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A Vingança

Estudos de Etnologia, História e Filosofia

Volume 3

Vingança, poder e ideologia nas civilizações da Antiguidade

A. Lemaire, C. Malamoud, J.P. Poly, J. Svenbro, Y. Thomas

Textos reunidos e apresentados por:

Raymond VERDIER – Jean Pierre Poly

Edições Cujas

4, 6, 8 rue de la Maison-Blanche
75013 Paris
Se Vingar no Fórum: Solidariedade Familiar e Processo Criminal em Roma
(Século I até Século II d.C.)

Ainda que seja um tema recorrente em Roma, a vingança nunca foi estudada através de seu
repasso ao direito. Reação de pura violência, negação do Estado, a vingança aparece como oposto
ou negativo1 da ordem jurídica. Vingança dita privada, como se fosse antítese do privado e do
público decidido sobre o registro normativo das zonas irredutíveis mas contíguas, assim que, um
grande no plano conceitual, a ruptura devem passar pela reconstituição de uma história
deliberadamente linear, ou por uma etapa à outra se engendrando os mecanismos perfectíveis desta.
No interior de um mesmo tempo histórico, igualmente, a presença de elementos heterogêneos em
relação às regras dominantes se analisa em termos de sobrevivências, de traços feitos por um
passado longínquo.
Uma leitura um pouco menos seletiva das fontes convida portanto a deslocar a investigação,
estabelecendo-a no coração da cidade, na praça pública onde se desenrola o processo, esta troca
mais ou menos ritualizada de violências que a historiografia, em uma abordagem habitualmente
regressiva, rejeita frente aos procedimentos que ela desenrola como um fio por conduzir à
primordia. Nem a vindicatio, nem a manus iniecio, nem o abandono noxal2, nem as composições
pecuniárias, nem mesmo o regime do roubo flagrante e deste a retaliação, tal como aparecem nas
leis das Doze Tábuas, não são as melhores vias de acesso a uma vingança que, por postulado, será
predecenviral. Por isso, ao retornar a estes momentos absolutos, livre de qualquer mistura com
aquilo que consideramos uma cidade, nós podemos com rigor imaginar uma sucessão de essências,
mas certamente não conta como um sistema de instituições que, sobre a realidade, faz jogar
simultaneamente os contrários. Quando na época de Cícero um jovem cidadão acusa o inimigo de
seu pai e que todo o mundo se lembre daquela promessa de vingança, ou quando uma lei da época
Severa desqualificada e privada de seus direitos de sucessão o herdeiro que não vingará a morte em
face de uma acusação capital, ele não demandará o que de um lado é a vingança e a justiça de outro,
mas como este se oferece aos meios de conseguir esta.
Ele estará aqui principalmente na questão do processo, das modalidades acusatórias da
vingança, das normas que regem de perto a erística judiciária. Vemos aqui se desdobrar, em praça
pública, o teatro dos enfrentamentos familiares, onde o sangue e a honra, opostas grupo a grupo em
uma cidade, mobilizam as regras explícitas de solidariedades e todos os usos simbólicos que vem
enfatizar o vigor. Mas o balé bem ordenado das vinganças no fórum não está isolado,
particularmente no momento que observamos o melhor (Século I d.C) das práticas políticas e
sociais igualmente organizadas em vendetas.
1 N. do T.: Negativo, neste contexto, é o de o negativo de um filme. O oposto.
2 N. do T.: Abandono noxal, noxae deditio, figura do direito romano.
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Em uma carta de Pseudo Salusto à César exorta o vencedor a “…não experienciar a morte
pela morte, nem o sangue pelo sangue”, sendo um rito bárbaro (barbaro ritu) que, após Sylla, teria
se tornado de uso dos romanos (ad Caesarem 1, 3, 4 – 4, 1 sq), pois este está no tema da violência
desregulada comose fosse uma devassidão: os moralistas colocam necessariamente na conta da
decadência à distância que os separa de um ideal cívico (2). A política em Roma muitas vezes toma
a aparência de uma guerra de chefes a treinar seus parentes e suas clientelas: uns celebram quão
excepcionais são os exemplos que estão aqui, pelo amor do Estado, renegam às suas antigas
inimizades (3). Caio Graco retoma sem dúvida a política de seu irmão: mas ao mesmo tempo que
ele vinga sua morte, e é neste que os seus partidários põem suas vontades de maneira mais intensa
(4): seus adversários o repreenderam em vez de fazer prevalecer a piedade fraternal pelo amor ao
bem público (5). As proscrições de Sylla se autorizavam pelo mesmo motivo. Antes de marchar por
Roma com suas tropas, Sylla anuncia ao Senado as injúrias sofridas por sua mulher e seus filhos, o
massacre de seus amigos e partidários (6): voltando a Roma em 82, ele organizou uma assembleia
do povo para proclamar os nomes daqueles que ele faria pagar (7). De qualquer maneira, o anúncio
oficial de uma vingança é apenas uma solenidade habitual. A Larinum, na Úmbria, o clã dos Aurii
lança em praça pública um desafio a Oppianicus (8); de retorno do exílio, Cícero proclama sua
vingança frente ao povo (9); da mesma forma o triunvirato após o assassinato de César (10),
Octávio contra Antônio, a quem ele retorna seus parentes ao mesmo tempo que manda uma carta de
ruptura (11), Drusus contra os assassinos de Germanicus (12). Declarar sua vingança, se engajar
pela paz: César comunica publicamente sua clemência (13), como mais tarde Nero frente ao Senado
(14), ou Marco Aurélio (15). Tais formalidades davam ritmo à vida política. Em certas ocasiões, o
evento faz com que se liberem as pressões das opiniões populares, como no dossiê particularmente
rico da morte de César. Para Brutus, conspirador contra César, se tratava de vingar seu pai, morto
em Pompeia (16). Aos partidários do ditador, por sua vez, não negligenciaram ao fazer conhecer
que se vingar de César seria a única lei de sua ação. A habilidade de Octávio foi precisamente de
garantir aos clientes e amigos do morto em aceitar sua herança, seu nome, e em continuar a farsa
judiciária de uma adoção post-mortem: receber a herança não era mais um meio de conseguir a
vingança dos filhos em nome do pai (17). A opinião pública entendera: no dia seguinte do dia de
Marte, a multidão manifestara aos gritos de “vingar César!” sua franca hostilidade contra a
procrastinação de Antônio, que no dia anterior havia declarado estar pronto a preencher sua
obrigação nascida da amizade e do juramento (18). Toda uma cultura feita de evocações literárias
treinaram as paixões: no decurso dos jogos fúnebres em nome de César, cantam-se versos retirados
de Electra, de Atílio, para lembrar o ódio dos assassinos (19).
Assim, os antagonismos das facções que se constituem ao redor das solidariedades
elementares, e a rivalidade política se justificam melhor ainda que elas prolongam os
enfrentamentos privados. Fora das palavras de ordem e das escolhas morais, eles conduzem a si
mesmos, costumeiramente imputados ao desregramento das guerras civis, atestando a permanência
ou a ressurgência de verdadeiros rituais vindicatórios. Como ele teve os cidadãos como vítimas, as
origens denunciam o escândalo dos sacrifícios humanos comandados por Marius e Sylla: o primeiro
decapitara o ex-cônsul L. César sobre a tumba de Varius (20), o segundo esquartejara ainda vivo o
mutuante M. Marius Gratidianus sobre a tumba dos Lutatii (21). Em Perugia, Octávio ateara fogo a
trezentos prisioneiros do campo adversário depois de uma tentativa de levante a Júlio César (22).
Em torno da carniçaria de César, já, a cabeça de C. Helvius Cinna estava fincada na ponta de um
pique (23). Antônio derramará o sangue de Hortensius sobre a tumba de seu irmão, de maneira a
expiar um assassinato pedido por Brutus de maneira a vingar Cícero (24). O último que evocara não
sem excessos o risco teria corrido em chamas até a tumba de Catilina (25). Esses rituais sangrentos
não são uma invenção de tempos agitados: eles se inscrevem em uma tradição bem estável, itálica e
romana (26). A privação da sepultura, a mutilação de corpos estavam ordinariamente e
completamente dentro destas vinganças percebidas além da morte (27): nós não contamos, nas
guerras civis da República e do Império, os exemplos de cadáveres jogados no Tibre, ao mar, após
exumados, seriam mais mutilados, seriam esquartejados (28). Não é mais cruel nestas vinganças,
senão que significam sobretudo que ele não é privado de seus inimigos na sepultura: Augusto se
gabava de ter dado aos seus parentes os corpos de seus adversários (29). Sétimo Severo, capaz de
cortar em pedaços e jogar no Reno os corpos de Claudius Albinus, fora elogiado por haver feito
com que o corpo nu de Didius Julien chegasse a sua mulher e sua filha (30). Um édito de um
Imperador, conservado no Digesto, punia de morte os espoliadores de cadáveres (Dig. 47, 12, 3, 7);
ele faz crer que, fora dos ódios espetaculares, estas práticas se tornaram banalizadas, uma vez que
uma lei de Augusto sobre a violência fornecera a deportação contra aqueles que se opusessem
contra o funeral ou a sepultura (Dig. 47, 12, 8; Pauli Sententiae 5, 26, 2), Extrair as ossadas (Dig.
47, 12, 11; Sent. Paul., 5, 19 a), expôr ao solo os restos humanos (Sent 1, 21, 4), isso corresponde a
provavelmente menos a um uso muito difundido da necromancia do que a uma fúria a se vingar
para longe, a uma vontade de neutralizar as mortes que cessa as maldades de outros deslocados no
tempo (31). Foi finalmente uma sábia precaução que se fizesse cremações, tal qual Sylla, para
escapar da fúria de seus inimigos (32). A banalidade da mutilação de cadáveres nos é mostrada pelo
simples de fato de que ela dificilmente era, para os odiadores, uma simples iniura (Dig. 47, 10, 1,
6). Costumeiramente, sobre as inscrições funerárias, os parentes apelam à maldição dos Deuses no
alto ou embaixo em que aquele que ouse “machucar os corpos”, “profanar as ossadas”, “atrapalhar
o repouso dos mortos”, “derrubar as cinzas” (ver Dessau, n 8172 sq.), “que as unhas, em uma placa
funerária, venham a perfurar os olhos daqueles que os tenham importunado” (Dessau, n 8188).
Consequentemente, não é necessário prosseguir em um interesse patrimonial como agir para violar
uma sepultura: esta ação “concerne melhor a vingança”; e é o porquê o herdeiro sempre tem o
monopólio e a capacidade presumida: “ele consiste somente na vingança” (Dig. 47, 12, 6, 10)

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