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COMBOIOS NOTURNOS
A mulher que ia morrer estava a falar há dez minutos na carruagem de
primeira classe. A sua conversa era banal, intranscendente: a temporada
em Biarritz, o último filme de Clark Gable e Joan Crawford. Só referira a
guerra de Espanha de passagem, em duas ocasiões. Lorenzo Falcó ouvia-a
com um cigarro meio consumido entre os dedos, uma perna cruzada sobre a
outra, procurando não pressionar demasiado o vinco das calças de flanela.
A mulher estava sentada junto à janela, por onde a noite desfilava, e Falcó
encontrava-se no extremo oposto, junto à porta que dava para o corredor da
carruagem. Estavam sozinhos no compartimento.
– Era Jean Harlow – disse Falcó.
– Desculpe?
– Harlow. Jean... A de Mares da China, com Gable.
– Oh.
A mulher olhou para ele sem pestanejar, três segundos mais do que o
habitual. Todas as mulheres concediam a Falcó pelo menos esses três
segundos. Ele ainda a estudou durante uns instantes, apreciando as meias de
seda com costura, os sapatos de boa qualidade, o chapéu e a mala no banco
contíguo, o vestido elegante da Vionnet que contrastava um pouco, aos
olhos de um bom observador – e ele era-o – com o físico vagamente vulgar
da mulher. A afetação também era um indício revelador. Ela tinha aberto a
mala e retocava lábios e sobrancelhas, aparentando umas maneiras e
educação que na verdade não tinha. A cobertura dela era racional, concluiu
Falcó. Elaborada. Mas muito distante de ser perfeita.
– E o senhor também vai para Barcelona? – perguntou ela.
– Sim.
– Apesar da guerra?
– Sou um homem de negócios. A guerra dificulta a uns e facilita a outros.
Uma fugaz sombra de desprezo, imediatamente reprimida, toldou os
olhos da mulher.
– Compreendo.
Três carruagens mais à frente, a locomotiva emitiu um longo apito, e o
matraquear dos bogies intensificou-se quando o expresso entrou numa
curva prolongada. Falcó olhou para o Patek Philippe no seu pulso esquerdo.
Faltava um quarto de hora para que o comboio parasse cinco minutos na
estação de Narbonne.
– Desculpe – disse ele.
Apagou o cigarro no cinzeiro do braço do seu banco e pôs-se de pé,
alisando as abas do casaco depois de ajustar o nó da gravata. Deu uma
pequena olhadela à mala de pele de porco usada que estava com o chapéu e
a gabardina na rede para a bagagem por cima da sua cabeça. Não tinha nada
lá dentro, exceto uns livros velhos para lhe dar um pouco de peso aparente.
O necessário – passaporte, carteira com dinheiro francês, alemão e suíço,
um tubo de cafiaspirinas, cigarreira de tartaruga, isqueiro de prata e uma
pistola Browning de calibre 9 mm com seis balas no carregador – trazia-o
consigo. Levar o chapéu podia despertar as suspeitas da mulher, por isso
limitou-se a pegar na gabardina, dirigindo um pesado e silencioso adeus ao
impecável Trilby de feltro castanho.
– Com licença – acrescentou, abrindo a porta de correr.
Quando olhou para a mulher pela última vez, antes de sair, esta tinha
virado o rosto para a noite exterior e o seu perfil refletia-se no vidro escuro
da janela. Falcó dedicou o último olhar às suas pernas. Eram bonitas,
concluiu ele, equânime. O rosto não era grande coisa e devia muito à
maquilhagem, mas o vestido moldava formas sugestivas e as pernas
confirmavam-nas.
No corredor havia um homem de baixa estatura, vestido com um
sobretudo de pelo de camelo, sapatos de duas cores e um chapéu preto de
aba muito larga. Tinha os olhos saídos e uma vaga parecença com o ator
americano George Raft. Quando Falcó parou a seu lado com ar casual,
sentiu um cheiro intenso a gel para o cabelo misturado com perfume de
água de rosas. Quase desagradável.
– É ela? – sussurrou o homenzinho.
Falcó confirmou ao mesmo tempo que tirava a cigarreira e punha outro
cigarro nos lábios. O do sobretudo fez um trejeito com a boca, que era
pequena, rosada e cruel.
– De certeza?
Sem responder, Falcó acendeu o cigarro e continuou o caminho até ao fim
da carruagem. Ao chegar à plataforma virou-se para olhar para trás, e viu
que o indivíduo já não estava no corredor. Fumou apoiado na porta da casa
de banho, imóvel junto ao fole que unia a carruagem à seguinte, ouvindo o
matraquear ensurdecedor das rodas nos carris. Em Salamanca, o Almirante
tinha insistido muito em não ser ele a resolver a parte tática do assunto. Não
queremos queimar-te, nem arriscar nada se alguma coisa correr mal, fora o
ditame. A ordem. Essa mulher viaja de Paris para Barcelona, sem escolta.
Limita-te a encontrá-la e identificá-la e depois sai de cena. Paquito Araña
encarregar-se-á do resto. Já sabes. Com o seu jeito subtil. Ele dá-se bem
com esse tipo de coisas.
Ouviu-se novamente o apito à cabeça da composição. O comboio
diminuía a velocidade e começava a ver-se luzes que passavam cada vez
mais devagar. O matraquear dos bogies tornou-se pausado e menos rítmico.
O revisor, fardado de azul e com o boné na cabeça, apareceu na outra ponta
do corredor, anunciando «Narbonne, cinco minutos de paragem», e a sua
presença alertou Falcó, que o observou, tenso, enquanto se aproximava e
passava diante do compartimento que tinha abandonado. Mas nada chamou
a atenção do revisor – o previsível era que Araña tivesse fechado as cortinas
– que passou junto de Falcó depois de repetir o «Narbonne, cinco minutos
de paragem», e dirigiu-se pelo fole para a carruagem seguinte.
Havia pouca gente na gare: meia dúzia de viajantes que saíam do
comboio com as suas malas, um chefe da estação de boné vermelho e
candeeiro na mão que caminhava sem pressa em direção à locomotiva e um
gendarme de ar aborrecido, coberto com capa curta, que estava perto da
porta de saída, de mãos cruzadas atrás das costas e os olhos fixos no relógio
pendurado no alpendre, cujos ponteiros marcavam as 0h45. Enquanto ia
para a saída, Falcó lançou um breve olhar à carruagem que acabava de
abandonar: pelo lado do corredor, via-se que as cortinas do compartimento
onde a mulher se encontrava estavam fechadas. Nesse mesmo olhar reparou
que Araña também tinha saído do comboio pela porta de outra carruagem e
avançava meia dúzia de passos atrás dele.
Na cabeça da composição, o chefe da estação balançou o candeeiro e fez
soar um apito. A locomotiva deixou escapar um resfolegar de vapor e pôs-
se em marcha, arrastando o comboio. Nessa altura, Falcó já entrava no
edifício, atravessava o vestíbulo e saía para a rua, sob o brilho amarelado
dos candeeiros que iluminavam uma parede coberta de cartazes
publicitários e um automóvel Peugeot junto da beira do passeio, um pouco
para lá da paragem de táxis, ali onde se supunha que devia estar. Falcó
parou por uns momentos, precisamente o tempo necessário para que Araña
o alcançasse. Não precisou de se virar, pois a proximidade do outro foi
anunciada pelo seu inconfundível cheiro a gel capilar e água de rosas.
– Era ela – confirmou Araña.
Ao mesmo tempo que dizia isto, passou a Falcó uma pequena carteira de
pele. Depois, com as mãos no bolso do sobretudo e o chapéu inclinado
sobre os olhos, o homenzinho caminhou com passinhos curtos e rápidos por
entre a vaga luz amarelada da rua até se perder nas sombras. Por seu lado,
Falcó dirigiu-se ao Peugeot, que tinha o motor a trabalhar e uma silhueta
negra e imóvel no lugar do condutor. Abriu a porta traseira e instalou-se no
banco, pousando a gabardina ao lado, com a carteira sobre os joelhos.
– Tem uma lanterna?
– Sim.
– Dê-ma.
O condutor passou-lhe uma lanterna elétrica, engatou a primeira e
arrancou com o automóvel. Os faróis iluminaram as ruas desertas e depois
os arredores da cidade, metendo por uma estrada onde os troncos das
árvores estavam pintados com faixas brancas. Falcó carregou no interruptor,
apontando o feixe de luz para o conteúdo da carteira: cartas e documentos
datilografados, uma agenda com telefones e moradas, dois recortes de
imprensa alemã e uma acreditação com fotografia e selo do governo da
Generalidad catalã em nome de Luisa Rovira Balcells. Quatro dos
documentos tinham selos do Partido Comunista de Espanha. Voltou a
guardar tudo na carteira, pôs a lanterna de lado e instalou-se melhor no
banco, com os olhos fechados, a cabeça apoiada no encosto, depois de
alargar o nó da gravata e de se tapar com a gabardina. Nem sequer agora,
descontraído pelo sono crescente, o seu rosto anguloso e atraente, onde
começava a despontar a barba após várias horas sem se barbear, conseguia
perder a sua expressão habitual, que costumava ser divertida, simpática,
ainda que com um traço de dureza cruel que podia turvá-la de forma
inquietante; como se o seu proprietário estivesse na presença contínua de
uma farsa tragicómica, universal, da que ele próprio fazia parte.
As árvores pintadas de branco continuavam a desfilar à luz dos faróis, de
um lado e do outro da estrada. O último pensamento de Falcó antes de
adormecer com o balançar do automóvel foi sobre as pernas da mulher
morta. Uma pena, concluiu à beira do sono. Um desperdício. Noutra altura,
não se teria importado de pernoitar sem pressas entre aquelas pernas.
*
– Há um novo assunto – disse o Almirante.
Atrás dele, do outro lado da janela, erguia-se a cúpula da catedral de
Salamanca para lá dos ramos, ainda despidos, das árvores da praça.
Movendo-se na contraluz, o chefe do SNIO – Serviço Nacional de
Informação e Operações – foi até ao grande mapa da península que ocupava
meia parede, junto de umas estantes com a enciclopédia Espasa e um retrato
do Caudilho.
– Um novo assunto turvo e lixado – repetiu.
Dito isto, tirou um lenço enrugado do bolso do seu casaco de lã – nunca
vestia uniforme no seu gabinete –, assoou-se ruidosamente e olhou para
Lorenzo Falcó como se este fosse culpado da sua constipação. Depois,
enquanto guardava o lenço, lançou um olhar rápido à parte inferior direita
do mapa antes de a assinalar com gesto vago.
– Alicante – disse ele.
– Zona vermelha – comentou desnecessariamente Falcó, e o outro olhou
para ele, primeiro com atenção e depois com desagrado.
– Pois claro que é zona vermelha – respondeu, azedo.
Tinha advertido a insolência. Falcó estava apenas há um dia em
Salamanca, depois de uma incómoda viagem pelo sul de França até passar a
fronteira por Irún. E antes disso levara a cabo uma missão difícil em
Barcelona, que ficava na zona republicana. Desde a rebelião militar que não
tivera um dia de descanso.
– Hás de descansar quando estiveres morto.
O Almirante riu-se um pouco, sombrio e como que para si mesmo, da sua
própria piada. E a verdade é que muitas vezes, pensou Falcó, o humor do
seu chefe rondava o sinistro; e mais desde que o seu único filho, um jovem
alferes de navio, tinha sido assassinado a bordo do cruzeiro Libertad com os
outros oficiais, a 3 de agosto. Esse caráter ácido e um pouco macabro era a
sua marca da casa, até quando mandava um agente do Grupo Lucero –
operações especiais – deixar-se esfolar vivo numa checa1, para lá das linhas
inimigas. Assim a tua viúva saberá finalmente onde é que dormes, era ele
capaz de dizer, e outras piadas semelhantes, que não tinham graça nenhuma.
Mas nessa altura, com quatro meses de guerra civil e uma dúzia de agentes
perdidos por aqui e por ali, aquele tom bronco e cínico tinha-se convertido
em estilo próprio do serviço. Até as secretárias, os radioescutas e os
encriptadores o imitavam. Além disso, assentava que nem uma luva ao
chefe: galego de Betanzos, magro, pequeno, com um espesso cabelo
grisalho e um bigode amarelado de nicotina que lhe cobria por completo o
lábio superior, o Almirante tinha o nariz grande, as sobrancelhas hirsutas e
um olho direito – o esquerdo era de vidro – muito negro, severo e vivo, de
extrema inteligência, onde as palavras vermelho ou inimigo suscitavam
sempre um rancor tranquilo. Descrito em resumo, o responsável do núcleo
duro da espionagem franquista era pequeno, esperto, mal-humorado e
temível. No quartel-general de Salamanca alcunhavam-no de o Javali. Mas
nunca à frente dele.
– Posso fumar? – perguntou Falcó.
– Não, caralho. Não podes fumar. – Olhou, melancólico, para um pote de
tabaco de cachimbo que havia em cima da mesa. – Estou com uma
gripalhada enorme.
Embora o seu chefe estivesse de pé, Falcó continuava sentado. Eram
velhos conhecidos desde os tempos em que o Almirante, então capitão de
navio e adido naval em Istambul, organizara os serviços de informação para
a República, no Mediterrâneo Oriental, pondo-os depois à disposição do
lado franquista quando rebentou a contenda civil. Tinham-se encontrado os
dois pela primeira vez em Istambul, muito antes da guerra; por causa de
uma questão de tráfico de armas destinadas ao IRA irlandês, de que nesse
momento Falcó atuava como intermediário.
– Encontrei uma coisa para si – disse Falcó.
Enquanto dizia isto, tirou um sobrescrito do bolso do casaco e colocou-o
na mesa, perto do Almirante. Este observava-o, inquiridor. O olho de vidro
era de uma cor ligeiramente mais clara do que a autêntica, e isso dava ao
seu olhar um estranho estrabismo bicolor, que costumava inquietar os seus
interlocutores. Um instante depois, abriu o envelope e tirou de lá um selo
dos correios.
– Não sei se tem esse – disse Falcó. – De mil oitocentos e cinquenta.
O Almirante dava-lhe voltas entre os dedos, olhando para ele a contraluz
na janela. Por fim foi até uma gaveta da secretária cheia de cachimbos e
latas de tabaco, tirou uma lupa e estudou o selo com atenção.
– Negro sobre azul – confirmou, satisfeito. – E sem carimbo. O número
um de Hannover.
– Foi o que me disse o filatelista.
– Onde é que o compraste?
– Em Hendaia, antes de passar a fronteira.
– Vale pelo menos quatro mil francos em catálogo.
– Paguei cinco mil.
O Almirante foi a um armário, tirou um álbum e meteu o selo lá dentro.
– Acrescenta-o à tua nota de despesas.
– Já fiz isso... O que é que se passa em Alicante?
O Almirante fechou o armário devagar. Depois tocou no nariz, olhou para
o mapa e voltou a tocar-lhe.
– Ainda há tempo. Uns dois dias, pelo menos.
– Vou ter de lá ir?
– Sim.
Era estranho como aquele monossílabo podia resumir tantas coisas,
pensou, irónico, Falcó. Um atravessar de zona, a familiar incerteza de se
saber outra vez em território inimigo, o perigo e o medo. Talvez, também, a
prisão, a tortura e a morte: um amanhecer cinzento em frente de um
paredão, ou um tiro na nuca na escuridão de uma cave. Um cadáver
anónimo numa sarjeta ou numa vala comum. Uma pazada de cal viva, e
tudo acabaria nisso. Por momentos, recordou a mulher do comboio, poucos
dias antes, e com uma expressão resignada, fatalista, reparou que começava
a esquecer-se do seu rosto.
– Aproveita, entretanto – aconselhou o Almirante. – Descontrai-te.
– Quando é que o senhor me irá pôr ao corrente?
– Desta vez vamos fazer a coisa por partes. A primeira é já amanhã, com
o pessoal do SIIF.
Falcó arqueou uma sobrancelha, contrariado. Aquela era a sigla do
Serviço de Informação e Investigação da Falange, a milícia paramilitar
fascista. O pessoal mais ideologizado e duro do chamado Movimento
Nacional que era presidido pelo general Franco.
– O que é que a Falange tem a ver com isto?
– Alguma coisa tem. Já vais ver. Temos de nos reunir às dez com o Ángel
Luis Poveda... Sim, não ponhas essa cara. Com esse animal.
Falcó apagou a expressão do seu rosto. Poveda era o chefe do SIIF. Um
camisa velha2 da linha dura, sevilhano, que tinha conquistado uma certa
reputação na Andaluzia durante os primeiros dias da sublevação, fuzilando
sindicalistas e mestres-escola sob as ordens do general Queipo de Llano.
– Julguei que operávamos sempre sozinhos. Por nossa conta.
– Pois já podes ver que não. São ordens diretas do Generalíssimo... Desta
vez vamos coordenados com os falangistas, e isso não é tudo: os alemães
também estão metidos ao barulho, e rogo a Deus para que os italianos não
intervenham. Há um bocado estive com o Schröter a tratar do assunto.
Falcó ia de surpresa em surpresa. Não conhecia pessoalmente Hans
Schröter – rebatizado Juanito Escroto para o eterno gozo espanhol –, mas
sabia que era o chefe do serviço de informações nazi na Espanha nacional, e
que tinha linha direta com o almirante Canaris, em Berlim. Todo o quartel-
general franquista em Salamanca era um formigueiro de agentes e serviços
nacionais e estrangeiros: paralelamente aos alemães da Abwehr operava o
Servizio Informazioni Militari italiano, além dos múltiplos organismos de
espiões e contraespiões espanhóis que rivalizavam entre si e frequentemente
se atropelavam uns aos outros: os falangistas do SIIF, os militares do SIM,
o serviço de informações da Armada, a rede de espionagem civil conhecida
como SIFNE, o MAPEBA, a Direção de Polícia e Segurança e outros
serviços menores. Quanto ao SNIO, dirigido pelo Almirante, dependia do
quartel-general, diretamente supervisionado por Nicolás Franco, irmão do
Caudilho. O serviço era especializado em infiltração, sabotagem e
assassínios de elementos inimigos, tanto na zona republicana como no
estrangeiro. Nele se enquadrava o chamado Grupo Lucero, a que Lorenzo
Falcó pertencia; uma reduzida equipa de elite, homens e mulheres, que na
gíria dos serviços secretos locais era conhecido como Grupo de Assuntos
Sujos.
– Esta noite há uma festa no Casino para receber o embaixador italiano. A
sua delegação vai instalar-se no andar de cima, e virá muita gente. Se calhar
apetece-te ir.
Falcó estudou-o com atenção. Sabia que o seu chefe tinha uma predileção
por ele – «Pareces-te um pouco com o meu filho», escapara-lhe uma vez –,
mas este homem não era dos que se preocupassem com os seus
divertimentos sociais ou com os de qualquer outro subordinado.
Interpretando o olhar, o Almirante modulou um sorriso cheio de arestas.
– O Hans Schröter também deve lá estar... Preparei-vos uma pequena
reunião, coisa de uns minutos. Em privado. Quer conhecer-te, mas sem
chamar a atenção. Sem visitas a gabinetes e tal.
– O que devo dizer-lhe?
– Nada. – O Almirante voltou a assoar-se com o lenço. – Conversa de
circunstância. Tu ficas calado, deixas-te ver e não soltas um pio. É só uma
sondagem. Ouviu falar de ti e quer ver a peça.
– Compreendido. Ver, ouvir e calar.
– Isso mesmo... E certamente vai estar lá outro alemão que tu e eu
conhecemos: Wolfgang Lenz.
– O de Rheinmetall?
– Esse. Com a mulher, parece-me... Ute, chama-se ela. Ou Greta.
Qualquer coisa assim. Um nome curto. Ou se calhar é Petra.
– Eu conheço-a.
O Almirante dirigiu-lhe um sorriso retorcido, disposto a não se
surpreender mesmo nada. Andavam há muito tempo juntos.
– Biblicamente?
– Não. Só de raspão. Encontrámo-nos com ela e com o marido num
jantar, em Zagreb. No ano passado. Lembra-se?... O senhor também estava.
– Lembro-me, claro. – A expressão do outro converteu-se em riso
depreciativo. – Uma loura grandona, com um decote nas costas que
mostrava tudo até ao rabo. Tão puta como todas as alemãs... Se bem te
conheço, acho estranho que não tenhas toureado nessa praça.
Falcó sorriu evasivo, como se se desculpasse.
– Triscava noutros pastos, Almirante.
– Calculo que sim. – Olhava para ele distraído, pensando noutra coisa. –
Pois agora estão de visita, para ver qual o material que nos podem colocar
aqui. Convidados muito especiais e essa estopada toda.
– Tem a ver com aquilo de Alicante?
Um dedo indicador apontou para Falcó como uma pistola carregada.
– Eu nunca mencionei Alicante... Estás a topar, rapaz?
– Estou.
O olho direito tornara-se mais duro e severo.
– Ainda não mencionei Alicante nem qualquer outro maldito lugar.
– Claro que não.
– Então deixa de te armares em parvo, levanta-te dessa cadeira e zarpa
daqui. Amanhã vejo-te às dez menos um quarto, na calle del Consuelo, para
ver Poveda... Ah. E procura ir de uniforme.
– De uniforme... O senhor está a falar a sério?
– Pois claro. Ainda tens o uniforme, suponho, se as traças não o roeram.
Falcó pôs-se de pé, lentamente. Estava surpreendido. Ele não era militar,
muito pelo contrário. Em 1918, tinha sido expulso com desonra da
Academia Naval depois de uma história escandalosa com a mulher de um
professor e de uma luta ao murro com o marido na sala, em plena aula sobre
torpedos e armas submarinas. No entanto, quando rebentou a guerra, o
Almirante conseguira-lhe uma graduação provisória como tenente de navio
da Armada, a fim de lhe facilitar o trabalho. Não havia nada que abrisse
tantas portas na Espanha nacional como uns galões ou umas estrelas nos
punhos das mangas.
– Esses falangistas ficam muito impressionados com os uniformes – disse
o Almirante quando Falcó já ia a sair do gabinete. – Por isso vamos entrar
com o pé direito.
À porta, Falcó imitou, exagerando, o gesto de continência.
– Quando eu estiver de uniforme devo dizer às suas ordens, meu
Almirante?
– Vai para o caralho.
*
Cheirava a loção Varón Dandy e estava penteado para trás, com gel e
risco muito alto, ao colocar pausadamente, diante do espelho do quarto de
hotel, o colarinho e os punhos postiços da camisa de smoking. O peitilho
estava imaculado, e os suspensórios pretos seguravam as calças que caíam
com vinco perfeito sobre os reluzentes sapatos de verniz. Durante um
momento, Lorenzo Falcó permaneceu imóvel a estudar o reflexo, satisfeito
com o seu aspeto: barbeado impecável a navalha, patilhas recortadas no
ponto exato, os olhos cinzentos que se contemplavam a si mesmos, como ao
resto do mundo, com tranquila e irónica melancolia. Uma mulher definira-
os certa vez – cabia sempre às mulheres definir esse tipo de pormenores –
como olhos de bom rapaz a quem correram mal as coisas na escola.
Mas na realidade as coisas não lhe tinham corrido nada mal, ainda que
muitas vezes lhe fosse útil assim parecer, sobretudo com uma mulher à
frente. Falcó provinha de uma boa família andaluza ligada às adegas, ao
vinho e à sua exportação para Inglaterra. Os modos e a educação adquiridos
na infância haviam-lhe valido mais tarde, quando uma juventude pouco
exemplar, uma carreira militar truncada e uma vida vagabunda e aventureira
puseram à prova outros traços do seu caráter. Agora tinha trinta e sete anos
e uma densa biografia atrás de si: América, Europa, Espanha. A guerra.
Comboios noturnos, fronteiras atravessadas debaixo de neve ou chuva,
hotéis internacionais, ruas escuras e inquietantes, abraços clandestinos.
Também tinha, ali onde a memória recente se misturava com as sombras,
lugares e recordações turvas cuja quantidade, pelo menos por agora, não se
importava de continuar a aumentar. A vida era para ele um território
fascinante; um couto de caça grossa cujo direito a transitar por ele era
reservado a uns poucos audaciosos: os dispostos a correr o risco e a pagar o
preço, quando calhasse, sem refilar. Diga-me quanto lhe devo, senhor
empregado. E fique com o troco. Havia prémios imediatos e talvez castigos
atrozes que aguardavam a sua hora, mas estes últimos estavam ainda muito
longe. Para Falcó, palavras como pátria, amor ou futuro não tinham
qualquer sentido. Era um homem do momento, treinado para o ser. Um lobo
na sombra. Ávido e perigoso.
Depois de pôr o papillon, o colete e o casaco, fechou a corrente do
relógio – os punhos da camisa, que sobressaíam exatamente três
centímetros, tinham botões de punho de prata lisa e forma oval – e ocupou
os bolsos com os objetos que tinha cuidadosamente dispostos em cima da
cómoda: um isqueiro de prata maciça Parker Beacon, uma caneta de tinta
permanente Sheaffer Balance verde jade, um lápis com invólucro de aço,
um caderninho de notas, uma caixinha de comprimidos de prata com quatro
cafiaspirinas, uma carteira de pele de crocodilo com duzentas pesetas em
notas pequenas e algumas moedas soltas para gorjetas. Depois pegou em
vinte cigarros de uma lata grande de Players – conseguia-os através de
Lisboa, por meio do estafeta do SNIO – e encheu com eles os dois lados
interiores da sua cigarreira de tartaruga, que guardou no bolso direito do
casaco. Depois, apalpando-se para verificar se tudo estava como devia,
virou-se para a pistola que deixara em cima da mesinha de cabeceira, junto
à cama. Era a sua arma favorita, e desde julho daquele ano que não
costumava afastar-se dela. Tratava-se de uma semiautomática Browning FN
modelo 1910, fabricada na Bélgica, de tripla segurança, ação simples e
recarga ativada por retrocesso com um carregador de seis munições: uma
arma muito plana, manuseável e leve, capaz de enviar uma bala de calibre 9
mm à velocidade de 299 metros por segundo. Tinha ocupado um bom
bocado da tarde, antes de se meter na banheira, a desmontá-la, a limpar e a
olear cuidadosamente as suas peças principais e a verificar se a mola
recuperadora que rodeava o canhão funcionava livremente e sem
impedimentos. Agora sopesou-a por momentos na palma da mão, verificou
se o carregador estava cheio e bem encaixado e a câmara vazia e, depois de
a embrulhar num pano, ocultou-a em cima do armário. Não era caso, disse
para si mesmo, para ir artilhado à festa do Casino; ainda que ali, fruto da
temporada, fossem abundar uniformes, correagens e pistolas.
Deu uma última vista de olhos em volta, pegou no sobretudo, no cachecol
branco e no chapéu flexível preto, e apagou a luz antes de sair do quarto.
Enquanto caminhava pelo corredor, a recordação agradável de que a
Browning 1910 tinha sido o modelo de arma utilizada pelo sérvio Gavrilo
Princip para assassinar o arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo,
desencadeando a Grande Guerra, arrancou-lhe um sorriso cruel. Além da
roupa cara, dos cigarros ingleses, dos objetos de prata e de couro, dos
analgésicos para a dor de cabeça, da vida incerta e das mulheres bonitas,
Lorenzo Falcó gostava das coisas apimentadas com pormenores. Com
tradição.
1 Acrónimo do russo Chrezvychainaya Komissiya Extraordinaria, nome
da polícia secreta desde 1917 até 1922. (N. do E.)
2 Nome dado aos militantes de antes da guerra, por oposição aos camisas
novas. (N. do E.)
2
SUSPIROS DE ESPANHA
U ma orquestra militar tocava Suspiros de Espanha quando Lorenzo Falcó
entrou no salão. O pátio coberto do Casino, situado num palácio do
século XVI, estava iluminado com um esplendor que desmentia a austera
economia de guerra pregada pelos comandos nacionais. Como esperava, viu
muitos uniformes, correagens, botas engraxadas e reluzentes cartucheiras de
pistola garbosamente usadas à cintura pelos seus proprietários. Os militares,
observou, eram na sua maioria de graduações superiores, de capitão para
cima, e quase todos ostentavam insígnias de Estado-Maior ou Intendência,
ainda que não faltassem braços ao peito e condecorações acabadas de
ganhar no campo de batalha durante aqueles dias em que os jornais vinham
cheios de notícias bélicas e os combates em torno de Madrid aconteciam
com extrema dureza. No entanto, apesar dessas chamadas de atenção, dos
uniformes e do toque marcial da assistência, tudo parecia demasiado longe
da frente. As senhoras, ainda com o recato que ficara na moda na fação
nacional – a mulher como ser delicado, amparo do combatente, noiva,
esposa e mãe –, iam bem vestidas, com a elegância própria das revistas de
moda mais atuais, e algumas lá se desenvencilhavam para combinar de
modo eficaz as novas orientações morais com os atributos do seu sexo.
Quanto aos homens, além dos uniformes via-se alguns smokings mais ou
menos corretos e muitos fatos escuros, vários deles com a camisa azul da
Falange e gravata preta. Havia um rumor de conversas, empregados de
mesa militares de casaquinha branca a circular com bandejas cheias de
bebidas, e uma mesa de bar ao fundo, no lado oposto da orquestra.
Ninguém dançava. Falcó cumprimentou superficialmente um ou outro
conhecido, olhou em volta e parou junto da ampla escadaria enfeitada com
a bandeira vermelha e amarela – tinha sido recuperada pelos nacionais umas
semanas antes, eliminando a faixa arroxeada da República – para acender
um cigarro.
– O que fazes aqui, Lorenzo?... Julgava-te no estrangeiro.
Ergueu o olhar sem chegar a abrir a cigarreira. Um homem e uma mulher
tinham parado a seu lado. O homem chamava-se Jaime Gorguel e estava
fardado, com estrelas de capitão no punho das mangas e insígnias de
infantaria nos bicos do jaquetão. A mulher, morena, magra e desconhecida,
vestia cetim estampado de caxemira com reflexos prateados. Um vestido
caro e bom, concluiu Falcó. Se não lhe falhavam o olho e a experiência.
– E eu julgava que estavas na frente – respondeu.
– Venho de lá. – O militar apontou para uma têmpora, onde sob o cabelo
alisado com brilhantina se notava o hematoma de uma contusão. –
Comoção cerebral, disseram.
– Caramba... Alguma coisa séria?
– Não. Um fragmento de metralha, que por sorte a boina amorteceu. Em
Somossierra. Deram-me uma semana para me restabelecer. Sou
reincorporado depois de amanhã.
– Como é que vão as coisas?
– Às mil maravilhas. Estamos a menos de vinte quilómetros de Madrid e
a avançar. Dizem que o governo vermelho evacuou a capital e foi para
Valência; por isso, com um pouco de sorte, tudo estará acabado pelo Natal...
Conheces a Chesca, a minha cunhada?
Um aroma de Amok. Perfume caro, elegante, difícil de encontrar por
aqueles dias – «Uma loucura de Oriente», segundo as revistas da moda. –
Falcó olhou com atenção para a mulher: tinha os olhos claros, o nariz
grande, os seios perfeitos e o corpo harmonioso. Tipo modelo de Romero de
Torres, decidiu. Um certo ar vagamente aciganado não lhe tirava o estilo,
até o acentuava. Era bonita acima da média. Muito acima.
– Não tenho o prazer.
– Bom... É Lorenzo Falcó, um velho amigo da escola. Andámos uns anos
juntos nos Marianistas de Jerez... Maria Eugenia Prieto, esposa do meu
irmão Pepín. Todos lhe chamamos Chesca.
Falcó assentiu, apertando a mão que ela lhe estendia. Conhecia o marido
de vista: José María Gorguel, conde da Migalota. Um tipo seco, alongado e
elegante, com perto de quarenta, amante dos cavalos de corrida. Durante
um certo tempo tinham frequentado os mesmos tablaos flamencos e os
mesmos bordéis de luxo em Sevilha e Madrid.
– E como está o teu irmão? – perguntou ele a Jaime Gorguel, mais por
cortesia do que por verdadeiro interesse, embora olhasse para ela. Acabava
por ser sempre instrutivo, e útil, observar as reações de uma mulher casada
quando se mencionava o marido ausente.
– Bem, que eu saiba – respondeu o outro. – Foi incorporado a 18 de julho
e deram-lhe uma companhia de Regulares. Está num lugar qualquer da
frente de Madrid. Para os lados de Navalcarnero, parece-me... E isso soa
bem, não é? Como nos velhos tempos. Um grande de Espanha a comandar
uma companhia de mouros... A Espanha eterna que ressuscita de novo, para
varrer toda essa chusma marxista.
– Realmente épico – sublinhou Falcó.
Ao olhar para a mulher compreendeu que ela reparara no sarcasmo. Mas
não teve tempo de considerar se isso era taticamente bom ou mau, porque
também reparou, por cima do ombro – a pele nua velada por uma gaze
subtil a combinar com os novos costumes –, que alguém, mais além,
reclamava a sua atenção. Era Marili Granger, secretária de confiança do
Almirante. Ficou surpreendido por vê-la ali, até que se lembrou de que
Marili era casada com um oficial do quartel-general da Armada em
Salamanca e, portanto, era lógico que participasse na receção. Nada mais
natural e discreto que ela funcionasse como ligação. Entre as colunas do
fundo, perto da mesa dos empregados, distinguiu a cabeça loura de Hans
Schröter a dirigir-se para a porta de um salãozinho privado.
– Peço desculpa – disse ele.
*
Quando Marili fechou a porta e os deixou sozinhos, Schröter olhou com
atenção para Lorenzo Falcó. O alemão tinha um copo de conhaque numa
mão e um charuto havano na outra. A sua maçã de Adão era proeminente e
destacava-se sobre o colarinho duro e o papillon preto do smoking. Uma
cicatriz horizontal sob o pómulo esquerdo endurecia-lhe a expressão. Era
alto e enxuto, com um maxilar quadrado barbeado com esmero e uns olhos
inexpressivos de cor azul ártico.
– Alegrro-me porr conhecê-lo – disse em bom espanhol, embora
arrastando os erres.
– O mesmo digo eu.
Ficaram de pé em frente um do outro, a estudar-se em silêncio enquanto o
alemão dava passas no seu charuto e de vez em quando molhava os lábios
no conhaque. Só se ouvia a música distante da orquestra militar. Ao fim de
uns instantes, Schröter olhou para a porta.
– Festa agradável – disse ele.
– Sim.
– Creio que as notícias que chegam da frente são boas... Os marxistas
batem em retirada e Madrid está prestes a cair.
– É o que dizem.
O comentário cético de Falcó pareceu estimular a curiosidade do alemão,
que voltou a beber o seu conhaque enquanto o observava com mais atenção.
– Sabe quem sou? – perguntou por fim.
– Claro.
– O que lhe disse o seu chefe, o Almirante?
– Que o senhor queria ver-me de perto, para qualquer coisa relacionada
com uma missão.
As pupilas do outro contraíram-se.
– Que tipo de missão?
– Isso ele não me disse.
Schröter continuava a olhá-lo fixamente, perscrutador. No salãozinho
havia cadeirões, mas nenhum dos dois mostrou intenção de os ocupar.
– Fala alemão?
A pergunta fora feita nessa língua. Com um sorriso, Falcó respondeu-lhe
em alemão.
– Sofrivelmente. Vivi algum tempo na Europa Central.
– Que outras línguas conhece?
– Francês e inglês. E arranho o italiano... Também conheço todas as
palavras feias, os insultos e as blasfémias em turco.
A piada resvalou no rosto impassível de Schröter. Olhou para a cinza do
seu charuto, deu uma olhadela em volta à procura de um cinzeiro
inexistente, e com um leve toque do dedo indicador deixou-a cair na
alcatifa.
– Agora que fala da língua turca... O senhor matou um compatriota meu
há um ano, em Istambul.
Falcó aguentou o olhar dele em silêncio.
– É provável.
A cicatriz da face parecia afundar-se um pouco.
– Chamava-se Klaus Topeka e vendia peças de ótica militar.
– Não sei, não me lembro. – Falcó encolheu os ombros. – Não lhe sei
dizer.
– Matou assim tantos em Istambul, ou noutros lugares, que nem se
lembra?
Falcó não disse nada. Recordava perfeitamente Topeka, um traficante
privado que também trabalhava para a Abwehr. Novembro de 1935, antes
da guerra. Tratou-se de um assunto rápido e limpo: um disparo na nuca à
porta de um bordel barato do bairro de Beyoglu. Aparência de roubo. Tinha
recebido ordens para o eliminar, pois Topeka interferia demasiado num
negócio de instrumentos óticos comprados à União Soviética por conta da
República. O próprio Almirante, que nessa época ainda era chefe do serviço
de informações espanhol no Mediterrâneo Oriental, foi quem indicou a
Falcó o objetivo. Era curioso, pensou, como a vida mudava as coisas. As
alianças. Os afetos e os ódios.
– O seu chefe refere-se a si como um homem sólido. De muita confiança.
E a missão de que ele o vai encarregar é delicada... O senhor diz que ele
ainda não lhe contou nada sobre ela?
– Sim. Foi o que eu disse.
Reflexivo, Schröter deu uma passa longa no charuto.
– Eu também não lhe vou adiantar quase nada – disse por fim, deixando
sair o fumo. – Mas direi que a Armada do meu país apoiará a coisa. Uma
embarcação da Kriegsmarine vai participar na operação... Talvez se trate de
uma unidade de superfície, ou talvez de um submarino. Saberemos nos
próximos dias.
Falcó decidiu fazer-se desentendido.
– Em zona vermelha?
O outro olhou para ele sem responder, com ar de estar a avaliar o que
Falcó sabia e o que calava.
– Há um cônsul alemão em Cartagena – disse ele. – Chama-se Sánchez-
Kopenick e recebeu instruções. Chegado o momento, irão pôr-se em
contacto.
– Até agora ninguém me tinha falado de Cartagena.
Os gélidos olhos azuis mantiveram-se impassíveis.
– Pois eu acabo de o fazer. Com a certeza, naturalmente, de que o senhor
esquecerá o nome dessa cidade assim que eu sair desta sala.
Cartagena e Alicante. O Levante republicano espanhol. Falcó refletia a
toda a pressa, unindo as pontas. As poucas que tinha.
– E o que esperam que eu faça lá? Qual é a missão?
– Isso é o seu chefe quem lhe irá dizer. – Schröter deu outra passa no
charuto. – Não é assunto meu. Acho que amanhã vão ter uma reunião
importante sobre isso em concreto. Com terceiros.
Falcó fez um esgar para dentro de si. Intranquilo. Gostava de trabalhar à
sua vontade, coisa que só o Almirante costumava permitir-lhe. O Grupo
Lucero existia para isso. Mas aqui, fosse lá o que fosse, parecia diferente. O
SNIO, os falangistas e os alemães, todos metidos no mesmo assunto, estava
longe de ser uma boa notícia. Reunião de pastores, dizia o antigo adágio
espanhol, ovelha morta. E não era agradável pensar que a ovelha podia ser
ele.
– E que mais? – perguntou ele.
Schröter deixou o copo vazio em cima de uma mesa.
– Mais nada.
Falcó estava surpreendido.
– Isso é tudo?
– Sim. Queria conhecê-lo. Ver-lhe a cara.
– Curiosidade profissional?
– Pode chamar-lhe assim. Disseram-me que o senhor assistiu à evacuação
da Crimeia, no ano vinte, com o exército branco. E que até ficou ferido.
Impassível, Falcó aguentava o olhar dele.
– Talvez.
– Eu era oficial naval a bordo do Mütze. Mas o senhor não é russo... E
nessa altura era muito novo. O que é que o tinha levado lá?
– Negócios.
– Estranha maneira de fazer negócios. Aqui foi duro.
– Assim dizem.
– Vendia armas, não é verdade?... Um pouco por aqui e por ali. Ou
trabalhava para aqueles que as vendiam... Essa gente do Zaharoff.
Falcó permitiu-se um sorriso interior. Conhecera Basil Zaharoff a bordo
do Berengaria, a jogar às cartas. Cinco dias de navegação entre Gibraltar e
Nova Iorque tinham feito com que o famoso traficante de armas sentisse
simpatia pelo aprumo e desenvoltura do jovem espanhol que acabava de ser
expulso da Academia Naval e a quem a sua família enviava para a América
a fim de refazer a vida. Seis meses depois, Falcó estava a trabalhar para
Zaharoff entre o México, os Estados Unidos e a Europa.
– Pois não sei – respondeu ele. – Já não me lembro.
O outro continuava a perscrutá-lo com muita atenção.
– E é verdade que, à parte dos seus negócios russos, também traficava
nessa época para os revolucionários mexicanos e para o IRA?
– Disso ainda me lembro menos.
– Sim... Estou a perceber. Também esteve uma vez na Alemanha, parece-
me... Em Berlim, não?
– Disso lembro-me perfeitamente, veja só. Das fachadas de estuque, das
luzes dos cabarés e da falsa alegria que duas ruas mais além se convertia em
tristeza. Com todas aquelas putas de casacos de pele puídos a sussurrar:
«Komm, Süsser».
– Isso era antes.
– Antes de quê?
– Do nacional-socialismo.
– Se o senhor o diz...
O alemão tinha aberto a porta. Regressaram juntos ao salão, onde por
cima do barulho das conversas a orquestra tocava o entreato de O Gato
Montês.
– Conhece o senhor Lenz? – interessou-se Schröter.
– Sim.
Tinham parado junto de um casal formado por um homem de cabelo
ruivo e uma mulher loura e muito alta, quase corpulenta, vestida de cetim
preto.
– Wolfgang Lenz e a sua esposa, Greta. Pelos vistos já se conhecem,
não?... Este é Lorenzo Falcó.
– Conhecemos este senhor – confirmou Lenz.
Wolfgang não vestia smoking, mas um fato escuro. O seu hálito cheirava
a anis, e tinha um copo meio cheio nas mãos. Era um tanto anafado e o
casaco repuxava um pouco pelo botão abotoado na barriga. Representava a
fábrica de munições Rheinmetall no sul da Europa: Falcó e ele tinham-se
cruzado algumas vezes no passado, profissionalmente. Até haviam feito um
negócio juntos em Bucareste – um carregamento de três mil carabinas
Mauser velhas e defeituosas, no entanto muito bem colocadas – em 1929,
com Falcó como intermediário. E os dois tinham ganhado bom dinheiro
com isso. Atualmente, desde o levantamento militar contra a República,
Lenz fornecia as tropas sublevadas. Vivia com a mulher num hotel de
Salamanca e era visto a entrar e a sair, como se fosse a sua casa, no palácio
episcopal onde estava instalado o quartel-general do Caudilho.
– Deixo-o em boa companhia – disse Schröter, afastando-se.
Falcó puxou da cigarreira e ofereceu cigarros. Lenz não quis fumar, mas a
sua mulher sim.
– Ingleses?... Oh, sim. Obrigada. Gosto de cigarros ingleses.
Greta Lenz era mais alta uma cabeça do que o marido e tinha umas
feições duras, vulgares, embora não fosse totalmente feia. Meia cabeleira
lisa cortada à altura dos ombros. Vermelho intenso na boca. O seu vestido
de noite moldava umas fortes ancas germânicas e oferecia um decote bem
preenchido: um duplo conteúdo pesado e túrgido que nenhuma espanhola –
pensou Falcó, divertido –, naquela católica e pacata nova Espanha
nacionalista, teria ousado ostentar com tanta desenvoltura.
– O senhor tem amizades interessantes – comentou Lenz, apontando para
as costas de Schröter com o seu copo.
– Negócios – respondeu Falcó enquanto acendia o cigarro a Greta Lenz,
que o colocara numa boquilha de âmbar.
O marido bebeu um golo e olhou para Falcó com malícia.
– Pátria e negócios andam muitas vezes a par.
Falcó acendeu o seu próprio cigarro e deixou sair o fumo pelo nariz.
– E como é que vão os seus?
– Não me posso queixar. Já sabe como é que isto funciona... O general
Franco precisa de coisas que eu posso proporcionar-lhe.
– Essas coisas custam dinheiro.
– Claro. Mas há quem pague por ele, por isso ficamos todos contentes. A
Alemanha e a Itália cooperam e passam as suas faturas. Ou irão passá-las.
Dizem que esse vosso compatriota que vive em França, o financeiro Tomás
Ferriol, paga atualmente uma boa parte das despesas... Sabe alguma coisa
disso?
– Não.
Conversaram um pouco mais. Greta Lenz abriu a mala e empoou o nariz
com aromas de Elizabeth Arden.
Olhava para Falcó com interesse, mas isso era uma coisa a que ele estava
habituado. As senhoras costumavam gostar das suas maneiras elegantes
combinadas com o seu belo perfil correto e o sorriso simpático e atrevido,
calculado ao milímetro, experimentado mil vezes, que ele costumava
utilizar à frente delas como um cartão de visita. Tinha aprendido desde
muito novo, à custa de algumas rápidas desilusões próprias, uma lição
crucial: as mulheres sentiam-se atraídas pelos cavalheiros, mas preferiam ir
para a cama com os canalhas. Era matemático.
– Apetece-te um anis, querida? – perguntou Lenz.
– Não, obrigada. – Ela baixou um pouco a voz, com censura. – E acho
que tu estás a beber demasiado.
– Exageras.
O marido afastou-se à procura de outra bebida, e quando a mulher virou o
rosto encontrou o sorriso tranquilo de Falcó.
– O Wolfgang adora Espanha – disse ela alguns instantes depois. – Sente-
se aqui muito bem.
– Estou a ver... E a senhora?
– Menos do que ele. – Fez um gesto depreciativo. – Tudo me parece sujo
e cinzento. Os homens são cruéis, vaidosos; e as mulheres, demasiado
tristes com tanta missa e terço... Antes era mais divertido: Madrid, Sevilha
ou Barcelona. – Dirigiu a Falcó um olhar longo e pensativo. – Onde é que
nos vimos a última vez?
– Em Zagreb. No Hotel Esplanade. Numa festa de alguém.
Ela recordou-se, arqueando as sobrancelhas. Usava-as depiladíssimas,
reduzidas a duas finas linhas que mal se notavam, assinaladas pelos
respetivos traços de lápis castanho. Os olhos eram castanhos, com reflexos
cor de palha.
– É verdade. O senhor estava com uma senhora, com um militar espanhol
e também com aquele escritor italiano, Malaparte... Conversámos um
bocado na esplanada, mas não tivemos oportunidade de falar muito.
– É verdade. – Falcó fez uma pausa breve, muito calculada, para olhar
para o decote dela com insolência. – E tive muita pena.
Greta Lenz tinha encaixado o exame com admirável naturalidade.
Observarem-na assim, concluiu ele, devia ser tão habitual como darem-lhe
os bons-dias. Via-se que estava muito acostumada.
– Pois não parecia ter – disse ela instantes depois. – Julgo recordar que a
mulher que o acompanhava era muito bonita... Grega ou italiana, não?
Falcó aguentou o seu olhar, impassível.
– Não me lembro de nenhuma mulher.
– Em Zagreb?
– Em lado nenhum.
Agora Greta Lenz contemplava-lhe o sorriso com atenção irónica. Parecia
prestes a dizer qualquer coisa quando viram o marido regressar,
aproximando-se de longe entre as pessoas. Trazia outro copo na mão e
parara para falar com alguém.
– Está hospedado aqui, em Salamanca? – perguntou ela, quase com
indiferença.
– Sim. No Gran Hotel.
A mulher semicerrou as pálpebras entre o fumo do cigarro.
– Mas que coincidência – disse ela. – Nós também.
*
Eram dez e meia da noite quando Lorenzo Falcó saiu para a rua. A partir
das onze havia recolher obrigatório, mas o hotel ficava perto, por isso foi
caminhando sem pressa. Era um passeio de dez minutos, e depois do fumo
do tabaco, da bebida e das conversas apetecia-lhe desanuviar um pouco. Há
momentos tinha ingerido duas cafiaspirinas – as enxaquecas frequentes
eram o seu calcanhar de Aquiles – e o efeito analgésico dos comprimidos
começava a causar-lhe um grato bem-estar. Sentia um pouco de frio,
intensificado pela humidade do rio Tormes ali próximo. Andou sem se
apressar entre os edifícios mergulhados nas sombras da calle Zamora – a
Lua não tinha nascido e a cidade estava escurecida perante possíveis
ataques da aviação republicana – e depois atravessou a praça Mayor, com as
mãos metidas nos bolsos do sobretudo, com o cachecol cruzado sobre o
peito e o chapéu enfiado até às sobrancelhas. Não se encontrou com
ninguém, e só ouvia o eco dos seus próprios passos. Era tão cerrada a noite
que quase teve de adivinhar a embocadura do arco de saída, onde antes de
descer as escadas parou uns momentos para acender um cigarro. Foi a
faísca do isqueiro que atraiu a atenção de um grupo de sombras que saíram
das arcadas em baixo.
– Quem vive? – interpelou uma das sombras.
– Espanha.
Era a resposta habitual naqueles dias. Um som metálico, de fecho da arma
a ser fechada, indicou a Falcó que se tratava de uma patrulha. Um piquete
noturno de vigilância pela zona.
– Senha e contrassenha – disse a mesma voz.
Agora o tom era imperioso. Desabrido e arrogante. Um suboficial mal-
humorado por passar a noite acordado, pensou Falcó. Ou talvez pior, um
miliciano falangista de gatilho fácil, com vontade de ganhar mérito.
– Não conheço a senha e contrassenha.
– Então apaga o cigarro e levanta as mãos.
O tratamento por tu não deixava lugar a dúvidas: eram falangistas. Falcó
fez uma expressão contrariada na escuridão. Um cano de carabina tocou-lhe
no peito. Obedeceu, dócil, e umas mãos revistaram-no sem consideração. O
foco de uma lanterna na cara ofuscou-o de repente.
– De onde vens?
– Do Casino.
– Para onde vais?
– Para o Gran Hotel. Moro lá.
Falcó ouviu as sombras cochichar.
– Há recolher obrigatório – disse a voz de antes.
– Ainda não. Devem faltar uns quinze minutos.
– E esse chapéu tão elegante?
– Os vermelhos não usam chapéu.
– Documentação.
À luz da lanterna, o outro examinou os papéis de Falcó. Uma simples
cédula de identidade nacional onde sob a sua fotografia figuravam um nome
e apelidos falsos, juntamente com um domicílio fictício em Sevilha. O feixe
luminoso permitiu-lhe ver brevemente o jugo e as setas bordadas na
braçadeira que o falangista usava sobre o casacão de bombazina. Havia
outras duas sombras perto. Rostos rudes e reflexos de carabinas. Simpatia
inexistente. Tudo mais frio, verificou, do que o ar da noite.
– Tens cartão de filiado da Falange?
– Não.
– E de outro órgão do Movimento?
– Também não.
– Um senhorzeco de merda – comentou um.
– Na festa enquanto os outros lutam – sublinhou um segundo.
Falcó esteve tentado a comentar que também eles se encontravam a
duzentos quilómetros exatos da frente, mas preferiu ser cauteloso. Nas
zonas ocupadas pelos militares rebeldes à República, toda a gentalha e
todos os oportunistas se apressavam a vestir a camisa azul e a filiar-se no
chamado Movimento Nacional. Com um pouco de cunhas e alguma sorte,
fazer parte das milícias da Falange na retaguarda era uma forma ideal de se
manter longe dos combates. Emboscados, como se dizia.
Aqueles patriotas de ocasião podiam ajustar impunemente as contas com
os seus vizinhos, denunciar suspeitos, roubar nas suas casas e até dar-lhes
um tiro à luz de uns faróis, na valeta de qualquer estrada. Desde os
primeiros dias da guerra que as autoridades militares delegavam a repressão
mais brutal nesse tipo de gente. Pouco tinha a ver com as centúrias
falangistas que combatiam a sério, deixando a pele no Norte ou em torno de
Madrid.
– Tens de nos acompanhar – disse o chefe.
Falcó sorriu, contrariado. Para si mesmo. Tens de vir connosco até ao
nosso quartelzinho, era a tradução livre daquilo, para te darmos uma tareia e
te roubarmos tudo quanto tiveres de valor contigo. No fim, o riso assomou
entre os seus dentes. Estúpidos seguidores.
– De que é que te ris?
Suspirou profundamente antes de falar. E depois fê-lo com muita calma.
– Rio-me porque, por mais que pense, só me ocorrem duas possibilidades.
Uma é eu tirar agora a minha cigarreira, fumarmos todos um cigarro, e
depois cada um seguir o seu caminho mais amigos do que porcos... A outra
é acompanhar-vos, como vocês dizem, e assim que estivermos onde vocês
me quiserem levar, falar com o vosso chefe de centúria e depois ligarmos
por telefone ao camarada Poveda, chefe do SIIF, ou para o quartel-general
do Caudilho, ou para o da Armada, para o da mãe que vos pariu... E
amanhã, a estas horas, vão estar os três a cantar o Cara al Sol numa
trincheira de Navalcarnero, enquanto salvam gloriosamente a pátria. Com
dois colhões.
Era o tom, continuava Falcó a sorrir para dentro de si. Era mais o modo
como tinham sido ditas do que as palavras. Seguiu-se um silêncio longo,
espesso, durante o qual se dispôs a lutar se o tiro lhe saísse pela culatra.
Três adversários era um número respeitável, e estava demasiado escuro para
recorrer à lâmina de barbear Gillette que levava escondida na aba do
chapéu. Friamente, a sua cabeça traçou de antemão a violenta coreografia
do ballet clássico, quase automático, tantas vezes praticado antes: um, dois,
três. Croc. Plaf. Zac. Uma cabeçada no da lanterna – com sorte partia-lhe o
nariz –, um pontapé ao mais próximo – com sorte acertava-lhe entre as
pernas –, e depois ao terceiro, improvisando fosse o que fosse. A escuridão
e a culatra de uma carabina, se conseguisse apoderar-se de alguma delas,
ajudariam muito a concluir o assunto. E se a coisa não lhe saísse totalmente
bem, tinha Salamanca toda às escuras para correr. A noite era uma criança.
– O que é que este filho da puta pensa que é? – mastigou um dos
falangistas.
– Cala-te, porra – disse-lhe o chefe.
Houve outro silêncio quase tão longo como o anterior. O feixe da lanterna
voltou a pousar um instante no rosto de Falcó. De repente, a luz apagou-se e
viu-se com a sua cédula de identidade na mão.
– Pode ir... Dizia a sério isso dos cigarros?
*
Do bar americano do Gran Hotel via-se o vestíbulo. Lorenzo Falcó
apoiava um cotovelo no balcão e um pé no suporte, e de vez em quando
pegava no copo que estava junto ao cotovelo para beber um golo curto.
Havia quatro beatas no cinzeiro triangular com a publicidade da Cinzano. O
bar era agradável, à moda internacional de antes da guerra. Havia fotos de
artistas de cinema emolduradas nas paredes – Douglas Fairbanks, Paul
Muni, Loretta Young –, cómodos bancos altos de couro, decoração de
madeira e metal cromado.
– Acho que te vou pedir outro hupa-hupa, Leandro.
– Eu esperaria um pouco, senhor Lorenzo... Já vai com dois, e demoram a
fazer efeito.
– Não se fala mais nisso. Tu é que mandas.
Leandro, o barman, era um tipo tranquilo, de cabelo grisalho e rosto
melancólico picado pela varicela. Nesta altura, Falcó e ele eram íntimos;
costumava acontecer quando se tratava de barmans, maîtres, rececionistas
de hotel, encarregadas de guarda-roupa, floristas, paquetes, engraxadores e
outros subalternos úteis para facilitar a vida. As batalhas – Falcó também
aprendera isso muito depressa – ganhavam-se graças aos cabos e sargentos
e não aos generais. Quanto a Leandro, a sua especialidade era o hupa-hupa,
um cocktail à base de Martini, vodca, vermute e umas gotas de laranja.
Desde o Levantamento Nacional, por razões patrióticas ou por simples
prudência por parte da direção do estabelecimento, o bagaço galego
substituía a vodca como ingrediente. Falcó até gostava mais assim. Com
bagaço.
Era quase meia-noite quando viu o casal Lenz entrar no vestíbulo. O
marido levava o sobretudo aberto e o chapéu inclinado para trás, e
caminhava com dificuldade apoiando-se na mulher. Ao passar a porta
giratória esteve quase a tropeçar na alcatifa. Ela levava um casaco de vison
sobre o vestido de noite, e parecia irritada. Estavam a atravessar em direção
ao elevador quando Greta Lenz olhou na direção do bar e viu lá Falcó. Não
fez o menor gesto de reconhecimento, e seguiu com o seu marido até se
perder de vista.
– Serve-me mais outro hupa-hupa, Leandro. E bebe tu qualquer coisa.
Satisfeito com o som do shaker que o barman agitava com vigoroso
estilo, Falcó acendeu outro Players. O último da cigarreira.
– Tens tabaco?
– Só avulso das Canárias, senhor Lorenzo. E papel de enrolar.
– Maldita seja a minha sorte.
O barman encheu-lhe o copo e deitou o resto do shaker noutro para ele.
Falcó ergueu a sua bebida, vendo-a à transparência.
– Arriba Espanha, Leandro.
– Arriba sempre, senhor Lorenzo.
– Que lixem bem o Lenine e o Estaline. E o Douglas Fairbanks.
– O que o senhor disser.
– A Rússia é a culpada.
– Até às bolas.
Bateram com os copos um no outro e beberam, Falcó a sorrir na borda do
vidro, o barman sério como sempre. Falcó ainda tinha o copo nos lábios
quando Greta Lenz entrou no bar.
*
Só se beijaram quando Falcó fechou a porta do seu quarto, atirando com a
chave – um marido, por mais bêbado que estivesse, sempre era um marido.
Até então tudo decorrera com uma fria naturalidade: a curta e banal
conversa no bar, com Leandro discretamente dobrado na ponta do balcão, e
depois, sem palavras supérfluas nem acordo prévio, a mulher a terminar a
sua bebida e a levantar-se do banco em silenciosa cumplicidade,
caminhando ela em primeiro lugar até ao elevador enquanto Falcó, imóvel
junto ao balcão, observava o bom augúrio das suas ancas a afastarem-se sob
o tecido subtil do vestido de noite, a solidez das fortes costas teutónicas, o
cabelo liso e louro cortado a direito nos ombros. Três minutos depois,
controlados com exatidão pelo relógio que usava no pulso esquerdo, Falcó
tinha deixado duas notas de cinco pesetas em cima do balcão e depois de
trocar um rápido olhar com o imperturbável barman encaminhou-se para o
seu quarto. Acabava de tirar o casaco, o papillon e o colarinho duro da
camisa quando a mulher bateu à porta. E ali estavam, agora. Estreitando
laços fraternos entre a nova Alemanha e a vigorosa jovem Espanha.
Greta Lenz era bastante porca, verificou Falcó mal tinha começado o
primeiro assalto. Muito alemã, nisso. Muito eficiente para aquele tipo de
assuntos, como insinuara o Almirante, que parecia conhecer o material.
Manejava a língua com uma desenvoltura surpreendente, saboreando
realmente a tarefa, e ele viu-se em apuros para conseguir que a coisa não
acabasse ali mesmo com uma explosão de afetos prematura. Pensou com
urgência no general Franco, na missão que o esperava, nos três falangistas
de há pouco, e isso arrefeceu-lhe um pouco o ânimo, devolvendo-lhe o
controlo das circunstâncias. Além de uma boca ávida, ela tinha um corpo
colossal, confirmou. A esta altura do episódio, uma das alças do vestido
tinha caído para o lado, revelando o ombro e uma carne abundante muito no
ponto: livre, trémula e generosa, com mamilos escuros, rijos e de um
tamanho notável. Uma valquíria com as unhas dos pés e das mãos pintadas,
cuja pele – devia ter posto um bom borrifo – cheirava agora a Soir de Paris.
Ela também tirara, antes de ir para o quarto, experiente e prevenida, o sutiã,
as cuecas, o cinto de ligas e as meias, o que na opinião de Falcó era um
pormenor técnico que facilitava as coisas. Algo que era de agradecer muito,
pois permitia ir diretamente ao fundo da questão. Acariciou-lhe os seios
enquanto ela deglutia tudo quanto era possível deglutir numa anatomia
masculina. Sob o cetim do vestido, o corpo grande e musculado adquiria
contornos gloriosos.
– Estás fértil ou infértil? – inquiriu ele, cortês.
– Não sejas idiota.
Tranquilizado nesse aspeto, subiu-lhe o vestido até às ancas. Também ali
a paisagem era esplêndida. Havia apenas um pequeno rasto louro,
encaracolado, entre as coxas fortes e brancas. Uma boa estrutura óssea por
baixo. Um Walhalla portátil, concluiu Falcó depois de pensar como definir
aquilo. Tudo amplo, quente e confortável. Perfeito. Conheci noites piores.
– Espera – disse ele.
Com habilidade, fruto de anos de prática, começou a despir-se de baixo
para cima com uma mão sem deixar de trabalhar o material com a outra:
sapatos, meias, calças, camisa. Tudo por ordem metódica. Rigorosa. Ao
chegar aos últimos botões da camisa, Greta retirou-se um pouco. Estava de
joelhos diante dele, com o vestido reduzido a uma ruga de cetim em volta
das ancas, e olhava para ele satisfeita. Relampejava reflexos cor de palha
nas suas íris castanhas.
– Tens bom aspeto, espanholito – disse ela. – Tens muito bom aspeto.
– Obrigado.
Falcó ajoelhou-se e introduziu-lhe os dedos no sexo. Ela sorria.
– Chama-me puta.
– Puta.
O sorriso obsceno intensificou-se.
– Agora chama-me porca.
– Porca.
Quis deitá-la de costas na alcatifa, mas ela escapou-se-lhe, rindo. Depois
virou-se, pondo-se de gatas. Os seios germânicos grandes e pesados
ficavam pendurados. Só faltava música de Wagner.
– Faz-me por trás – ordenou ela.
3
VERDUGOS INOCENTES
A prisão da província de Salamanca tinha sido construída para uma centena
de presos, mas desde 18 de julho que haviam entrado mais de mil. E
notava-se. A sobrelotação era enorme. Os conselhos de guerra e as
execuções que frequentemente se lhes seguiam aliviavam um pouco as
celas, mas os lugares livres voltavam a encher-se logo. A nova Espanha
nacional e católica tinha pressa em arrancar a má semente esquerdista, e
para isso contribuíam os chamados traslados: um grupo de falangistas ou
requetés apresentava-se com a ordem escrita de levar determinados reclusos
para outra prisão, à qual estes nunca chegavam, pois acabavam numa vala,
num prado ou num poço – aquilo também era conhecido como dar o
passeio. Lorenzo Falcó sabia tudo isso quando ia a atravessar o recinto de
segurança externa, observando as guaritas de onde espreitavam as carabinas
da Guarda Civil.
– Triste lugar – disse Fabián Estévez.
Falcó olhou-o com curiosidade. Tinham-se conhecido três horas antes, no
gabinete do Almirante. Vestiam os dois à civil. Estévez tinha o maxilar
quadrado e o olhar ao mesmo tempo enérgico e distante, velado por anos de
tensão e clandestinidade a que nos últimos meses se haviam juntado os
sofrimentos e a guerra. Usava o cabelo, preto e empastado, penteado para
trás sobre uma testa ampla, com entradas, e isso acentuava uma certa
parecença com o seu líder, José Antonio Primo de Rivera. Falcó simpatizara
com ele. Era um rapaz educado, sóbrio, pouco falador. Tinha atendido com
respeito as indicações do Almirante, discutido com Falcó os pormenores da
operação, e mostrara-se, sem reservas, disposto a tudo quanto se esperava
dele. Um dos pormenores que tinham suscitado a simpatia de Falcó era o
facto de, ao contrário de outros falangistas, Estévez não levar a camisa azul
por baixo do casaco e do sobretudo, mas sim uma simples camisa branca
com gravata de tricô. Não fazia alarde da sua condição nem da sua patente –
era chefe de uma centúria de tropas de choque – como também não dissera
uma única palavra sobre a sua participação recente na defesa do Alcázar de
Toledo e nos duríssimos combates que se travavam em torno de Madrid.
– Há que sanear Espanha, suponho – deixou cair Falcó para o
experimentar, e olhou para ele de lado.
– Prefiro saneá-la na frente. Isto cheira a revanche e a vergonha.
– Pois receio que estejamos, a bem dizer, só no princípio. Segundo a rádio
e os jornais, os vermelhos correm a render-se em massa.
– Isso é mentira. Eu venho de lá... Eles lutam com gana. Defendem o seu
terreno palmo a palmo, e quando caem fazem-no lutando com muita
coragem.
Falcó continuou a olhar para ele com curiosidade.
– Nada de acabar pelo Natal?
– Claro que não. Isso é propaganda.
– Será longo e sangrento, então?
– Imagine. A melhor infantaria do mundo contra a melhor infantaria do
mundo.
Foram recebidos pelo diretor da prisão, acompanhando-os através de uma
galeria em que uma longa fila de janelas lhes iluminava, na parede oposta,
uma escada com passarela de ferro e dois andares com portas de celas. Não
havia aquecimento e o frio ali dentro era intenso. Ouvia-se o rumor de
vozes distantes, som de grades a fechar, e o barulho dos passos tinha ecos
sinistros. De caminho, o diretor pô-los ao corrente do currículo do homem
que visitavam: filiado no Partido Socialista, antigo subdiretor da prisão de
Alicante, surpreendido pelo Levantamento na zona nacional enquanto
visitava a sua família. Tinha tentado fugir para Portugal, mas prenderam-no
em Béjar. Agora estava numa cela com outros quinze homens, à espera do
conselho de guerra que estabeleceria as suas responsabilidades.
– A mãe vive em Alba de Tormes e é viúva de um deputado socialista.
Está sob vigilância, claro... Um irmão alistou-se na Falange, supomos que
para se proteger um pouco.
O preso chamava-se Paulino Gómez Silva e aguardava num
compartimento de paredes cinzentas cujo único mobiliário era composto
por uma mesa, três cadeiras e um retrato do Caudilho pendurado na parede.
O diretor deixou-os sozinhos com ele e fechou a porta. Gómez Silva era um
indivíduo baixo, macilento, com cara de furão e olhos míopes e
assustadiços. Estava vestido com um fato cinzento sujo e cheio de rugas,
sapatos sem atacadores e uma camisa desprovida de colarinho, muito
coçada nos punhos. Os três sentaram-se e, sem mais preâmbulos, Fabián
Estévez desabotoou o sobretudo, tirou do bolso interior uma planta dobrada
em quatro e estendeu-o em cima da mesa.
– Reconhece isto?
O outro olhou para a planta e depois ergueu o olhar para eles.
Surpreendido e desconfiado.
– Os senhores quem são?
– Isso não lhe interessa. Responda à pergunta que lhe fazemos.
Reconhece o sítio?
Gómez Silva pestanejou, confuso.
– Pois claro. É a prisão de Alicante.
– Descreva-a com pormenor para nós e assinale cada sítio na planta.
– Não tenho os meus óculos. Partiram-mos quando me prenderam.
– Aproxime-se. Eu ir-lhe-ei dizendo.
Fê-lo, dócil, com toda a precisão, respondendo a cada pergunta que lhe
formulavam. Porta principal, porta secundária, distâncias, muros, pátios,
galerias, celas. Ao falar tremiam-lhe as mãos, bem como o queixo mal
barbeado onde despontavam pelos grisalhos. Os dedos com que pegou no
cigarro que Falcó lhe oferecia mostravam as unhas compridas e sujas.
Durante um segundo passou uma luz de agradecimento pelos seus olhos de
animal espancado.
– Há muito tempo sem fumar? – interessou-se Falcó.
– Três meses.
– Deve ser duro.
O outro dirigiu um rápido olhar a Fabián Estévez e para a outra porta.
– Não é o mais duro daqui.
– Sim.
O falangista puxara de um caderninho de napa e um lápis e tomava notas:
a entrada, os três corpos de edifícios, os oito pátios, a capela, as grades e a
altura dos muros. Assentava tudo friamente, com croqui e uma letra
apertada, minuciosa. De vez em quando, o preso olhava para Falcó com
uma interrogação muda nos olhos. Quando acabou de fumar o cigarro, este
ofereceu-lhe outro.
– Acho que é suficiente – disse Estévez guardando o caderno.
– Não precisam de mim para mais nada?
– Não.
Falcó e o falangista puseram-se de pé. Gómez Silva continuava sentado, a
olhar para eles com cara de desconcerto.
– Isto irá beneficiar-me de alguma forma?
– Seguramente – mentiu Falcó.
– Estou há três meses à espera de julgamento. Temo que qualquer dia
agarrem em mim e me levem sem mais nem menos, como a outros.
– Tranquilize-se. O seu caso seguirá um curso completamente legal. Tem
a nossa garantia.
Gómez Silva agarrava-se à esperança. Ou queria fazê-lo. O cigarro
tremia-lhe entre os dedos.
– Eu sou afeto ao Movimento Nacional, não tenham dúvidas. Reconheci
os meus erros políticos... Um irmão meu até milita na Falange.
Enquanto Estévez batia à porta, Falcó esvaziou a sua cigarreira e pôs os
cigarros nas mãos do preso, que lhe devolveu um olhar de agradecimento.
Lá fora aguardava o diretor, que os acompanhou de novo pelos pátios e
galerias até à porta.
– Há um pormenor – disse-lhe Estévez quando se despediam. – Por
razões de alta importância, convém que o preso não volte para junto dos
seus companheiros durante uma temporada... Recomendo a incomunicação.
– Verei o que posso fazer. Já viram que aqui não sobra espaço e isto cada
vez é pior.
– As minhas ordens são apoiadas pela chefia da Falange e pelo quartel-
general do Caudilho. É preciso evitar que esse indivíduo fale com outros
reclusos. Nada do que foi dito ali dentro se deve comentar.
O diretor franzia o sobrolho.
– Quanto tempo é que isso tem de durar?
– Quatro semanas, no mínimo.
O outro pareceu aliviado.
– Oh, nesse caso não há problema. Chegaram-me os papéis precisamente
ontem. Vai ser julgado dentro de três dias. E com os antecedentes dele...
*
Não falaram no automóvel durante o regresso. Nem sobre a sorte que
aguardava Paulino Gómez Silva nem sobre qualquer outra coisa. Sentados
no banco traseiro – o condutor era um soldado à civil, jovem e indiferente
–, Estévez consultava o seu caderno e Falcó olhava pela janela. Quando
saíram na calle Toro ficaram calados frente a frente, olhando um para o
outro, com as mãos nos bolsos dos sobretudos. Falcó usava chapéu e o
outro não. Poucos falangistas o usavam.
– Quando é que você se vai embora? – perguntou Estévez.
– Amanhã.
– Vai por terra?
– Sim.
– Atravessar as linhas é perigoso.
– Não será a primeira vez.
– Sim. Já me disseram isso.
Estévez sorria um pouco, e ainda parecia mais novo ao fazê-lo. O sorriso
era triste como o de quem vira demasiadas coisas em breve tempo. Um tipo
melancólico, pensou Falcó, com o passado e o futuro pintados na cara.
Aquele não era, concluiu, dos que sobreviviam.
– E o que lhe disseram mais?
– O suficiente. Como a si acerca de mim, penso.
– Convém saber com quem é que vamos arriscar.
– E eu que o diga!
Ia tirar a cigarreira quando se lembrou de que estava vazia. O outro
olhava mais além, como se a cabeça tivesse ido para coisas distantes. No
dia anterior, o Almirante contara a Falcó que na defesa do Alcázar de
Toledo, quando os vermelhos conseguiram pôr o pé e uma bandeira nas
ruínas da fachada norte, Estévez havia sido um dos cinco voluntários que,
só com pistolas e a trepar por escadas de mão ligadas com cordas, tinham
subido por ali para desalojar o inimigo.
– Como disse na reunião com o seu chefe – comentou o falangista após
um momento –, os camaradas com que você irá contactar são de primeira
classe. Gente sólida e valente.
– Têm de ser, para atuarem onde estão – admitiu Falcó.
– Sabem o que arriscam. Pode confiar por completo nos dois irmãos de
que lhe falei, Ginés e Caridad Montero... Conheço-os pessoalmente.
Tinha falado com uma fé segura, quase vibrante, das que não admitiam
vacilações nem dúvidas. Um tom de certo modo ingénuo, pensou Falcó,
feito de lealdades e de camisas bordadas com o jugo e as setas, em tempos
pretéritos, ou em raros lugares onde ser falangista não era ainda um meio de
medrar e ajustar contas, mas sim um acaso clandestino e perigoso. Um
ritual de eleitos e crentes, camisas velhas que se sonhavam heróis um
minuto antes de serem engolidos pelos oportunistas e pelos canalhas.
Algo tão velho como o mundo.
– Ver-nos-emos nessa praia – disse Falcó. – Procurarei que tudo esteja em
ordem quando você desembarcar.
– É o que eu espero.
– Será em breve, suponho.
– Também espero isso. – O outro olhava em volta com um gesto
incómodo. – Este lugar não é para mim. – Surpreendeu o olhar de Falcó e
esboçou o mesmo sorriso de antes. – Talvez você compreenda... Eu sou um
soldado.
Seguiu-se um silêncio tão longo que quase se tornou incómodo.
Permaneciam em frente um do outro, como se hesitassem em despedir-se.
No seu próximo encontro, pensou Falcó, não iam ter tempo para
confidências.
– Boa sorte, Fabián.
– Boa sorte.
Apertaram a mão. Um aperto firme de ambas as partes. Depois, Estévez
girou sobre os calcanhares e foi pela rua acima enquanto Falcó o via
afastar-se. Com as mãos nos bolsos do longo sobretudo escuro, a cabeça
descoberta e ar melancólico, o falangista caminhava envolvido na aura que
rodeava os heróis, os mártires e os verdugos inocentes. Que, segundo a
experiência de Falcó, eram os verdugos mais perigosos.
*
A cafiaspirina começava a fazer efeito, dissipando a dor de cabeça de
Falcó, e também lhe causava uma sensação de lucidez otimista enquanto
contemplava a paisagem. Para lá da ponte romana, o Tormes descrevia uma
curva que refletia em tons de nácar e prata o azul nublado do céu. A velha
Salamanca de sempre, eclesiástica e universitária sob torres, cúpulas e
campanários – também castrense e patriótica há uns meses, com os alunos a
combater na frente e os catedráticos a denunciarem-se uns aos outros –,
assomava na margem oposta do rio, colorida em tons ocres e pardos. Tinha
visto vir Chesca Prieto ao longe, a atravessar a ponte em direção ao parque
de merendas, depois de ter estacionado o Renault Cabriolet de dois lugares
que ela própria conduzia. Usava um vestido aos quadrados cinzentos e
verdes com uma capinha curta sobre os ombros, boina cinzenta, sapatos de
meio salto, um toque discreto de rouge nos lábios, lápis de sobrancelhas. A
maquilhagem certa. Movendo-se tranquila e segura de si, da sua beleza e
posição social. Comparecendo ao encontro como a maior parte das
mulheres comparecia ao primeiro encontro: mais por curiosidade e desafio
do que por desejo.
– Ainda não percebi o que é que faz um oficial da Armada em Salamanca.
Não ia ser fácil, concluiu Falcó ao fim de quinze minutos de conversa.
Não naquela primeira campanha, desde logo. Ela sabia coisas sobre ele, ou
pelo menos da parte do seu passado que podia considerar-se pública. Sem
dúvida que o cunhado, que naquela mesma manhã voltara a incorporar-se
na guerra, a elucidara um pouco mais a esse respeito. Isso, naturalmente,
intensificava a curiosidade da mulher, mas extremava as suas reservas.
Fazia-a adotar uma tática muito feminina baseada na suave agressão
defensiva. Tatear o inimigo e estudo de reações; nada novo no velho manual
da vida. Mas como era uma mulher inteligente, arriscava o suficiente para
deixar buracos nas trincheiras: convites para penetrar por esses buracos,
com risco e benefício de quem o tentasse.
– Sim, disse-lhe.
– Não é verdade. Não me disse nada. Além disso, ao que sei, foi expulso
da Marinha quando era novo.
– O Levantamento mudou as coisas. Precisavam de gente. Readmitiram-
me.
– Segundo o meu cunhado Jaime, muito desesperados devem estar para o
readmitir. Não era um rapaz exemplar, disse-me ele a rir. Assuntos de saias
e indisciplina.
– E o que é que lhe disse mais?
– Que depois andou pela América e pela Europa, metido em negócios
turvos.
– O seu cunhado é um brincalhão.
– Não acredite nisso. Os meses que esteve na frente tiraram-lhe a vontade
de brincar.
Havia uma garrafa de vinho branco e dois copos em cima da mesa. Ela
bebeu um golo do seu, pensativa. Na mão esquerda ostentava uma aliança
de ouro juntamente com um anel simples com um pequeno diamante.
– Talvez não saiba, mas cruzámo-nos em duas ocasiões – disse ela
momentos depois.
– Impossível. Lembrar-me-ia de si.
– Estou a falar a sério... Uma foi no grill do Palace, em Madrid. Eu estava
com uns amigos, o senhor jantava numa mesa próxima e alguém que o
conhecia referiu o seu nome.
– Em que termos?
– Simpático, viajado e de pouca confiança. Foram essas as palavras.
– Caramba... E onde é que me viu pela segunda vez?
– Em frente do casino de Biarritz, no parque. Há coisa de um ano. Usava
casaco azul, chapéu panamá e calças brancas, e dava o braço a uma mulher.
– Espero que fosse uma mulher bonita.
– Era, sim. E os comentários que o senhor suscitou também não foram
elogiosos. Dessa vez tratava-se de Pepín, o meu marido... Conhece-o?
Falcó assentiu, cauteloso. Terreno delicado.
– Vagamente.
– Era o que me parecia. – Sorria de forma quase cruel. – Naquele dia em
Biarritz, ele não pareceu mostrar muito apreço por si.
– Não se pode ganhar sempre. Nem com toda a gente.
– Claro. Embora não tenha aspeto de ser dos que perdem.
– Faço o que posso.
Agora Chesca olhava para ele de um modo diferente. Como se procurasse
brechas na estrutura. Cruzou as pernas e Falcó pensou que uma mulher
como deve ser sabia cruzar as pernas, fumar e ter amantes com a elegância
adequada. Sem lhes dar importância. E aquela, sem dúvida, sabia.
– É imprescindível que sejam bonitas? – perguntou ela por fim,
subitamente.
– Perdão?
– Refiro-me às mulheres da sua vida.
Falcó continuou a aguentar impávido o olhar. Se o afastasse, sabia
sobejamente, o peixe romperia a linha e escapar-se-ia com um bater de
cauda.
– Não me lembro de nenhuma mulher que o fosse tanto como a Chesca.
– Já me disse isso ontem. Certamente que dispõe de mais respostas.
Pensou por instantes. Apenas dois segundos.
– Já que todas requerem o mesmo esforço – disse ele por fim –, é
preferível que valha a pena.
– Quer dizer que pelo mesmo preço deseja obter o melhor produto?
– Mais ou menos.
– E onde é que situa as mulheres inteligentes?
– Isso e ser bonita é compatível.
– E se não for assim?
– Então prefiro a bonita.
Ela tinha estendido de novo a mão para o copo, mas não chegou a tocar-
lhe.
– É sempre tão brutalmente sincero?
– Só quando além de bonita a mulher é inteligente.
Viu que ela apoiava a mão devagar sobre a mesa. A dos anéis.
– Senhor Falcó...
– Lorenzo, por favor. Já lhe disse. Lorenzo.
– Não vai dormir comigo.
– Agora, é o que me está a dizer?
– Nunca.
– Conceda-me, pelo menos, o direito de tentar.
– Eu nos seus direitos não me imiscuo. – Continuava a manter a mão
sobre a mesa, diante dos olhos dele. – Mas sou uma mulher casada.
– Isso não tem por que ser obstáculo. Pelo contrário.
– Pelo contrário... Prefere-nos casadas?
– É conforme. Muitas vezes uma mulher casada tem coisas a perder. É
mais cuidadosa. Mais prudente.
– Não lhe complicam a vida a si, quer dizer?
Não respondeu àquilo. Não devia. Por isso pegou na cigarreira que estava
em cima da mesa e ofereceu-lha, aberta. Ela pegou num cigarro, mas negou
com a cabeça quando ele, depois de pôr outro na boca, lhe aproximou a
chama do isqueiro.
– E onde é que deixa os sentimentos?... Onde estão o amor e os afetos?
– Nada disso fica excluído. – Falcó acendeu o seu próprio cigarro e olhou
para ela entre a primeira baforada de fumo. – O que acontece é que nunca vi
a necessidade de fazer o que vocês fazem... Quase todas tomam a precaução
de se apaixonar antes.
– Para nos protegermos?
– Para se justificarem.
– Santo Deus. Que descaramento! Nunca ouvi planear com tanta frieza
um adultério.
Tinha deixado o cigarro por acender em cima da mesa, como se fosse um
objeto depreciável, antes de se pôr de pé.
– Vai-se embora?
– Naturalmente.
– Acompanho-a até ao seu carro.
– Não se incomode.
– Insisto.
Deixou uma boa gorjeta em cima da mesa, perante o olhar desconcertado
da empregada do parque de merendas, e levantou-se também. Caminharam
em silêncio incómodo pela estrutura de pedra milenar. A ponte romana
estava deserta.
Salamanca erguia-se do outro lado, monumental e casta.
– Estarei uns tempos fora – disse ele. – Em viagem.
– É-me indiferente onde quer que esteja.
– Não. Não lhe é indiferente.
Tinha parado, e ela também o fez. O rosto parecia impassível, mas
entreabria um pouco os lábios e o queixo tremia-lhe muito levemente. Com
súbita lucidez, seguindo o instinto do momento – às vezes aquilo era como
jogar xadrez –, Falcó ergueu uma mão, cauteloso, e pôs-lhe dois dedos no
pescoço, como se estivesse a ver-lhe a febre ou a pulsação na artéria. A
mulher deixou que ele assim fizesse, imóvel. E quando ele verificou que
pelos olhos verdes passava uma cintilação de ternura e calor, derretendo-os,
aproximou a sua boca da dela.
– Vou-me embora amanhã – disse ele em voz baixa, ao retirar-se. – E
oxalá estejas aqui quando eu regressar.
– Filho da puta – disse ela.
– Sim.
*
Leandro, o barman do Gran Hotel, deixou de agitar o shaker e despejou o
seu conteúdo no copo de Lorenzo Falcó. Este olhou para o copo por
momentos a contraluz, depois ergueu-o um pouco mais e tocou com o vidro
no copo do Almirante, que bebia um whisky escocês com gelo e sem água.
– À sua saúde, senhor Almirante.
– À tua, que vais precisar mais dela.
Beberam em silêncio, sem pressa.
– É bom – comentou o Almirante, satisfeito, estalando a língua. – Não é
esse marado que falsificam no Porto.
Iam vestidos à civil, como de costume, e ocupavam dois banquinhos do
recanto do balcão mais perto da porta. Àquela hora o bar era frequentado
pela clientela habitual: militares de uniforme, uma ou outra camisa azul,
correspondentes estrangeiros e proprietários rurais com cheiro a vara
campina; felizes estes últimos, depois de cinco anos de tormentos
republicanos, por terem os seus jornaleiros com a cabeça baixa ou a
apodrecer em montados e valetas.
– Quando é que te vais embora? – quis saber o Almirante. Estivera a
demorar a pergunta um bom bocado.
Falcó olhou para o relógio. Já tinha feito as malas no seu quarto: uma
mochila, roupa e botas de campo, cigarros e cafiaspirinas. Também a
Browning com três carregadores, uma navalha de mola automática e um
livro com uma chave numérica e outra alfabética. Ia levar a lâmina de
barbear oculta no lado interno do cinto.
– Daqui a oito horas passa um carro para me vir buscar.
– Madrugarei para vir despedir-me de ti.
– Não se incomode.
– Não é incómodo. Quero assegurar-me de que vais mesmo... Quem é que
te leva?
– O Paquito Araña. De carro por Sevilha até Granada e depois
desenrasco-me sozinho.
– Já voltou de França?
– Ontem.
– Bom elemento... Sabias que, mesmo maricas e tudo, foi pistoleiro de
Lerroux, em Barcelona? Que foi ele quem matou o Chiquet del Raval, entre
outros?
– Sim. Sabia.
– A parte dele no comboio, em Narbonne, correu bem. De vocês os dois,
quero dizer. Aquela mulher...
Deixou aquilo ali, fechando a questão com um trago.
– Não há diferença – disse Falcó uns instantes depois.
– Eu sei.
Falcó sorria junto ao rebordo do seu copo.
– São apenas velhos complexos, não acha?... Quando encontram as
circunstâncias certas, elas matam e morrem tal como os homens.
– Às vezes, até melhor.
Houve um longo silêncio. Depois o Almirante perguntou-lhe por onde é
que pensava atravessar as linhas.
– Atravessarei pelo setor de Guadix.
– Anda com atenção. Se os nossos te surpreenderem, podem pensar que te
estás a passar para o inimigo e dar-te um tiro sem tempo para explicações.
Sobretudo se forem os mouros: «Tu estar vermelho, eu fuzila»... Já sabes.
– Nessa parte, a frente encontra-se estável – disse Falcó. – Há uns dois
sítios bons.
O Almirante olhava para um grupo sentado numa mesa, ao fundo. Estava
a levantar-se para se despedir. Um deles usava o uniforme verde da Guarda
Civil.
– Olha quem está ali: o Lisardo Queralt. O carniceiro de Oviedo.
Falcó virou-se para o grupo. O coronel Queralt encarregara-se de torturar
e fuzilar dezenas de mineiros durante a sinistra repressão da sublevação de
1934 nas Astúrias, embora os seus dotes no campo de batalha não se
equiparassem à sua capacidade sanguinária. Durante o Levantamento tinha
levado uma coluna sob o seu comando ao mais absoluto desastre em
Navalperal de Pinares, com resultados de mortandade. Tinha sido destituído
por isso; mas cultivava boas relações no quartel-general, e a sua falta de
escrúpulos tornava-o perfeito para dirigir a repressão interna. Por isso,
Nicolás Franco, o irmão do Caudilho, nomeara-o chefe da polícia e
segurança. A secreta, como se dizia.
– Eh, caramba, que surpresa... Os rapazes que andam à vontade, ou que
assim julgam. O javali e um dos seus javalizinhos.
Parara junto deles a caminho da porta, com o tricórnio nas mãos. Era
corpulento e tinha um rosto sombrio e desagradável, com o olhar muito fixo
e os lábios grossos e pálidos. Falcó sabia que a relação de Queralt com o
Almirante era antiga e tempestuosa. Uma questão de rivalidades, ciúmes e
maus modos por parte do coronel. Mas Nicolás Franco protegia-os aos dois,
o que os punha a salvo um do outro. Para já.
– Sei quem você é – disse ele a Falcó, grosseiro. – Sei tudo.
– O que é que sabes? – inquiriu o Almirante, divertido.
– O que este teu cão de fila vai fazer. – O outro separou o polegar do
indicador aí uns dez centímetros. – Tenho um processo assim grosso sobre
ele. O tráfico de armas e algumas mortes à conta disso. Ou seja, tudo.
– Há sempre um quase. – O almirante sorriu com chacota.
Falcó olhava para Queralt sem descolar os lábios. Este dirigiu um olhar
sinistro ao Almirante.
– Brinquem aos espiões enquanto puderem.
Dito isto, foi com os outros. Falcó continuava a olhar para ele.
– Esse filho da mãe chateia mais do que um prego num sapato –
comentou o Almirante.
– E o que é que ele diz que sabe?
– Não te preocupes com isso.
Falcó deixou o copo vazio no balcão.
– Como é que não me preocupo?... Sou eu quem se vai meter na zona
vermelha. Queralt estará a par do que eu vou fazer?
– Talvez.
– Talvez?... É um assunto público ou quê?... Primeiro a Falange, agora a
polícia. Fica alguém por informar acerca das minhas coisas em Alicante?
O Almirante olhava para um lado e para o outro.
– Baixa a voz, caralho.
– Tanto faz eu baixar como não. Porque já me estou a ver, com foto
incluída, na primeira página do El Adelanto.
– Estás a exagerar. É natural que certa gente tenha sido informada.
– Isso também inclui o outro lado?
– Basta. – Olhou para ele com severidade. – Não me faças cenazinhas de
rufião ofendido. Sabes como isto funciona, com toda a gente a meter a
colher na sopa... Por outro lado, há coisas que me preocupam mais.
– Mais do que os vermelhos estarem à minha espera com banda de
música?
O outro fez soar o gelo no seu copo.
– Fala-se de unificar os serviços secretos e a polícia nos próximos meses.
Com um só comando geral. E se for sob o de Queralt, podemos considerar-
nos todos fodidos.
Falcó tinha a boca aberta.
– Péssima notícia.
– Bem podes dizê-lo.
– O que é que lhe acontecerá a si?... E ao SNIO?
O Almirante tinha tirado do bolso um cachimbo Dunhill e uma bolsa com
tabaco e enchia a fornalha com parcimónia, pressionando com o dedo
polegar.
– Não faço a mínima ideia – respondeu. – Por isso espero que a tua
questão corra bem. Não seria mau mostrarmos um trunfo espetacular nesta
corrida para ver quem é que manda e, de passagem, fazer a vida negra aos
outros.
Falcó bufou, abatido. Estava a desejar, pensou, encontrar-se longe dali,
em zona inimiga. Dono da sua própria sorte, atos e destino. No campo de
operações, pelo menos, as coisas estavam claras: eram todos inimigos
declarados e podia agir-se com eles como tal. Matar ou morrer convertiam-
se em coisas simples. Não obrigavam, ainda por cima, a dar voltas à cabeça.
– Ofereça-me outra bebida, Almirante. – Encolheu os ombros. – É o
mínimo.
– Disseste que eras tu que oferecias. Por isso é que pedi um whisky
escocês.
– Mudei de ideias.
Enquanto o barman agitava novamente o shaker, Falcó viu Greta Lenz
atravessar o vestíbulo a caminho do seu quarto. Sabia que o marido estava
fora, em Burgos, a resolver um assunto de negócios. Só ia voltar no dia
seguinte.
– Sirva-o ao senhor, Leandro. O hupa-hupa.
– Eu não bebo essas paneleirices – grunhiu o Almirante.
– Então beba outro whisky escocês. Eu tenho de ir.
Levantou-se do banquinho, dirigiu um sorriso de despedida ao Almirante
e caminhou até ao vestíbulo ajustando o nó da gravata. Ainda pensou um
momento em Chesca Prieto, apenas cinco segundos até carregar no botão
do elevador e esquecê-la.
5
OS AMIGOS DE FÉLIX
E stava com Eva Rengel em casa dos irmãos Montero, depois de jantar. A
mãe, uma mulher rechonchuda e simpática que era parecida com a filha,
tinha retirado os pratos e fechado a porta, deixando-os tranquilos. Ouvia-se
o assobio suave de um aquecedor a gás. Aquela era a sala de jantar de uma
casa de classe bem instalada, sem excessos: móveis de mogno escuro,
retratos familiares nas paredes. Sobre a toalha havia um mapa e uma planta
desdobrados entre chávenas de café vazias, cinzeiros e um maço de Muratti
encetado a meio, um caderno escolar e um lápis. Também uma garrafa de
Fundador, um sifão e copos. Para obedecer às regras do escurecimento, o
grande candeeiro de vidro suspenso do teto estava apagado, e fechadas as
portadas de madeira da sacada. O fumo do tabaco acinzentava o cone de luz
do candeeiro flexível posto em cima da mesa.
– Esta é a cela do José Antonio. – Em mangas de camisa, Falcó mostrava
tudo na planta, que tinha sido desenhada à mão. – Para lá chegar é preciso
passar por este pátio, e por este. Aqui à direita, estão a ver?... Pelo corredor.
– Isto é um gradeamento? – apontou Ginés Montero. A planta refletia-se
nas lentes dos seus óculos.
– Sim. E aqui há outro. – Falcó indicou o ponto exato. – Supõe-se que
teremos as chaves.
– Conta com isso. O camarada que temos entre os funcionários garantiu-
nos que sim... Como é que vamos passar pelo portão principal?
– Chegaremos no primeiro carro, seis de nós, dizendo que trazemos um
detido. Levamos uma ordem com todos os carimbos correspondentes, para
evitar problemas: CNT, UGT, FAI... Quando abrirem, atacaremos com
pistolas metralhadoras e bombas de mão e os restantes seguir-nos-ão.
Montero olhou para a sua irmã e para Eva antes de concordar, satisfeito.
– Agrada-me. Mas como armas de guerra, nós só temos uma caixa de
granadas Lafitte, três pistolas Star de nove milímetros longas e uma centena
de cartuchos.
– Servirá, embora esteja previsto que a força de desembarque traga mais –
tranquilizou-o Falcó. – Armas, munições e bombas para todos.
– Colossal.
Falcó dobrou a planta da prisão e meteu-a no bolso do blusão que estava
pendurado no espaldar da cadeira.
– Há alguma objeção?
– Tu és o responsável a partir de agora – disse Montero. – São essas as
minhas ordens.
– Isso não tem muita importância. Eu só coordeno. O trabalho prévio terá
sido feito por vocês.
– Também vais assaltar a prisão?... Quero dizer, se vais entrar nela?
– Ainda não sei.
– Ainda há o irmão dele, o Miguel. Suponho que o tiraremos.
Falcó pensou em Miguel Primo de Rivera. Conhecia-o de vista, tal como
aos seus outros irmãos: havia ainda uma rapariga, Pilar. Ao mais novo,
Fernando, encontrara-o às vezes em Jerez, quando era pequeno, ainda de
calções, quando os seus irmãos começavam a fumar os primeiros cigarros, a
ensaiar passos de tango e a ficar apalermados com raparigas. Fernando já
tinha sido fuzilado em Madrid. Quanto a Miguel, estava preso com José
Antonio e ia ser julgado em breve. Tal como estavam as coisas, uma
sentença de morte era mais do que provável.
– As minhas ordens não o incluem – disse ele.
– Mas é um camarada – protestou Montero.
– Vai dar ao mesmo. A prioridade é libertar o José Antonio... Se quando
ele estiver a salvo houver oportunidade, ajudar-se-á outros presos. Mas nada
disso se poderá fazer senão quando a sua fuga estiver garantida, com ele
fora da prisão.
– Alguns são falangistas – insistiu o outro. – Serão assassinados, se os
deixarmos lá.
– Isso não é problema meu. As minhas instruções referem-se a um único
preso. Quanto aos outros, não temos meios para os retirar a todos. E o local
de embarque dista meia hora de automóvel... Não há transporte, nem
capacidade no barco que nos irá recolher na praia.
– Podemos soltá-los e eles que se desenvencilhem – sugeriu Cari
Montero.
– Não confio nisso. Supondo que teríamos tempo e oportunidade para
isso, iriam colar-se a nós que nem lapas. Ocupariam lugar e atrasariam a
fuga.
– Tu não és dos nossos – espicaçou Montero. – Há coisas que...
Falcó olhou para ele com dureza.
– Não há coisas que valham. Vocês distinguem-se pela vossa disciplina,
não é?... Pois é uma boa ocasião para o demonstrar. Decidiu-se assim, e
assim se deve fazer.
Serviu-se de um dedo de conhaque num copo e acrescentou um jato curto
de sifão. Os dois irmãos e Eva olhavam uns para os outros.
– Há outra coisa – disse Montero. – Elas querem vir.
Falcó semicerrou as pálpebras com o sabor do conhaque na boca. Depois
moveu a cabeça e pousou o copo sobre a toalha muito devagar.
– Nem pensar.
– Já lá estiveram. Correram muitos riscos.
– Então isso já chega.
– Podem ser-nos úteis como apoio. Não é preciso que entrem na prisão. E
sabem usar as armas.
– Sabemos usar pistolas e granadas – confirmou Cari. – O Ginés ensinou-
nos. E ela é muito boa condutora.
Eva apoiava os cotovelos na mesa, com as mãos debaixo do queixo. Um
cigarro fumegava entre os seus dedos.
– Sim – confirmou. – Conheço bem os automóveis.
Falcó pensou naquilo. Na sua experiência pessoal. Nas suas recordações.
Tinha matado homens por culpa, ou por causa, de mulheres. Elas
facilitavam esse género de coisas. Não importava o quão inteiras ou
decididas fossem, ou que soubessem valer-se por si mesmas. Eram os
velhos instintos que sempre, acima de qualquer razão, acabavam por
interferir de modo perigoso. Tanto fazia que o móbil masculino fosse a
vaidade, o impulso dominador ou protetor, ou até sentimentos mais nobres,
como o afeto, a humanidade ou o amor. Postos em situações extremas ao
lado de mulheres, a maior parte dos homens não era capaz de se subtrair ao
impulso básico de as proteger. E isso tornava-os descuidados. Vulneráveis.
A eles, em primeiro lugar, e a elas como consequência. A todos.
– Quanta gente teremos lá, além dos que vêm por mar?
Eva e Cari continuavam a observá-lo, expectantes. Evitou os seus olhares
com um golo de conhaque.
– Elas as duas e outro camarada – disse Montero – podem vigiar a praia e
fazer sinais ao barco.
– Qual outro camarada?
– Um de Alhama, muito novo, mas de confiança a cem por cento. Um
estudante chamado Ricote. Tu e eu conduziríamos os do grupo de assalto...
O que é que achas?
Falcó continuava a evitar o olhar das duas mulheres. A verdade, concluiu,
é que não tinha gente de sobra.
– Parece-me bem – aceitou por fim. – Mas ficarão na praia.
Aquilo foi acolhido por um percetível suspiro de alívio. Agora, ao erguer
a vista, Falcó encontrou os olhos de Eva. Fitava-o de forma estranha entre
as espirais de fumo do seu cigarro.
– Quantos é que vão desembarcar? – quis saber Montero.
– Disseram-me que uns quinze... São todos gente bem treinada, decidida.
Escolhida em centúrias da Falange que estão a combater na frente.
– Hora?
– Meia-noite. E Alicante fica a nove quilómetros. Teremos uma hora e
meia para tudo: desembarcar, ir à prisão e estar de regresso na praia.
– Conheces o lugar?
– Não. Só pude vê-lo como aqui, nos mapas.
Montero apontou para o que estava em cima da mesa. Um velho mapa
militar, topográfico, uma tira estreita entre curvas de nível muito juntas e o
mar.
– É aqui, a norte do cabo de Santa Pola. Vês?... Chama-se El Arenal. Há
um pinhal extenso num terreno fundo e uma praia com dunas. Os pinheiros
chegam quase até à beira-mar.
– É preciso passar por alguma povoação para lá chegar?
– Não. Há um caminho de terra que sai da estrada de Cartagena para
Alicante e entra no pinhal... É tudo muito discreto.
Falcó tirou um Muratti, bateu com ele suavemente no mostrador do
relógio e acendeu-o pelo lado da marca impressa no papel. Fazia sempre
assim para que ardesse primeiro por esse lado, deixando o menor rasto
possível. Um fumador podia ser facilmente identificado pelas suas beatas.
Aquela não era a sua marca habitual, mas o reflexo automático continuava a
ser o mesmo. E ele, entre muitas outras coisas, era um conjunto bem
coordenado de reflexos automáticos. Ajudavam a conservar a saúde e a
cabeça. Não era a mesma coisa ser um alvo fixo que um alvo móvel.
– Disseram-me que trarias mais alguma gente.
– É verdade – disse Cari. – Dispomos de uma esquadra que é de
confiança: rapazes dispostos a tudo. São três camaradas de Múrcia que têm
um camião: os primos Balsalobre e um guarda de assalto chamado Torres.
– Não quisemos comprometê-los até agora – confirmou o irmão –, mas a
ocasião assim o exige.
– Eles sabem qual é o objetivo da missão?
– Não. Mas são disciplinados e comparecerão onde os mandarem.
– O guarda de assalto é de confiança?
– Completamente. Camisa velha.
Com o cigarro a fumegar-lhe na boca, Falcó tinha ido tomando nota
mental de tudo. Exceto a planta da prisão, necessária para os que iam
desembarcar, não levava consigo nenhum outro documento que estivesse
relacionado com a operação. Há muito tempo que não apontava nada que
não fosse imprescindível; porventura, notas breves que destruía assim que
as memorizava. O excesso de papel nos bolsos também matava uma pessoa
com facilidade. No dia em que lhe falhasse a memória, teria chegado o
momento de mudar de ofício. Ou de se deixar liquidar como um idiota.
– Com os quinze do grupo de assalto seremos vinte e quatro, contando-as
a elas – disse ele. – Não é muita gente.
– Não dispomos de mais. Por isso é que precisamos da Eva e da Cari... E
mesmo assim, não seremos vinte e quatro, mas sim vinte e três.
– Porquê?
A resposta ficou adiada, pois naquele momento a mãe dos Montero
irrompeu na sala, pálida e a tremer de angústia. Tinha parado um carro na
rua, disse ela. Santo Deus! E saía gente armada.
– Vêm para aqui?
– Não sei.
Falcó tirou a pistola do blusão e meteu-a no bolso de trás das calças.
Apagaram o candeeiro e os cigarros. A mãe rezava em voz alta, meu Senhor
Jesus Cristo, Virgem santíssima, de forma incoerente e atropelada, até que o
filho lhe ordenou silêncio. Falcó encaminhou-se para as portadas da sacada,
entreabrindo-as um pouco. Não conseguia ver o suficiente, por isso
introduziu-se pela abertura, colado à parede, e olhou para a rua. Na
penumbra, viu um automóvel parado em baixo. Era de cor escura e sobre o
capô, pintadas a branco, sobressaíam as letras UHP. Havia sombras com
carabinas.
– Vão à casa em frente – sussurrou Montero. – Uma rusga.
– Quem é que vive lá?
– Vizinhos diversos. Um é militar retirado, com uma filha freira que
expulsaram do convento quando o incendiaram, e um filho que se passou
para o outro lado. O pai votou à direita. Talvez vão por causa dele... A estas
horas costumam começar as visitas noturnas.
Ao falar brilhava-lhe na mão o canhão niquelado de um revólver.
– Guarda isso – disse Falcó. – Se te escapa um tiro estamos feitos.
– Tu também pegaste na pistola.
– Mas tenho-a no bolso.
Podia cheirar o seu medo, embora o tenha satisfeito verificar, ou intuir,
que era um cheiro a medo tranquilo, sereno. O de alguém resignado a tê-lo,
assumindo-o sem se ver descomposto por ele. Ficaram ali os dois, imóveis,
coisa de uns quinze minutos, com as mulheres a aguardar, tensas, na sala de
jantar. Ouviam a mãe a murmurar rezas. Por fim, saiu um grupo de sombras
da porta de entrada em direção ao carro. Agora havia luz numa das sacadas
e duas mulheres assomadas. Ouviam-se gritos e choros. De baixo, uma voz
desabrida ordenou que se metessem para dentro e apagassem a luz ou
levavam um tiro. A sacada ficou às escuras.
*
– O que é que se passa no número vinte e quatro? – quis saber Falcó.
Ele e Montero estavam de regresso à sala de jantar. A mãe tinha ido a
chorar e sem deixar de rezar. Virgem santa. Que loucura! Que Deus os
amparasse a todos. O candeeiro flexível iluminava de baixo os rostos graves
de Eva e de Cari.
– É o Juan Portela – disse o outro. – Um do nosso grupo. Não confiamos
nele.
Falcó apontou para as duas jovens.
– Elas falaram-me disso... Até quando é que vocês confiaram?
– Até há demasiado pouco tempo – disse Cari.
– Sabe alguma coisa de mim?
– Nada.
– E de Alicante?
– Também não. Sabe que existe o projeto e nada mais.
– Qual é o problema, então?
– Nas últimas semanas caíram três camaradas, e ele conhecia-os a todos.
Falcó fez uma expressão desagradável. As paranoias eram habituais no
seu mundo, mas isso não significava que o inimigo não fosse realmente
atrás de alguém. O problema era encontrar o ponto de equilíbrio entre golpe
baixo da imaginação e ameaça real.
– Suponho que vocês também os conheciam – tateou.
Aquilo não caiu bem. Seguiu-se um silêncio breve, incómodo.
– Isso não tem graça nenhuma – disse Cari.
O seu irmão tinha-se levantado. Foi até um aparador e meteu a mão entre
o móvel e a parede.
– A Eva viu-o na Câmara duas vezes. Em gabinetes onde não teria nada
que fazer... Isso levou-a a investigar um pouco e obteve isto.
Retirara do esconderijo duas folhas de papel datilografadas e agrafadas
que pôs nas mãos de Falcó. Tinham o timbre da Unidade Especial de
Segurança e Vigilância. Segundo me manifesta Juan Portela Conesa, de
trinta e dois anos de idade, solteiro, domiciliado na rua do Salitre, número
7... O documento era assinado por um tal Robles, com o selo da polícia
junto à rubrica, e continha o resumo de uma conversa na qual se davam
referências sobre várias pessoas de direita. Segundo o texto, Portela
denunciara-as.
Falcó estudou o documento. Os selos pareciam autênticos.
– Desde quando é que vocês têm isto?
– Há três dias.
– E como é que chegou às vossas mãos?
– A Eva, pelo seu trabalho de intérprete na Câmara, tem acesso a muitas
coisas.
Falcó olhou para a jovem com sincero respeito.
– Isso é arriscar a vida.
Ela sorria apenas, distante. Tinha tirado outro cigarro. Falcó pegou na
caixa de fósforos e ofereceu-lhe lume. Eva inclinou-se sobre a chama, e as
suas mãos roçaram nas dele por um momento.
– Fiquei que nem uma pedra – disse ela com simplicidade, expulsando o
fumo – quando vi esse papel.
– Não vão dar por falta desse documento?
– Espero que não, pelo que implica para mim... Trouxe-o para que o vejas
e devolvê-lo-ei assim que puder.
Disse aquilo com calma, sem lhe dar importância. Aquela era uma mulher
com casta, pensou Falcó. Achava-a mais bonita agora, sem a gabardina.
Quando ela a tirou ao entrar em casa, ele reparou nas pernas bem torneadas
e na saia azul que desenhava as suas ancas largas, de fêmea vigorosa; nos
serenos olhos castanhos, nos ombros de nadadora, nos lóbulos das orelhas
sem furos e no pescoço comprido, forte, descoberto entre a blusa e o cabelo
louro muito curto. No entanto, concluiu um pouco desconcertado, havia
algo equívoco nela. Talvez aquelas mãos vulgares, de unhas descuidadas.
Também uma certa dureza de ordem física excessiva, quase masculina,
acentuada pela ausência de maquilhagem. Por breves instantes, e pela
primeira vez, perguntou a si mesmo se além de falangista e corajosa, Eva
Rengel não seria lésbica.
– Um dos referidos no documento era dos nossos – estava Montero a
dizer. – Detiveram-no e não chegou à prisão... Depois de o interrogarem na
checa das Adoratrices, fuzilaram-no no cemitério.
Falcó inclinou-se para trás na cadeira. Refletia.
– O que é que vocês pensaram?
Os outros olharam-se entre si.
– O Juan Portela faz jogo duplo – atalhou Montero. – Talvez devamos
neutralizá-lo antes que isto prossiga.
Falcó olhou para ele, trocista. Achava graça à palavra.
– Neutralizá-lo?
– Chama-lhe como preferires.
– Isso é grave. – Estudou-os um a um, certificando-se. – Trata-se de um
camarada vosso.
– Não é um camarada. É um traidor e um delator.
Falcó olhou para Cari.
– Tu estás de acordo com isso? Com a neutralização desse homem?
Ela não disse nada. Falcó virara-se para Eva.
– E tu?
Também não houve resposta.
– Custou-nos a acreditar – comentou Montero, como se aquilo resumisse
tudo.
– Há quanto tempo é que esse indivíduo é falangista?
– O mesmo que eu. E nunca tinha falhado.
– Tem algum familiar ameaçado, ou na prisão?
– Que eu saiba, não. O pai dele é apolítico. Mas tinha um irmão, que era
capitão de artilharia, que foi executado pelos nacionais em Melilla por não
se juntar ao Levantamento.
– E quando é que ele soube?
– Há um mês.
– Coincide com as primeiras detenções dos vossos companheiros?
– Mais ou menos.
Falcó apagou o seu cigarro.
– É um motivo – opinou – tão bom como outro qualquer.
Ficaram todos calados, a olhar uns para os outros.
– És tu quem decide como vamos fazer – disse por fim Montero. – Agora
estás no comando...
– Não lhe vi a cara – objetou Falcó.
– Posso marcar para amanhã, se quiseres.
– Onde?
– No bar Americano da calle Mayor. Ele costuma tomar ali o aperitivo e
depois joga uma partida nos bilhares da calle del Aire. Trabalha perto, na
alfaiataria do pai. Falo com ele, olhas para ele de longe e identifica-lo...
Marco encontro para depois e nós damos conta dele. Tu e eu.
– Nós também – disse Eva, com súbita dureza.
Falcó calculava os perigos e as vantagens. Naquela altura do complô,
Juan Portela podia já ter dito tudo quanto sabia. Mas também não era
conveniente matá-lo sem mais nem menos. A sua morte podia alertar as
autoridades e precipitar as coisas, estragando-as. Por isso, neutralizar
acabava por ser a palavra adequada. Era importante averiguar quanto é que
Portela sabia, quanto é que desconhecia e quanto é que tinha contado. Se a
pior possibilidade resultasse certa, a razão de ainda não terem agido contra
o grupo podia ser estarem à espera de que a presa fosse maior na hora de
fechar a rede. Nem tudo, entre os vermelhos, eram passeios espontâneos e
disparates de milícias e fações que se estorvavam umas às outras. Também
havia ali gente que pensava.
– Há alguma maneira de o apanhar vivo e interrogá-lo?
– Pode fazer-se.
– Há um princípio militar muito útil – disse Falcó depois de pensar um
pouco mais. – Prepararmo-nos para a hipótese mais provável, mas adotar a
segurança consoante a hipótese mais perigosa.
– Gosto disso – exclamou Cari.
– Eu também – disse o irmão.
– Pois aqui juntam-se o provável e o perigoso... Tu o que é que opinas,
Eva?
A jovem olhou para ele, inexpressiva. Apagava o cigarro esmagando-o no
cinzeiro de forma minuciosa, até que o último resto de brasa fumegante se
extinguiu.
– Façamo-lo – disse ela.
Falcó começava a ter dor de cabeça. Resignado, procurou o tubo de
cafiaspirinas no blusão.
– De acordo – ergueu as mãos, como se se rendesse. – Fazemos isso
amanhã.
*
Madrid resiste à furiosa ofensiva fascista era o título principal de El
Noticiero. E mais abaixo, a duas colunas: Em Cartagena continuam os
bombardeamentos criminosos sobre a população civil. Apoiado à parede
junto ao balcão do bar Americano, Lorenzo Falcó dobrou o jornal e pô-lo
em cima do balcão, ao lado do copo de cerveja. Tinha comprado uma boina
de pichi e posto na gola do blusão uma insígnia do Partido Comunista: uma
foice e martelo de metal dourado e vermelho comprada numa loja próxima,
e que contribuía – pelo menos era essa a intenção – para o mimetizar mais
com a paisagem. Estava na hora do aperitivo, o tempo estava bom, e os
bares e cafés da calle Mayor fervilhavam de gente. Muitos eram homens
novos, em idade militar, que conseguiam não ser mobilizados e ficar na
retaguarda sob a etiqueta salvadora de pessoal imprescindível. Havia
funcionários de escritórios municipais, empregados e proprietários das lojas
próximas, e não faltavam os uniformes. O Americano, que antes da guerra
era um local elegante onde se reuniam os senhores da classe média e alta,
era um ir e vir de caquis militares, de macacões azuis ou cinzentos, casacos
de cabedal, blusões com braçadeiras de agrupamentos e partidos, bonés de
pala, boinas com insígnia e bivaques com borla. Tudo bem acompanhado de
correagem e pistolas, a trezentos quilómetros do mouro ou do legionário
mais próximos. Havia um retrato de Lenine e outro de Estaline entre as
garrafas alinhadas nas prateleiras. Com um sorriso interior, Falcó pensou
que, se toda aquela gente disfarçada de guerreiros fosse enviada para a
frente de batalha, nem que fosse só pelo seu número, seria suficiente para
parar os pés das tropas nacionais. Lembrou-se de um verso que se cantava
do outro lado, mas que também dava para este.
Quando regressas da frente
a primeira coisa que se vê
é que estão os emboscados
sentados nos cafés.
Ao lado de Falcó, um indivíduo trigueiro de mãos e cara, vestido com
camisa aos quadrados e alpergatas e com a cabeça coberta pelo bivaque
vermelho e preto dos anarquistas, onde levava uma bala de Mauser cosida,
tinha apoiado a naranjero4 no balcão e bebia um vermute devagar,
espetando de vez em quando uma azeitona. As mãos eram calejadas e
nodosas, de operário. A beata do seu cigarro, meio consumida, queimava a
madeira do balcão.
– Quanto é que te devo? – perguntou o miliciano ao empregado.
– Oferta da casa, companheiro – disse o outro. – Eu também sou da FAI.
Falcó observou a cara do empregado: uma navalhada sobre uma
sobrancelha, mal encarado, olhos ruins, sorriso velhaco e servil. O seu
melhor pensamento, deduziu, teria vinte anos e um dia de presídio.
– Ah, bom – mastigando um palito, o miliciano pegou na sua pistola-
metralhadora e encaminhou-se para a porta. – Saúde, então.
– Saúde.
Havia algumas mulheres, observou Falcó. Sentadas à mesa ou ao balcão a
conversar com homens. A maior parte usava roupas civis e duas delas
estavam vestidas de milicianas, e uma era bastante bonita; tinha as
sobrancelhas muito depiladas, o bivaque inclinado de forma coquete sobre
os caracóis e, à cintura, uma enorme pistola-metralhadora Bergmann.
Estava num grupo junto à porta, à conversa.
– Não devia restar nem um – ouviu-a Falcó dizer algumas vezes.
– Mas os facciosos têm tanques italianos e canhões alemães – comentou
alguém.
– Basta ter tomates – respondeu a miliciana. – Para ir atrás deles e agarrá-
los.
– Aos tomates? – troçava um.
A outra empinou-se toda, com fúria feminina e proletária.
– Essas piadas fachistas são para dizer à puta que te pariu.
– Desculpa, companheira.
– Qual companheira, qual quê!
Talvez tudo aquilo, disse Falcó para si, marcasse a diferença entre duas
Espanhas. Entre duas barbáries paralelas. Nem sequer se tratava de um
assunto de coragem; matéria da qual, disso não havia a menor dúvida, os
dois lados estavam fornecidos. O que se dava do outro lado era uma
planificada repressão sob comando único, um extermínio sistemático de
tudo quanto cheirasse a democracia, liberdade e ateísmo, com a ideia de
uma nação unida, religiosa e forte acima de tudo. Por isso, em Salamanca
começava a falar-se de Cruzada: uma guerra total feita por militares
profissionais que usavam o terror e o sangue como arma definitiva. E
entretanto, o que havia por parte da República era um disparate de
improvisação, oportunismo e demagogia, com as prisões abertas a 18 de
julho atirando a chusma para as ruas – convertida em milicianos que
gastavam em paródias e mulheres o que roubavam assassinando a esmo –, e
o povo armado, soberano no caos, a ajustar contas; um ódio homicida não
só para com o exército de Franco como para com os membros do seu
próprio lado, partidos e fações em confronto entre si, indecisos entre ganhar
a guerra ou fazer a revolução, incapazes de coordenar um esforço comum;
fora do controlo de uns governantes e políticos alheios à realidade,
divididos, impotentes e incapazes. Por isso iriam ganhar os outros, concluiu
equânime Falcó. Os fachistas, como dizia a miliciana. Não tinham
escrúpulos democráticos, eram os mais criminosamente disciplinados e os
mais fortes. Iam ganhar, sem dúvida, por mais que isso tardasse. E ele
esperava continuar vivo para o comprovar. Quando tudo acabasse não
haveria sepulturas que chegassem.
*
Viu entrar Ginés Montero, com sobretudo e cachecol. O falangista deu
uma vista de olhos à sua volta, e o seu olhar tropeçou em Falcó como se
este lhe fosse desconhecido. Depois foi encostar-se na ponta oposta do
balcão e pediu um café. Falcó ficou onde estava, acabou a cerveja e pediu
outra. O empregado mal-encarado acabava de lha servir quando um homem
novo vestido com casaco, camisola e gravata entrou no local, olhou em
volta e quando descobriu Montero foi colocar-se a seu lado. Trocaram umas
palavras e saíram para a rua. Falcó deixou umas moedas em cima do balcão
e foi atrás.
Seguiu-os pela calle Mayor em direção ao porto. Conversavam com
naturalidade. Juan Portela era mais alto do que Montero e o seu aspeto era
distinto. Tinha pouco cabelo e orelhas grandes e movia-se com lentidão.
Não era malparecido. A sua roupa tinha um corte elegante que contrastava
com o que costumava ver-se pela rua. Ia com as mãos nos bolsos e a cabeça
baixa, ouvindo o que Montero lhe dizia. Ao chegar em frente do casino
pararam e conversaram um pouco mais enquanto Falcó, para disfarçar,
permanecia parado diante da montra de uma casa de luvas. Montero falava
e o outro concordava com a cabeça. Depois separaram-se, Portela continuou
o seu caminho e Montero desandou o seu até parar ao lado de Falcó,
olhando como ele para a montra.
– Convoquei-o para esta noite – murmurou.
Falcó começou a andar sem responder. Portela afastava-se pela rua
abaixo, e ele foi atrás dele, embora essa parte não estivesse prevista. O
combinado era que Montero ajudasse a identificá-lo e mais nada, e assim ter
o seu rosto presente para o que acontecesse mais tarde. Mas a Falcó
apetecia-lhe qualquer coisa mais, e deixou-se levar pelo impulso. Não era a
primeira vez. Podia matar-se um ser humano de muitas formas, mas era
sempre conveniente, ao enfrentar a tarefa, possuir o máximo de informação
possível sobre ele. A sua forma de se mover, de caminhar, de parar, era
fundamental. O modo de olhar ou de se precaver, o grau de confiança ou de
suspeição. Os hábitos e os tiques característicos. Falcó sabia muito bem que
nada no mundo, nem sequer o mais pormenorizado dossiê elaborado sobre
uma potencial vítima, podia substituir os olhos e o instinto do executor. Por
isso, sempre que era possível, convinha rondar a presa, estudando-a. Farejar
o seu rasto na perseguição, com tempo e calma por diante. Os gatos, os
tigres, os felinos em geral, costumavam fazer isso bastante bem. Muito
profissionais. Era algo tão velho e natural como a própria vida e morte. Na
realidade, pensava Falcó, essa era a parte interessante do ato de matar. A
mais atrativa. O resto, golpe, disparo, veneno, punhal, já era pura técnica.
*
Quando entrou nos bilhares seguindo os passos de Portela, este
encontrava-se junto de uma das mesas de fundo, à conversa com o
encarregado. Tinha um taco nas mãos. Havia uma dúzia de pessoas no
salão, todos homens, um uniforme ou outro e muito fumo de cigarros.
Ambiente carregado. O local, escuro, sem janelas, era iluminado por
campânulas de vidro situadas por cima do pano de cada mesa. Ouvia-se o
bater dos tacos nas bolas de marfim, o entrechocar de carambolas e o som
de fichas nos ábacos da parede.
Falcó deambulou entre as mesas, olhando para o desenrolar dos jogos.
Aproximou-se dessa forma daquela onde Portela jogava. Era às trinta e
uma, com o encarregado a fazer de árbitro, e havia mais dois jogadores: um
militar com divisas de sargento de milícias, baixo e hirsuto, e um civil alto e
deselegante, com o casaco roto num cotovelo. Falcó pediu para se juntar à
partida e ninguém se opôs. O encarregado lançou à sorte as bolinhas
secretas, situou os cinco pinos sobre o pano e começaram a jogar. As
apostas eram a cinco pesetas, e a casa ficava com uma peseta por cada um;
Portela foi o primeiro a sair e Falcó o último. Aquele jogava com calma e
habilidade, sereno. Deslizava o taco com suavidade entre os dedos, muitas
vezes, antes de aplicar a pancada à bola adequada. Calculava o lance com
atenção enquanto se inclinava sobre a mesa para alinhar o taco debaixo do
queixo, numa postura impecável, repetindo várias vezes o vaivém no
ângulo formado pelo polegar e pelo indicador. Não caía na vulgaridade de
querer seguir a trajetória das bolas movendo o corpo enquanto estas
rolavam. Fazia aquilo bem. Somou pontos derrubando os pinos certos,
parou quando era preciso e ganhou a primeira partida. A segunda foi ganha
pelo militar. Tinham começado a terceira quando se ouviu lá fora o alarme
aéreo.
– A aviação fascista! – gritou alguém.
Toda a gente, militares incluídos, saiu em debandada a caminho do
refúgio mais próximo. A sala ficou vazia, à exceção de Portela, Falcó e o
encarregado. Este aguardava, muito nervoso, que os jogadores se fossem
embora com os outros. Assim podia ficar, supôs Falcó, com as dezasseis
pesetas da partida inacabada.
– Acho que é a sua vez – disse Portela a Falcó com muito sangue-frio.
Sustiveram o olhar por momentos e Falcó gostou do que via. Verificou
que na boca do outro espreitava um esboço de sorriso. Um pouco de
insolência desdenhosa.
– Pode cair uma bomba – balbuciou o encarregado.
– Cumpra o senhor o regulamento – disse Falcó.
O sorriso de Portela acentuou-se. Punha giz no casquilho com muita
parcimónia enquanto o alarme continuava a tocar lá fora. Adaptando-se ao
estilo, Falcó tirou a cigarreira com cigarros enrolados do bolso e ofereceu
ao outro.
– Obrigado. Não fumo.
Falcó apoiou o seu taco no rebordo da mesa, raspou um fósforo e acendeu
um cigarro. Depois olhou para as bolas e para os pinos por entre a primeira
baforada.
– Acerta no dois com quinze pontos – disse o encarregado, com
resignação.
Estava pálido como o marfim das bolas. Falcó estudou sem pressa o pano
verde. As duas bolas para a jogada estavam muito perto uma da outra no
mesmo canto, e o pino que lhe convinha derrubar era o número um, que
ficava na parte oposta. Era uma tacada difícil, mas sentia os olhos cheios de
medo do encarregado e o olhar atento do outro jogador, por isso não havia
forma de recuar. Inclinou-se sobre a borda da mesa, procurando uma
posição cómoda enquanto alongava o taco.
– O senhor sabe qual é a bolinha que tem? – perguntou Portela ao reparar
no ângulo a que ele ia jogar.
– Perfeitamente.
– Deveria olhar para ela na marca para verificar o que lhe falta.
– Sei muito bem o que me falta – disse Falcó com frieza.
Na rua ouviu-se o ribombar de um estouro de bomba, distante, e depois
outro mais perto. O encarregado teve um sobressalto. Falcó continuava
imóvel, com o cigarro a fumegar na comissura da boca e as pálpebras um
pouco fechadas, estudando a posição das bolas.
– O pino um? – perguntou Portela, compreendendo por fim o que
pretendia.
– Sim.
– Ui. É uma tacada difícil.
– Talvez.
– O senhor terá de bater com bom efeito.
Falcó ergueu a vista por momentos para encontrar os olhos do outro. Este
observava-o com curiosidade tranquila, reparou ele. Não parecia inquieto
com as bombas que caíam lá fora. Ouviu-se outro rebentamento muito
próximo, como se tivesse explodido na própria rua.
– Valha-me Deus – murmurou o encarregado. Não era uma expressão
usual naqueles dias. Tremiam-lhe as mãos, que apoiava na borda da mesa.
– Saia daqui – disse-lhe Portela, com despeito.
– Agora já não posso ir para o refúgio – lamentou-se o encarregado.
– Então desça para a cave, porra.
O fulano não precisou que lho repetissem. Pegou nas suas quatro pesetas
e afastou-se a toda a pressa entre as mesas, virando a cabeça.
– Vocês são muito corajosos.
Quando Falcó voltou a sentir o olhar do outro fixo nele, deu a tacada com
muita energia. A pancada saiu perfeita. A bola bateu e chegou a meio da
tabela longa, ganhando ali efeito para continuar em linha reta até ao pino
número um.
– Trinta e uma exatas – disse ele.
*
Saíram a caminhar juntos quando parou o alarme. Sem falar, quase de
mútuo acordo, andaram até chegarem à base da escadaria que levava à
catedral velha. Uma bomba tinha caído mais abaixo, entre os edifícios da
calle del Cañón, orvalhando as fachadas com varíola de metralha, curvando
para dentro as persianas metálicas das lojas e cobrindo o chão de vidros
partidos e cabos de elétricos derrubados. De forma quase simbólica – o
acaso prega-nos destas partidas, pensou Falcó –, os impactos também
tinham esburacado a faixa inferior, roxa, da bandeira tricolor que uma
tabacaria ostentava sobre o dintel. Havia moradores que observavam os
danos e miúdos a correr por todos os lados à procura de estilhaços
retorcidos de bomba.
– Um copo de vinho? – propôs Falcó.
– De acordo.
A taberna fazia esquina junto à escadaria: balcão de mármore, grandes
tonéis escuros, o cartaz de uma corrida de touros realizada em 1898.
Cheirava a serradura suja e a vinho mau. Pediram dois tintos e conversaram
um bocado sobre coisas sem importância. Nenhum dos dois referiu o bilhar
nem as bombas. Falcó interessou-se pela vida do outro, e este contou que
trabalhava na alfaiataria do pai, muito conhecido na calle Mayor. Um
negócio que corria bem antes da guerra, e que agora tinha dificuldades.
– Nestes tempos, as pessoas já não se preocupam tanto com o que
vestem... Não faltam clientes, claro. Apesar de os pedidos de fatos
elegantes, com bom estilo, escassearem. Não é bem visto.
– Mas há ainda os uniformes, não?
– Com isso recuperámos um pouco. O mesmo aconteceu ao dono da loja
que tem o anúncio grande de Borsalino na porta... Antes vendia chapéus, e
agora boinas e bonés.
– É natural. O povo tem outras necessidades.
Portela olhava para a insígnia com a foice e o martelo na lapela de Falcó.
– A que é que o senhor se dedica?
– Fui mobilizado.
– É daqui?
– De Granada.
– Não me estou a queixar – disse Portela momentos depois. – As coisas
devem ser assim. Mas suponho que tudo isto irá passar e voltaremos à
normalidade.
– A que normalidade é que se refere?
– A não caírem bombas e as pessoas se vestirem como quiserem.
– Como Deus manda?
O silêncio que se seguiu foi quase desagradável. Portela tinha baixado os
olhos e fitava o seu copo de vinho. Por fim ergueu-o de novo, brusco.
– Apesar da insígnia, não pensei que o senhor fosse desses.
– De quais?
– Dos que negam aos outros a liberdade de se expressarem como lhes
apetecer.
– E o senhor é de quais?
Outro silêncio. Agora Portela erguia-se, quase desafiador.
– O senhor viu nos bilhares de quais sou.
Falcó olhava para ele sem dizer nada. O outro encolheu os ombros como
se desse algo por perdido.
– Sempre acreditei que há coisas que irmanam as pessoas – disse ele.
– Está a falar da coragem?
– Essa é uma.
– Acima de ideologias?
– Poderá ser.
Falcó bebeu um golo de vinho.
– Incluindo fascistas e antifascistas?
Sentia fixo em si um olhar diferente, penetrante. Havia nele inquietação,
reparou.
– Já nos conhecemos antes? – perguntou Portela com brusquidão.
– Não creio.
– Mas, com um raio, quem é o senhor?
– É como vê. – Falcó esboçava um sorriso frio. – Um tipo que joga bilhar
e passeia com uma insígnia do partido na lapela.
– Está a provocar-me?
– De todo.
– Agora que penso nisso, parece um polícia.
Falcó soltou uma gargalhada.
– Faça o favor de não insultar.
O outro também se ria entre dentes, embora seco. Com pouco humor.
– Tem razão – disse ele. – Nem sempre as coisas são o que parecem.
– É verdade. Nem sempre.
Portela olhou de lado para o taberneiro, que lavava copos numa pia.
– Suponho que sabe – disse ele em voz baixa – que uma conversa assim
pode acabar comigo levado de casa em pijama às três da madrugada.
– Isso preocupa-o?
– Diga-mo o senhor. – Olhou para ele, provocador. – Deveria preocupar-
me?
Falcó não disse nada. Acabava o resto do vinho no seu copo.
– O que pretende de mim? – insistiu Portela.
– Foi uma partida de bilhar interessante. – Falcó pousou o copo em cima
do mármore. – E é tudo.
Portela ainda olhou um pouco mais para ele de forma inquiridora, e por
fim pareceu desistir. Soltando um suspiro de desalento, quase cansado,
introduziu a mão num bolso e perguntou ao taberneiro quanto é que lhe
devia.
– Eu ofereço – disse Falcó.
O outro foi-se embora sem agradecer nem se despedir. Apreensivo e
silencioso. Recostado na porta da taberna, Falcó ficou a vê-lo afastar-se
pela rua abaixo.
4 Pistola-metralhadora MP 28 II produzida em Espanha, ao serviço dos
republicanos durante a Guerra Civil. (N. dos T.)
8
HÁ CAMINHOS E CAMINHOS
O homem que se aproximava ao longo do muro era uma sombra ao luar. O
muro estava caiado em grande parte e isso facilitava avistar a silhueta
que caminhava apressada, cada vez mais próxima. Sentado na parte da
frente do Hispano-Suiza estacionado na escuridão, aproximando o
mostrador do relógio do cigarro que fumava oculto na concavidade da mão,
Lorenzo Falcó aspirou profundamente para avivar a brasa e ver as horas.
Faltavam quinze minutos para as dez da noite.
– É ele – disse Cari Montero.
Era ela quem estava ao volante do automóvel. Não era fácil conseguir
um, mas alugara-o com dinheiro de Falcó, sob pretexto de uma viagem
familiar a Múrcia com transporte de bens: mil pesetas ao responsável de
uma garagem onde havia uma dúzia de carros e camionetas confiscados
pela UGT, o depósito cheio com dois bidões extra de gasolina e um
documento selado que autorizava o seu uso durante uma semana.
– Vem sozinho – acrescentou a jovem.
– É o que parece.
Recostado no banco, Falcó manteve-se imóvel durante um pouco mais,
observando a rua, até que o homem penetrou no edifício que ficava no final
do muro. Era um pequeno hotel de tijolo e gradeamentos de ferro situado
nos arredores da cidade, confinando com um descampado, entre o bairro de
Santa Lucía e o cemitério. Não havia luz nas janelas. Falcó tinha explorado
o lugar pouco antes de anoitecer, para ter tudo previsto. Rotas de chegada e
de fuga, hipóteses prováveis e perigosas. Rotina de segurança.
– Fica aqui – ordenou ele a Cari. – Certifica-te de que ninguém nos vem
incomodar. E se houver movimento de milicianos...
– Já sei. Buzino e vou a toda a pressa.
– É isso. Deixa os heroísmos para o cinema. Se as coisas se complicarem,
nós temos previsto por onde irmos.
– Não te preocupes. – Ela falava com naturalidade. – Sei o que tenho de
fazer.
– Só deves aproximar o carro da porta quando te avisarmos.
– Sim. De acordo. Boa sorte.
Falcó gostou que ela não ficasse melodramática num momento como
aquele. A tentação era poderosa, supôs. Aventura e perigo. Mas Cari
Montero, como o seu irmão, sabia comportar-se. Era serena e corajosa. Não
se explicava de outro modo que fosse capaz de suportar a tensão e o medo
de atuar em zona inimiga, arriscando-se diariamente a cair nas mãos dos
vermelhos e a ser torturada numa checa antes da inevitável execução.
Falangista capturado era falangista morto; e raramente morria com rapidez.
Era necessária uma fibra especial para suportar isso, e ela tinha-a. Como
também Eva Rengel, pensou fugazmente enquanto apagava o cigarro no
cinzeiro do automóvel. Depois carregou a Browning com uma bala na
câmara, travou-a e voltou a metê-la no bolso direito do blusão. Abriu a
porta e seguiu para casa.
Gostava daquela sensação familiar reencontrada, pensou ele enquanto
caminhava: a pulsação ritmada nos tímpanos e o formigueiro nas virilhas, a
insólita claridade dos sentidos postos em alerta máximo, suspensos do
menor indício de perigo próximo. Só alguns copos, alguns cigarros e
algumas mulheres, consoante o momento, causavam um efeito parecido.
Mas aquele era muito mais intenso. Nenhum dos outros fazia atingir aquele
clímax perfeito, polido e tão liso como o mármore de uma lápide: a certeza
de se mover à vontade por uma paisagem hostil, desolada como a própria
vida, com a confortável sensação de que nada deixava de si para trás, e nada
havia pela frente tão terrível que refreasse o passo a qualquer um. Aquelas
eram a liberdade e a independência totais, sem passado nem futuro; com a
memória, os bolsos, a mente, vazios de tudo o que era prescindível, liberto
até à limpeza absoluta de tudo quanto não fosse útil para a sobrevivência
imediata. E desse modo feliz, sentindo o grato peso da pistola no bolso, que
tinha abraçada entre os dedos, longe ainda o indicador do gatilho, tranquilo
e letal como se levasse ao ombro o arco e as flechas do arqueiro invisível,
com o rosto convertido em máscara de sombras, Falcó avançava semelhante
à noite.
*
A porta não estava fechada com ferrolho, só encostada. Rodou o trinco
atrás de si, atravessou o vestíbulo e meteu-se pelo corredor. Nos degraus de
uma escada que ficava à sua esquerda ardia uma vela meio consumida
numa palmatória. A casa, contaram-lhe os Montero, pertencia a uns
parentes surpreendidos pelo 18 de julho em zona nacional. Os milicianos
tinham-na saqueado durante o verão, sem se excederem muito. Havia
marcas de quadros desaparecidos nas paredes e alguns móveis com as
gavetas abertas. Debaixo dos pés rangia o parquet com restos de porcelana
e de vidro. Falcó empurrou a porta no fim do corredor e entrou numa sala,
iluminada por uma simples lâmpada: uma mesa, meia dúzia de cadeiras,
uma cómoda e um rádio de galena Emerson. Naquele momento extinguia-se
a música do final das notícias da guerra da Rádio Sevilla e ouvia-se a voz
do general Queipo de Llano na sua alocução de todas as noites, destinada a
ouvir-se na zona vermelha: «Boa noite, senhores...».
Falcó tinha meditado muito sobre o que ia fazer. E como fazer. Passou
sem descolar os lábios junto de Ginés Montero e de Eva Rengel, que
estavam sentados diante da mesa, foi até ao rádio e desligou-o. Depois
virou-se para Juan Portela que, da sua cadeira, olhava para ele com espanto.
Levava a mesma roupa que trazia de manhã, nos bilhares: camisola e
camisa com gravata. Alargara o nó, e tinha o casaco no espaldar da cadeira.
Primeiro mostrara alarme ao ver Falcó irromper na sala. Depois, ao
reconhecê-lo, a sua expressão tornou-se estupefacta.
– O que é que o senhor faz aqui? – perguntou, espantado.
Falcó bateu-lhe na têmpora com o punho da mão esquerda, enquanto com
a direita tirava a pistola do bolso. Foi uma pancada curta e seca,
calculadamente brutal, que deixou a cara do outro à banda e o empurrou
para o lado, fazendo-o cair ao chão com a cadeira e o casaco. Sem lhe dar
tempo de se refazer, Falcó caiu-lhe novamente em cima, ajoelhando-se
sobre o seu tronco. Tinha experiência naquilo. A questão era não o deixar
pensar; esmagá-lo tanto e de forma tão seguida que não tivesse tempo de se
preparar mentalmente para o que o esperava. Por isso voltou a bater-lhe,
desta vez atravessando-lhe a cara com uma violenta bofetada que estalou
como uma chicotada. Depois pôs-lhe o cano da pistola entre os olhos.
– Traz armas? – perguntou aos outros.
– Creio que não – disse Ginés.
Parecia tão espantado como Eva. Para se certificar – mais valia prevenir
do que remediar – Falcó revistou com rapidez o homem caído, que olhava
para ele aterrado, sem compreender o que estava a acontecer. Escorria-lhe
um fio de sangue da orelha direita, sujando-lhe o colarinho da camisa. Só
trazia um canivete e umas chaves nos bolsos das calças. Falcó atirou-os
para o outro lado da sala, afastou a pistola da cara de Portela e voltou a
bater-lhe, três vezes. Fê-lo sem especial enfurecimento, só com a violência
adequada. Sistematicamente. Depois pôs-se em pé.
– Sentem-no numa cadeira.
Sem dizer palavra, Ginés e Eva inclinaram-se sobre o homem caído,
ergueram-no pelos braços e sentaram-no. Fizeram aquilo quase com
delicadeza, observou Falcó, apesar de tudo, de velhos camaradas. Aturdido,
dócil, Portela deixava-se levar olhando para eles com olhos turvos enquanto
Ginés se situava atrás dele.
– Segura-o bem – ordenou Falcó.
Ginés continuava pálido, com um ar tão confuso como se também lhe
tivessem batido a ele, e Falcó compreendeu que o jovem falangista não
esperara semelhante brutalidade com o outro, apesar da sua traição. De
forma alguma, é claro, começar a questão daquele modo selvagem.
Certamente imaginara uma aproximação subtil com fumo de cigarros,
perguntas hábeis e respostas a princípio evasivas e depois mais explícitas.
Uma coisa mais progressiva que os fosse levando a todos, de modo natural
e com a consciência assegurada, ao desenlace. Confissão e castigo. Aquela
era sem dúvida a sua primeira vez, e isso arrancou uma expressão malévola
a Falcó. Evitava olhar para Eva Rengel. Perguntou-se se aqueles jovens
idealistas, se ele não interviesse, teriam sabido enfrentar tudo aquilo. À
força acabava por aprender-se, claro. O problema era que, naquele tempo e
circunstâncias, podia não se chegar a viver o suficiente para aprender a
ponta de um corno. Tique, taque, tique, taque. O senhor Tempo voava para
todos, e junto ao relógio de areia trazia uma gadanha.
Deu outra bofetada a Portela, desta vez não muito forte. Fez plaf. Acima
de tudo, para manter o ferro dúctil na forja. Não era bom deixar que
arrefecesse.
– Segura-o melhor – disse a Ginés.
– Faço o que posso.
– Já disse para o segurares, foda-se. Ou queres trocar de sítio?
Enquanto guardava a pistola no bolso das calças – podia ter de tirar o
blusão devido ao exercício, e não gostava de a deixar longe –, Falcó decidiu
por fim olhar para Eva Rengel. A jovem afastara-se até apoiar as costas na
parede. Usava uma camisola cinzenta de gola alta, como a dos pugilistas,
que lhe marcava o busto pronunciado e lhe moldava as ancas sobre uma
saia negra e uns sapatos quase masculinos, sem salto. Tinha cruzado os
braços e não olhava para o homem sentado na cadeira, mas sim para Falcó.
Observava-o com uma tensa curiosidade. Por momentos, incomodado, ele
pensou que não gostava que ela o visse a fazer aquilo. Não era de todo o
que ele gostaria de lhe ter mostrado. Mas naquela noite ninguém podia
escolher. Todos estavam a arriscar demasiado.
– O documento – disse ele, estendendo a mão.
Ginés deu-lho, dobrado em quatro. Falcó desdobrou-o diante dos olhos
desorbitados do prisioneiro.
– Sabes o que é isto?
– Não.
Quando Portela falou, escorreu-lhe um fio de saliva de uma comissura da
boca. Era uma saliva rosada, com rastos de sangue. O que lhe saía da orelha
era vermelho e intenso. Talvez, pensou Falcó, eu lhe tenha rebentado um
tímpano. Por isso aproximou a boca do ouvido são.
– Lê-o, anda. Demora o tempo que quiseres.
Esteve a ver os olhos do outro a moverem-se à medida que percorriam as
linhas. Quando acabou, Portela atirou a cabeça para trás, espantado.
– Isto é mentira – balbuciou.
Falcó tornou a bater-lhe. Portela gesticulou, remexendo-se entre gemidos,
e Ginés teve de o segurar pelos braços com mais força. O prisioneiro estava
a ficar com a cara inchada das pancadas, por isso daquela vez Falcó
desferiu-lhe um murro no plexo solar que lhe cortou a respiração, forçando-
o a inclinar-se com violência, asfixiado, e depois a retorcer-se na cadeira
atirando o corpo para trás, abrindo a boca à procura de ar.
– Diz-nos quem é que tu denunciaste mais... o Ginés e a Cari? E a Eva?
O outro negava com a cabeça, tentando respirar. Falcó esperou um pouco
que ele se acalmasse. Doíam-lhe as mãos por causa das pancadas.
– Não queres dizer?
– Não... denunciei ninguém.
Agarrou outra vez na pistola, extraiu o carregador, retirou a bala da
câmara, agarrou na mão de Portela em cima da mesa e esmagou-lhe um
dedo com uma coronhada.
– Jesus Cristo! – exclamou Ginés.
O outro tinha ficado tão transtornado com o golpe que abriu muito a boca
e os olhos, sem emitir qualquer som. Como se as suas cordas vocais se
tivessem bloqueado. Poucos segundos depois, começou a gritar, dando
guinchos, por isso Falcó agarrou-o pelo cabelo e meteu-lhe um lenço na
boca. Sentia os olhos de Eva Rengel fixos nele. Ginés, pelo seu lado, tinha
ido para um canto, onde tentava sufocar as náuseas. Parecia prestes a
vomitar.
– Devias sair por uns momentos – disse-lhe Falcó com suavidade.
O outro concordou, e ao passar a seu lado parou, evitando olhar para o
prisioneiro.
– É um camarada – murmurou.
– Era – contestou Falcó. – E estamos todos a arriscar a vida.
O jovem vacilava. A luz nua da lâmpada refletia-se nos seus óculos,
imprimindo um tom oleoso à palidez do seu rosto.
– É preciso tudo isto?
– Vai fazer-te bem apanhar ar – disse Falcó.
Ginés abriu a boca como que para dizer qualquer coisa, ou respirar fundo.
Mas não disse nada. Depois foi-se embora, fechando a porta. Falcó olhou
para Eva Rengel, que continuava apoiada na parede com os braços
cruzados, a observá-lo.
– O Ginés não se alistou na Falange para isto – disse ela.
– E tu?
– Eu também não. É repugnante.
– É.
Falcó tirou o lenço da boca a Portela. Ao fazê-lo, saiu da garganta do
prisioneiro um lento e longo gemido. Falcó olhou para Eva Rengel.
– Os vossos camaradas salvadores de Espanha – comentou devagar –
fazem o mesmo no outro lado, todos os dias. Sem pestanejar.
– Tu porventura já viste? – perguntou ela com brusquidão.
– Claro que vi.
– E tu?... Porque é que tu o fazes?
Falcó não respondeu àquilo. Tinha aproximado muito a sua cara da de
Portela e olhava-o de perto, fixamente. Tentando ler naquelas pupilas
vidradas pela dor e pelo espanto.
– Tanto o Ginés e a Cari como eu não nos importamos de cair –
acrescentou a jovem. – Já assumimos isso. Mas isto...
Com a cabeça descaída sobre o peito, a segurar a mão, Portela continuava
a gemer como uma besta ferida, cego de dor e desespero. Uma mancha
húmida estendia-se pela perna esquerda; estava a urinar-se. Nada tinha a
ver, pensou Falcó, com o homem calmo que jogava bilhar de manhã
enquanto as bombas caíam na rua. Havia caminhos e caminhos, disse para
si, e cada um deles era diferente dos outros. Nem todos os homens
quebravam da mesma maneira. Era tudo uma questão de seguir pelo
adequado, ou falhar. E aquele caminho era bom. O atalho inicial ajudara
muito. Aquela dignidade destruída sem tempo para pensar nela. Com o
lenço que tinha tirado da boca do prisioneiro, Falcó limpou-lhe a baba
sanguinolenta da cara.
– Isto é o que eles farão se nos apanharem – disse ele a Eva Rengel,
atirando o lenço para cima da mesa. – A eles e a ti, a todos. E a vocês,
mulheres, será pior.
– Eu sei. Por isso é que estou aqui, a olhar para ti... A aprender coisas.
– Com quem?
– Comigo mesma.
Estava linda, concluiu. Apoiada na parede, ainda de braços cruzados, com
os seus ombros de nadadora, as pernas fortes e bonitas, e aquele cabelo
louro tão curto como o de um homem, que lhe dava um estranho atrativo
andrógino, dúbio. Equívoco. Uma singular densidade carnal.
Fazendo um esforço quase físico, Falcó regressou à realidade imediata.
Respirou fundo várias vezes e olhou para o prisioneiro.
– Comecemos outra vez, camarada... Quem é que denunciaste mais?
*
Quinze minutos mais tarde saíram para o corredor, onde se juntaram a
Ginés Montero. Deixaram Portela atado a uma cadeira pelos pulsos. Tinha
desmaiado um momento antes.
– Não fala – disse Falcó. – E continuar é inútil. Acabaria por confessar
qualquer coisa. A partir de certo ponto, todos o fazem.
– Talvez tenha dito a verdade – disse Eva.
Ginés olhava para ela com surpresa.
– Viste o documento, como nós – contrapôs. – Não deixa lugar a dúvidas.
O jovem falangista tinha-se recomposto. Agora mostrava uma firme
determinação, ou aparentava. Como se pretendesse, deduziu Falcó, fazer
esquecer a sua fraqueza de antes.
– O documento pode ser falso – argumentou Eva.
– Mas se foste tu própria quem o trouxe.
– Podiam tê-lo posto ali de propósito.
– Para que tu o encontrasses? Acreditas mesmo nisso?
Ela ergueu as mãos num gesto de impotência.
– Não... A verdade é que não acredito.
Olharam os três uns para os outros. A vela que ardia nos degraus da
escada diluía sombras púrpuras nos seus rostos graves. Conciliábulo de
assassinos, pensou desapaixonadamente Falcó. Um profissional e dois
amadores. A ideia arrancou-lhe um sorriso cruel. Uma expressão distante.
Notou que Eva reparava naquele sorriso.
– E o que é que fazemos agora? – perguntou ela.
Olhava para ele. Pelo seu lado, Ginés engoliu em seco. Nem sequer o
efeito avermelhado da luz da vela disfarçava a sua palidez.
– Já foi sobejamente dito – respondeu ele. – Temos de acabar isto.
– Serás tu a fazê-lo?
– Pois claro que serei eu.
Já há um bocado que Ginés acabava as frases, até as afirmativas, com
uma certa perplexidade, num jeito de ligeira interrogação. Eva olhava para
ele, hesitante.
– E a Cari?
O jovem não respondeu àquilo.
– Será melhor que vocês, raparigas, se vão embora – interveio Falcó. – A
pé. Ele e eu ficamos com o carro.
– Onde é que vocês vão fazer isso?
– Tanto faz – disse Ginés com brusquidão. – Aqui mesmo. E depois...
– Não é prático – interrompeu-o Falcó.
Ficaram os dois a olhar para ele. Malditos amadores, pensou ele de novo.
Tinham-se metido naquilo tudo pensando que brincar aos heróis em zona
vermelha era agir como nos filmes ingleses de espiões. Que eram Robert
Donat e Madeleine Carroll. Mas não estava a ser assim tão fácil para eles. A
realidade nunca era. O sangue afinal era pegajoso e colava-se aos dedos e à
memória. E muitas vezes o que antecedia o sangue ainda era pior. Não era
fácil meterem-se no crime. Para isso era preciso ser de uma fibra adequada.
Embora fosse muito o que podia conseguir-se com motivações, hábito e
paciência, nem todos os seres humanos nasciam assassinos.
– Não é a mesma coisa carregar com um corpo morto – acrescentou – ou
com um homem vivo capaz de caminhar. É melhor levá-lo assim... Além
disso, o cadáver sujaria o carro.
As sombras apoderaram-se com violência do rosto de Ginés. Deu quase
um passo atrás. Então Falcó encontrou o olhar de Eva.
– Eu vou contigo – disse a jovem com muita serenidade. – Encontrei o
documento e trouxe-o. Sou responsável.
Ginés virara-se para ela, estupefacto.
– Mas tu... – começou ele a dizer.
O olhar desdenhoso. Superior. Eram precisos milhares de anos, pensou
Falcó, para olhar assim.
– Sou uma mulher, queres tu dizer?
Seguiu-se um silêncio que pareceu eterno. Falcó quebrou-o.
– Tanto me faz quem é que vem, mas preciso de alguém. E já se faz tarde.
– Vamos os três – decidiu Ginés.
– De acordo – concluiu Falcó. – Eva, sai e diz à Cari para ir para casa.
Depois leva o carro até junto da porta.
Como se não o tivesse ouvido, ela continuava a olhar para Ginés.
– Tu não vens – disse-lhe ela com inesperada firmeza. – A Cari pode
encontrar uma patrulha, por isso vai com ela. É quase meia hora de
caminho. – Apontou para Falcó. – Eu fico com ele.
– Isso é absurdo – protestou Ginés. – Eu...
– Basta – atalhou Falcó, tomando uma decisão. – Tu vais com a tua irmã
e a Eva vem comigo.
– Não creio que...
– É uma ordem que eu dou. Compreendes?... Cumpre-a.
Ginés pestanejou, olhando para ambos. Sob a sua expressão incomodada,
quase humilhada, Falcó apercebeu-se do alívio. Por fim foi-se embora sem
dizer uma palavra. Falcó e Eva ficaram frente a frente.
– Tens uma arma? – perguntou ele.
Ela mostrava-se, verificou ele com surpresa, tão serena como se lhe
tivesse perguntado se tinha cigarros.
– Sim – respondeu ela. – No bolso da gabardina.
– Então, vamos.
*
– Vocês vão matar-me – gemia Portela. – Vocês vão matar-me.
Ia no banco de trás, com as mãos atadas. Falcó fumava a seu lado. Eva
conduzia em silêncio.
– Eu não traí ninguém... Juro.
Os faróis do automóvel revelavam descampados e depósitos de
escombros de um lado e do outro do caminho, que era de terra, irregular e
com muitos buracos. O Hispano-Suiza saltava e rangia muitas vezes,
guinchando sobre a suspensão. Havia sombras negras de montanhas altas
muito próximas, massas escuras sob o luar incerto quase velado pelas
nuvens. No fim de uma curva prolongada, os faróis iluminaram uma parede
de tijolo meio caída. Mais além, vislumbrava-se a silhueta alta de uma
chaminé.
– É aqui – disse Eva.
Falcó inclinou-se sobre o prisioneiro para abrir a porta daquele lado, e
empurrou-o para fora. Eva já tinha saído do automóvel.
– Canalhas – disse Portela.
Falcó saiu do carro. O outro caíra ao chão e Eva ajudava-o a levantar-se.
– Puta – insultou-a este, remexendo-se como pôde. – Puta suja!
Sem violência, Falcó agarrou-o por um braço para o afastar alguns
passos. Depois obrigou-o a ajoelhar-se na escuridão, de ombros e cabeça
perfilados pela claridade confusa do luar. Em momentos como aquele
procurava não pensar, manter a mente longe de tudo quanto fazia ou se
preparava para fazer, tirando os pormenores práticos do assunto. Lugar,
oportunidade, meios. Os aspetos morais deixava-os para mais tarde, quando
fosse possível observá-los à transparência de um copo e entre o fumo de um
cigarro. Ali, a quente, aquela parte não servia senão para interferir nos
factos. Complicá-los. E os factos deviam ser o mais concretos possível: uma
bala, uma faca, uma corda de piano, as mãos nuas. E a vontade de o fazer.
Matar um ser humano não se distinguia em grande coisa, na questão
técnica, de matar um animal qualquer. O único inconveniente sério era que
às vezes o ser humano se apercebia do que ia acontecer. Não era a mesma
coisa matar alguém que tinha consciência de que ia morrer, ou fazê-lo a
alguém que não sabia. E o homem que estava ajoelhado à sua frente sabia
isso perfeitamente.
– Tenho uma menina, filhos da puta!
Não se pode pensar, disse para si novamente Falcó. Seria um erro tático.
Deter-se nesse tipo de coisas não é compatível com o que me disponho a
fazer. Aqui não há espaço para filhos, nem para futuras viúvas, nem para
mães que dentro de um momento terão perdido o seu filho. A vida é dura, a
paisagem cruel, e limito-me a cumprir as regras do mesmo modo que, em
qualquer instante, alguém as pode cumprir comigo. Ninguém disse que
movermo-nos num mundo cão era fácil ou gratuito. E menos ainda em
tempos como estes.
– Tenho uma filha.
Já não era um grito, mas sim um gemido. Uma súplica. Detrás da sombra
ajoelhada, Falcó tirou a pistola do bolso. Recordou que antes, durante o
interrogatório, retirara a bala da câmara, por isso puxou o ferrolho atrás e
soltou-o, introduzindo uma. O estalido da arma soou sinistro na noite.
– Arriba...
O estampido e o clarão sobressaltaram Falcó. Não tinha sido ele a
disparar. Portela caiu de bruços, sombra entre as sombras do chão. Eva era
outra silhueta negra ao lado de Falcó e ele sentiu o cheiro acre da pólvora
queimada.
Passaram-se cinco segundos.
– Isto era comigo – disse ela por fim, com voz opaca.
*
Deixaram o Hispano-Suiza na garagem da subida da muralha e saíram
para a rua quando o sino do relógio da Câmara dava a uma da madrugada.
– Vivo muito perto – disse Eva.
– Acompanho-te até à porta de entrada.
– Como queiras.
Falcó fechou o blusão.
– O que é que fizeste à pistola? – quis ele saber.
– Escondi-a debaixo do banco do carro. E a tua?
– Com a minha não te preocupes. Tenho licença de porte de armas.
Eram as primeiras palavras que pronunciavam desde que ela matara
Portela. Depois de abandonar o cadáver – ao qual Falcó pusera um papel
com a frase Executado por ser fascista, para confundir o rasto –, a jovem
tinha conduzido o automóvel sem que o pulso lhe tremesse, fumando o
cigarro que Falcó lhe pusera nos lábios já aceso. Sem olhar para ele nem
comentar nada. E tão silencioso como ela, durante os quinze minutos que a
viagem durou, estivera a observar o seu perfil iluminado pelo clarão dos
faróis, o ponto vermelho da brasa do cigarro avivado de cada vez que ela
aspirava o fumo. Estudando aquela mulher como se a visse pela primeira
vez. Fazendo a si mesmo uma infinidade de perguntas sem resposta.
– É aqui.
A casa de Eva ficava numa praça que antes da guerra se chamava del Rey,
e agora de la República. Do outro lado e longe, atrás das silhuetas escuras
de umas palmeiras, entre as trevas da cidade escurecida perante as incursões
aéreas, adivinhavam-se os muros e a torre da porta do Arsenal. Uma vez
deixado atrás o piquete de milicianos da Câmara, que eles franquearam sem
que ninguém os incomodasse – na realidade eram dois, um do Partido
Comunista e outro de anarquistas da FAI –, chegaram à praça caminhando
pelas ruas desertas, em que ecoavam os seus passos. Ao chegar perto do
piquete, ela tinha dado o braço a Falcó para que tudo parecesse mais
natural, e depois mantivera-se assim, cadenciando ambos o passo, roçando
de vez em quando os corpos ao caminhar.
– Boa noite – disse ela.
Soltara-lhe o braço.
– Não queres falar do que aconteceu? – perguntou ele.
– Não preciso.
Era um tom de voz neutro, o dela. Desapaixonado e impassível. Havia ali
uma nota discordante, pensou Falcó de repente. Algo estranho. Algo mais.
Eva parecia mergulhada num estado hipnótico, ou de sonho, alheio à
realidade imediata. Por momentos perguntou-se se ela estaria
completamente consciente do que tinha feito. Ou talvez isso mesmo a
mantivesse assim. Podia ser. Não era fácil, recordou ele, matar pela
primeira vez. A sua havia sido dez anos antes, no México. Um disparo de
longe, a dez passos, e depois aproximara-se para ver o resultado. Dessa vez
esteve quase meia hora sentado junto ao cadáver, olhando para ele
demoradamente. Estudando o segredo daqueles olhos entreabertos e
imóveis, cujo brilho se ia tornando mate à medida que o pó do caminho se
depositava sobre eles. Interrogando a esfinge.
– Podes subir – disse Eva de repente.
Falcó olhou para ela desconcertado.
– Ia saber-me bem uma bebida – disse ele. – Ou um café.
– Não tenho bebidas nem café. Mas podes subir, se quiseres.
Subiram pelas escadas às escuras, guiando-se pelo corrimão de madeira.
Quando chegaram ao patamar do terceiro andar, Falcó acendeu um fósforo
enquanto Eva procurava a fechadura da porta e introduzia a chave. Lá
dentro, ela correu as cortinas e acendeu uma luz. Um candeeiro de pé
situado junto a um sofá, móveis convencionais, gravuras marítimas nas
paredes e um quadro de mau gosto com dois cervos num bosque. Havia
uma braseira de cobre pronta para ser acesa, com o seu montinho de picão
sobre o carvão. Pela porta aberta de outra divisão via-se um quarto com
uma cama de casal, a colcha posta, um crucifixo na parede.
– Há quanto tempo é que vives aqui? – perguntou Falcó.
– Três meses. A casa não é minha.
Ele aproximou-se da janela.
– Deves ter uma boa vista do Arsenal. Perfeita para controlar o que sai e o
que entra.
– Sim. Mas não abras a cortina. Se veem luz, teremos aqui um piquete
dessa gentalha em cinco minutos.
– Não te preocupes.
Olhavam um para o outro, de cada lado da sala. Ela tinha tirado a
gabardina.
– Já o tinhas feito antes? – perguntou ele.
Ela demorou a responder. Continuava a olhar para ele fixamente, como se
pensasse noutra coisa.
– O quê? – perguntou ela finalmente.
– Disparar.
– Contra um homem, queres tu dizer?
– Ou contra uma mulher. Alguém.
Ficou calada. Parecia estar a procurar na memória, como se fosse uma
coisa imprecisa de recordar. Concluiu num sorriso amargo.
– Não digas parvoíces – disse ela.
Falcó tirou a cigarreira e ofereceu-lhe um cigarro. Ela recusou com a
cabeça.
– Como é que te chamas mesmo? – perguntou.
Falcó acendeu o cigarro e sacudiu o fósforo para o apagar. Depois pô-lo
num cinzeiro de vidro com rótulo da Transmediterránea.
– Não esperes que responda a isso.
– Não esperava – contrapôs ela. – Só que gostaria de saber.
Deu uns passos pela sala e parou de novo. A luz lateral do candeeiro fazia
ressaltar as formas dos seus seios debaixo da camisola de gola alta.
– Chames-te como te chamares, esta não é a tua causa – acrescentou ela.
Falcó deu uma longa passa no cigarro.
– Isso não tem muita importância.
– Para mim, sim, tem. Como para o Ginés e a Cari.
Ela continuava a olhar para ele com tanta intensidade que Falcó, apesar
do seu sangue-frio, começou a sentir-se incomodado.
– Estamos do mesmo lado – comentou ele. – Isso deveria chegar.
– Não.
– Tanto faz. Ninguém te disse que podias escolher. Nenhum de vocês
pode... Queriam brincar aos soldadinhos e é o que já estão a fazer. Esta
guerra é assim.
– Demasiado suja. Cansa de tão suja que é.
– São todas. Vi algumas. Ou talvez seja sempre a mesma.
– Não gostas de nós, pois não? – O seu sorriso era amargo. – Apercebi-
me disso.
– Isso é absurdo.
– Não é. Para ti somos amadores. Qualquer um que tenha fé assim te
parece. Não é verdade?... Só respeitas os que não acreditam. Os
mercenários como tu.
Chegou a vez de ele sorrir.
– Esta noite fizeste-te respeitar.
Eva pareceu estremecer ao ouvir aquilo.
– Talvez – disse ela.
– Pode ser que o Juan Portela tivesse fé. Ou talvez só tivesse medo.
– Olha para mim. – Ela apontava para a sua própria cara. – Eu tenho
medo.
– És uma mulher estranha, Eva.
– Tu também és um homem estranho. Chames-te como te chamares.
Continuavam a olhar um para o outro de cada lado da sala. Ela tinha
cruzado os braços e estava muito séria. Uns momentos depois, ergueu
levemente uma mão.
– Desculpa – escusou-se ela. – Tenho calor.
Deu a volta e encaminhou-se para o quarto. Falcó apagou o cigarro no
cinzeiro e foi atrás dela, seguindo-a até à alcova onde ela estava a tirar a
camisola, com os braços levantados por cima da cabeça. Na
semiobscuridade conseguiu ver a pele clara que se despojava do tecido de
lã, a alça larga e branca do sutiã apertado nas costas, o contorno dos
músculos ao libertarem-se da peça de roupa. Também a expressão
surpreendida da mulher quando a levou a dar a volta, lhe pegou na cara
entre as mãos e a beijou de uma forma intensa e prolongada. Eva ficou
tensa a princípio, numa rejeição violenta, e então ele baixou os braços até às
suas costas e apertou-a com mais força, sentindo contra o seu peito o calor
morno do tronco seminu e a turgência dos seios. Querendo soltar-se, a
jovem ergueu uma mão até agarrar Falcó pelo cabelo, obrigando-o a deitar a
cabeça para trás e afastou a outra mão como se fosse bater-lhe. Nessa altura,
ele já tinha desprendido os colchetes do sutiã, pondo-o de lado de um só
golpe e os seios nus e pesados da mulher oscilaram livres. Isso deixou-o
louco. Cego de fúria e desejo empurrou-a para a cama, caindo-lhe em cima;
e no próprio momento de cair, ela conseguiu por fim bater-lhe na cara, um
murro que lhe fez sangrar o nariz. Falcó sentiu as gotas quentes a
deslizarem pelo lábio e pela boca, e também sobre a jovem, sujando-lhe os
seios e o rosto com grossos salpicos escuros. Ela apercebeu-se e ficou
imóvel de repente, olhando para ele de muito perto na penumbra, com os
olhos desorbitados. Parecia sobressaltada. Assustada. Esteve assim um
instante; e depois, de improviso, aproximou a boca da sua cara com
brusquidão, beijando-lhe o sangue enquanto respirava roucamente,
entregue. De repente, passiva. Então, Falcó levantou-lhe a saia até às ancas,
arrancou-lhe as cuecas, despojou-se da roupa e trespassou várias vezes
aquele corpo esplêndido, com urgência e desespero, tão fundo como se a
vida se lhe fosse nisso. Cerrava os dentes para não uivar de prazer e
loucura, enquanto Eva lambia o seu sangue gemendo como um animal
ferido.
*
Quando tocou o alarme aéreo, Falcó acendeu um cigarro e olhou para o
relógio. 4h45 da madrugada. A mulher, nua a seu lado, respirava
ritmadamente. Parecia dormir. A luz do candeeiro da sala estava apagada,
certamente porque na cidade a energia elétrica tinha sido cortada. Falcó
acendeu um cigarro, pôs-se de pé e foi nu e descalço até à janela. A divisão
cheirava a carvão consumido da braseira, ainda quente. Ocultando a brasa
do cigarro, entreabriu a cortina para observar o exterior. Como em quase
todas as casas daquela cidade, a janela era na realidade uma porta
envidraçada que dava para uma varanda ou sacada, e aquela tinha uma
varanda com gradeamento de ferro. A sirene do alarme acabara, mas sobre
as formas escuras das montanhas que ficam do outro lado do Arsenal
resplandeciam os breves clarões luminosos da defesa antiaérea. Chegava
um distante bum-bum pouco depois de cada brilho, e Falcó calculou a
distância: com o som a viajar a trezentos e quarenta e três metros por
segundo, isso pressupunha menos de dois quilómetros. E aproximavam-se.
Durante um momento, iluminada por alguns clarões entre as nuvens
desgarradas que o vago brilho do luar recortava, pareceu-lhe ver a silhueta
distante de um avião.
Ela estava a seu lado. Descalça, não a ouvira aproximar-se. Tinha vestido
a camisa dele, sem a abotoar. Sentiu, entre o fumo do tabaco, o cheiro
intenso da sua pele – o cheiro de ambos, sémen, fluxo e suor misturados
nela – um momento antes de Eva o abraçar por trás, com o seu corpo cálido
e forte colado ao seu.
– Estão a aproximar-se – comentou ele.
Como se alguém o tivesse ouvido lá fora, um brusco clarão recortou por
instantes a torre do Arsenal. O estrépito chegou dois segundos depois.
– A base de submarinos – disse Eva.
– Queres descer até ao refúgio?
– Não. Dá-me esse cigarro.
Falcó passou-lho, sempre a ocultar a brasa, e ela deu-lhe duas passas
antes de lho devolver. Ele abriu as janelas para evitar que uma onda
expansiva partisse os vidros. Estava frio. Ficaram ali abraçados, a olhar
para o bombardeamento.
– A guerra é todo um espetáculo – disse ela.
– É, sim.
Os clarões da artilharia antiaérea tinham-se ido deslocando pouco a pouco
e agora rebentavam sobre o Arsenal, quase em cima da própria praça.
Quase não passava tempo entre o resplandecer de cada explosão e o bum-
bum do som. Uma bomba caiu num lugar próximo, fora do seu campo de
visão, com um rebentamento muito mais forte que fez vibrar, apesar de
estarem abertos, os vidros das janelas. Nesse instante, sim, conseguiu ver-se
com clareza, iluminada por um clarão próximo, a silhueta sinistra de um
avião que passava sobre a torre de entrada do Arsenal.
– Deem-lhes duro, amigos – murmurou Eva olhando para o céu, como se
rezasse.
O crepitar da artilharia, que agora era muito intenso, com rasto de balas
traçadoras ascendendo lentas para cima, iluminava-lhe o rosto, refletindo-se
nos seus olhos. Falcó acariciou-lhe o pescoço longo e nu, o arranque dos
seios e os ombros fortes. Depois pensou no homem que ela matara há
quatro horas, e sentiu-se estranho. Tirar a vida, derramar vida. Ao fim de
uma infinidade de beijos e abraços, quando considerou que para ela era
suficiente, Falcó tinha-se afastado húmido e satisfeito do seu interior para,
apoiado no ventre suave da mulher, esvaziar-se ali, no fim, com a
momentânea perda de consciência de quem se deixa deslizar por um poço
acolhedor, profundo e escuro, feito de esquecimento e promessas de paz. E
ela tinha permanecido muito tempo imóvel com ele em cima, derrotado e
exausto, acariciando-lhe as costas.
Houve um assobio perfeitamente audível, seguido de um retumbar
intenso. Dessa vez a bomba também caíra perto; tanto que o estrépito e o
clarão foram simultâneos do outro lado do muro do Arsenal. As janelas
voltaram a vibrar, embora se tivessem mantido intactas; mas lá fora ouviu-
se barulho de vidros partidos a cair à rua. Traçadoras e explosões
pontilharam de novo o céu com os seus fogos artificiais.
– Afastemo-nos daqui – disse Falcó.
Fechou as cortinas e foram até à alcova, abraçados. Às escuras. Ao
chegarem, Falcó beijou o cabelo da mulher.
– Fiquei sem sono.
– Eu também – disse ela.
9
CINZAS NO CONSULADO
P ela chaminé do consulado alemão saía demasiado fumo; e Falcó, que
tinha reparado nisso quando estava a chegar, fê-lo notar a Sánchez-
Kopenick.
– Já não me importo – disse o cônsul. – Queimei quase tudo.
Conduziu-o ao gabinete, que era uma desordem de gavetas abertas e
arquivadores vazios junto à lareira cheia de cinzas. Havia restos de cinzas
de papel por todo o lado, atapetando o chão e os móveis com uma camada
de poeira preta e cinzenta.
– Daqui a uma hora vou-me embora – acrescentou Sánchez-Kopenick. –
Antes do meio-dia, a Alemanha reconhecerá o governo de Franco.
Tinha círculos escuros debaixo dos olhos e o seu aspeto era de ter passado
a noite acordado. Falcó dirigiu um olhar ao retrato do chanceler Hitler
emoldurado sobre a consola da lareira. Estava enegrecido pelo fumo de
meio corpo para baixo, e deduziu que o cônsul tinha experimentado algum
prazer malicioso deixando-se defumar ali enquanto queimava documentos.
Pela porta aberta que dava para uma divisão contígua via-se duas malas, um
sobretudo e um chapéu em cima delas.
– Vai por terra?
– Por mar. Tenho pressa em sair daqui, pois as reações locais podem ser
imprevisíveis... Tenho uma lancha à minha espera no porto para me levar ao
Deutschland.
Falcó arqueou uma sobrancelha, interessado. Por fim, tudo se ia
definindo. Abaixo as máscaras. O Deutschland era um potente couraçado
alemão, e até àquele momento ele não sabia que navegava por aquelas
águas. Isso significava que o Governo do Reich tomava precauções sérias.
Proteger os súbditos que estivessem em zona vermelha e de passagem
mostrar os dentes. Era o sorriso perigoso de um tubarão, disposto já a
morder sem disfarçar.
– Tenho uma coisa para si – disse o cônsul. – Ainda bem que veio cá.
Foi até à caixa-forte situada num canto do gabinete, que estava aberta –
havia uma pistola Luger lá dentro, observou Falcó –, e tirou um sobrescrito
que lhe entregou. Continha duas folhas de papel.
– É a última comunicação que recebi de Salamanca, via Berlim. Há três
horas.
Falcó deu uma vista de olhos às mensagens. Estavam em código. Grupos
de letras e de números. Precisaria do livro de códigos e de uma boa meia
hora para esclarecer aquilo.
– Já não haverá forma de responder, suponho – aventurou ele.
– Supõe bem. Acabo de inutilizar o telétipo. E não me atrevo a usar o
telefone.
Da mesma caixa-forte tinha tirado uma caixa de charutos Partagás.
Restavam três. Ofereceu um a Falcó, pôs outro na boca e introduziu o
terceiro no bolso superior do casaco, onde espreitava a dobra branca de um
lenço.
– Estes a República não os fumará – disse enquanto Falcó lhe dava lume.
Depois foi até à mesa do gabinete, abriu uma gaveta e regressou com uma
garrafa de Courvoisier e dois copos sobre os quais soprou para os limpar de
cinzas.
– Bebe conhaque?
– Bebo o que houver.
– Pois façamos uma despedida como deve ser. Prosit.
Fumaram e beberam sem pressa. Do outro lado da janela, no esplêndido
panorama do porto que se via junto à muralha, o sol iluminava os armazéns
portuários, as gruas e as silhuetas cinzentas dos barcos de guerra fundeados
deste lado do quebra-mar. Havia nuvens escuras que se insinuavam ao
longe, no horizonte do mar e atrás das montanhas coroadas de castelos.
– Tenho pena de me ir embora – disse o cônsul. – São três gerações da
minha família aqui, compreende? Mas são tempos maus... Sabe que
apareceu outro cadáver junto ao cemitério, esta manhã?... Ontem à noite
deram o passeio ao filho de um alfaiate da calle Mayor. Dizem que era por
ser falangista.
Impassível, Falcó deu um golo no conhaque. Era velho e de qualidade.
Confortava. E o charuto tinha um aroma excelente. Era bom estar vivo,
disse para si, a fumar um charuto cubano e a beber conhaque francês, e não
deitado sobre o mármore branco do depósito com uma ficha de cartão atada
ao dedo grande de um pé.
– É um trabalho curioso, o seu – comentou Sánchez-Kopenick, com ar
distraído. – Mas é claro que não o troco pelo meu. Pelo menos, eu tenho
passaporte diplomático.
Falcó fez uma careta.
– Isso em Espanha não significa grande coisa.
– Tem razão. – O cônsul apontava para as cinzas da lareira e para as
malas da outra divisão. – Por isso prefiro arriscar até um certo ponto. Daqui
a umas horas, se tudo correr bem, estarei a ver, como dizem aqui, os touros
da barreira.
– Invejo-o. Sim.
O cônsul dirigiu-lhe um olhar inquiridor, como se não tivesse a certeza de
que Falcó realmente o invejava.
– Quando é que vai decifrar essas mensagens que lhe entreguei? –
perguntou ele uns momentos depois.
– Assim que chegar à minha pensão.
O outro esboçou um sorriso cúmplice e cansado.
– Não penso que tenha ilusões acerca do sigilo daquilo que contêm, não é
verdade?... Sobretudo vindo, como vêm, via Berlim.
– Claro que não. – Falcó olhou para o cônsul com um interesse súbito. –
Pode avançar-me alguma coisa?
– Oficialmente não sei nada. Na realidade, nem sequer lhe entreguei a si
qualquer mensagem.
– Pode saltar-se essa parte. A do prólogo. Ser-me-á útil saber o que sabe.
Pensativo, Sánchez-Kopenick fumava o seu charuto. Por fim pareceu
decidir-se.
– Depois de amanhã, uma hora e quinze minutos depois da meia-noite, o
Deutschland bombardeará o porto de Alicante, a estação ferroviária e os
depósitos de Campsa. De passagem, como que por acaso, irá enviar algum
tiro de canhão solto para as proximidades da prisão. O suficiente para que
ali ninguém ponha o nariz de fora durante um bocado.
Falcó inquiriu o motivo oficial daquela atuação abertamente hostil, e o
outro disse-lhe. O bombardeamento ia justificar-se como uma represália
pelos atos de violência que, com toda a certeza, seriam levados a cabo
contra interesses do Reich em território da República horas depois de a
Alemanha reconhecer o governo de Franco. As informações da Abwehr
previam um assalto à embaixada alemã em Madrid, onde havia meia
centena de espanhóis refugiados. O pessoal diplomático estava a ser
evacuado naquele momento.
– E o que é que acontecerá aos refugiados? – interessou-se Falcó.
O cônsul sorriu, lúgubre. O modo como ergueu o copo em jeito de brinde
parecia-se muito com o de um funeral.
– Eu não gostaria de ser um deles. E você também não. A esses não há
forma de os tirar de lá. E além disso, não se pode descartar a hipótese de se
encontrarem armas e material subversivo na embaixada.
Falcó olhou para a pistola que estava na caixa-forte aberta.
– Ou seja, os senhores passam de neutralidade duvidosa a beligerância
indubitável...
– Mais ou menos. E há um pormenor importante para si. O nosso
consulado em Alicante também está a ser evacuado.
– Era de esperar.
– Ali nada poderemos fazer por si.
– Claro.
– Pois é tudo o que lhe posso dizer.
Seguiu-se um silêncio de charutos fumados e de pequenos sorvos de
conhaque. Falcó olhava para o retrato chamuscado do Führer. Mais tarde
ou mais cedo, pensou com o fatalismo da sua fria natureza, acabava por ir
tudo para o caralho. Lareiras cheias de cinzas e cofres vazios. Corpos
atirados para as valetas e junto aos muros dos cemitérios. Então, chegava o
momento das pessoas como ele. Lobos e ovelhas. Em tempos como
aqueles, ser lobo era a única garantia. E nem sempre. Por isso acabava por
ser útil uma discreta pelagem parda. Ajudava a sobreviver. A mover-se
inadvertido entre a noite e o nevoeiro. De repente, sentiu-se vulnerável,
ansiando voltar a esse nevoeiro de onde o tinham obrigado a sair. Estava há
demasiados dias em zona hostil, exposto em excesso. Com um
estremecimento melancólico, teve saudades da velha máxima que Niko, o
seu antigo instrutor romeno – em 1931, por indicação do Almirante, Falcó
tinha passado um mês em Tirgo Mures, um campo secreto da Guarda de
Ferro cujo treino incluía sabotagem e assassínio –, costumava resumir em
três frases fetiche a que chamava o código do escorpião: olha devagar, pica
rapidamente e sai mais rapidamente ainda.
– De acordo – disse ele. – Então o assalto à prisão será depois de amanhã
à noite, e o Deutschland dará cobertura com um bombardeamento de
diversão... Sabe mais alguma coisa?
O cônsul encolheu os ombros.
– Só que entre as onze e a meia-noite o torpedeiro da Kriegsmarine, Iltis,
se aproximará da costa para o grupo de assalto desembarcar, e estará no
lugar combinado para os receber antes do amanhecer. – Apontou para o
bolso onde Falcó tinha guardado as mensagens. – Terá aí os pormenores...
Se houver mais alguma coisa, de última hora, ser-lhe-á transmitido em
código depois do noticiário da Rádio Sevilla, suponho. Os amigos de Félix,
já sabe. Tudo isso.
Falcó olhou brevemente para o relógio. Estava na hora de ir. Já há um
bocado que assim era.
– Obrigado por tudo – disse ele, pousando o copo vazio em cima da mesa.
O outro olhou de relance para o Führer chamuscado e depois para Falcó.
– Só faço o meu trabalho.
– Há trabalhos difíceis de fazer.
– Mais o seu do que o meu. Desejo-lhe sorte, estimado amigo.
– E eu a si, senhor cônsul.
Sánchez-Kopenick fez um gesto resignado.
– Se subir sem problemas para esse barco que espera no porto dar-me-ei
por satisfeito. No seu caso será preciso um pouco mais do que sorte. –
Indicou a Luger no cofre-forte. – Pode vir a ser-lhe útil?... É uma arma
estupenda, recordação de família, mas não posso levá-la comigo. E
aborrece-me imaginá-la ao cinto de um desses heróis proletários de
retaguarda.
Falcó pensou naquilo durante três segundos. Levava a sua Browning de 9
mm no bolso do blusão, mas aquela era uma arma de guerra formidável.
Muito adequada para o que estava para vir.
– Nunca é demais – admitiu.
– Levou-a um tio meu, em Verdún. Com licença. Tem o carregador cheio.
Foi buscá-la e de caminho tirou de uma gaveta uma caixa de cartuchos.
Pôs tudo nas mãos de Falcó. Era uma P-08 semiautomática de 9 mm
Parabellum, com culatra de madeira. Uma arma pesada e robusta,
confirmou este. Sinistramente bela.
– Procure que não lha...
Sánchez-Kopenick interrompeu a frase quando os seus olhos encontraram
o olhar irónico de Falcó. Sem dizer nada, com o charuto entre os dentes,
este guardou a Luger na parte de trás da cintura, sob o blusão, e meteu a
caixa de munições num bolso. Depois subiu o fecho éclair. Se me detiverem
com tudo o que levo comigo, pensou, documentos em código, papéis falsos,
munições e duas pistolas, vou ter mais qualquer coisa além de problemas
com a República.
– Suponho que terá consciência – fez notar o cônsul – de que a partir de
agora já não terá comunicação direta com Salamanca. Fica abandonado aos
seus próprios recursos.
– É o habitual – concordou Falcó.
*
A prisão da província de Alicante era uma construção maciça de vários
corpos e muros caiados. Tinha três andares na parte da frente. Uma alta
parede com guaritas rodeava-a por trás, e de ambos os lados da fachada
havia uns jardinzinhos protegidos pelas grades de ferro. Ficava nos
arredores da cidade, rodeada de árvores, no princípio da estrada de Ocaña.
– Não pares o carro – disse Falcó.
Era Ginés Montero quem conduzia. O Hispano-Suiza passou devagar em
frente do edifício enquanto Falcó reparava em todos os pormenores. Havia
uma guarita de madeira com dois milicianos e o portão estava fechado.
Cada uma das sentinelas trazia uma Mauser ao ombro.
– Usam lenços da FAI – disse Falcó.
– Sim. Substituíram os funcionários por milicianos de confiança. Isso
complica as coisas.
– É gente com experiência de combate?
– Nem pensar. Chusma de retaguarda.
– Melhor assim, do mal o menos.
Rodearam o edifício por um caminho lateral, a coberto das árvores, antes
de regressar à estrada.
– O José Antonio estava com o seu irmão Miguel na cela número 10 da
primeira galeria – comentou Ginés. – Mas a ele levaram-no para baixo há
uns dias para uma cela individual no rés do chão. Incomunicável.
– Poderemos chegar até lá sem muitos destroços?... Não será coisa de
rebentar porta atrás de porta.
– Acho que sim. Que podemos. Graças ao funcionário de prisões que é
dos nossos, fizemos moldes de cera e temos as chaves da galeria e da cela.
Falcó virou-se para dar uma última vista de olhos ao edifício que
deixavam para trás.
– A questão é chegar ao nosso homem antes de os guardas o matarem, se
perceberem que vamos libertá-lo.
– Acho que nos dará tempo – tranquilizou-o Ginés –, desde que os do
grupo de assalto de Fabián Estévez se movam rapidamente.
– É para isso que eles vêm. Para se moverem rapidamente.
O falangista conduziu um bocado em silêncio. Olhou duas vezes de
soslaio para Falcó e à terceira falou de novo.
– Conheceste o Fabián antes de vir para cá?
– Conversámos um bocado.
– É um bom tipo. Camisa velha de primeira hora. Dos poucos camaradas
de então que não estão mortos ou na prisão. – O tom era de absoluta
admiração. – A Cari e eu conhecemo-lo em Múrcia, durante um comício no
Teatro Romea... Passou um tempo a organizar as esquadras de Levante. E
pelos vistos esteve a combater bem.
– Sim. É o que dizem.
– Vou gostar de voltar a vê-lo... E se tudo correr bem, embarcaremos
convosco. A Cari, a Eva e eu.
– E o que é que acontece à vossa mãe?
– Irá com uns parentes para Lorca. Na realidade, sai amanhã para lá,
porque depois disto arderá Troia. Os vermelhos vão virar tudo de pernas
para o ar.
– Não tenhas dúvidas.
Montero reduziu a velocidade. Aproximavam-se do centro da cidade.
– Também vais entrar na prisão, durante o ataque? – quis saber.
– Continuo sem ter a certeza – Falcó tinha demorado um pouco a
responder. – Depende.
– De quê?
– De fazer falta ou não.
– Esta aventura não te excita?
– Nem um pouco.
– Não te compreendo. É a coisa maior que alguma vez se tentou.
– Sim... Vira à esquerda.
– O quê?
– À esquerda. Assim evitamos o controlo anterior.
O outro virou o volante para seguir por uma rua lateral, evitando assim a
principal, onde à ida, num posto da UGT, lhes tinham pedido a
documentação. Sem consequências, mas era melhor não abusar da sorte.
– Estivemos a falar sobre ti – disse o jovem ao fim de um momento.
– Quem?
– A Cari e eu. A Eva também. E as nossas conclusões...
– As vossas conclusões não me interessam.
– Bom... Ouve, somos uma esquadra. Uma equipa.
– Vocês são uma equipa. De três. E eu estou no comando, por agora. E
mais nada.
Ginés não se dava por vencido. Engoliu em seco.
– Aquilo da outra noite, com... Bom, já sabes. Do Juan Portela... Isso
uniu-nos um pouco, não te parece?
Falcó olhou para ele com dureza.
– Achas mesmo que matar alguém une aqueles que o matam?
– Há certas coisas...
– Não me fodas. – Falcó acendeu um cigarro. – Sê bom rapaz, vá lá. Faz a
tua guerra, salva o José Antonio e salva Espanha da horda marxista, se
puderes. Mas não me fodas.
*
De volta ao centro da cidade, deixaram o carro debaixo das palmeiras na
Explanada de Espanha. Eva e Cari estavam à espera deles sentadas na
esplanada de uma geladaria italiana que ficava junto à sucursal do Banco
Hispano Americano. Enquanto Falcó e Ginés estudavam a prisão, elas
tinham ido ver os depósitos de Campsa da avenida Loring – um dos
objetivos do Deutschland para a noite do dia seguinte –, situados em frente
da estação de Múrcia.
– Arderão milhões de litros de petróleo – comentou Cari em voz baixa,
com satisfação. – Os vermelhos vão ter mesmo com que se entreter!
Elas bebiam cevada e os dois homens pediram garrafinhas de cerveja. Era
meio da tarde. Havia nuvens que cobriam parte do céu, mas de vez em
quando o sol brilhava e a temperatura era agradável.
– Qual é o plano, agora? – quis saber Eva.
– Todos olhavam para Falcó. Tinha o boné inclinado sobre o nariz. Bebeu
um golo do seu copo e olhou para o relógio.
– É preciso dar uma vista de olhos ao local do desembarque.
– Podemos fazer isso amanhã – disse Ginés.
– Prefiro ir agora. Ainda há luz suficiente.
– São nove quilómetros – sublinhou Cari. – Precisarão de meia hora para
ir até à praia, e outro tanto para voltar. Isso, se não vos atrasarem num
controlo da estrada. Há um perto do aeródromo que a Air France tem em El
Altet.
– Pode evitar-se por uma pista de terra secundária – disse o irmão. – É a
que usaremos amanhã para trazer as pessoas que desembarcarem.
– Está confirmado o transporte? – inquiriu Falcó.
– Sim. Um camião e dois carros. É o suficiente. Uma hora antes iremos
colocá-los entre os pinheiros, camuflados.
Falcó acabou a cerveja, pensativo. Sob a pala do boné, atentos como de
costume à paisagem, os seus olhos procuravam indícios hostis. Estudavam
as pessoas que passeavam pela Explanada, os vendedores de camarões, os
apanhadores de beatas, os engraxadores com lenços anarquistas ao pescoço
e a bandeira republicana pintada na caixa – o proletariado também gostava
que lhe limpassem os sapatos –, e a venda de jornais com o Diario de
Alicante e El Luchador pendurados com molas da roupa. Havia dois
retratos enormes de Lenine e de Marx por cima da fachada do café Central,
e as montras das lojas tinham longas tiras de adesivo atravessadas para
proteger as pessoas dos vidros em caso de bombardeamento.
– Não iremos os quatro – disse ele. – Juntos chamaríamos demasiado a
atenção.
– Nós os dois? – sugeriu Ginés.
– É melhor que vá eu – propôs Eva. – Um casal debaixo dos pinheiros
acabará por ser mais natural.
Disse aquilo em tom neutro. Impassível. Falcó surpreendeu um olhar
rápido entre Ginés e Cari. Talvez suspeitassem de alguma coisa, pensou. Do
ocorrido. No final de contas, para efeitos de cobertura, ele e Eva tinham-se
registado naquele meio-dia no Hotel Samper como casal. Poderia ser que os
dois irmãos – que estavam alojados em casa de um familiar – supusessem o
que acontecera na noite anterior em Cartagena, ou talvez a própria jovem o
tivesse comentado com a sua amiga; embora Falcó não a imaginasse a fazer
aquele tipo de confidências. Alguma coisa no seu instinto lhe dizia que não.
De qualquer modo, tanto fazia. Nesta altura.
– Iremos a Eva e eu – decidiu.
– Têm de estar de volta com tempo para ouvir o noticiário nacional –
recordou Ginés, baixando muito a voz. – É muito possível que haja
mensagem para nós.
Deliberaram sobre isso, combinando verem-se todos à última hora,
discretamente, nas traseiras de uma livraria alfarrabista da calle Ángel
Pestaña. O proprietário era um familiar dos Montero, simpatizante do
Movimento – tinham-lhe fuzilado um irmão carlista a 19 de julho –, em
cuja casa se alojavam os dois irmãos. Ali, sintonizando a Rádio Sevilla,
poderiam verificar depois da conversa noturna do general Queipo de Llano
se o quartel-general de Franco tinha alguma mensagem para os amigos de
Félix.
– Gosto de pensar – disse Ginés – que o José Antonio está muito perto
daqui, na sua cela. Sem saber que amanhã à noite nós, os seus camaradas,
iremos libertá-lo.
Era um tom quase emocionado, o do jovem. Corajoso, e ao mesmo tempo
comovido pela perspetiva. Os seus olhos brilhavam ao encontrar os de Eva
e os da sua irmã. Mas aquele tom e aquele olhar irritaram Falcó. Para o que
ia acontecer no dia seguinte não se requeria entusiasmo, mas sim sangue-
frio. Em assuntos como este, disse para si uma vez mais, as emoções
matam. Muito.
– Prefiro que penses no que nos espera. No que vamos fazer.
– Está tudo estudado de frente para trás e de trás para a frente. Não fiz
outra coisa nos últimos dias.
– Então continua a fazer. De certeza que ainda há alguma ponta solta.
O jovem olhou para ele, incomodado.
– Tu nunca deixas pontas soltas?
– Nunca.
Falcó recostou-se na cadeira enquanto seguia atento à Explanada,
ignorando deliberadamente o olhar silencioso que Eva lhe dirigia. Havia um
homem com boina e casaco cinzento que passara duas vezes junto deles,
deixando-o alerta. Acalmou-se um pouco ao vê-lo afastar-se com
naturalidade, pela Explanada abaixo, folheando um jornal.
– Alguém – comentou ele instantes depois –, um romano ou assim, disse
que em coisas militares é inútil desculpar-se depois com um «não tinha
pensado nisso».
Ginés tomou aquilo como uma censura.
– Pensámos em tudo – protestou. – Como te disse, até temos as pistolas
na cave da livraria, o meu revólver e a caixa de granadas Lafitte.
Muito sério, Falcó virou-se para ele.
– Que nem vos passe pela cabeça ir pela rua com armas. A Eva já
devolveu a dela. Não vamos estragar tudo.
O jovem dirigiu um olhar ofendido ao bolso do blusão de Falcó.
– Pois tu bem que andas com pistola – disse ele entre dentes. – Uma
escondida no carro e outra contigo.
Falcó olhou para ele com dureza.
– Não tens nada a ver com o que eu ando ou não.
Ao virar o olhar, encontrou os olhos de Eva. Havia, reparou ele, um
levíssimo sorriso na boca da jovem.
– Cipião, o Africano – disse ela, de repente.
Falcó pestanejou desconcertado. Apanhado sem querer.
– Desculpa?
– Turpe est in re militari dicere non putaram – citou Eva. – A frase é
dele, de Cipião... «Em questões de guerra é vergonhoso dizer: não tinha
pensado nisso.»
Ginés soltou uma gargalhada vingativa. Estava deliciado.
– Engole lá essa – disse ele.
*
A praia era arenosa, extensa, e os pinheiros chegavam quase à beira-mar,
lambida por uma ondulação suave. De um lado ficavam as alturas do cabo
de Santa Pola e do outro, Alicante, azulado e nublado na distância. O
Mediterrâneo estendia-se mais para longe, azul-cobalto, sob um céu onde as
nuvens começavam a avermelhar-se para poente.
– O carro pode ficar atolado na areia – disse Falcó a Eva. – Prossigamos a
pé.
Caminharam sob as copas frondosas dos pinheiros, mergulhando os pés
no chão mole. Ela tinha tirado os sapatos. Levava uma saia confortável,
larga, e uma blusa. A areia colava-se aos seus pés cobertos por meias cor de
fumo.
– É um bom sítio – admitiu Falcó.
Media com os olhos eventualidades, riscos e vantagens. O lugar estava
deserto e até uma casinhota de carabineiros em ruínas que tinham visto ao
chegar, do caminho, ficava longe e oculta pelas dunas e pelas árvores. Na
escuridão da noite, o torpedeiro alemão podia aproximar-se da praia; e o
camião e os dois carros ficariam ocultados entre os pinheiros enquanto
esperavam. O lugar era discreto e fácil de defender.
– Um sítio bastante bom – repetiu, satisfeito.
Eva estava diante dele, ligeiramente adiantada, olhando para o horizonte.
A brisa do mar fazia ondular a sua blusa, revelando-lhe o pescoço. Falcó
observou a raiz do cabelo na nuca, os lóbulos das orelhas sem buracos de
brincos, a linha suave de pele e a carne que avançava debaixo da blusa para
os ombros. Tudo transmitia uma sensação de solidez física. De vigor
extremo. Recordou aquele corpo musculado e nu, debilitado na sua
esplêndida firmeza pelos abandonos prolongados do prazer, a carne macia
relaxada pelas suas carícias e os impulsos que pareciam despertá-la em
intervalos violentos uma vez e outra, enquanto se abraçavam na cama dela,
com as bombas franquistas a rebentar na rua, o clarão dos disparos da
defesa antiaérea, o ulular de sirenes quando por fim tudo acabou e os dois
permaneceram imóveis, exaustos, ele sobre ela, sentindo o suor aprisionado
pele contra pele, uma mão da jovem que por momentos lhe acariciou as
costas, mas que de repente deixou de o fazer, e um instante depois deslizou
para o lado, imóvel sobre os lençóis enrugados, e já não voltou a tocar-lhe
antes de chegarem o sono e o resto da noite.
– Tens cicatrizes – disse Eva.
Olhou para ela, surpreendido. Tinha-se virado para ele e a brisa
continuava a agitar-lhe o tecido leve da blusa. O arranque dos seios era
fundo, firme, de aspeto cálido. Falcó sentiu o desejo físico regressar, mas
relegou-o de imediato para um lugar de si mesmo onde não perturbasse o
seu bom juízo. A sua necessária equanimidade operativa. Tinha prática
nisso.
– Perdão?
– Cicatrizes – repetiu ela com muita calma. – Num braço e numa perna.
Apercebi-me.
Os olhos castanhos estudavam-no, avaliadores. Com mais atenção do que
curiosidade. Falcó fez um gesto evasivo.
– Tive uma infância agitada – disse ele com simplicidade.
– Com facas incluídas?... A marca da coxa direita parece uma navalhada.
Ele permitiu-se um vago sorriso. Tinha sido exatamente isso, recordou.
Em 1929, mesmo à porta do Hotel Metropole de Slatni Pyassutsi, um
sicário búlgaro falhara a sua artéria femoral apenas por três centímetros, por
causa de uma questão de rivalidade desleal envolvendo 90 000 dólares de
negócio com a empresa checa Tecnoarma.
– Éramos meninos perigosos.
Ela olhava para ele, séria.
– Isso parece... E a outra?
– Qual outra?
– A do braço esquerdo.
– Ah, essa.
Falcó não disse mais nada. Olhou para um lado e para o outro da praia,
como se o estudo atraísse por completo a sua atenção, e moveu a cabeça
com ar falsamente distraído. Não era uma coisa de se pôr ali a contar a sua
vida, embora aquilo do braço esquerdo tivesse estado quase a custar-lha, se
a infeção – resultante de uma ferida de metralha – não tivesse por fim
revertido no hospital de Novorosisk, a 13 de março de 1920, precisamente a
tempo de Falcó reunir as forças físicas suficientes para abandonar a sua
cama e chegar ao porto, onde os restos do exército russo branco do general
Denikin eram evacuados para a Crimeia.
– Falta-te um bom bocado – disse Eva, objetiva.
Era mesmo verdade. A cicatriz era grande, pois a metralha levara-lhe
parte do bíceps, deformando-o um pouco. Envergonhado a princípio, Falcó
evitara mostrar-lha durante algum tempo. Até com as mulheres, quando era
possível, procurava despir-se com pouca luz. Dezasseis anos depois tinha-se
habituado e não lhe dava importância. Ele logo se ocupava de que não
tardassem a ver-se distraídas por outros pormenores.
– Fui mordido por um cão grande.
– Devia ser mesmo. Foi um grande bocado.
– Nem imaginas.
Na realidade, pensou ele sarcástico, não mentia totalmente. Recordava a
ferida como uma mordedura, o impacto de um estilhaço de granada
artilheira no porto, quando ele estava a carregar caixas de carabinas no
vapor Turas. Depois, onze dias entre a vida e a morte sobre um enxergão,
amontoado entre moribundos pelas feridas e pela febre tifoide, os gritos
assustados de «para os barcos quem puder, estão a chegar os vermelhos», e
a corrida final com os últimos retardados, entre o vento gélido e o fumo
negro dos incêndios, canhões inutilizados, vagões de comboio rebentados,
malas desfeitas e cavalos de tiro que arrastavam restos de furgões, até
embarcar no Kornilov.
– Porque é que fazes isto? – perguntou Eva.
Falcó pensou por uns instantes.
– Dou-me bem assim – respondeu por fim.
– Desde quando é que te dás bem assim?
– Não sei. Desde sempre, suponho. Desde o princípio.
– E qual foi o princípio?
– Também não sei. Talvez um barco que passava no mar, ao longe.
Porventura um livro de viagens ou de aventuras. Já me esqueci.
Houve um silêncio longo. Só o rumor da água à beira-mar.
– Não acreditas nisto, não é verdade? – comentou ela, por fim. – No que
fazes.
– Em que é que havia de acreditar? – Falcó emitiu um riso desagradável.
– Nuns generais chamados por Deus para salvar a Espanha da horda
marxista? Numa República proletária, bondosa e honrada que defende a sua
liberdade?... Isso deixo-o para vocês. Para os jovens com fé.
– Tu não sabes nada da minha fé.
A rapariga olhava para o mar, para as nuvens cada vez mais vermelhas e
escuras que se acumulavam no horizonte.
– Há causas – acrescentou ela em voz baixa. – Razões mais complexas.
Falcó fez um gesto de indiferença.
– De qualquer modo – frisou –, a tua fé e as tuas razões complexas não
me interessam. Do que eu preciso é da tua eficácia, como da dos outros.
– Eficácia é a palavra?
– Que outra palavra podia ser?
Olhava para ele muito séria. Falcó reparou que ela lhe estudava os olhos,
a boca e as mãos.
– Diz-me uma coisa, Rafael ou como realmente te chames... O que é
exatamente isto para ti?
– Julgava que era muito claro desde o princípio: um trabalho.
– E o que sou eu?
– A melhor parte desse trabalho.
Eva continuava a observá-lo fixamente.
– Ontem à noite observei-te enquanto dormias – disse ela. – Ou fingias
dormir.
– Eu sei. Apercebi-me.
– Eu também fingia dormir. Até quando te levantavas silencioso e
caminhavas pela sala como um lobo sem sono... Via as pontas vermelhas
dos teus cigarros junto à janela, na penumbra. O brilho no teu rosto ao
acendê-los.
– Eu ouvia a tua respiração. Rítmica quando dormias, diferente quando
não.
– Dois farsantes na escuridão.
– Sim.
Depois de dizer aquilo, a rapariga manteve um longo silêncio. Continuava
a estar muito séria. Também havia algo duro nela, verificou Falcó. Era de
outra fibra, é claro, diferente da dos irmãos Montero. Muito diferente, e não
só no físico. A fria execução de Juan Portela teria bastado para o
demonstrar; mas até sem isso Falcó teria reparado antes nos sinais.
Palpitava em Eva Rengel algo sólido e escuro que ele podia reconhecer com
facilidade porque era feito da mesma matéria. Tinha consciência de que
horas antes estivera a abraçar um mistério, e soube que ela se apercebia de
que ele notava isso. Nem sequer a fazer amor se tinha chegado a abandonar
totalmente, exceto uns instantes de cada vez e recuperando imediatamente o
controlo de si mesma. Como terá dito o Almirante, concluiu Falcó com uma
sarcástica expressão interior, ela era dos seus, da sua casta, sem dúvida
nenhuma. Aquele desapego frio. Um dos nossos.
– Eva... O teu passado começa muito antes desta guerra, não é verdade?
A rapariga aguentou o olhar dele, imóvel, sem pestanejar sequer. Em
silêncio. Depois desviou os olhos para o mar, e ele teve de fazer um esforço
para não lhe beijar o pescoço nu, ali onde o agitar da blusa o destapava.
Sentiu outra vez, agora com muita violência, o acicate do desejo físico, e
desejou desesperadamente deitá-la na areia, sobre as agulhas de pinheiro;
afastar as suas coxas e voltar a estar lá dentro, regressar ao calor suave e à
palpitação da carne morna – tinha sentido bater a pulsação dela contra a sua
no sexo, na noite anterior –, penetrando de novo, em demanda de consolo,
paz e esquecimento, aquele corpo tão sólido e tão forte.
– Eu não tenho passado – disse ela uns momentos depois.
– Ontem à noite criaste um.
Referia-se a Juan Portela ajoelhado diante deles, o clarão e o corpo caído
de bruços. E soube que a jovem compreendeu do que ele falava.
– Não senti nada – ouviu-a dizer.
O tom mantinha-se neutro. Quase indiferente. Continuava a contemplar o
mar.
– Pensei que sentiria alguma coisa – acrescentou. – Mas enganava-me.
Senti mais depois, contigo. Aqueles disparos lá fora, e nós.
Calou-se e abanou a cabeça, como se pretendesse sacudi-la de
pensamentos que impedissem de encontrar a palavra exata.
– Tão vivos – murmurou por fim.
– Podendo morrer a cada momento, queres tu dizer.
– Sim. É isso.
Estava muito bela, pensou ele. Especialmente bonita na brisa salina.
Aproximou a sua boca da dela, beijando-a com suavidade. Mas ela
manteve-se fria e imóvel, com os lábios inanimados.
– Nunca tinha matado antes – disse ela quando Falcó retirou a sua boca.
Olhava fixamente para o mar. Tinha os sapatos na mão, e as meias de
seda translúcida que lhe cobriam os pés descalços estavam salpicadas de
areia dourada como partículas de ouro. O desejo de Falcó tornou-se mais
intenso. Pôs-lhe as mãos nas ancas.
– Agora não – disse ela.
Falcó fez caso omisso. Que se lixe tudo, dizia ele para si. Não sei quanto
tempo mais é que vou viver e ela está aqui. Ao meu alcance. É o troféu dos
meus medos e perigos. O meu prémio por continuar vivo. Por isso estreitou-
a contra ele com mais força, fazendo-a sentir a urgência do seu desejo. Ela
resistiu por momentos e por fim cedeu, de repente submissa, abandonando-
se, obediente. Quando Falcó olhou para os seus olhos, não leu neles mais do
que um completo vazio, mas não se importava. Nada mesmo. Não naquele
instante. Por isso, agarrando na jovem com uma mão, usou a outra para lhe
levantar a saia. Então ela retrocedeu.
– Espera. Assim não... Espera.
Ajoelhou-se diante dele muito devagar, com a mesma calma de antes.
Com uma lentidão quase exasperante. Tinha deixado cair os sapatos sobre a
areia e desabotoava as calças do homem. A carne emergiu tensa, disposta, e
ela acariciou-a devagar com a boca. Depois, retirando-se, erguido o rosto
para olhar o de Falcó com indiferença, masturbou-o friamente até que ele se
derramou entre os seus dedos com um gemido.
10
CHOCOLATE E CAFÉ
L orenzo Falcó reprimiu uma maldição. Continuava a chover. Não de uma
forma intensa, mas suficiente para que a água se tornasse incómoda e
começasse a enlamear os caminhos de terra. Abriu a porta do Hispano-
Suiza, pôs o boné e levantou as golas do blusão, e olhou em volta. A luz do
carro fazia destacar as rajadas de chuva que caíam entre os pinheiros.
– Apaga os faróis – ordenou.
Ginés Montero desligou o contacto, o motor ficou em silêncio e parou o
ruído das escovas no para-brisas.
– Que azar, com esta chuva! – disse Cari atrás dos dois homens. Estava
no banco de trás, com Eva Rengel. Ninguém tinha descolado os lábios na
última meia hora, enquanto o carro, depois de evitar o controlo militar de El
Alter, percorria o caminho secundário para atravessar o pinhal.
– Melhor assim – disse Falcó. – A chuva irá manter toda a gente abrigada
e com pouca vontade de bisbilhotar.
Saiu do carro e andou uns passos, sentindo a água a gotejar sobre o rosto
da pala do boné. Entre as árvores, a pista de terra ia morrer num chão
arenoso pelo que o pinhal se estendia até à beira mar, que se encontrava a
uns duzentos metros. Ali, a areia formava dunas que quase alcançavam a
altura de um homem e o repicar da água no chão era mais suave e
amortecido. Estava tudo escuro e Falcó andou às cegas, a princípio, até que
as suas retinas se acostumaram à escuridão.
– Como boca de lobo – comentou Ginés Montero.
Caminhava atrás dele, mergulhando os pés na areia. Na negrura, à direita,
ouviu-se o som inconfundível de uma pistola a ser armada. Falcó tirou a sua
– também levava a Luger do cônsul metida no cinto, atrás – e agachou-se
devagar, com os sentidos alerta. Sentiu que Ginés fazia o mesmo.
– Quem vem? – interrogou uma voz masculina.
– Café – disse Ginés.
Destacaram-se três silhuetas na escuridão, aproximando-se sobre o fundo
claro das dunas. Falcó manteve o dedo no gatilho até que chegaram junto
deles e houve apertos de mão e saudações em voz baixa. Eram os primos
Balsalobre e o guarda de assalto Torres, que estavam ali há meia hora e
tinham o camião – um Opel Blitz de seis cilindros, disseram – escondido
um pouco mais longe, no meio dos pinheiros. Traziam as pistolas e as
bombas de mão. Falcó não podia ver-lhes o rosto, mas os primos tinham
vozes juvenis e excitadas. Quanto ao guarda de assalto, vinha equipado com
a sua respetiva Mauser e era de poucas falas: alguns monossílabos, quando
muito. Voz de homem corpulento. Tranquilo. Falcó supôs que era o único
profissional de todo o grupo. Um dos primos segurava na boca o ponto
vermelho da brasa de um cigarro.
– Apaga isso – ordenou Falcó, seco.
– Porquê?
– Porque ele é o chefe – respondeu Ginés, sarcástico. – Por enquanto.
A brasa extinguiu-se no chão, debaixo dos pés do primo. Falcó disse-lhes
que esperassem ali e caminhou um pouco até à praia. Primeiro ouviu o
barulho da água na margem e depois conseguiu distinguir a massa extensa e
escura para além da borda clara das dunas. A agitação marítima parecia ser
pouca, como se a chuva aplanasse o mar, e isso facilitaria o desembarque.
Não se via qualquer luz, exceto a distante cintilação periódica do farol de
Santa Pola, à direita da enseada, aceso apesar da guerra. Devia faltar,
calculou Falcó, uma hora para que o Iltis se aproximasse da praia, se
verdadeiramente ninguém cancelasse a operação e tudo prosseguisse.
Certamente que o seu comandante mantinha o torpedeiro a pairar mar
adentro, sem luzes na noite, à espera da hora com o pessoal preparado na
coberta. Deveria estar perto, a menos de uma milha, ainda que invisível na
escuridão. Falcó virou-se a observar a mancha escura do pinhal enquanto se
interrogava onde é que os vermelhos iriam montar a emboscada. Oxalá,
disse para si inquieto, não fosse demasiado perto dali.
Voltou para trás caminhando com dificuldade pela areia, reuniu-se ao
grupo e todos regressaram ao sítio onde Eva e Cari esperavam. Havia agora
outro carro junto do Hispano-Suiza, com o motor e as luzes apagadas, e as
duas mulheres apresentaram Falcó ao condutor: uma sombra que respondia
pelo nome de Andrés Ricote, uma voz juvenil, um nervoso aperto de mãos.
Ricote levava gabardina e ia bem protegido da chuva, por isso Falcó
enviou-o para vigiar o caminho, até ao limite interior do pinhal, depois de
se assegurar de que não ia armado e não lhe fosse fugir um tiro com os
nervos. Os primos Balsalobre e o guarda de assalto aproximaram o camião
sem acender as luzes, juntando-o sob os pinheiros aos dois carros, e todos
se protegeram neles, os primos e o guarda na cabina do camião e Falcó com
os irmãos Montero e Eva no Hispano-Suiza, ouvindo cair a chuva sobre o
tejadilho de chapa do automóvel. À espera.
– São todos boa gente – comentou Ginés, sentado ao volante. – Fiéis
camaradas.
Falcó não disse nada. Fumava com a brasa do cigarro oculta na
concavidade da mão e adivinhava, na penumbra, as rajadas de água a
deslizar pelo vidro do para-brisas. Notava as pernas das calças húmidas de
chuva. Sentia atrás de si a presença próxima e silenciosa de Eva Rengel.
Falcó tinha a cabeça ocupada numa complexa distribuição de horários e
acontecimentos por vir, de problemas táticos e soluções práticas: uma vasta
partida de xadrez em que a maior parte das peças iam ser sacrificadas
enquanto ele procuraria que sobrevivessem duas delas. Três, concluiu, se
conseguisse salvar Cari Montero.
– Meu Deus – disse Ginés. – Pensar que falta tão pouco. Que, se tudo
correr bem, o José Antonio estará livre daqui a umas horas...
Falcó reconhecia os sintomas. A loquacidade do jovem falangista corria a
par com os nervos, a tensão do que ia acontecer. Decidiu deixá-lo falar, para
que se acalmasse um pouco. Soltasse a pressão.
– Vai correr tudo bem – disse a irmã.
Também a ela se adivinhavam os nervos. O peso da emoção, à medida
que o momento se aproximava. Só Eva se mantinha em silêncio e Falcó
interrogou-se como é que a jovem reagiria quando compreendesse que a
operação era um fracasso e que Ginés e os outros, que nessa altura já teriam
partido para Alicante, nunca iriam regressar. E que não lhe restava outra
alternativa senão fugir com ele a bordo do Iltis.
– Quanto falta? – perguntou Ginés.
Ao breve clarão de um fósforo, inclinando-se sob o tabliê, Falcó olhou
para o seu relógio de pulso.
– Temos de ir já – disse ele.
Pegou numa lanterna que estava no porta-luvas, abriu a porta e saiu
debaixo de chuva. Antes de a fechar inclinou-se novamente para o interior,
tirou a Luger que levava no cinto e dirigiu-se a Eva.
– Vais armada?
– Não. As pistolas são para os que vão para Alicante.
Entregou-lhe a arma. As suas mãos tocaram-se na escuridão, em torno do
metal frio.
– Lembras-te como é que esta funciona?
– Sim.
– Tem oito balas no carregador. – Armou a pistola com um estalido do
fecho da culatra e acionou a segurança. – Agora tem sete e uma na câmara.
Tiras a segurança, disparas a primeira e as seguintes vão entrando
sozinhas... Compreendido?
– Claro.
A voz da jovem parecia serena, e isso tranquilizou Falcó.
– Digam aos primos e ao outro que ponham o camião e os carros prontos
para sair, virados para o caminho. Estaremos de volta daqui a meia hora.
Fechou a porta, subiu o fecho do blusão e começou a andar entre os
pinheiros, em direção à praia. Atrás de si ouvia os passos de Ginés. Parou
ao chegar à margem, entre as dunas. À esquerda, a cidade e o porto
destacavam-se em traços de sombra, apesar do escurecimento antiaéreo. À
direita, o farol distante continuava a dar fachos de luz periódicos. Olhou
para a superfície negra do mar sem ver nada. Sem ouvir outra coisa além do
marulhar e do barulho da chuva amortecido na areia.
– Espero que estejam aí – sussurrou Ginés, preocupado.
Falcó ergueu a lanterna apontando-a num ângulo de noventa graus
relativamente à cintilação do farol, com as costas da mão limpou as gostas
de água dos olhos e emitiu em código morse cinco vezes a letra T: cinco
cintilações triplas longas – um traço cada um – com o significado Estou
disposto a receber. E assim que emitiu o último, do mar escuro
responderam com a letra L: um ponto, um traço, dois pontos: Tenho algo
importante para si. Tudo conforme o combinado.
– Meu Deus – exclamou Ginés, emocionado.
Um pouco depois, destacou-se entre as sombras do mar a de uma lancha e
chegou até eles o som de remos na água. Com uma careta de desagrado,
lúgubre, Falcó pensou na barca de Caronte. A que conduzia as almas dos
mortos através da lagoa Estígia.
*
Um chapinhar na margem, sob a chuva. Ruído de remos no trincaniz de
madeira ou sobre os bancos da embarcação, antes de esta se afastar de novo
– Falcó perguntou-se se na lancha vogariam remadores alemães ou
espanhóis. Sons metálicos de armas e apetrechos. Comentários em voz
baixa e uma ou outra ordem quase sussurrada.
– Que ninguém fume.
Falcó tinha reconhecido a voz de Fabián Estévez: tranquila, segura de si.
Voz de comando feita a exercê-lo. Disciplina silenciosa, como resposta.
Obviamente, era gente treinada. Tropa de elite. Silhuetas negras passavam
agora furtivas, recortadas sobre a claridade das dunas. Reflexos de armas e
impermeáveis húmidos. Roçar de corpos, barulho de passos amortecido
pela areia e pelo gotejar da chuva. Quinze homens que iam morrer.
– Depressa. Mexam-se depressa.
Um encontro na escuridão, sem verem as caras. O traço um pouco mais
claro de uma gabardina brilhante de água. Uma mão de Estévez num ombro
de Falcó e outra a apertar-lhe a direita. O mesmo para Ginés Montero, que
estava ao lado.
– Obrigado por tudo.
Felizmente, pensou Falcó, era de noite. À luz do dia, talvez nem mesmo
ele tivesse sido capaz de aguentar o seu olhar. O aperto de mão de Estévez
havia sido duro, muito ao estilo falangista. Quase romântico, disse para si
com desassossego. Algo do tipo arma ao ombro e no céu os astros, sobre a
camada de nuvens baixas que continuava a derramar água na costa. Toda
aquela retórica fascista, sempre a argumentar entre a vida e a morte. A
primavera voltará a sorrir, etecetera. Interrogou-se se os recém-chegados
usariam camisas azuis com o jugo e as setas bordados sobre o coração ou
roupas civis. Sem luz era difícil averiguar. Mas que interessava isso?
– Onde estão os veículos?
– Entre os pinheiros – disse Ginés. – Sigam-nos.
Conduziram-nos até ao arvoredo. Ninguém pronunciava muitas palavras.
No último troço, Estévez perguntou como é que estava o caminho para
Alicante.
– Desanuviado – disse Ginés. – Só é preciso dar uma volta para evitar o
controlo do aeródromo.
– E como é que se sentem os camaradas daqui?
– Já os vais ver. Estão calmos e às tuas ordens.
Falcó não dizia nada. Recordava a figura melancólica de Fabián Estévez
quando se despediram em Salamanca, as mãos nos bolsos do escuro
sobretudo e a cabeça descoberta, afastando-se envolto na aura dos mártires
predestinados. Agora, o herói do Alcázar caminhava por fim para o seu
Getsemani, embora não suspeitasse disso. Ou talvez lhe fosse indiferente.
Podia ser, inclusivamente, que até o procurasse. Os homens como aquele
levavam a sua última noite consigo para todo o lado, como uma mochila
inseparável. Como uma sentença de morte adiada.
– Já chegámos. Ali estão.
Os dois carros e o camião encontravam-se agora juntos, numa pequena
clareira do pinhal, com a chuva a repicar sobre a chapa. A chegada do
grupo de assalto suscitou um ou outro emocionado Arriba Espanha, abraços
e mais apertos de mão. Respirava-se excitação e patriotismo, observou
Falcó com espírito crítico. Todos davam por assente que o Chefe Supremo
ia estar com eles dali a poucas horas. Favas contadas, repetia um dos primos
Balsalobre, cheio de ardor. Arriba Espanha, camaradas. Favas contadas.
– Informe-nos – pediu Estévez a Falcó.
– Claro. Venha aqui.
Subiram até à cabina do camião, protegidos pela lona, Falcó, Estévez,
Ginés e mais alguns homens. O restou ficou de fora com as duas mulheres,
protegendo-se da chuva nos carros e debaixo dos pinheiros. Falcó acendeu
uma lanterna e abriu as plantas no chão: estrada, cidade, prisão. Os rostos
cansados, gordurosos devido à vigília e à permanência no mar, inclinaram-
se sobre elas. Discutiram a fundo os pormenores da operação. O percurso,
os horários, a forma do ataque. Como estava previsto, um grupo chegaria à
porta da prisão no Hispano-Suiza, com o pretexto de entregar um detido. O
grosso da força atacaria assim que passasse o portão, a caminho da cela
onde estava José Antonio. Também tentaria libertar-se o seu irmão Miguel,
no andar de cima, cela número 10.
– E todos os camaradas presos que pudermos soltar – fez notar Ginés
Montero.
– Não – disse Estévez com calma.
– Porquê?
– São essas as minhas ordens. Tirar o José Antonio e, se for possível, o
seu irmão. Não temos aqui meios para levar outras pessoas.
A luz da lanterna fazia brilhar os óculos de Ginés. Acentuava o despontar
da barba que começava a escurecer-lhe o queixo. O seu gesto de
indignação.
– Mas ali há muitos mais – protestou. – Falangistas, monárquicos,
militares, gente de direita... Serão fuzilados como represália se os
deixarmos para trás.
– Não podemos perder tempo – respondeu Estévez. – Se for possível,
entregar-lhes-emos as chaves para que se desenvencilhem por sua conta.
Mas não podemos levar ninguém.
– Isso é injusto.
– Injustas ou não, as ordens cumprem-se. E essas são as nossas.
Falcó observava, finalmente, as feições de Estévez à luz da lanterna. A
luminosidade desta iluminava o seu rosto de baixo, sulcando-o de sombras
angulosas que o faziam parecer mais magro do que em Salamanca; ou
talvez estivesse realmente. Levava um cinto com pistola e duas granadas de
mão italianas Breda, e tinha pousado a seu lado, no chão do camião, uma
pistola-metralhadora Star RU35. Os dois que o acompanhavam – um muito
novo, ruivo, e outro mais velho, de bigode recortado, certamente chefes de
esquadra – iam equipados de forma semelhante; e pelas golas das suas
gabardinas e impermeáveis molhados espreitava o azul das camisas
falangistas. Os profundos olhos escuros de Estévez, reparou Falcó, tinham
um brilho apagado. Reflexivo. Às vezes erguia o olhar para consultar
silenciosamente os seus dois companheiros e depois voltava a olhar para os
planos com tranquila objetividade, como se não tivesse muitas ilusões sobre
o que aqueles traços significavam em perigo, combate, vida ou morte. Êxito
ou fracasso. De vez em quando aqueles olhos detinham-se em Falcó, e este
precisava de fazer um esforço interior quase doloroso, que lhe crispava os
músculos das costas e do pescoço, para aguentar aquele olhar sem afastar o
seu.
– Você falou o tempo todo na terceira pessoa – disse-lhe, de repente,
Estévez. – Significa isso que não estará connosco no assalto à prisão?
O esforço interior tornou-se maior. Falcó fitava os olhos cansados do
falangista, sem pestanejar.
– Fico aqui.
Estévez considerou aquilo em silêncio.
– Ordens ou decisão pessoal? – inquiriu por fim.
– Ordens.
– Ele fica aqui com as mulheres – disse Ginés, com rancor mal contido. –
O que acontece é que...
– Cala-te, camarada – disse Estévez.
O jovem engoliu em seco.
– Às tuas ordens – balbuciou.
Com um gesto pensativo, Estévez continuava a observar Falcó.
– As ordens são para ser cumpridas – disse o cabo. Olhou para os seus
dois companheiros e voltou a olhar para Falcó.
– Claro – disse este, com calma.
– Você não é falangista. Não está sob o meu comando.
– É verdade. Não estou.
O outro tinha dobrado as plantas e guardava-as dentro da gabardina.
– Assegurará, então, o nosso reembarque. – Olhou para o relógio. –
Dentro de uma hora e meia.
– Naturalmente.
– Precisa que lhe deixe mais alguém?... Porque me vai fazer falta até o
último homem.
– Com a Eva Rengel e a Cari Montero será suficiente – tranquilizou-o
Falcó. – Trata-se de fazer sinais ao Iltis e controlar este lugar até vocês
voltarem.
– Eu não confio – disse Ginés. – Deveria ficar mais alguém.
– Tu? – perguntou Estévez.
– Não, eu quero ir. Devo ir. Digo alguém de confiança. Um do meu
grupo... O Ricote, por exemplo. É o mais novo e o mais nervoso. Não vai
ser muito útil em Alicante.
O outro pensou por momentos.
– De acordo... Esse rapaz está armado?
– Podemos deixar-lhe uma pistola e algumas granadas.
– E as duas mulheres?
– A minha irmã não tem armas, mas a Eva tem uma Luger.
– E você?
Falcó deu uma pancadinha no bolso direito do blusão.
– Estou armado – disse ele.
– Será suficiente. – Estévez olhou para todos um a um, reservando o
último olhar, ainda pensativo, para Falcó. – Está tudo claro?... Então vamos
a isso.
Olharam para os relógios sincronizando as horas, apagaram a lanterna e
abandonaram o camião, novamente debaixo de chuva. Estévez ficou um
pouco à parte com Falcó.
– Há alguma coisa que eu não saiba? – perguntou ele em voz baixa.
– Nada de especial. Tenho novas ordens, como lhe disse.
Um silêncio. Só barulho de chuva. Depois o falangista soltou um suspiro.
– Fico surpreendido. Você não é dos que ficam atrás.
– Esta noite fico.
Outra pausa. A voz de Estévez parecia agora fria. Distante.
– Lá terá os seus motivos.
– Já disse. Tenho ordens.
– É claro. Ordens... Vai desejar-me boa sorte, pelo menos.
Notou que a mão do falangista procurava a sua, para a apertar. E então,
sentindo uma profunda irritação para consigo mesmo, envergonhado até à
medula, Falcó apertou-a com firmeza.
– Pois claro – disse ele. – Boa sorte.
Ardiam-lhe a mão e o rosto sob as gotas de chuva. Separaram-se sem
mais palavras. O chão já estava muito enlameado. As sombras que se
protegiam nos carros e debaixo das árvores congregaram-se em volta de
Estévez. As roupas e as armas molhadas brilhavam suavemente na
escuridão.
– Vamo-nos embora – disse o falangista. – O primeiro grupo irá comigo
no carro dianteiro, o grosso da força no camião e o segundo automóvel
fechará a marcha. Ninguém pode acender os faróis... Ficam aqui as duas
meninas e o camarada Ricote.
Cari e o rapaz protestaram, mas Estévez mandou-os calar com secura.
Eva foi colocar-se ao lado de Falcó sem abrir a boca.
– Em marcha – disse Estévez. – E Arriba Espanha.
*
Tinha deixado de chover, e das copas dos pinheiros caíam as últimas
gotas. Falcó levantou o rosto e observou que por uma abertura do céu negro
espreitavam as estrelas. Andou uns passos até às primeiras dunas da praia,
olhando para a extensão sombria onde o marulhar das águas ecoava
debilmente. Estava frio, e as suas roupas molhadas intensificavam essa
sensação. Meteu as mãos nos bolsos. Desejava fumar, mas não se atrevia a
acender um cigarro. Não naquele momento, claro. De qualquer modo, só
lhe restavam dois, recordou. E ainda havia noite pela frente.
– Olhem! – exclamou Eva Rengel.
De repente, nalgum lugar do mar escuro, milhas adentro em frente de
Alicante, brilhavam clarões que se sucediam com rapidez. Relâmpagos
minúsculos, silenciosos a princípio, que dali a poucos segundos se deixaram
ouvir como trovões distantes, sincopados: bum-bum, bum-bum. No meio
dos estrépitos chegava também, amortecido pela distância, um ruído
semelhante ao de tecido que se rasgasse: fazia bum-bum, bum-bum,
raaaash, raaash. Nesse instante, começaram a ver-se clarões na cidade e a
subir labaredas. Os estrépitos também chegaram com atraso, um pouco
depois, na distância. E como num espetáculo irreal, a ladeira do castelo de
Santa Bárbara surgiu iluminada a intervalos.
– Meu Deus – murmurou Cari Montero.
– O Deutschland – disse Falcó. – Na sua hora em ponto.
– Isso manterá os vermelhos entretidos enquanto os nossos chegam.
– Suponho.
Ricote, o rapaz falangista que tinham deixado com eles, aproximava-se
também.
– Que barbaridade! – comentou ele. – Nunca tinha visto antes um
bombardeamento.
Tinha uma voz quase adolescente. Falcó ainda não lhe vira o rosto: só
distinguia a sua voz e a mancha clara de uma gabardina. Não sabia nada
dele, exceto que era estudante e viera de Alhama trazendo o segundo carro.
Tinham-lhe deixado uma das Astra de 9 longo e duas granadas Lafitte, mas
Falcó nem sequer tinha a certeza de saber usá-las.
– Deverias... – começou a dizer.
Foi interrompido por um disparo que se ouviu ao longe, terra adentro. Do
outro lado do pinhal e na direção da estrada de Alicante. Um barulho
apagado pela distância, talvez a uns dois quilómetros.
– Meu Deus! – exclamou Cari.
Ao disparo isolado sucedia-se agora um crepitar furioso de armas de
fogo. Um tiroteio intenso, prolongado, que a distância amortecia.
– Na estrada. – A voz de Eva parecia angustiada. – Perto do aeródromo.
O barulho dos disparos era agora muito intenso, como uma matraca de
petardos que rebentassem ao mesmo tempo durante um grande bocado. Às
vezes parecia interromper-se uns segundos para começar de novo. E a
espaços era pontilhado por outros estrépitos mais surdos e mais secos, que
Falcó reconheceu como de bombas de mão. Combatia-se a curta distância.
– São eles – gemeu Ricote. – Os nossos.
Cari Montero lançou um gritinho agudo, penetrante, que obrigou Falcó a
agarrá-la pelos ombros e a abaná-la com violência.
– Cala-te!
– Não chegaram a Alicante!... Descobriram-nos!
– Cala-te, já disse!
– O meu irmão!... O meu irmão e os outros camaradas!
Bateu-lhe sem violência, na têmpora. Uma única vez. A rapariga caiu na
areia.
– Toma conta dela – disse a Eva.
– Não lhe devias ter batido.
– Se ela voltar a gritar, mato-a.
– Não digas barbaridades.
– Não percebeste... Mato-a mesmo!
Mar adentro o fogo do Deutschland tinha parado, e à distância viam-se
labaredas na cidade. Certamente que ardiam os depósitos de combustível
atingidos no porto. Quanto ao tiroteio de terra, agora era esporádico. Os
disparos soavam mais irregulares e espaçados, e não se ouvia bombas de
mão a rebentar.
– Como é que estás de ânimo, rapaz?
Falcó virara-se para Ricote. A voz do jovem falangista pareceu indecisa.
– Estou bem.
– Ouve. Descobriram-nos, por isso certamente que os sobreviventes, se os
houver, correrão para aqui... Estás em condições de cumprir o teu dever?
– Claro que sim.
– Bom, então monta a pistola e prepara as tuas granadas... Sabes usá-las?
– Sim. Depois de tirar as espoletas, atiro-as para acionar o pavio, para o
mais longe que puder.
– É isso. Vai para o outro lado do pinhal, como fizeste antes, e fica lá a
vigiar. Se chegar alguém, pergunta primeiro e atira depois, se não te
convencer o que ouvires. Mas tem cuidado para não atingires a nossa
própria gente... Ainda falta um pouco para que a lancha se aproxime para
nos vir buscar, e é preciso esperar. Iremos avisar-te.
– De certeza?... A lancha virá?
– Absoluta.
Tenso, o jovem agarrou-o por um braço.
– Não me vão deixar para trás?
– Tens a minha palavra de honra. E agora, vai para lá.
O outro resfolegou, decidido.
– Às suas ordens.
A mancha clara da gabardina desapareceu entre as árvores. Bom alvo na
escuridão, pensou Falcó de modo automático. Depois virou-se para Eva e
Cari. Estavam as duas ao pé de uma pequena duna, duas sombras na areia.
Cari queixava-se com um lamento aturdido e longo. Dali a pouco começou
a soluçar.
– Eu cuido dela – disse Eva.
– Muito bem.
– Quanto é que falta para vir a lancha?
A voz da jovem parecia serena. Dona de si. Isso confortou Falcó.
– Não sei.
Sacou a lanterna, apontou para a negrura do mar e carregou várias vezes
no interruptor. Um ponto, um traço, dois pontos. Era demasiado cedo, mas o
tempo urgia. Esperou um bocado sem obter resposta. Espero bem, pensou
ele, que nos planos do Comando não esteja previsto deixá-lo também a ele
abandonado à sua sorte, como a Estévez e ao resto dos homens que àquela
hora já estariam mortos ou prestes a morrer. Ainda que fosse possível que o
comandante do Iltis, como bom alemão, mantivesse o combinado e não
enviasse ninguém para os recolher senão quando se cumprisse o prazo
estabelecido. O problema, dado o curso dos acontecimentos, era que nessa
altura podia ser demasiado tarde. Se houvesse sobreviventes da emboscada
e os vermelhos viessem atrás, aquela praia ia converter-se num inferno
antes de alguém os tirar dali.
Agachou-se na areia até ficar de cócoras. Tiritava debaixo do blusão e das
calças de bombazina molhadas. Estava encharcado por fora e
desconfortável por dentro. Muito. O seu endurecimento, o seu cinismo
realista, fruto de anos, de jogadas, de mulheres e de vida serviam para
manter muitas coisas na linha, mas não solucionavam tudo. De todo.
Baixezas como aquela é claro que não. Para manter a frieza de julgamento
necessária, Falcó obrigou-se a não pensar nas pessoas do grupo de assalto –
já não se ouvia disparos terra adentro – em Ginés Montero e nos seus
óculos de míope, nos primos Balsalobre e no silencioso guarda de assalto
Torres, no jovem ruivo e no chefe de esquadra de bigode que tinham visto
as plantas à luz da lanterna. No rosto melancólico de Fabián Estévez antes
de entrar para os veículos e se afastar na noite.
– Achas que se terá salvado alguém? – perguntou Eva da escuridão.
– Não sei... Não creio.
Soltou uma cuspidela amarga. Porcaria de Deus, disse para si. Se é que
existe. E quem dera que exista, para alguma vez lhe pedir contas. Depois
agachou-se um pouco mais, pôs o penúltimo cigarro na boca e acendeu-o
sufocando a chama do fósforo na cavidade das mãos, a coberto da duna.
Para o diabo com aquilo tudo.
Ouviu um roçagar a seu lado. Eva tinha-se aproximado dele. Deitaram-se
sobre a areia húmida, colados um ao outro, a estremecer de frio – ele sentiu
sob as roupas dela a dureza da pistola Luger. Enquanto protegia a brasa
entre as mãos, Falcó aproximou o cigarro dos lábios da jovem, que aspirou
profundamente umas duas vezes. Depois de consumido o cigarro, Falcó
apagou-o com precaução e permaneceram abraçados e imóveis, tentando
dar calor um ao outro, enquanto nos rasgos do céu negro se multiplicavam
as estrelas.
*
Tudo aconteceu quase ao mesmo tempo: barulho de remos perto da
margem, a silhueta escura da lancha a aproximar-se no mar e a noite; Falcó
levantou dando uns passos para a praia e ouviu nesse momento disparos de
pistola muito perto, no caminho, do outro lado do pinhal. Um
estremecimento de alarme sacudiu-lhe o corpo.
– Traz a Cari, Eva!... Corre!
O céu tinha desanuviado um bocado, e um pouco de luar semioculto pelas
nuvens permitia distinguir melhor os contornos da paisagem. A lancha
estava quase na margem, uma sombra negra em que se advertiam as formas
dos tripulantes inclinados sobre os remos.
– Eva, Cari!
Aos tiros de pistola – cinco, seis, ia contando Falcó – unia-se agora um
tiroteio mais potente, de armas compridas. De carabinas e de rajadas de
naranjero. De repente ouviu-se um estrondo de bomba de mão. Fez puum-
ba. Uma Lafitte. Isso fez passar pela boca de Falcó uma breve expressão de
agradecimento. O jovem Ricote estava a vender cara a sua pele. Bom rapaz.
– Venham depressa!
A pistola do falangista disparou o último tiro do carregador e nesse
instante ecoou o estrondo de outra granada. Depois veio o silêncio, e Falcó
deduziu que o jovem estava morto ou vinha a fugir para ali pelo pinhal, com
os vermelhos atrás.
– Para o barco!... Vão para o barco!
Correu para as mulheres, que iam ao seu encontro. Duas sombras a
tropeçar na areia. Uma delas passou ao seu lado e a outra caiu ao chão.
Falcó agachou-se para a levantar. Era Cari. Agarrou-a pelos braços e pô-la
de pé. Muito perto da sua cara passou um zumbido violento e rápido, como
o de um besouro que voasse em linha reta. O som do disparo vinha do
pinhal.
– Subam para o barco!
Agora os besouros de chumbo multiplicavam-se. Ziaaang, ziaaang,
ouvia-se por todo o lado; e no extremo do pinhal, sob as sombras negras das
árvores, brilhavam clarões de disparos. Falcó segurava em Cari a caminho
da água. De repente, a jovem estremeceu ao mesmo tempo que na sua carne
se ouvia um estalido, tchas, pouco audível, e o corpo afrouxou inerte,
caindo ao chão.
– Cari!... Levanta-te, Cari!
Agachou-se sobre ela, puxando-lhe os braços para a arrastar pela areia.
Ouvia-a gemer. Olhou angustiado para trás, temendo que com o tiroteio os
remadores dessem meia-volta, e viu a silhueta de Eva ajoelhada junto a uma
duna, recortada na claridade desta, erguendo as mãos unidas para disparar
com a Luger. Pam, pam, pam. Três clarões e três estampidos. Depois a
jovem retrocedeu uns passos mudando de posição, voltou a ajoelhar-se e a
disparar de novo com aparente calma, espaçando os tiros. Pam. Pam. Pam.
Do mar, da lancha, surgiu uma voz: um grito por cima do tiroteio. Falcó
não entendeu o que dizia, mas sim o significado. Iam-se embora. Sentiu um
vazio agudo nas virilhas e o seu coração transbordou em palpitações
desordenadas. Cari Montero continuava a queixar-se debilmente.
Continuava viva, mas pesava muito. Por isso largou-a e desatou a correr
para a beira da água. Eva já não disparava e também corria à sua frente.
Alcançou-a na água, chapinhando ao lado um do outro na direção da
sombra escura da embarcação, que já parecia retroceder cabeceando na
rebentação. Chegaram com o mar pela cintura. Um disparo de terra bateu na
madeira do trincaniz quando Falcó se impulsionava sobre ela, ajudado por
umas mãos que puxavam pela sua roupa encharcada. O balázio levantou
farpas que saltaram perto da sua cara. Ouviu-se uma ordem em alemão e os
remos ressoaram nas forquetas. Falcó nem sequer olhou para trás. Jazia
exausto sobre o madeiramento do fundo, entre as pernas dos remadores.
Tinha os olhos fechados e a boca aberta em inalações ávidas, procurando
recuperar o fôlego. Os pulmões ardiam-lhe, e a seu lado sentia tremer o
corpo molhado e frio de Eva Rengel.
12
A NOITE É NEUTRA
A casa estava sem luzes, uma leve mancha clara na escuridão de um lado
da estrada. Era fácil distingui-la, apesar de não haver luar. A sombra
densa de um pequeno bosque de choupos escurecia o outro lado, entre o
asfalto e a corrente invisível do Tormes. Depois de parar o carro na berma –
tinha percorrido o último meio quilómetro com os faróis apagados –,
Lorenzo Falcó tirou a pistola de um bolso do sobretudo, e do outro um tubo
de aço cilíndrico, de um palmo de comprimento e três centímetros de
diâmetro, que ele ajustou devagar, enroscando-o com três voltas na boca da
arma. Tratava-se de um moderníssimo silenciador Heissefeldt, em utilização
apenas há três anos pela polícia secreta alemã: um complemento que
amortecia os gases do disparo, reduzindo em mais de metade o barulho
deste em troca de perder precisão para lá dos oito ou dez metros. Falcó
conseguira-o em Berlim dois meses antes, nos lavabos do Hotel Adlon, das
mãos de um subcomissário da Gestapo e como pagamento de duzentos
gramas de cocaína. Era a primeira vez que ia usá-lo numa ação real.
Sentiu vontade de fumar um cigarro, mas afastou a tentação. Não era
momento para isso. Com a pistola no colo e as mãos no volante permaneceu
imóvel durante um bom bocado, a olhar para a casa até que os seus olhos se
habituaram às sombras e conseguiu distinguir melhor os contornos, o
pequeno bosque próximo e a lista mais escura da estrada. O carro era um
Citroën 7 Pato do SNIO, cujas chaves lhe tinham sido entregues por
Centeno por ordem do Almirante – «Poderei sempre dizer que o roubaste»,
tinha comentado este com displicência. Falcó tinha o sobretudo e o chapéu
no banco do copiloto e vestia um fato de tweed escuro, com meias pretas e
sapatos cómodos muito desportivos, de solas de borracha. Um lenço de seda
dissimulava-lhe o branco da camisa. Sem gravata. Ao fim de uns momentos
apalpou os bolsos para verificar que estava tudo no sítio e não fazia
barulho: um jogo de gazuas embrulhado num lenço, dois carregadores para
a Browning com seis balas cada um, além daquele que estava na arma, e a
navalha automática no bolso direito das calças. A cigarreira, a caneta, a
carteira, o isqueiro, as cafiaspirinas e os cigarros deixou-os com o
sobretudo.
Tentou ver os ponteiros do relógio, mas com aquela escuridão tornava-se
impossível. Calculou que seriam umas duas da madrugada. Ainda esperou
um pouco mais, com os olhos atentos à noite, e por fim empunhou a pistola,
enfiou uma bala na câmara, abriu a porta e saiu. Urinou a três passos do
carro. Estava frio, ainda mais húmido e desagradável pela proximidade do
rio, de modo que levantou a gola do casaco. Avançava devagar, com a
mente vazia de tudo o que não fosse estudar o terreno que pisava, a casa
cada vez mais próxima, as sombras que inundavam o campo e o bosque. Ia
concentrado em olhar à volta, atento por instinto a um princípio
fundamental: antes de entrar num sítio era preciso saber por onde é que se
ia abandonar. Ter sempre previsto o caminho melhor; o mais curto e seguro
para depois se ir embora com discrição e rapidez, segundo o velho código
do escorpião: olha, pica e sai.
Escolheu as sombras mais espessas das árvores para se aproximar da
casa. Em frente da porta havia um gradeamento de ferro que se prolongava
num muro não muito alto. Tateou o gradeamento, que estava fechado, e
depois saltou o muro sem dificuldade, alcandorando-se de um salto para se
deixar cair do outro lado. Andou pelo meio do mato de um jardim
descuidado e chegou à parede da casa, que continuava silenciosa, sem rasto
de vida. Espero, pensou por momentos, que o Almirante não me tenha
pregado a partida. Ou que esteja enganado.
Dobrou a esquina enquanto explorava o edifício, e foi então que ouviu um
grunhido próximo e baixo, proveniente de um vulto que se movia. Um cão,
pensou ele. Arranjámo-la bonita. Oxalá esteja preso e não solto. Ficou com
os pelos eriçados ao mesmo tempo que, de modo automático, erguia a
pistola. O primeiro latido foi forte, ameaçador e pungente, a menos de um
metro. O segundo foi cortado em seco quando Falcó carregou no gatilho e a
Browning saltou na sua mão direita com um brusco retrocesso, como se
tivesse vida própria, iluminando com um breve clarão as fauces abertas, os
caninos à mostra e os olhos desorbitados do animal. O barulho do disparo,
já muito amortecido pelo silenciador, perdeu-se naquele segundo e truncado
latido, e tudo ficou em silêncio.
Falcó manteve-se imóvel, com as costas contra a parede, calculando os
efeitos do que acontecera. Depois, recuperada a calma, moveu-se com
rapidez e cautela. Podia ser que os latidos tivessem acordado alguém, se é
que havia alguém em casa. Ou podia ser que esse alguém continuasse a
dormir. Caminhou colado à parede em direção à porta principal, e nesse
momento reparou que no andar superior se iluminava uma janela. A certeza
inundou-o por fim com uma onda de tensão e prazer simultâneos, e a
pulsação que bombeava ruidosamente nos seus ouvidos, bum-bum, bum-
bum, serenou, regularizando-se até um ritmo normal. Estava tudo bem,
disse para si. Ou quase. Estava no bom caminho. Pronto para fazer o que
tinha ido fazer e assumir as suas consequências. Todas.
A entrada tinha três degraus e uma espécie de alpendre. Procurava a
gazua no bolso quando viu iluminar-se a fresta do umbral e ouviu o barulho
da fechadura acionada de dentro. Levantou a pistola, a porta abriu-se e nela,
na leve contraluz de um candeeiro elétrico de poucos watts aceso no
vestíbulo, recortou-se a silhueta de um homem. Falcó disparou à queima-
roupa; e desta vez, sem latidos que o dissimulassem, o barulho do tiro soou
como um grande bocado de madeira ao partir-se. Fez crac, e a silhueta
resvalou desamparada, sobre os joelhos, antes de cair ao chão com a cabeça
a um palmo dos sapatos de Falcó. Por momentos – uma vez mais na sua
vida – pensou que as pessoas se enganavam em relação aos que recebiam
um disparo. Era costume acreditar-se que iam para o chão fazendo gestos
dramáticos, ou levando uma mão à ferida, como nos filmes. Mas não era
assim. Na realidade, limitavam-se a desmaiar. Para sempre.
Passou por cima do cadáver – com aquela pouca luz só conseguiu ver que
vestia calças e camisa e que ia em meias – e entrou na casa com a pistola à
sua frente. O salão, iluminado pela fraca claridade do candeeiro, estava
mobilado de forma convencional. Cheirava a fechado, a mofo, a tapetes e
cortinas pouco arejadas, como os cinemas e lugares públicos. Tinha aspeto
de ser uma casa de recreio para fins de semana, certamente confiscada aos
seus donos, utilizada por gente de passagem com pouco interesse pela
limpeza. Falcó reconhecia aquele género de lugares. Era um sítio discreto
para interrogatórios e prisioneiros especiais dos homens de Lisardo Queralt,
dissera-lhe o Almirante. Discrição e impunidade garantidas. E tudo se
encaixava no relato. Ao fundo havia umas escadas que se bifurcavam para o
andar de cima e para uma cave. Falcó decidiu deixar a cave para o fim e
ocupar-se primeiro do andar de cima. Por precaução, substituiu o
carregador, onde só restavam três balas – a quarta tinha entrado
automaticamente na câmara depois do segundo disparo –, por outro com
seis. Passou os dedos pela perna das calças e voltou a empunhar a arma.
Tinha calor. A mão transpirava um pouco e o lenço de seda sufocava-lhe o
pescoço. Tirou-o, deixando-o cair.
Então ouviu uma voz, em cima. Uma interrogação masculina, mal-
humorada, que não conseguiu perceber de todo. Parecia ter pronunciado um
nome, talvez o do indivíduo que estava caído na porta. Com muita
precaução, procurando pisar primeiro com o calcanhar dos sapatos e depois
com o resto da sola, Falcó foi até às escadas, olhou para cima e viu uma
balaustrada de madeira recortada na penumbra de uma luz ali acesa, talvez a
da porta de um quarto que acabava de se abrir. Ergueu a pistola, apontando
para o buraco, e subiu muito devagar, do mesmo modo, contendo o fôlego.
Um, dois, cinco degraus. Havia um pequeno patamar e deteve-se nele,
sempre com a arma para cima. Respirou devagar, fundo, oxigenando os
pulmões, e preparou-se para continuar. Nesse momento, ouviu-se de novo a
voz masculina, uma sombra projetou-se na balaustrada e apareceu um rosto
a espreitar sobre ela. Desta vez Falcó conseguiu vê-lo bem: moreno, meia-
idade, aspeto nutrido, bigode. Estava de cuecas e de camisola de alças.
Disparou duas vezes, porque da primeira levantou lascas da balaustrada e
não tinha a certeza de ter acertado. A segundo bala fez desaparecer o
homem da vista de Falcó. Este subiu com rapidez os degraus que faltavam e
viu-o estendido de costas no chão, com os braços e as pernas abertos como
se estivesse a descansar. Tinha uma bala no peito – um buraco na camisola,
sem sangue à vista – e outro no pescoço, por onde se lhe derramava em
borbotões um jato intermitente de um vermelho intenso. Parecia morto; mas
quando Falcó chegou ao pé dele, o homem caído remexeu as pernas e
emitiu um queixume prolongado e rouco. Tinha os olhos abertos, vidrados,
fixos em Falcó. Então este agachou-se um pouco e, carregando na boca do
silenciador contra o coração do outro, a fim de silenciar ainda mais o
disparo, carregou no gatilho.
*
Foi abrindo as portas com precaução, uma a seguir à outra. Havia cinco, e
uma era a de uma casa de banho. No quarto do homem morto nas escadas
não havia mais ninguém, e o outro estava vazio. Ao fundo do corredor
havia uma porta dupla de vidro fosco, como se se tratasse do quarto
principal, e Falcó aproximou-se dela. A única luz provinha do quarto do
homem morto, que continuava a iluminar as escadas e parte do corredor.
Falcó parou diante da porta, pôs a mão na maçaneta e abriu devagar. Lá
dentro estava escuro. Com a pistola preparada na mão direita, tateou a
parede com a esquerda à procura do interruptor da luz, e quando esta se
acendeu viu Eva Rengel deitada de barriga para cima sobre um sommier do
qual tinham retirado o colchão. Encontrava-se atada ao sommier pelos
pulsos e pelos tornozelos, e estas últimas ataduras mantinham as suas
pernas muito abertas, numa postura ao mesmo tempo indefesa e obscena.
Estava nua, erguera um pouco a cabeça e olhava para ele com olhos
aturdidos, vazios, mistura de sono, desconcerto e espanto.
Reprimiu o primeiro impulso de se aproximar dela. Ainda havia outro
quarto por revistar e em baixo a cave. Tinha de se assegurar de que não
havia mais ninguém na casa. Por isso girou sobre os calcanhares para
abandonar o quarto, e ao fazê-lo quase deu de caras com um homem que
saía do quarto contíguo, descalço e a meter com uma mão a camisa nas
calças. Na outra levava um revólver, e durante dois segundos, antes de se
recompor da surpresa e agir – demasiado perto para usar a pistola com
aquele maldito tubo comprido –, Falcó pensou que se houvesse mais
esbirros de Lisardo Queralt na casa, tudo podia muito bem estar a ir por
água abaixo. Com aquele terceiro adversário acabava de tocar no limite.
Das suas possibilidades.
– Mas que merda...? – começou a dizer o homem.
Olhava para ele com os olhos muito abertos, desconcertado, ainda
sonolento. Era magro, moreno, com pelinhos da barba meio crescidos a
escurecer-lhe o queixo. E bastante forte, advertiu Falcó desolado quando, ao
bater-lhe no pulso para fazer soltar o revólver, encontrou a resistência de
um braço musculoso. Consciente de que nada havia a fazer com a pistola,
deixou-a cair, continuou a procurar com a mão esquerda que o outro
largasse a arma, e utilizou a direita para agarrar com força o inimigo pela
nuca, o tempo preciso para lhe segurar a cabeça enquanto lhe desferia uma
violenta cabeçada na cara. Ouviu-se bastante, croc, com um estalar de ossos
e cartilagens a partirem-se, e o outro retrocedeu tropeçando desajeitado,
esbracejando para manter o equilíbrio enquanto um jato de sangue lhe
brotava instantaneamente do nariz, que parecia agora torto para o lado, de
um modo grotesco. Mas não largava o revólver, por isso Falcó atacou de
novo com a urgência do desespero, sabendo que se aquele cano se virasse
para ele, as suas oportunidades eram mínimas. Felizmente, o adversário
estava descomposto devido à pancada e ao sangue, tão aturdido que não
opôs demasiada resistência quando Falcó lhe deu uma joelhada numa coxa
junto à cabeça do fémur, fazendo-o cair ao chão, e se atirou para cima dele.
O disparo do revólver ouviu-se muito perto do lado esquerdo das costas
de Falcó, que por momentos, ensurdecido pelo estrondo, julgou que
acabava de levar com uma bala no corpo. Mas não sentia nada, nem sequer
a queimadura do disparo. Só o cheiro áspero da pólvora. Por isso, voltou a
bater na cara do homem caído, sistematicamente, desta vez com o punho
direito fechado, de cima para baixo, procurando sempre acertar no nariz
maltratado, até que o outro começou a urrar que nem uma besta e depois de
forcejar soltou o revólver. Então, apertando-o pela garganta com uma mão,
Falcó procurou a navalha automática no bolso das calças, carregou no botão
e quando a lâmina se abriu pôs a ponta debaixo do queixo do seu inimigo.
Adivinhando o que ia acontecer, os olhos desorbitados deste olharam para
ele com horror no meio do sangue que lhe tingia o rosto. Depois Falcó
enfiou a lâmina com um golpe seco, para cima, e saltou-lhe para a cara um
jato de sangue cuspido.
*
Secou o rosto com a fralda da camisa do morto, limpou a navalha e
voltou a metê-la no bolso. Após uns momentos utilizados para recuperar a
lucidez e as forças, levantou-se sobre o corpo imóvel, pegou na pistola,
tirou-lhe o silenciador – o disparo do revólver liquidava já toda a esperança
de discrição – e guardou-o num bolso do casaco. Encontrava-se de costas
para a porta iluminada do quarto onde estava a mulher, e deliberadamente
não quis olhar para trás. Iria ter tempo para isso. O urgente agora era
assegurar-se de que não havia mais ninguém na casa, por isso desceu à cave
e deu uma vista de olhos. Não era um lugar agradável; até se parecia muito
com o quarto da checa de Alicante onde os vermelhos o tinham interrogado
a ele. Na realidade, pensou, todos os quartos de interrogatório do mundo se
pareciam. Estivera em vários deles, tanto de um lado como do outro das
perguntas, e era fácil reconhecê-los: a cadeira onde sentavam os
prisioneiros, a mesa a que eram atados, os cassetetes, os vergalhos para
tareias e outros instrumentos de tortura. Aquela cave, em particular, tinha
dois grandes focos agora apagados, orientáveis para a cadeira de
interrogatórios para encandear o eventual prisioneiro. O cinema de
gângsters de Hollywood dava boas ideias. Em cima da mesa havia um
cinzeiro repleto de beatas velhas, e num canto do quarto, um balde sujo e
malcheiroso com o que pareciam ser vómitos – Falcó estremeceu pensando
que seriam de Eva Rengel – sob um retrato do Caudilho e uma bandeira
nacional vermelha e amarela espetada com pioneses na parede.
De regresso ao rés do chão, foi até à porta, agarrou pelas pernas o cadáver
atravessado no umbral e meteu-o em casa, traçando um longo rasto de
sangue no chão. Deixou-o assim, de barriga para baixo como estava, sem
olhar sequer para o seu rosto. Depois fechou a porta. Tinha a boca tão seca
como se lhe tivessem esfregado a língua, gengivas e palato com um
esfregão, por isso foi até à cozinha. Encontrou uma garrafa de conhaque, a
que não ligou, e outra de vinho ao pé de uma lata de manteiga holandesa e
uns bocados de pão. Verteu vinho num copo grande, misturado com água da
torneira, e bebeu-o sem respirar, com verdadeira ânsia. Depois dirigiu-se ao
andar superior. Os outros dois cadáveres estavam no corredor, um junto à
balaustrada e o outro ao fundo, perto da porta de vidros foscos do quarto
principal. O da camisola de alças – tinha agora um charco de sangue
debaixo dele, à vontade cinco litros que pingavam pelos primeiros degraus
da escada – levava ao pescoço uma corrente de ouro com uma medalha do
Sagrado Coração. Tinha os olhos entreabertos e cara de estupefação, como
se antes de morrer tivesse pensado que aquilo não podia estar a suceder-lhe
a ele. Costumava acontecer. Quanto ao outro, não tinha qualquer expressão,
pelo menos visível, porque o seu rosto era uma máscara vermelha. Falcó
perguntou a si mesmo quantos deles, se não mesmo todos, tinham violado
Eva Rengel. Entrou nos quartos, revistou as carteiras dos mortos – eram
agentes da Direção de Polícia e Segurança – e guardou os documentos de
um com quem tinha uma certa parecença física. Nunca se sabe, pensou ele,
e há controlos e fronteiras onde todos os gatos podem ser pardos. Também
lhes tirou o dinheiro. Em cima de uma mesinha de cabeceira havia um maço
de Ideales e um isqueiro, e então sentou-se em cima dos lençóis enrugados
pelo homem que tinha matado e fumou durante cinco minutos, sem pressa.
Com a mente em branco. Por fim deixou cair a beata no chão, esmagou-a
com um pé e levantou-se, a caminho do quarto principal.
*
Cortou as ataduras de Eva Rengel com a navalha e cobriu-a com uma
manta. A jovem olhava para ele sem dizer uma palavra, e só emitiu um leve
queixume quando a manta lhe roçou nas queimaduras de cigarro que tinha
nos seios. Estava muito pálida, e isso fazia ressaltar mais as marcas de
pancadas que tinha na cara e no resto do corpo. Ao tocar na pele nua, Falcó
reparou que estava fria, coberta por uma fina camada de humidade; um suor
pouco percetível que parecia gelar cada um dos seus poros. Sob o tecido
espesso da manta tremia como se acabassem de a tirar de um banho de gelo.
Tinha o lábio inferior meio rachado, com uma grossa crosta de sangue, as
pálpebras inchadas e círculos violáceos sob os olhos. Cheirava a urina e a
sujidade. Com aquele cabelo curto e louro, que o suor frio fazia parecer
molhado, parecia ainda mais indefesa e mais nova.
– Não podemos ficar aqui muito tempo – disse Falcó.
Ela olhava para ele como se tivesse dificuldade em reconhecê-lo. Por fim
pestanejou, aturdida. Parecia uma afirmação. Depois de refletir por
momentos, Falcó desceu ao rés do chão e regressou com a garrafa de
conhaque, com a de vinho e com a lata de manteiga que tinha visto na
cozinha. Depois sentou-se no sommier e com muito cuidado verteu algumas
gotas de conhaque na boca da jovem. Esta recusou com a cabeça a
princípio, mas ele insistiu e fez com que bebesse um golo até que ela gemeu
de novo pelo ardor da ferida do lábio. Então Falcó retirou um pouco a
manta e lavou-lhe a ferida e os seios com conhaque diluído em vinho,
aplicando depois manteiga sobre as queimaduras. Sentia o tempo todo os
olhos dela fixos nele.
– Demoraste muito – articulou ela com dificuldade. A sua voz era fraca e
rouca ao mesmo tempo. Devia, concluiu ele, ter gritado muito.
– Não estava previsto – respondeu.
– Não... Não estava.
Falcó olhou em volta. Havia roupa da jovem num monte, no chão.
Levantou-se para a apanhar.
– Vais conseguir caminhar?
– Não sei.
– Tens de tentar.
Retirou a manta e começou a vesti-la com muito cuidado. Tinha
hematomas na cara, no ventre e nas coxas, e restos de sangue seco no meio
dos pelos púbicos. A roupa estava suja e muito enrugada, a blusa rota e as
meias imprestáveis, mas não encontrou outra coisa. Tinham-na trazido
assim da residência da Secção Feminina, sem mala. Sem mais nada a não
ser o que levava vestido. Nem um sobretudo havia. Ajudou-a a levantar-se
um pouco e vestiu-lhe a combinação e a saia. Às vezes ela emitia um
queixume surdo, baixo, contido.
– Quantos é que mataste? – perguntou ela de repente.
– Três.
– Eu só vi dois. Interrogaram-me... dois.
– Tanto faz. Agora já são três.
Aquilo deu-lhe uma ideia. Foi procurando pelos quartos e regressou com
uma camisa de homem e umas peúgas razoavelmente limpas. Sentou a
jovem na beira do sommier, tirou-lhe a blusa rota e acabou por vesti-la com
aquilo. Acrescentou o sobretudo de um dos mortos, o mais magro, e um
chapéu masculino de feltro.
– Temos de ir.
Ajudara-a a pôr-se de pé, segurando-a enquanto ela dava uns passos
desajeitados, com o rosto crispado de dor pelo regresso da circulação às
suas pernas inchadas.
– Tenho um carro ali em baixo... Consegues chegar lá?
– Acho que sim.
– Então vamos. Com cuidado, pouco a pouco... Apoia-te mais em mim. É
isso... Muito bem.
A jovem repousava a cabeça no ombro de Falcó.
– Para onde é que me levas?
Ele fez um gesto ambíguo.
– Para longe.
Passaram junto dos dois mortos do corredor, desceram as escadas muito
devagar e chegaram ao rés do chão. Quando se aproximaram da porta, ela
olhou para o corpo estendido no chão e para o rasto de sangue que ia até à
rua.
– Porque é que fazes isto?
Falcó continuava a segurá-la pela cintura. Tinha aberto a porta e metido a
mão no bolso da pistola enquanto perscrutava a escuridão, tentando
adivinhar se ela escondia novas ameaças. Mas tudo parecia calmo.
– Para apagar o sorriso – respondeu ele – a um miserável.
*
Conduziu durante todo o resto da noite com Eva Rengel adormecida no
banco de trás, protegida do frio com o casaco do morto e com o de Falcó.
Este manobrava o volante mantendo-se acordado enquanto fumava cigarro
atrás de cigarro, com os faróis do automóvel a iluminar as cintas brancas
pintadas nas árvores e o brilho no seu rosto, com o duro perfil marcado na
penumbra da cabina. Conduzia seguro, mudando as velocidades e atento ao
volante. Conhecia bem aquele percurso. Por isso, de vez em quando
desviava-se por estradas secundárias, caminhos de terra batida entre os
campos sombrios, a fim de evitar povoações e controlos militares. Às vezes
abria um termo que levava no banco ao lado para beber um golo de café já
quase frio. Percorreu assim cento e trinta quilómetros em cinco horas até à
fronteira, parando a dois terços do caminho para encher o depósito com três
latas de gasolina com que se precavera no porta-bagagens. Eva Rengel não
acordou enquanto ele o fazia, pois repousava num sono longo e profundo –
ele tinha-lhe dado aspirinas para mitigar a dor – só alterado por gemidos
breves, entrecortados. Parecia uma menina com pesadelos, e Falcó supôs
que no sonho ainda se via atada ao sommier naquela casa.
Chegaram à fronteira quando o céu se abria numa linha avermelhada do
lado da Espanha que deixavam para trás. Era um posto secundário: uma
pequena ponte sobre o rio Douro sem outro tráfego habitual para além de
contrabandistas e gente das povoações vizinhas. Aquele momento era o
mais temido por Falcó, embora para sua surpresa tudo tenha sido
inesperadamente fácil. O cartão do SNIO e o passaporte, autênticos, e o
documento falsificado em que o próprio Falcó datilografara uma ordem do
quartel-general para se dirigir com urgência a Portugal, a acompanhar uma
pessoa cujo nome devia manter-se secreto, agiram como eficaz salvo-
conduto perante o bigodudo e sonolento cabo da Guarda Civil, chefe do
posto, que com a primeira claridade da aurora se aproximou para verificar a
identidade dos viajantes. Certamente que o cabo estava habituado a tráfegos
estranhos, e mais ainda naqueles tempos, com refugiados e contrabandistas
a ir e vir continuamente. Falcó nem sequer teve de recorrer às quinhentas
pesetas com que vinha prevenido como segundo argumento – o terceiro era
a pistola, na qual voltara a colocar o silenciador. Depois de olhar para os
documentos, o outro limitou-se a devolver-lhos, fazer continência com uma
mão no verniz do tricórnio e levantar a barreira. Do lado português, que
ficava a uma centena de metros depois da ponte, o guarda da alfândega nem
sequer olhou para os papéis. Limitou-se a meter o dinheiro no bolso
enquanto esfregava as remelas e voltava para a sua guarita.
*
A luz opaca rasgou-se subitamente entre algumas nuvens baixas,
tornando-se esplêndida como um raio de sol horizontal que iluminou o
sorriso cansado e tranquilo de Falcó, o seu queixo por barbear e as
pálpebras semicerradas perante a claridade nascente. Estava apoiado no
capô do carro, imóvel, a ver amanhecer. Tinha o chapéu atirado para trás, a
lapela do casaco subida e as mãos nos bolsos. Junto à estrada prolongava-se
o muro de pedra de uma represa, e do outro lado, além de umas quantas
azinheiras dispersas, havia touros pretos e brancos deitados no chão ou a
pastar. Falcó olhou para as nuvens distantes, para o céu que ia ficando
azulado sobre os prados verdes e fechou os olhos por alguns momentos,
satisfeito. Ia ser, pensou ele, um belo dia.
Ouviu a porta do carro, e quando se virou para olhar, Eva Rengel estava
ao seu lado. O sobretudo ficava-lhe grande e ela segurava-o no peito com as
mãos e por baixo via-se os sapatos com as meias do homem morto.
Continuava pálida, mas parecia ter recuperado a vida.
– Deixa-te estar lá dentro – disse ele. – Ainda estás muito fraca.
– Estou bem aqui.
Foi apoiar-se no capô, ao lado dele. Falcó tirou a cigarreira e ofereceu-lhe
um cigarro, mas ela recusou com a cabeça.
– Há uma venda a oito ou dez quilómetros – disse ele com naturalidade. –
Poderemos tomar lá o pequeno-almoço.
– Está bem.
Ficaram um bocado calados, roçando ombro com ombro, acariciados pela
luz cada vez mais intensa e cálida.
– O que é que vais fazer comigo agora? – disse ela por fim.
– Nada – Falcó fez um gesto indiferente. – Estaremos em Lisboa à tarde.
– Ah.
Voltou-se para a observar.
– Tens lá gente conhecida?
Ela mantinha a vista na represa. Nos animais que se moviam devagar
perto das azinheiras.
– Devo conhecer alguém, claro – respondeu ela em voz baixa.
Falcó observou o seu rosto abatido, os olhos vermelhos de cansaço e
irritados pelas pancadas, o lábio meio rachado. Era surpreendente, pensou,
que as pernas ainda a aguentassem. Depois do tratamento de urgência tinha-
lhe posto sobre a ferida da boca um bocadinho de papel de cigarro em jeito
de curativo; mas agora, ao falar, a ferida abrira-se de novo e escorria-lhe um
fiozinho de sangue pelo queixo. Falcó tirou um lenço e secou-lho com
delicadeza, sentindo agora o olhar da jovem fixo nele.
– Tens de ser vista por um médico.
– Suponho que sim.
Falcó pôs um Players na boca, acendeu-o e fumou em silêncio. Foi Eva
Rengel quem ao fim de um bocado falou outra vez.
– Cada um tem as suas lealdades – disse ela com suavidade.
– Claro.
– De qualquer forma, eu nunca soube muito bem quais são as tuas.
Falcó sorriu, com os olhos semicerrados e o cigarro na boca.
– Ontem à noite soubeste.
Ela ficou calada por um momento.
– É verdade – murmurou ela por fim.
Remexeu-se um pouco, dorida. Tinha levado um dedo ao lábio e olhava
para ele manchado de sangue.
– Agora também conheces as minhas – murmurou ela, melancólica.
Falcó continuava a olhar para o brilho do horizonte. Era mais intenso e
feria-lhe a vista. Afastou os olhos.
– Em assuntos militares é vergonhoso dizer «não tinha pensado nisso» –
recordou.
Ela sorria levemente, mas não disse nada.
– Estavas lá, atrás de mim – acrescentou Falcó. – Na checa de Alicante.
Quase ouvi a tua voz.
A rapariga demorou a responder.
– Talvez.
– E porque é que disseste para me soltarem?
– Não sei... Ou sei. Não era necessário que morresses. Não daquele modo,
pelo menos.
Falcó deixava sair o fumo pelo nariz.
– Somos peões num jogo de outros.
– Tu – corrigiu-o ela. – Eu, sim, tenho fé... Acredito no que faço.
– Ena! És uma afortunada.
Ouviu-a rir baixinho, sardonicamente. Um riso muito pouco feliz.
– Hoje não me sinto nada afortunada.
– Podias ter morrido. E o que é pior, morrer devagar.
– Todos os dias morrem muitos pássaros e borboletas. – Ela contemplava
a paisagem. – Também muitos seres humanos.
– Como os irmãos Montero e os outros – referiu ele com má intenção.
Viu-a encolher os ombros com naturalidade.
– Sim.
Agora olhavam um para o outro. Não era tão bonita naquele momento,
pensou ele. Com aquele corpo torturado e a imensa fadiga que lhe criava
bolsas nas pálpebras. O rosto da mulher que seria daqui a vinte anos.
Pensou na sua carne quente e húmida da noite do bombardeamento e sentiu
uma estranha ternura. Pena e ternura. Desesperadamente, procurou algo que
atenuasse aquele sentimento.
– Mataste o Portela sabendo que era inocente – disse ele, seco.
Ela fez um gesto neutro.
– Tinha de me assegurar perante ti e os outros – respondeu com calma. –
Além disso, ninguém é inocente. Talvez as crianças e os cães. E quanto às
crianças não tenho a certeza. Acabam sempre por crescer.
– Porque é que lutas, então? Não é um tipo de vida...
Olhou para ele quase com desprezo.
– Um tipo de vida?
– Claro. Esta suja Europa de fronteiras perigosas, manifestações vigiadas
pelas carabinas da polícia, tiroteios nas esquinas, polícia de choque,
comícios de rua e cervejarias que cheiram a fumo e a suor, onde se conspira
em voz baixa para assaltar estações de rádio, ministérios e centrais
telefónicas...
– Vês tudo assim tão sórdido?... Eu vejo luminoso.
Continuava a observá-lo, crítica. Superior.
– Não é vida para uma mulher, queres tu dizer? – acrescentou ela de
repente.
Falcó não respondeu. Deu uma última passa e atirou a beata para longe,
impulsionada pelo polegar e pelo indicador. O sol já ia alto, iluminando
com intensidade o gado, os prados e as azinheiras. Refletia-se nos vidros do
carro.
– Aproxima-se a hora – comentou ela. – Tudo vai ser derrubado para ser
construído de novo. Vêm aí tempos de caos – sorriu, irónica. – De barulho e
de fúria.
– E depois?
– Não sei. Embora duvide que alguns de nós consigamos ver o depois.
– Esse toque trágico... O teu pai russo?
Tinha acompanhado o comentário com uma expressão sarcástica de que
ela não parecia gostar. Ou talvez fosse a alusão ao pai. Olhava para ele meio
desconfiada meio surpreendida.
– Falaram-me de ti – disse ele, como justificação.
Acentuou-se a desconfiança.
– Quem?
– Não interessa quem... Disseram que escolheste de que lado estavas
ainda muito nova.
Ela não disse nada. Voltou a tocar no lábio ferido e a olhar para o dedo. Já
não sangrava, observou Falcó.
– O que é que te levou a isso? – quis ele saber.
A jovem demorou uns instantes a dar uma resposta.
– A princípio – disse ela – foram intelectuais de café que me explicavam
as leis do materialismo histórico, a mais-valia e a ditadura do proletariado
ao mesmo tempo que tentavam ir para a cama comigo antes de voltarem a
embalar-se, satisfeitos, nos braços da sua própria classe... Nada tinham em
comum com eles, por isso procurei outros homens e mulheres: os
silenciosos. Os que agem... Os que, entre outras coisas, caçam esses
estúpidos teóricos que não renunciam, no fundo, a ser pequeno-burgueses
com pretensões.
– Referes-te ao NKVD. A Administração de Tarefas Especiais.
Olhou para ele outra vez com surpresa, ainda mais desconfiada do que
antes, como se ouvir aquele nome na boca dele fosse algo inesperado e
perigoso. Ao fim de uns instantes, moveu a cabeça com aparente
indiferença.
– É necessário um braço de aço do comunismo internacional... Soldados
para uma guerra imensa, justa e inevitável. – Olhou para ele com
significativa frieza. – Sem concessões e sem sentimentos.
Houve um silêncio.
– De acordo – disse Falcó, por fim. – Contador a zeros... Tu e eu estamos
quites, então.
Ela suspirou, e o suspiro saiu-lhe do peito como um melancólico e suave
gemido.
– Sim – murmurou ela. – Estamos quites.
15
EPÍLOGO
L orenzo Falcó só se encontrou com o Almirante duas semanas depois. E
foi de modo inesperado. Encontrava-se à porta do Hotel Palácio do
Estoril, em frente ao casino onde na noite anterior tivera bastante sorte
dobrando a aposta, com tenacidade e uma certa ousadia, no vermelho e no
negro na roleta. Estava uma manhã fresca, soalheira e agradável, e Falcó
tinha decidido dar um passeio antes de almoçar num restaurante da vizinha
praia do Tamariz, onde combinara encontrar-se com um informador.
Tratava-se de um assunto banal: um simples controlo rotineiro de descarga
de material militar, camuflado como civil, de um barco holandês amarrado
no porto de Lisboa. Durante aquelas semanas, por instruções do chefe do
SNIO, Falcó tinha mantido um perfil baixo, discreto, sem complicar muito
a vida. De Salamanca quase não haviam chegado notícias; só ordens e
algum dinheiro para gastos. E agora, quando saía do hotel com um
Borsalino cinzento pérola estudadamente inclinado sobre o olho direito, viu
o Almirante sair de um automóvel no meio dos vários estacionados no
parque. O motorista abriu a porta, e o Almirante, à civil com fato e chapéu
escuro, guarda-chuva e botins cinzentos, deixou o carro e caminhou até à
entrada do hotel. Então, Falcó deu meia-volta e foi ao seu encontro.
– Bom dia, senhor Almirante.
– Foda-se, o que raio é que fazes aqui?
– Estou aqui hospedado.
– Desde quando?... Julgava-te em Lisboa.
– Nada, só passo aqui dois dias.
– Estou a ver.
O Almirante tinha-se mostrado desagradado depois de olhar para o casino
e para duas mulheres elegantes e atraentes que saíam do hotel. Depois olhou
para o lenço cujas pontas espreitavam pelo bolso superior do casaco de
Falcó, desconfiado, como se esperasse ver nele manchas de batom. Este
sorriu.
– Combinei encontrar-me com uma pessoa – justificou-se. – A questão do
Alkmaar.
– Ah, sim. Esse barco... Algum problema?
– Nenhum. Corre tudo sobre rodas.
– Fico contente.
Ficaram a olhar um para o outro, Falcó indeciso, sério o Almirante.
Tinha, disse ele com desânimo, uma reunião importante no hotel: D. Juan
de Bourbon, alguns conselheiros seus e gente do círculo monárquico. Como
príncipe das Astúrias, o filho de Alfonso XIII pretendia ir para Espanha e
alistar-se nas tropas nacionais. Ato patriótico e etecetera. A missão do
Almirante era dissuadi-lo com muito tato. Não embrulhar as coisas. Com os
falangistas descabeçados e o filho do destronado rei no exílio, Salamanca
estava muito mais calma enquanto o Caudilho assegurava o seu poder
absoluto.
– Então e relativamente a mim? – perguntou Falcó.
O olho de vidro desviou-se do saudável. Depois os dois convergiram em
Falcó.
– Ainda tenho tempo. – O Almirante tirara um relógio de ouro, com
corrente, de um bolsinho do colete. – Vem... vamos dar um passeio.
Foram andando pelo caminho de gravilha que entrava pelo parque,
debaixo das palmeiras.
– Depois... bom, do que tu fizeste, o Queralt passou vários dias a pedir o
teu escalpe aos gritos.
– Ninguém pode provar que fui eu. Nem o senhor pode.
Acariciando o bigode, o Almirante balançava o chapéu de chuva.
– Foi isso mesmo que eu disse quando o Nicolás Franco nos convocou
aos dois para esclarecer as coisas. Mas o evidente tornava-se impossível de
ocultar... – O olho saudável voltou a entrar em ação. Tinhas mesmo de
complicar tudo daquela maneira, animal? Três polícias e pais de família?
Falcó não disse nada. Era difícil responder àquilo de uma forma razoável.
Além disso, ninguém esperava resposta. O outro olhava para ele de lado,
com irritação.
– Aguentei a bátega o melhor que pude – prosseguiu ele. – Ao fim e ao
cabo, eu tinha umas quantas cartas na manga, e pouco a pouco consegui ir
dando a volta à coisa. Demonstrei que seria uma jogada do próprio Queralt
para fazer a cama ao SNIO; e para minha surpresa, o irmão do Caudilho
aparentou levar isso em conta. Suponho que tenta trazer os dois serviços
controlados, de uma forma ou de outra, e tudo isto lhe calha bem para jogar
com isso. Pau e cenoura.
– Não perguntaram porque é que eu saí de Salamanca?
– Pois claro que perguntaram. Várias vezes e com muito maus modos. E
ali estava eu, a preparar-me para me deixar ir com a tempestade. A cagar
mentalmente para os teus mortos.
– Sinto muito.
– Sentir? Mas tu sentes o quê?!... Tu não sentes um caralho, homem. Faz-
me o favor de não me tomares por um idiota.
Pararam diante de um dos bancos de madeira do parque, entre as meias
rotundas. O Almirante experimentou-o com a biqueira do guarda-chuva,
como se verificasse a sua solidez. Depois tirou um lenço para limpar o
banco.
– Enfim. Quando aqueles dois perguntaram porque é que tinhas zarpado,
se não tinhas nada a ver, disse que era porque um passarinho te dissera que
o Queralt também te queria liquidar. E pronto. A coisa ficou assim.
Sentara-se com o guarda-chuva entre as pernas e as mãos cruzadas sobre
o punho de cana. Convidou Falcó, com um gesto, a fazer o mesmo; e este,
obediente, tirou o chapéu e foi sentar-se ao seu lado.
– Por fim – continuou o Almirante a contar –, depois de muito discutir e
de muita bronca, com Nicolás Franco como árbitro, concordámos com a
versão oficial... Uma espia soviética tinha-se infiltrado na operação de
Alicante, o Queralt deitou-lhe a unha com muita eficácia, mas ela fugiu
durante os interrogatórios, matando perfidamente três polícias. Ponto final.
Fim da história.
– E eu?
– Tu deste à sola porque eu mesmo te preveni; e estás num lugar
indeterminado, a cumprir o teu dever patriótico de espião e meu
subordinado. Ou seja, a colaborar com fervor no novo amanhecer de
Espanha.
– Não haverá mais consequências? – surpreendeu-se Falcó.
O outro dirigiu-lhe um olhar turvo.
– Eh pá... Se o pessoal do Queralt conseguir deitar-te a unha, vão fazer de
maneira a que pagues caro. Quanto a isso, não tenhas dúvidas. Mas para
efeitos formais, todos amigos. Já sabes como são estas coisas das amizades.
– Sim, já sei.
O Almirante tirou o chapéu, passando a mão pelo cabelo grisalho. Olhava
para uns meninos que brincavam ali perto, a empurrar um arco, vigiados
pelas suas amas.
– Durante uma temporada – disse ele dali a instantes – defende-te não só
dos agentes vermelhos mas também dos nossos. Como precaução.
Pôs o chapéu e continuou a olhar para os meninos, com o queixo apoiado
no punho do guarda-chuva.
– Sabem alguma coisa dela? – decidiu-se Falcó perguntar por fim.
– Nem rasto. Pensei que tu saberias alguma coisa.
Falcó não voltara a ver Eva Rengel. E assim o disse. Depois de atravessar
a fronteira, numa venda da estrada que tinha telefone, ela fizera uma
chamada. Falcó não sabia a quem. Tinha intenção de a levar até Lisboa, mas
ela pediu que a deixasse em Coimbra, em frente da estação de comboios.
– Não entrou para nenhum comboio. Havia um carro à espera dela com
duas pessoas lá dentro, mas não lhes vi a cara. Limitou-se a sair do nosso
carro e a ir com eles.
– Assim, sem mais nem ontem... – O Almirante estava espantado. – Sem
te dizer nada?
– Pois não. A verdade é que não disse nada. Saiu e afastou-se sem se
virar.
– E deixaste-a ir, assim tranquilamente?
– Diga-me que outra coisa é que eu podia fazer.
O olhar do outro tornou-se desconfiado. Fez uma expressão desagradável.
– Não acredito.
– Dou-lhe a minha palavra.
– A tua palavra vale uma merda.
Ficaram calados outro bocado. O Almirante continuava com o queixo
apoiado no punho do guarda-chuva. Tamborilava com os dedos nele. Por
fim, virou-se para olhar com curiosidade para Falcó.
– A sério... Não voltaste a vê-la nem a saber nada dessa mulher?
– É como lhe estou a dizer.
– Depois da proeza que fizeste?
– Estávamos quites. Ela e eu.
O Almirante largou uma gargalhada sardónica. Quase teatral.
– Puseste Salamanca de pernas para o ar por essa cadela bolchevique.
– Não foi por ela, senhor Almirante.
– Pois. – Agora o outro ria-se entre dentes, malévolo. – Pelo sorriso do
Lisardo Queralt...
– É isso.
– Não me chateies, homem. Não pôde ter sido só por isso.
– Tanto faz.
Com ar resignado, o Almirante tornou a olhar para o relógio e pôs-se com
dificuldade em pé.
– Daqui a duas semanas tudo terá voltado à normalidade, dentro do
possível... Pelo menos no que se refere a ti. Estão a chegar alemães e
italianos aos montes, mas os vermelhos aguentam bem. Eles têm as suas
brigadas internacionais e os soviéticos por trás.
Falcó também se tinha levantado. Pôs o chapéu.
– Vai ser longo, não é verdade?
– Muito. E tu continuas a fazer-me falta. Seria bom que para já voltasses
ao sul de França, para te infiltrares entre os que lá estão à procura de ajuda
para a República. Em Biarritz também há casino.
Caminharam de regresso ao hotel, debaixo das palmeiras.
– É verdade que não voltaste a vê-la? – insistiu o Almirante.
Falcó semicerrou os olhos. Recordava Eva Rengel a afastar-se em frente
da estação de Coimbra, envolta naquele sobretudo do homem morto que lhe
ficava grande. Não era verdade que ela não se tivesse virado para olhar para
trás. Fê-lo uma única vez, antes de entrar no carro que a esperava. Parou,
séria, sem um sorriso, e olhou para ele um bom bocado antes de desaparecer
da sua vista e da sua vida.
– Não, Almirante. Não voltei a vê-la.
– Bom. Nunca se sabe, não é?... Estão no mesmo negócio e o mundo é
pequeno. No fim, todos acabamos por tropeçar em todos continuamente.
Poderá acontecer que a encontres outra vez, não sei onde.
– Sim. Poderá acontecer.
O Almirante soltou um grunhido. Olhou novamente para o relógio e
parou. O olho saudável cintilava, irónico.
– Pois então, se como dizes já estão quites, procura que dessa vez não te
mate ela a ti. Pelo menos enquanto continuares a ser-me útil.
– Tentarei, senhor Almirante. – Falcó ergueu três dedos juntos, como os
escuteiros. – Prometo que tentarei.
– Só ganhas com isso, meu farsante... E agora, desaparece.
Apontava com o guarda-chuva, mal-humorado, para um ponto
indeterminado do horizonte. Falcó deu um exagerado bater de tacões
marcial e inclinou a aba do chapéu, garboso. Sorria como um rapaz travesso
perante um professor benévolo.
– Às suas ordens, Almirante.
E qualquer mulher teria ficado presa naquele sorriso.
Estoril,
abril de 2016