempo. Subalternos com
experiência, capazes de conseguir que qualquer um lhes conte o que fez; e
até, em caso de necessidade, o que nem sequer imaginou fazer. Dei-lhes
ordens para não terem pressa, e para sacarem tudo o que puderem, nomes,
lugares, operações, contactos, antes de levarmos a porca ao paredão... E é
isso que estão a fazer. A jogar às perguntas e respostas, como nos concursos
da rádio.
– Onde é que a têm?
– Isso não é da sua conta.
Queralt levantou-se do banco. Agora o seu sorriso era sombrio.
– Talvez, no meio de todos esses nomes, essa jovem pronuncie o seu –
acrescentou. – Então não terei outro remédio senão conseguir autorização
oficial para também o interrogar... Não é nada pessoal, entenda. – Pareceu
meditar naquilo por momentos. – Ou talvez sim, seja. Enfim. São as coisas
da vida.
Falcó aguentava o olhar dele, inexpressivo.
– Não há nada que ela possa dizer que me inquiete.
– Você é que sabe.
Queralt virou-lhe as costas bruscamente e regressou para junto dos
amigos, deixando aquele seu sorriso, depreciativo e sinistro, impresso nas
retinas de Falcó. A este ardia-lhe a cabeça com uma cólera fria, tranquila.
Com vontade – reconhecia com facilidade os seus próprios sintomas – de
fazer mal, ou de matar. De apagar com violência aquele sorriso. Então,
passado um momento, pediu outro cocktail ao barman, ingeriu com ele
duas cafiaspirinas, acendeu um novo cigarro e pôs-se a pensar.
*
Continuava a pensar quando subiu ao seu quarto, deitado sobre a cama
sem se despir, fumando cigarro atrás de cigarro enquanto olhava para o teto,
imóvel, e depois quando se pôs em pé e andou de um lado para o outro,
parando diante da janela para olhar para a rua convertida num fosso de
trevas, escurecida perante possíveis ataques aéreos. A noite é neutra, disse
para si. Não toma partido por um nem por outros, e ajuda a quem a põe do
seu lado. A quem a utiliza.
As cafiaspirinas e a adrenalina bombeada no seu sangue pelo sorriso de
Lisardo Queralt davam-lhe uma extrema lucidez. Uma aguda perceção das
coisas, do espaço e do tempo, da noite escura e das suas possibilidades. Fez
cálculos, consultou papéis que tinha nas gavetas, pegou nalguns deles.
Também tirou a capa da máquina de escrever portátil Underwood que
estava em cima da mesa. O quarto tinha telefone ligado a uma pequena
central, de modo que pegou no auricular e para surpresa da telefonista,
àquelas horas da noite, pediu dois ovos cozidos. Chegaram em quinze
minutos, ainda mornos. Deu uma gorjeta ao empregado e sentou-se com
eles na mesa situada junto à janela, tirou as cascas e com uma navalha de
barbear cortou exemplarmente uma secção pela parte mais espessa da clara
cozida. Depois aplicou a secção sobre o selo de um documento com timbre
do quartel-general que ele preparara enquanto aguardava, e depois de
verificar que uma parte da tinta tinha ficado ali impressa transferiu-a como
se fosse um carimbo sobre a folha de papel que acabava de datilografar.
Tirou a tampa da caneta, assinou com uma garatuja e deixou secar a tinta
antes de dobrar o papel e guardá-lo no bolso. Agora era ele quem sorria
quando, depois de meter no casaco e no sobretudo tudo aquilo de que
precisava – incluindo um sobrescrito com dinheiro que tinha escondido por
cima do armário – fechou a porta atrás de si e afastou-se pelo corredor.
*
– Mas que raio é que tu queres a estas horas?
O Almirante recebeu-o mal-humorado. Centeno, o assistente, tinha
hesitado desta vez em deixar Falcó entrar. Passava das onze da noite e o
dono da casa estava em robe, com os mesmos chinelos de felpa. Debaixo do
robe vestia um pijama às riscas cinzentas e brancas.
– Falar, senhor Almirante.
– E não podes esperar por amanhã?
– Não.
A negativa liminar pareceu despertar a curiosidade do Almirante. O olho
de vidro e o olho saudável convergiam sobre Falcó, o último ao mesmo
tempo irritado e alerta. Com um gesto, indicou a Centeno que se retirasse.
Depois olhou outra vez para Falcó, pensativo.
– Queres tomar alguma coisa?
– Nada, obrigado.
Passaram para o salão. Estava às escuras. O Almirante fechou as cortinas
da varanda e acendeu o candeeiro flexível.
– Senta-te.
– Prefiro estar de pé.
O outro ocupou a cadeira de baloiço, balançando-se nela por uns
instantes. Depois ficou quieto.
– Tem de ser importante – disse por fim – para vires chatear-me a estas
horas.
– É.
– Mais te vale.
Falcó olhou para a lareira. Estava quase apagada, apenas com umas
cinzas fumegantes. Não se via o gato em lado nenhum.
– Estive a falar com o coronel Queralt. Encontrei-o no bar do Gran
Hotel... Foi ele quem se aproximou de mim.
O Almirante dirigiu-lhe um olhar crítico.
– E vieste tirar-me da cama por isso?
– Aquele tipo sorria, senhor Almirante. Sorria o tempo todo, com aquela
expressão dele. Parecia encantado da vida.
– E?
– Não consigo tirar da cabeça aquele sorriso.
O Almirante olhava para ele como se não desse crédito ao que estava a
ouvir. Por fim exalou um soprozinho de enfado.
– Vai mas é dormir. Sei lá! Bebe um copo, ou vinte... Procura uma
mulher.
– O senhor devia tê-lo visto a sorrir.
– Já o vi outras vezes. Tem poder, sabe disso e adora. Deixaram-no de
fora naquilo de Alicante e agora vinga-se. É natural. – Indicou o corredor
com gesto mal-humorado. – E agora vai-te embora daqui.
Falcó não se mexeu. Continuava de pé junto à lareira, a desabotoar o
sobretudo e com o chapéu entre as mãos.
– Onde é que eles a têm, senhor Almirante?
O outro olhou para ele com espanto. A sua expressão oscilava entre a
incredulidade e a cólera.
– Mas que diferença é que faz onde eles a têm? Essa mulher já não é da
nossa conta.
– Diga-me onde está.
– Nem pensar.
– O senhor sabe?
– Claro. Mas não penso dizer-to.
Falcó procurou com o olhar o olho saudável do seu interlocutor.
– Nunca lhe pedi nada, senhor Almirante... Há cinco anos que faço tudo
quanto me ordena e nunca lhe pedi nada.
– E eu quero lá saber o que pedes ou não, caralho! – O Almirante cerrou
os punhos com impaciência. – Digo-te que a Eva Rengel pertence a outros.
Pelo amor de Deus, homem. É uma bolchevique de merda. Uma espia dos
vermelhos.
Falcó virou a cabeça, inclinando-a um pouco. Depois olhou em volta
lentamente, de forma quase circular, como se procurasse novos argumentos
na penumbra das paredes. Passado um bocado encolheu os ombros.
– O senhor lembra-se de quando me recrutou?
– Claro.
– Estávamos naquele café de Constanza, o Venus, não é verdade?
– Sim... Junho de 1931.
– Isso mesmo. Estávamos os dois sentados junto à porta a olhar para a
paisagem, e o senhor disse uma coisa de que nunca me esqueci: «Servi uma
monarquia e uma república, e não sei quem servirei no futuro. Este trabalho
seria insuportável se não houvesse nele umas certas regras retorcidas.
Talvez não sejam regras convencionais, nem sequer dignas, mas são as
nossas. Ainda que a principal de todas seja, precisamente, a aparente
ausência de regras»... Lembra-se de que disse isso?
– Já o disse outras vezes.
– As outras vezes não me interessam. Sei que mo disse a mim.
– Suponhamos que me lembro. – A expressão do Almirante tinha-se
suavizado. – Aonde é que isso nos levaria?
Falcó sorriu um pouco. Quase com melancolia.
– Sabe o que me fez decidir aceitar a sua oferta?
– Não.
– A palavra aparente, só isso. Pronunciada por si. A aparente ausência de
regras.
Seguiu-se um silêncio absoluto e muito longo. O Almirante movia a
cadeira devagar, com o olho saudável cravado em Falcó.
– É verdade – disse ele por fim. – Por pouco que vivas, a vida tira a letra
maiúscula a palavras que antes escrevias com ela: Honra, Pátria, Bandeira...
O sorriso de Falcó tornou-se agradecido.
– Exato, Almirante. E então só resta isso: a aparente ausência de regras.
Que, entre gente como nós, é uma regra tão boa como outra qualquer.
O outro tinha deixado de balançar a cadeira. A sua expressão era
diferente.
– O que pretendes fazer? – perguntou ele.
– Apagar aquele sorriso porco ao Lisardo Queralt.
Dissera aquilo com simplicidade. Com franqueza espontânea, e o outro
apercebeu-se disso.
– Estás louco – protestou. – Pretendes que eu te ajude nisso?
– Pretendo que mo facilite. Nada mais. O resto é comigo. Sabe que em
momento algum o implicarei a si.
– Estás a arriscar um piquete de fuzilamento. E algo pior enquanto não
chegas ao paredão.
– Ela não está na prisão, mas sim num lugar de detenção privado. O
próprio Queralt se pavoneou disso... Onde é que a têm detida?
O Almirante levantou-se com brusquidão, quase fazendo cair a cadeira de
baloiço para trás. Deu três passos para as cortinas corridas, como se fosse
abri-las, e parou diante delas.
– É uma espia russa, foda-se.
– Que me salvou a vida uma vez e meia, lembre-se.
– Sai da minha vista.
– Não.
O Almirante continuava de costas viradas para Falcó.
– És um irresponsável. Vais meter-nos a todos numa alhada.
– A todos, não. Só a mim. E se calhar saio-me bem.
– Eu julgava que eras um cabrão com juízo, mas és um idiota.
– Talvez... Nunca lhe pedi nada, disse eu antes. Sempre fui um bom
soldado. Mas agora peço-lhe... Só um lugar, senhor Almirante. Uma
direção. É tudo quanto preciso.
O outro virou-se devagar. Tinha metido as mãos nos bolsos do robe.
– Têm-na numa casa que o Queralt usa para os seus interrogatórios
privados – disse por fim. – Um hotelzito da estrada de Madrid, do outro
lado do rio. Coisa de dois quilómetros, perto de uma casinha de
cantoneiros... Uma casa de dois andares pintada de branco. Chama-se Villa
Teresa.
Falcó sorria, luminoso. Como um rapaz com boas notas escolares.
– Obrigado, Almirante.
– O que pensas fazer?... Não posso dar-te nada, nem ninguém. Não posso
misturar-me nisso. Em semelhante disparate.
– Nem eu lhe peço, nem deve fazê-lo. Com o que acabou de me contar já
fez o suficiente.
O Almirante olhava para o cachimbo sobre o livro que estava na mesinha
ao lado do candeeiro flexível, mas não lhe tocou. Por fim, fez um gesto de
impotência.
– Tens uma vantagem: é tudo provisório, nestes dias. Militares,
falangistas, requetés... As pessoas vão e vêm, nada é claro. A Espanha
nacional está por definir, e muitas vezes vemo-nos no caos. Pouco a pouco
ir-se-á organizando melhor, mas ainda há zonas de sombra. Buracos na
rede.
– É disso que se trata, precisamente.
O Almirante tinha-se aproximado muito dele. Ergueu um dedo indicador
até lhe dar com ele umas pancadinhas no peito. Três pancadinhas, uma atrás
de outra. Toc, toc, toc. A sua expressão era novamente dura.
– Pois se te apanharem com o pescoço metido num desses buracos – disse
ele a um palmo da cara de Falcó –, negarei qualquer coisa que tenha a ver
contigo. Até contribuirei para que te despedacem.
Mostrava os caninos, justificando a sua alcunha. Os olhos risonhos de
Falcó faiscaram.
– Naturalmente, senhor Almirante.
– Mais ainda. Serei eu próprio a fazê-lo. Em pessoa.
– Parece-me justo.
– Estou-me nas tintas para o que te parece, caralho.
Depois de dizer aquilo emitiu um grunhido de aparente mau humor. Um
grunhido excessivo. Quase cúmplice.
– A sério que essa mulher vale assim tanto a pena?
Falcó moveu a cabeça, sincero.
– Não é ela, senhor Almirante. Tem a minha palavra... É o sorriso do
Lisard Queralt.
Ouviu-se uma campainha elétrica na outra ponta do corredor. O
Almirante olhou para lá, com estranheza.
– Quem poderá ser, a esta hora?
Ouviram-se os passos de Centeno no vestíbulo. A porta da rua abriu-se e
voltou a fechar-se. Um pouco depois, o assistente parou, respeitoso, na
entrada do salão. Tinha um sobrescrito fechado nas mãos.
– Chegou mesmo agora, senhor Almirante. Do quartel-general do
Caudilho.
– Dá cá.
O outro entregou-lhe o envelope.
– Ordena mais alguma coisa, senhor?
– Nada. Podes ir.
Centeno saiu da sala. O Almirante dirigiu um rápido olhar a Falcó e abriu
o sobrescrito. Momentos depois passou os dedos pelo bigode, inclinou a
cabeça e enrugou a testa.
– Merda! – disse ele.
– Más notícias? – interessou-se Falcó.
– Depende para quem. Esta manhã, no pátio da prisão, os vermelhos
fuzilaram o José Antonio.
14

A NOITE É NEUTRA
A casa estava sem luzes, uma leve mancha clara na escuridão de um lado
da estrada. Era fácil distingui-la, apesar de não haver luar. A sombra
densa de um pequeno bosque de choupos escurecia o outro lado, entre o
asfalto e a corrente invisível do Tormes. Depois de parar o carro na berma –
tinha percorrido o último meio quilómetro com os faróis apagados –,
Lorenzo Falcó tirou a pistola de um bolso do sobretudo, e do outro um tubo
de aço cilíndrico, de um palmo de comprimento e três centímetros de
diâmetro, que ele ajustou devagar, enroscando-o com três voltas na boca da
arma. Tratava-se de um moderníssimo silenciador Heissefeldt, em utilização
apenas há três anos pela polícia secreta alemã: um complemento que
amortecia os gases do disparo, reduzindo em mais de metade o barulho
deste em troca de perder precisão para lá dos oito ou dez metros. Falcó
conseguira-o em Berlim dois meses antes, nos lavabos do Hotel Adlon, das
mãos de um subcomissário da Gestapo e como pagamento de duzentos
gramas de cocaína. Era a primeira vez que ia usá-lo numa ação real.
Sentiu vontade de fumar um cigarro, mas afastou a tentação. Não era
momento para isso. Com a pistola no colo e as mãos no volante permaneceu
imóvel durante um bom bocado, a olhar para a casa até que os seus olhos se
habituaram às sombras e conseguiu distinguir melhor os contornos, o
pequeno bosque próximo e a lista mais escura da estrada. O carro era um
Citroën 7 Pato do SNIO, cujas chaves lhe tinham sido entregues por
Centeno por ordem do Almirante – «Poderei sempre dizer que o roubaste»,
tinha comentado este com displicência. Falcó tinha o sobretudo e o chapéu
no banco do copiloto e vestia um fato de tweed escuro, com meias pretas e
sapatos cómodos muito desportivos, de solas de borracha. Um lenço de seda
dissimulava-lhe o branco da camisa. Sem gravata. Ao fim de uns momentos
apalpou os bolsos para verificar que estava tudo no sítio e não fazia
barulho: um jogo de gazuas embrulhado num lenço, dois carregadores para
a Browning com seis balas cada um, além daquele que estava na arma, e a
navalha automática no bolso direito das calças. A cigarreira, a caneta, a
carteira, o isqueiro, as cafiaspirinas e os cigarros deixou-os com o
sobretudo.
Tentou ver os ponteiros do relógio, mas com aquela escuridão tornava-se
impossível. Calculou que seriam umas duas da madrugada. Ainda esperou
um pouco mais, com os olhos atentos à noite, e por fim empunhou a pistola,
enfiou uma bala na câmara, abriu a porta e saiu. Urinou a três passos do
carro. Estava frio, ainda mais húmido e desagradável pela proximidade do
rio, de modo que levantou a gola do casaco. Avançava devagar, com a
mente vazia de tudo o que não fosse estudar o terreno que pisava, a casa
cada vez mais próxima, as sombras que inundavam o campo e o bosque. Ia
concentrado em olhar à volta, atento por instinto a um princípio
fundamental: antes de entrar num sítio era preciso saber por onde é que se
ia abandonar. Ter sempre previsto o caminho melhor; o mais curto e seguro
para depois se ir embora com discrição e rapidez, segundo o velho código
do escorpião: olha, pica e sai.
Escolheu as sombras mais espessas das árvores para se aproximar da
casa. Em frente da porta havia um gradeamento de ferro que se prolongava
num muro não muito alto. Tateou o gradeamento, que estava fechado, e
depois saltou o muro sem dificuldade, alcandorando-se de um salto para se
deixar cair do outro lado. Andou pelo meio do mato de um jardim
descuidado e chegou à parede da casa, que continuava silenciosa, sem rasto
de vida. Espero, pensou por momentos, que o Almirante não me tenha
pregado a partida. Ou que esteja enganado.
Dobrou a esquina enquanto explorava o edifício, e foi então que ouviu um
grunhido próximo e baixo, proveniente de um vulto que se movia. Um cão,
pensou ele. Arranjámo-la bonita. Oxalá esteja preso e não solto. Ficou com
os pelos eriçados ao mesmo tempo que, de modo automático, erguia a
pistola. O primeiro latido foi forte, ameaçador e pungente, a menos de um
metro. O segundo foi cortado em seco quando Falcó carregou no gatilho e a
Browning saltou na sua mão direita com um brusco retrocesso, como se
tivesse vida própria, iluminando com um breve clarão as fauces abertas, os
caninos à mostra e os olhos desorbitados do animal. O barulho do disparo,
já muito amortecido pelo silenciador, perdeu-se naquele segundo e truncado
latido, e tudo ficou em silêncio.
Falcó manteve-se imóvel, com as costas contra a parede, calculando os
efeitos do que acontecera. Depois, recuperada a calma, moveu-se com
rapidez e cautela. Podia ser que os latidos tivessem acordado alguém, se é
que havia alguém em casa. Ou podia ser que esse alguém continuasse a
dormir. Caminhou colado à parede em direção à porta principal, e nesse
momento reparou que no andar superior se iluminava uma janela. A certeza
inundou-o por fim com uma onda de tensão e prazer simultâneos, e a
pulsação que bombeava ruidosamente nos seus ouvidos, bum-bum, bum-
bum, serenou, regularizando-se até um ritmo normal. Estava tudo bem,
disse para si. Ou quase. Estava no bom caminho. Pronto para fazer o que
tinha ido fazer e assumir as suas consequências. Todas.
A entrada tinha três degraus e uma espécie de alpendre. Procurava a
gazua no bolso quando viu iluminar-se a fresta do umbral e ouviu o barulho
da fechadura acionada de dentro. Levantou a pistola, a porta abriu-se e nela,
na leve contraluz de um candeeiro elétrico de poucos watts aceso no
vestíbulo, recortou-se a silhueta de um homem. Falcó disparou à queima-
roupa; e desta vez, sem latidos que o dissimulassem, o barulho do tiro soou
como um grande bocado de madeira ao partir-se. Fez crac, e a silhueta
resvalou desamparada, sobre os joelhos, antes de cair ao chão com a cabeça
a um palmo dos sapatos de Falcó. Por momentos – uma vez mais na sua
vida – pensou que as pessoas se enganavam em relação aos que recebiam
um disparo. Era costume acreditar-se que iam para o chão fazendo gestos
dramáticos, ou levando uma mão à ferida, como nos filmes. Mas não era
assim. Na realidade, limitavam-se a desmaiar. Para sempre.
Passou por cima do cadáver – com aquela pouca luz só conseguiu ver que
vestia calças e camisa e que ia em meias – e entrou na casa com a pistola à
sua frente. O salão, iluminado pela fraca claridade do candeeiro, estava
mobilado de forma convencional. Cheirava a fechado, a mofo, a tapetes e
cortinas pouco arejadas, como os cinemas e lugares públicos. Tinha aspeto
de ser uma casa de recreio para fins de semana, certamente confiscada aos
seus donos, utilizada por gente de passagem com pouco interesse pela
limpeza. Falcó reconhecia aquele género de lugares. Era um sítio discreto
para interrogatórios e prisioneiros especiais dos homens de Lisardo Queralt,
dissera-lhe o Almirante. Discrição e impunidade garantidas. E tudo se
encaixava no relato. Ao fundo havia umas escadas que se bifurcavam para o
andar de cima e para uma cave. Falcó decidiu deixar a cave para o fim e
ocupar-se primeiro do andar de cima. Por precaução, substituiu o
carregador, onde só restavam três balas – a quarta tinha entrado
automaticamente na câmara depois do segundo disparo –, por outro com
seis. Passou os dedos pela perna das calças e voltou a empunhar a arma.
Tinha calor. A mão transpirava um pouco e o lenço de seda sufocava-lhe o
pescoço. Tirou-o, deixando-o cair.
Então ouviu uma voz, em cima. Uma interrogação masculina, mal-
humorada, que não conseguiu perceber de todo. Parecia ter pronunciado um
nome, talvez o do indivíduo que estava caído na porta. Com muita
precaução, procurando pisar primeiro com o calcanhar dos sapatos e depois
com o resto da sola, Falcó foi até às escadas, olhou para cima e viu uma
balaustrada de madeira recortada na penumbra de uma luz ali acesa, talvez a
da porta de um quarto que acabava de se abrir. Ergueu a pistola, apontando
para o buraco, e subiu muito devagar, do mesmo modo, contendo o fôlego.
Um, dois, cinco degraus. Havia um pequeno patamar e deteve-se nele,
sempre com a arma para cima. Respirou devagar, fundo, oxigenando os
pulmões, e preparou-se para continuar. Nesse momento, ouviu-se de novo a
voz masculina, uma sombra projetou-se na balaustrada e apareceu um rosto
a espreitar sobre ela. Desta vez Falcó conseguiu vê-lo bem: moreno, meia-
idade, aspeto nutrido, bigode. Estava de cuecas e de camisola de alças.
Disparou duas vezes, porque da primeira levantou lascas da balaustrada e
não tinha a certeza de ter acertado. A segundo bala fez desaparecer o
homem da vista de Falcó. Este subiu com rapidez os degraus que faltavam e
viu-o estendido de costas no chão, com os braços e as pernas abertos como
se estivesse a descansar. Tinha uma bala no peito – um buraco na camisola,
sem sangue à vista – e outro no pescoço, por onde se lhe derramava em
borbotões um jato intermitente de um vermelho intenso. Parecia morto; mas
quando Falcó chegou ao pé dele, o homem caído remexeu as pernas e
emitiu um queixume prolongado e rouco. Tinha os olhos abertos, vidrados,
fixos em Falcó. Então este agachou-se um pouco e, carregando na boca do
silenciador contra o coração do outro, a fim de silenciar ainda mais o
disparo, carregou no gatilho.
*
Foi abrindo as portas com precaução, uma a seguir à outra. Havia cinco, e
uma era a de uma casa de banho. No quarto do homem morto nas escadas
não havia mais ninguém, e o outro estava vazio. Ao fundo do corredor
havia uma porta dupla de vidro fosco, como se se tratasse do quarto
principal, e Falcó aproximou-se dela. A única luz provinha do quarto do
homem morto, que continuava a iluminar as escadas e parte do corredor.
Falcó parou diante da porta, pôs a mão na maçaneta e abriu devagar. Lá
dentro estava escuro. Com a pistola preparada na mão direita, tateou a
parede com a esquerda à procura do interruptor da luz, e quando esta se
acendeu viu Eva Rengel deitada de barriga para cima sobre um sommier do
qual tinham retirado o colchão. Encontrava-se atada ao sommier pelos
pulsos e pelos tornozelos, e estas últimas ataduras mantinham as suas
pernas muito abertas, numa postura ao mesmo tempo indefesa e obscena.
Estava nua, erguera um pouco a cabeça e olhava para ele com olhos
aturdidos, vazios, mistura de sono, desconcerto e espanto.
Reprimiu o primeiro impulso de se aproximar dela. Ainda havia outro
quarto por revistar e em baixo a cave. Tinha de se assegurar de que não
havia mais ninguém na casa. Por isso girou sobre os calcanhares para
abandonar o quarto, e ao fazê-lo quase deu de caras com um homem que
saía do quarto contíguo, descalço e a meter com uma mão a camisa nas
calças. Na outra levava um revólver, e durante dois segundos, antes de se
recompor da surpresa e agir – demasiado perto para usar a pistola com
aquele maldito tubo comprido –, Falcó pensou que se houvesse mais
esbirros de Lisardo Queralt na casa, tudo podia muito bem estar a ir por
água abaixo. Com aquele terceiro adversário acabava de tocar no limite.
Das suas possibilidades.
– Mas que merda...? – começou a dizer o homem.
Olhava para ele com os olhos muito abertos, desconcertado, ainda
sonolento. Era magro, moreno, com pelinhos da barba meio crescidos a
escurecer-lhe o queixo. E bastante forte, advertiu Falcó desolado quando, ao
bater-lhe no pulso para fazer soltar o revólver, encontrou a resistência de
um braço musculoso. Consciente de que nada havia a fazer com a pistola,
deixou-a cair, continuou a procurar com a mão esquerda que o outro
largasse a arma, e utilizou a direita para agarrar com força o inimigo pela
nuca, o tempo preciso para lhe segurar a cabeça enquanto lhe desferia uma
violenta cabeçada na cara. Ouviu-se bastante, croc, com um estalar de ossos
e cartilagens a partirem-se, e o outro retrocedeu tropeçando desajeitado,
esbracejando para manter o equilíbrio enquanto um jato de sangue lhe
brotava instantaneamente do nariz, que parecia agora torto para o lado, de
um modo grotesco. Mas não largava o revólver, por isso Falcó atacou de
novo com a urgência do desespero, sabendo que se aquele cano se virasse
para ele, as suas oportunidades eram mínimas. Felizmente, o adversário
estava descomposto devido à pancada e ao sangue, tão aturdido que não
opôs demasiada resistência quando Falcó lhe deu uma joelhada numa coxa
junto à cabeça do fémur, fazendo-o cair ao chão, e se atirou para cima dele.
O disparo do revólver ouviu-se muito perto do lado esquerdo das costas
de Falcó, que por momentos, ensurdecido pelo estrondo, julgou que
acabava de levar com uma bala no corpo. Mas não sentia nada, nem sequer
a queimadura do disparo. Só o cheiro áspero da pólvora. Por isso, voltou a
bater na cara do homem caído, sistematicamente, desta vez com o punho
direito fechado, de cima para baixo, procurando sempre acertar no nariz
maltratado, até que o outro começou a urrar que nem uma besta e depois de
forcejar soltou o revólver. Então, apertando-o pela garganta com uma mão,
Falcó procurou a navalha automática no bolso das calças, carregou no botão
e quando a lâmina se abriu pôs a ponta debaixo do queixo do seu inimigo.
Adivinhando o que ia acontecer, os olhos desorbitados deste olharam para
ele com horror no meio do sangue que lhe tingia o rosto. Depois Falcó
enfiou a lâmina com um golpe seco, para cima, e saltou-lhe para a cara um
jato de sangue cuspido.
*
Secou o rosto com a fralda da camisa do morto, limpou a navalha e
voltou a metê-la no bolso. Após uns momentos utilizados para recuperar a
lucidez e as forças, levantou-se sobre o corpo imóvel, pegou na pistola,
tirou-lhe o silenciador – o disparo do revólver liquidava já toda a esperança
de discrição – e guardou-o num bolso do casaco. Encontrava-se de costas
para a porta iluminada do quarto onde estava a mulher, e deliberadamente
não quis olhar para trás. Iria ter tempo para isso. O urgente agora era
assegurar-se de que não havia mais ninguém na casa, por isso desceu à cave
e deu uma vista de olhos. Não era um lugar agradável; até se parecia muito
com o quarto da checa de Alicante onde os vermelhos o tinham interrogado
a ele. Na realidade, pensou, todos os quartos de interrogatório do mundo se
pareciam. Estivera em vários deles, tanto de um lado como do outro das
perguntas, e era fácil reconhecê-los: a cadeira onde sentavam os
prisioneiros, a mesa a que eram atados, os cassetetes, os vergalhos para
tareias e outros instrumentos de tortura. Aquela cave, em particular, tinha
dois grandes focos agora apagados, orientáveis para a cadeira de
interrogatórios para encandear o eventual prisioneiro. O cinema de
gângsters de Hollywood dava boas ideias. Em cima da mesa havia um
cinzeiro repleto de beatas velhas, e num canto do quarto, um balde sujo e
malcheiroso com o que pareciam ser vómitos – Falcó estremeceu pensando
que seriam de Eva Rengel – sob um retrato do Caudilho e uma bandeira
nacional vermelha e amarela espetada com pioneses na parede.
De regresso ao rés do chão, foi até à porta, agarrou pelas pernas o cadáver
atravessado no umbral e meteu-o em casa, traçando um longo rasto de
sangue no chão. Deixou-o assim, de barriga para baixo como estava, sem
olhar sequer para o seu rosto. Depois fechou a porta. Tinha a boca tão seca
como se lhe tivessem esfregado a língua, gengivas e palato com um
esfregão, por isso foi até à cozinha. Encontrou uma garrafa de conhaque, a
que não ligou, e outra de vinho ao pé de uma lata de manteiga holandesa e
uns bocados de pão. Verteu vinho num copo grande, misturado com água da
torneira, e bebeu-o sem respirar, com verdadeira ânsia. Depois dirigiu-se ao
andar superior. Os outros dois cadáveres estavam no corredor, um junto à
balaustrada e o outro ao fundo, perto da porta de vidros foscos do quarto
principal. O da camisola de alças – tinha agora um charco de sangue
debaixo dele, à vontade cinco litros que pingavam pelos primeiros degraus
da escada – levava ao pescoço uma corrente de ouro com uma medalha do
Sagrado Coração. Tinha os olhos entreabertos e cara de estupefação, como
se antes de morrer tivesse pensado que aquilo não podia estar a suceder-lhe
a ele. Costumava acontecer. Quanto ao outro, não tinha qualquer expressão,
pelo menos visível, porque o seu rosto era uma máscara vermelha. Falcó
perguntou a si mesmo quantos deles, se não mesmo todos, tinham violado
Eva Rengel. Entrou nos quartos, revistou as carteiras dos mortos – eram
agentes da Direção de Polícia e Segurança – e guardou os documentos de
um com quem tinha uma certa parecença física. Nunca se sabe, pensou ele,
e há controlos e fronteiras onde todos os gatos podem ser pardos. Também
lhes tirou o dinheiro. Em cima de uma mesinha de cabeceira havia um maço
de Ideales e um isqueiro, e então sentou-se em cima dos lençóis enrugados
pelo homem que tinha matado e fumou durante cinco minutos, sem pressa.
Com a mente em branco. Por fim deixou cair a beata no chão, esmagou-a
com um pé e levantou-se, a caminho do quarto principal.
*
Cortou as ataduras de Eva Rengel com a navalha e cobriu-a com uma
manta. A jovem olhava para ele sem dizer uma palavra, e só emitiu um leve
queixume quando a manta lhe roçou nas queimaduras de cigarro que tinha
nos seios. Estava muito pálida, e isso fazia ressaltar mais as marcas de
pancadas que tinha na cara e no resto do corpo. Ao tocar na pele nua, Falcó
reparou que estava fria, coberta por uma fina camada de humidade; um suor
pouco percetível que parecia gelar cada um dos seus poros. Sob o tecido
espesso da manta tremia como se acabassem de a tirar de um banho de gelo.
Tinha o lábio inferior meio rachado, com uma grossa crosta de sangue, as
pálpebras inchadas e círculos violáceos sob os olhos. Cheirava a urina e a
sujidade. Com aquele cabelo curto e louro, que o suor frio fazia parecer
molhado, parecia ainda mais indefesa e mais nova.
– Não podemos ficar aqui muito tempo – disse Falcó.
Ela olhava para ele como se tivesse dificuldade em reconhecê-lo. Por fim
pestanejou, aturdida. Parecia uma afirmação. Depois de refletir por
momentos, Falcó desceu ao rés do chão e regressou com a garrafa de
conhaque, com a de vinho e com a lata de manteiga que tinha visto na
cozinha. Depois sentou-se no sommier e com muito cuidado verteu algumas
gotas de conhaque na boca da jovem. Esta recusou com a cabeça a
princípio, mas ele insistiu e fez com que bebesse um golo até que ela gemeu
de novo pelo ardor da ferida do lábio. Então Falcó retirou um pouco a
manta e lavou-lhe a ferida e os seios com conhaque diluído em vinho,
aplicando depois manteiga sobre as queimaduras. Sentia o tempo todo os
olhos dela fixos nele.
– Demoraste muito – articulou ela com dificuldade. A sua voz era fraca e
rouca ao mesmo tempo. Devia, concluiu ele, ter gritado muito.
– Não estava previsto – respondeu.
– Não... Não estava.
Falcó olhou em volta. Havia roupa da jovem num monte, no chão.
Levantou-se para a apanhar.
– Vais conseguir caminhar?
– Não sei.
– Tens de tentar.
Retirou a manta e começou a vesti-la com muito cuidado. Tinha
hematomas na cara, no ventre e nas coxas, e restos de sangue seco no meio
dos pelos púbicos. A roupa estava suja e muito enrugada, a blusa rota e as
meias imprestáveis, mas não encontrou outra coisa. Tinham-na trazido
assim da residência da Secção Feminina, sem mala. Sem mais nada a não
ser o que levava vestido. Nem um sobretudo havia. Ajudou-a a levantar-se
um pouco e vestiu-lhe a combinação e a saia. Às vezes ela emitia um
queixume surdo, baixo, contido.
– Quantos é que mataste? – perguntou ela de repente.
– Três.
– Eu só vi dois. Interrogaram-me... dois.
– Tanto faz. Agora já são três.
Aquilo deu-lhe uma ideia. Foi procurando pelos quartos e regressou com
uma camisa de homem e umas peúgas razoavelmente limpas. Sentou a
jovem na beira do sommier, tirou-lhe a blusa rota e acabou por vesti-la com
aquilo. Acrescentou o sobretudo de um dos mortos, o mais magro, e um
chapéu masculino de feltro.
– Temos de ir.
Ajudara-a a pôr-se de pé, segurando-a enquanto ela dava uns passos
desajeitados, com o rosto crispado de dor pelo regresso da circulação às
suas pernas inchadas.
– Tenho um carro ali em baixo... Consegues chegar lá?
– Acho que sim.
– Então vamos. Com cuidado, pouco a pouco... Apoia-te mais em mim. É
isso... Muito bem.
A jovem repousava a cabeça no ombro de Falcó.
– Para onde é que me levas?
Ele fez um gesto ambíguo.
– Para longe.
Passaram junto dos dois mortos do corredor, desceram as escadas muito
devagar e chegaram ao rés do chão. Quando se aproximaram da porta, ela
olhou para o corpo estendido no chão e para o rasto de sangue que ia até à
rua.
– Porque é que fazes isto?
Falcó continuava a segurá-la pela cintura. Tinha aberto a porta e metido a
mão no bolso da pistola enquanto perscrutava a escuridão, tentando
adivinhar se ela escondia novas ameaças. Mas tudo parecia calmo.
– Para apagar o sorriso – respondeu ele – a um miserável.
*
Conduziu durante todo o resto da noite com Eva Rengel adormecida no
banco de trás, protegida do frio com o casaco do morto e com o de Falcó.
Este manobrava o volante mantendo-se acordado enquanto fumava cigarro
atrás de cigarro, com os faróis do automóvel a iluminar as cintas brancas
pintadas nas árvores e o brilho no seu rosto, com o duro perfil marcado na
penumbra da cabina. Conduzia seguro, mudando as velocidades e atento ao
volante. Conhecia bem aquele percurso. Por isso, de vez em quando
desviava-se por estradas secundárias, caminhos de terra batida entre os
campos sombrios, a fim de evitar povoações e controlos militares. Às vezes
abria um termo que levava no banco ao lado para beber um golo de café já
quase frio. Percorreu assim cento e trinta quilómetros em cinco horas até à
fronteira, parando a dois terços do caminho para encher o depósito com três
latas de gasolina com que se precavera no porta-bagagens. Eva Rengel não
acordou enquanto ele o fazia, pois repousava num sono longo e profundo –
ele tinha-lhe dado aspirinas para mitigar a dor – só alterado por gemidos
breves, entrecortados. Parecia uma menina com pesadelos, e Falcó supôs
que no sonho ainda se via atada ao sommier naquela casa.
Chegaram à fronteira quando o céu se abria numa linha avermelhada do
lado da Espanha que deixavam para trás. Era um posto secundário: uma
pequena ponte sobre o rio Douro sem outro tráfego habitual para além de
contrabandistas e gente das povoações vizinhas. Aquele momento era o
mais temido por Falcó, embora para sua surpresa tudo tenha sido
inesperadamente fácil. O cartão do SNIO e o passaporte, autênticos, e o
documento falsificado em que o próprio Falcó datilografara uma ordem do
quartel-general para se dirigir com urgência a Portugal, a acompanhar uma
pessoa cujo nome devia manter-se secreto, agiram como eficaz salvo-
conduto perante o bigodudo e sonolento cabo da Guarda Civil, chefe do
posto, que com a primeira claridade da aurora se aproximou para verificar a
identidade dos viajantes. Certamente que o cabo estava habituado a tráfegos
estranhos, e mais ainda naqueles tempos, com refugiados e contrabandistas
a ir e vir continuamente. Falcó nem sequer teve de recorrer às quinhentas
pesetas com que vinha prevenido como segundo argumento – o terceiro era
a pistola, na qual voltara a colocar o silenciador. Depois de olhar para os
documentos, o outro limitou-se a devolver-lhos, fazer continência com uma
mão no verniz do tricórnio e levantar a barreira. Do lado português, que
ficava a uma centena de metros depois da ponte, o guarda da alfândega nem
sequer olhou para os papéis. Limitou-se a meter o dinheiro no bolso
enquanto esfregava as remelas e voltava para a sua guarita.
*
A luz opaca rasgou-se subitamente entre algumas nuvens baixas,
tornando-se esplêndida como um raio de sol horizontal que iluminou o
sorriso cansado e tranquilo de Falcó, o seu queixo por barbear e as
pálpebras semicerradas perante a claridade nascente. Estava apoiado no
capô do carro, imóvel, a ver amanhecer. Tinha o chapéu atirado para trás, a
lapela do casaco subida e as mãos nos bolsos. Junto à estrada prolongava-se
o muro de pedra de uma represa, e do outro lado, além de umas quantas
azinheiras dispersas, havia touros pretos e brancos deitados no chão ou a
pastar. Falcó olhou para as nuvens distantes, para o céu que ia ficando
azulado sobre os prados verdes e fechou os olhos por alguns momentos,
satisfeito. Ia ser, pensou ele, um belo dia.
Ouviu a porta do carro, e quando se virou para olhar, Eva Rengel estava
ao seu lado. O sobretudo ficava-lhe grande e ela segurava-o no peito com as
mãos e por baixo via-se os sapatos com as meias do homem morto.
Continuava pálida, mas parecia ter recuperado a vida.
– Deixa-te estar lá dentro – disse ele. – Ainda estás muito fraca.
– Estou bem aqui.
Foi apoiar-se no capô, ao lado dele. Falcó tirou a cigarreira e ofereceu-lhe
um cigarro, mas ela recusou com a cabeça.
– Há uma venda a oito ou dez quilómetros – disse ele com naturalidade. –
Poderemos tomar lá o pequeno-almoço.
– Está bem.
Ficaram um bocado calados, roçando ombro com ombro, acariciados pela
luz cada vez mais intensa e cálida.
– O que é que vais fazer comigo agora? – disse ela por fim.
– Nada – Falcó fez um gesto indiferente. – Estaremos em Lisboa à tarde.
– Ah.
Voltou-se para a observar.
– Tens lá gente conhecida?
Ela mantinha a vista na represa. Nos animais que se moviam devagar
perto das azinheiras.
– Devo conhecer alguém, claro – respondeu ela em voz baixa.
Falcó observou o seu rosto abatido, os olhos vermelhos de cansaço e
irritados pelas pancadas, o lábio meio rachado. Era surpreendente, pensou,
que as pernas ainda a aguentassem. Depois do tratamento de urgência tinha-
lhe posto sobre a ferida da boca um bocadinho de papel de cigarro em jeito
de curativo; mas agora, ao falar, a ferida abrira-se de novo e escorria-lhe um
fiozinho de sangue pelo queixo. Falcó tirou um lenço e secou-lho com
delicadeza, sentindo agora o olhar da jovem fixo nele.
– Tens de ser vista por um médico.
– Suponho que sim.
Falcó pôs um Players na boca, acendeu-o e fumou em silêncio. Foi Eva
Rengel quem ao fim de um bocado falou outra vez.
– Cada um tem as suas lealdades – disse ela com suavidade.
– Claro.
– De qualquer forma, eu nunca soube muito bem quais são as tuas.
Falcó sorriu, com os olhos semicerrados e o cigarro na boca.
– Ontem à noite soubeste.
Ela ficou calada por um momento.
– É verdade – murmurou ela por fim.
Remexeu-se um pouco, dorida. Tinha levado um dedo ao lábio e olhava
para ele manchado de sangue.
– Agora também conheces as minhas – murmurou ela, melancólica.
Falcó continuava a olhar para o brilho do horizonte. Era mais intenso e
feria-lhe a vista. Afastou os olhos.
– Em assuntos militares é vergonhoso dizer «não tinha pensado nisso» –
recordou.
Ela sorria levemente, mas não disse nada.
– Estavas lá, atrás de mim – acrescentou Falcó. – Na checa de Alicante.
Quase ouvi a tua voz.
A rapariga demorou a responder.
– Talvez.
– E porque é que disseste para me soltarem?
– Não sei... Ou sei. Não era necessário que morresses. Não daquele modo,
pelo menos.
Falcó deixava sair o fumo pelo nariz.
– Somos peões num jogo de outros.
– Tu – corrigiu-o ela. – Eu, sim, tenho fé... Acredito no que faço.
– Ena! És uma afortunada.
Ouviu-a rir baixinho, sardonicamente. Um riso muito pouco feliz.
– Hoje não me sinto nada afortunada.
– Podias ter morrido. E o que é pior, morrer devagar.
– Todos os dias morrem muitos pássaros e borboletas. – Ela contemplava
a paisagem. – Também muitos seres humanos.
– Como os irmãos Montero e os outros – referiu ele com má intenção.
Viu-a encolher os ombros com naturalidade.
– Sim.
Agora olhavam um para o outro. Não era tão bonita naquele momento,
pensou ele. Com aquele corpo torturado e a imensa fadiga que lhe criava
bolsas nas pálpebras. O rosto da mulher que seria daqui a vinte anos.
Pensou na sua carne quente e húmida da noite do bombardeamento e sentiu
uma estranha ternura. Pena e ternura. Desesperadamente, procurou algo que
atenuasse aquele sentimento.
– Mataste o Portela sabendo que era inocente – disse ele, seco.
Ela fez um gesto neutro.
– Tinha de me assegurar perante ti e os outros – respondeu com calma. –
Além disso, ninguém é inocente. Talvez as crianças e os cães. E quanto às
crianças não tenho a certeza. Acabam sempre por crescer.
– Porque é que lutas, então? Não é um tipo de vida...
Olhou para ele quase com desprezo.
– Um tipo de vida?
– Claro. Esta suja Europa de fronteiras perigosas, manifestações vigiadas
pelas carabinas da polícia, tiroteios nas esquinas, polícia de choque,
comícios de rua e cervejarias que cheiram a fumo e a suor, onde se conspira
em voz baixa para assaltar estações de rádio, ministérios e centrais
telefónicas...
– Vês tudo assim tão sórdido?... Eu vejo luminoso.
Continuava a observá-lo, crítica. Superior.
– Não é vida para uma mulher, queres tu dizer? – acrescentou ela de
repente.
Falcó não respondeu. Deu uma última passa e atirou a beata para longe,
impulsionada pelo polegar e pelo indicador. O sol já ia alto, iluminando
com intensidade o gado, os prados e as azinheiras. Refletia-se nos vidros do
carro.
– Aproxima-se a hora – comentou ela. – Tudo vai ser derrubado para ser
construído de novo. Vêm aí tempos de caos – sorriu, irónica. – De barulho e
de fúria.
– E depois?
– Não sei. Embora duvide que alguns de nós consigamos ver o depois.
– Esse toque trágico... O teu pai russo?
Tinha acompanhado o comentário com uma expressão sarcástica de que
ela não parecia gostar. Ou talvez fosse a alusão ao pai. Olhava para ele meio
desconfiada meio surpreendida.
– Falaram-me de ti – disse ele, como justificação.
Acentuou-se a desconfiança.
– Quem?
– Não interessa quem... Disseram que escolheste de que lado estavas
ainda muito nova.
Ela não disse nada. Voltou a tocar no lábio ferido e a olhar para o dedo. Já
não sangrava, observou Falcó.
– O que é que te levou a isso? – quis ele saber.
A jovem demorou uns instantes a dar uma resposta.
– A princípio – disse ela – foram intelectuais de café que me explicavam
as leis do materialismo histórico, a mais-valia e a ditadura do proletariado
ao mesmo tempo que tentavam ir para a cama comigo antes de voltarem a
embalar-se, satisfeitos, nos braços da sua própria classe... Nada tinham em
comum com eles, por isso procurei outros homens e mulheres: os
silenciosos. Os que agem... Os que, entre outras coisas, caçam esses
estúpidos teóricos que não renunciam, no fundo, a ser pequeno-burgueses
com pretensões.
– Referes-te ao NKVD. A Administração de Tarefas Especiais.
Olhou para ele outra vez com surpresa, ainda mais desconfiada do que
antes, como se ouvir aquele nome na boca dele fosse algo inesperado e
perigoso. Ao fim de uns instantes, moveu a cabeça com aparente
indiferença.
– É necessário um braço de aço do comunismo internacional... Soldados
para uma guerra imensa, justa e inevitável. – Olhou para ele com
significativa frieza. – Sem concessões e sem sentimentos.
Houve um silêncio.
– De acordo – disse Falcó, por fim. – Contador a zeros... Tu e eu estamos
quites, então.
Ela suspirou, e o suspiro saiu-lhe do peito como um melancólico e suave
gemido.
– Sim – murmurou ela. – Estamos quites.
15

EPÍLOGO
L orenzo Falcó só se encontrou com o Almirante duas semanas depois. E
foi de modo inesperado. Encontrava-se à porta do Hotel Palácio do
Estoril, em frente ao casino onde na noite anterior tivera bastante sorte
dobrando a aposta, com tenacidade e uma certa ousadia, no vermelho e no
negro na roleta. Estava uma manhã fresca, soalheira e agradável, e Falcó
tinha decidido dar um passeio antes de almoçar num restaurante da vizinha
praia do Tamariz, onde combinara encontrar-se com um informador.
Tratava-se de um assunto banal: um simples controlo rotineiro de descarga
de material militar, camuflado como civil, de um barco holandês amarrado
no porto de Lisboa. Durante aquelas semanas, por instruções do chefe do
SNIO, Falcó tinha mantido um perfil baixo, discreto, sem complicar muito
a vida. De Salamanca quase não haviam chegado notícias; só ordens e
algum dinheiro para gastos. E agora, quando saía do hotel com um
Borsalino cinzento pérola estudadamente inclinado sobre o olho direito, viu
o Almirante sair de um automóvel no meio dos vários estacionados no
parque. O motorista abriu a porta, e o Almirante, à civil com fato e chapéu
escuro, guarda-chuva e botins cinzentos, deixou o carro e caminhou até à
entrada do hotel. Então, Falcó deu meia-volta e foi ao seu encontro.
– Bom dia, senhor Almirante.
– Foda-se, o que raio é que fazes aqui?
– Estou aqui hospedado.
– Desde quando?... Julgava-te em Lisboa.
– Nada, só passo aqui dois dias.
– Estou a ver.
O Almirante tinha-se mostrado desagradado depois de olhar para o casino
e para duas mulheres elegantes e atraentes que saíam do hotel. Depois olhou
para o lenço cujas pontas espreitavam pelo bolso superior do casaco de
Falcó, desconfiado, como se esperasse ver nele manchas de batom. Este
sorriu.
– Combinei encontrar-me com uma pessoa – justificou-se. – A questão do
Alkmaar.
– Ah, sim. Esse barco... Algum problema?
– Nenhum. Corre tudo sobre rodas.
– Fico contente.
Ficaram a olhar um para o outro, Falcó indeciso, sério o Almirante.
Tinha, disse ele com desânimo, uma reunião importante no hotel: D. Juan
de Bourbon, alguns conselheiros seus e gente do círculo monárquico. Como
príncipe das Astúrias, o filho de Alfonso XIII pretendia ir para Espanha e
alistar-se nas tropas nacionais. Ato patriótico e etecetera. A missão do
Almirante era dissuadi-lo com muito tato. Não embrulhar as coisas. Com os
falangistas descabeçados e o filho do destronado rei no exílio, Salamanca
estava muito mais calma enquanto o Caudilho assegurava o seu poder
absoluto.
– Então e relativamente a mim? – perguntou Falcó.
O olho de vidro desviou-se do saudável. Depois os dois convergiram em
Falcó.
– Ainda tenho tempo. – O Almirante tirara um relógio de ouro, com
corrente, de um bolsinho do colete. – Vem... vamos dar um passeio.
Foram andando pelo caminho de gravilha que entrava pelo parque,
debaixo das palmeiras.
– Depois... bom, do que tu fizeste, o Queralt passou vários dias a pedir o
teu escalpe aos gritos.
– Ninguém pode provar que fui eu. Nem o senhor pode.
Acariciando o bigode, o Almirante balançava o chapéu de chuva.
– Foi isso mesmo que eu disse quando o Nicolás Franco nos convocou
aos dois para esclarecer as coisas. Mas o evidente tornava-se impossível de
ocultar... – O olho saudável voltou a entrar em ação. Tinhas mesmo de
complicar tudo daquela maneira, animal? Três polícias e pais de família?
Falcó não disse nada. Era difícil responder àquilo de uma forma razoável.
Além disso, ninguém esperava resposta. O outro olhava para ele de lado,
com irritação.
– Aguentei a bátega o melhor que pude – prosseguiu ele. – Ao fim e ao
cabo, eu tinha umas quantas cartas na manga, e pouco a pouco consegui ir
dando a volta à coisa. Demonstrei que seria uma jogada do próprio Queralt
para fazer a cama ao SNIO; e para minha surpresa, o irmão do Caudilho
aparentou levar isso em conta. Suponho que tenta trazer os dois serviços
controlados, de uma forma ou de outra, e tudo isto lhe calha bem para jogar
com isso. Pau e cenoura.
– Não perguntaram porque é que eu saí de Salamanca?
– Pois claro que perguntaram. Várias vezes e com muito maus modos. E
ali estava eu, a preparar-me para me deixar ir com a tempestade. A cagar
mentalmente para os teus mortos.
– Sinto muito.
– Sentir? Mas tu sentes o quê?!... Tu não sentes um caralho, homem. Faz-
me o favor de não me tomares por um idiota.
Pararam diante de um dos bancos de madeira do parque, entre as meias
rotundas. O Almirante experimentou-o com a biqueira do guarda-chuva,
como se verificasse a sua solidez. Depois tirou um lenço para limpar o
banco.
– Enfim. Quando aqueles dois perguntaram porque é que tinhas zarpado,
se não tinhas nada a ver, disse que era porque um passarinho te dissera que
o Queralt também te queria liquidar. E pronto. A coisa ficou assim.
Sentara-se com o guarda-chuva entre as pernas e as mãos cruzadas sobre
o punho de cana. Convidou Falcó, com um gesto, a fazer o mesmo; e este,
obediente, tirou o chapéu e foi sentar-se ao seu lado.
– Por fim – continuou o Almirante a contar –, depois de muito discutir e
de muita bronca, com Nicolás Franco como árbitro, concordámos com a
versão oficial... Uma espia soviética tinha-se infiltrado na operação de
Alicante, o Queralt deitou-lhe a unha com muita eficácia, mas ela fugiu
durante os interrogatórios, matando perfidamente três polícias. Ponto final.
Fim da história.
– E eu?
– Tu deste à sola porque eu mesmo te preveni; e estás num lugar
indeterminado, a cumprir o teu dever patriótico de espião e meu
subordinado. Ou seja, a colaborar com fervor no novo amanhecer de
Espanha.
– Não haverá mais consequências? – surpreendeu-se Falcó.
O outro dirigiu-lhe um olhar turvo.
– Eh pá... Se o pessoal do Queralt conseguir deitar-te a unha, vão fazer de
maneira a que pagues caro. Quanto a isso, não tenhas dúvidas. Mas para
efeitos formais, todos amigos. Já sabes como são estas coisas das amizades.
– Sim, já sei.
O Almirante tirou o chapéu, passando a mão pelo cabelo grisalho. Olhava
para uns meninos que brincavam ali perto, a empurrar um arco, vigiados
pelas suas amas.
– Durante uma temporada – disse ele dali a instantes – defende-te não só
dos agentes vermelhos mas também dos nossos. Como precaução.
Pôs o chapéu e continuou a olhar para os meninos, com o queixo apoiado
no punho do guarda-chuva.
– Sabem alguma coisa dela? – decidiu-se Falcó perguntar por fim.
– Nem rasto. Pensei que tu saberias alguma coisa.
Falcó não voltara a ver Eva Rengel. E assim o disse. Depois de atravessar
a fronteira, numa venda da estrada que tinha telefone, ela fizera uma
chamada. Falcó não sabia a quem. Tinha intenção de a levar até Lisboa, mas
ela pediu que a deixasse em Coimbra, em frente da estação de comboios.
– Não entrou para nenhum comboio. Havia um carro à espera dela com
duas pessoas lá dentro, mas não lhes vi a cara. Limitou-se a sair do nosso
carro e a ir com eles.
– Assim, sem mais nem ontem... – O Almirante estava espantado. – Sem
te dizer nada?
– Pois não. A verdade é que não disse nada. Saiu e afastou-se sem se
virar.
– E deixaste-a ir, assim tranquilamente?
– Diga-me que outra coisa é que eu podia fazer.
O olhar do outro tornou-se desconfiado. Fez uma expressão desagradável.
– Não acredito.
– Dou-lhe a minha palavra.
– A tua palavra vale uma merda.
Ficaram calados outro bocado. O Almirante continuava com o queixo
apoiado no punho do guarda-chuva. Tamborilava com os dedos nele. Por
fim, virou-se para olhar com curiosidade para Falcó.
– A sério... Não voltaste a vê-la nem a saber nada dessa mulher?
– É como lhe estou a dizer.
– Depois da proeza que fizeste?
– Estávamos quites. Ela e eu.
O Almirante largou uma gargalhada sardónica. Quase teatral.
– Puseste Salamanca de pernas para o ar por essa cadela bolchevique.
– Não foi por ela, senhor Almirante.
– Pois. – Agora o outro ria-se entre dentes, malévolo. – Pelo sorriso do
Lisardo Queralt...
– É isso.
– Não me chateies, homem. Não pôde ter sido só por isso.
– Tanto faz.
Com ar resignado, o Almirante tornou a olhar para o relógio e pôs-se com
dificuldade em pé.
– Daqui a duas semanas tudo terá voltado à normalidade, dentro do
possível... Pelo menos no que se refere a ti. Estão a chegar alemães e
italianos aos montes, mas os vermelhos aguentam bem. Eles têm as suas
brigadas internacionais e os soviéticos por trás.
Falcó também se tinha levantado. Pôs o chapéu.
– Vai ser longo, não é verdade?
– Muito. E tu continuas a fazer-me falta. Seria bom que para já voltasses
ao sul de França, para te infiltrares entre os que lá estão à procura de ajuda
para a República. Em Biarritz também há casino.
Caminharam de regresso ao hotel, debaixo das palmeiras.
– É verdade que não voltaste a vê-la? – insistiu o Almirante.
Falcó semicerrou os olhos. Recordava Eva Rengel a afastar-se em frente
da estação de Coimbra, envolta naquele sobretudo do homem morto que lhe
ficava grande. Não era verdade que ela não se tivesse virado para olhar para
trás. Fê-lo uma única vez, antes de entrar no carro que a esperava. Parou,
séria, sem um sorriso, e olhou para ele um bom bocado antes de desaparecer
da sua vista e da sua vida.
– Não, Almirante. Não voltei a vê-la.
– Bom. Nunca se sabe, não é?... Estão no mesmo negócio e o mundo é
pequeno. No fim, todos acabamos por tropeçar em todos continuamente.
Poderá acontecer que a encontres outra vez, não sei onde.
– Sim. Poderá acontecer.
O Almirante soltou um grunhido. Olhou novamente para o relógio e
parou. O olho saudável cintilava, irónico.
– Pois então, se como dizes já estão quites, procura que dessa vez não te
mate ela a ti. Pelo menos enquanto continuares a ser-me útil.
– Tentarei, senhor Almirante. – Falcó ergueu três dedos juntos, como os
escuteiros. – Prometo que tentarei.
– Só ganhas com isso, meu farsante... E agora, desaparece.
Apontava com o guarda-chuva, mal-humorado, para um ponto
indeterminado do horizonte. Falcó deu um exagerado bater de tacões
marcial e inclinou a aba do chapéu, garboso. Sorria como um rapaz travesso
perante um professor benévolo.
– Às suas ordens, Almirante.
E qualquer mulher teria ficado presa naquele sorriso.
Estoril,
abril de 2016

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