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Crimes de racismo

Crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça,


cor, etnia, religião ou procedência nacional

LEON FREJDA SZKLAROWSKY

A vida é o bem mais precioso do ser humano,


mas a vida sem liberdade não tem qualquer signifi-
cado, nem dignidade.
Leon Frejda Szklarowsky

SUMÁRIO

1. Considerações históricas. 2. A Lei nº


9.459/97. 3. Orientação dos Tribunais. 4. Parte
conclusiva.

1. Considerações históricas
A Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997,
corrigiu a Lei nº 7.716, de 15 de janeiro de
1989, modificando os artigos 1º e 20, e revogou
o artigo 1º da Lei nº 8.081 e a Lei nº 8.882, de
O Professor Leon Frejda Szklarowsky, Subpro- 3-6-94. A lei pune, com penas de até cinco anos
curador-Geral da Fazenda Nacional aposentado, é de reclusão, além das multas, os crimes resul-
advogado, juiz arbitral da American Association’s tantes de discriminação ou preconceito de raça,
Commercial Pannel, de Nova York, membro dos de cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Institutos dos Advogados Brasileiros, de São Paulo Minorada a questão ideológica, com a queda
e do Distrito Federal, acadêmico da Academia do muro de Berlim e o desmoronamento da
Brasileira de Direito Tributário, do Instituto Histó- outrora indestrutível e poderosa União Sovié-
rico e Geográfico do Distrito Federal (diretor-tesou-
reiro), membro da International Fiscal Association,
tica, o ingresso da Rússia na Otan, com o
da Associação Brasileira de Direito Financeiro e do conseqüente fim da guerra fria, a sociedade
Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Integra o humana vive hoje, paradoxalmente, ranços de
Conselho Editorial dos Cadernos de Direito Tribu- um fundamentalismo de todas as correntes
tário e Finanças Públicas, da Editora Revista dos religiosas se alastrando, desastradamente, por
Tribunais, e o Conselho de Orientação das toda a parte, o que é verdadeiramente aterrador.
Publicações dos Boletins de Licitações e Contratos, É tão nefasto quanto o era a discriminação
de Direito Administrativo e Direito Municipal, da político-ideológica e racial de tempos não tão
Editora NDJ Ltda. Coordenador de debates da Teia longínquos. O que parecia sepultado, para todo
Jurídica Paraná (Internet). Editor da Revista Jurídica o sempre, nas cinzas do passado, recrudesce
Consulex. Co-autor do anteprojeto da Lei de com mais intensidade, atingindo as raias do
Execução Fiscal, que se transformou na Lei nº 6.830/
80 (secretário e relator); dos anteprojetos de lei de absurdo.
falências e concordatas (no Congresso Nacional) e Tribos, etnias, religiões e grupos nacionais
autor do anteprojeto sobre a penhora administrativa são os ingredientes da moderna intolerância,
(Projeto de Lei do Senado nº 174/96). perseguição e matança em massa. O genocídio
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 19
de outrora substitui-se ao feroz morticínio de saiam desses reinos e não morem nem estejam
agora. Passa-se de um holocausto para outro. neles5”.
A discriminação1 ou o preconceito não é Esse constrangimento desumano, fruto da
tema novo. Surge, na antigüidade, com os mais absurda, dolorosa e brutal era da Inqui-
regimes escravagistas e presas de guerra. sição, que maculou para sempre a história
Os indígenas e os negros foram as grandes humana, produziu um Antônio José da Silva,
vítimas no Novo Mundo e mereceram de José gênio que marcou sua época. Mais recentemente,
de Alencar, Gonçalves Dias e Castro Alves as a velha e revolucionária França que forneceu à
mais belas e imorredoiras páginas que humanidade a igualdade, a liberdade e a
gravaram, para sempre, na literatura pátria, a fraternidade, viu-se de repente acossada pela
agonia, o sofrimento, as lutas, a morte e o mancha do caso Dreyfuss, que mereceu de
martírio, mas também o retrato de sua alma Victor Hugo o L’Acuse, e a Alemanha Nazista,
pura e lacerada, em busca da libertação, o grito com Hitler, sangrou os homens com o execrável
alucinante de um corpo em infinita lassidão, genocídio nazista, apesar de um passado
na noite da escravidão. glorioso, com os gênios da música, da filosofia,
Os judeus, os cristãos novos e os mouros da arte e da literatura.
ressentiram-se, no Brasil, das leis lusitanas, As atrocidades nazistas, durante a II Guerra
que impediam, na Colônia, o livre acesso aos Mundial, fizeram nascer concretamente o cri-
cargos públicos, aos postos mais importantes, me de genocídio, tendo os aliados aprovado em
o casamento de cristãos velhos com pessoas Londres, aos 8 de agosto de 1945, os estatutos
oriundas desses grupos2, os judeus de entra- do que viria ser o Tribunal Militar Internacional,
rem na casa de cristãos e vice versa3 ou deter- que funcionou em Nuremberg, com a partici-
minaram que “os judeus e os mouros forros4 pação dos EUA, França, Inglaterra e URSS,
1
para julgar os crimes contra a paz (o planeja-
JOHNSON, Paul. História dos judeus. 3. ed. mento, a preparação, a iniciação ou a execução
Rio de Janeiro : Imago, 1989. de guerra de agressão ou que violasse acordos,
2
Para um estudo mais acurado, consultem-se o
magnífico trabalho de José Lázaro Alfredo Guimarães, tratados internacionais, seguranças ou a parti-
Conflitos Raciais no Direito Brasileiro, apresentado cipação em plano comum ou a conspiração para
em janeiro de 1994, no Afro-American Studies executar quaisquer de tais atos); contra a
Program da Brown University, Providence, RI, em humanidade (assassinatos, exterminação,
Ciência Jurídica ad litteris et verbis, v. 9, n. 66, p. escravidão, deportação e outros atos desumanos
274-28883, nov./dez. 1995; Comentários aos incisos cometidos contra qualquer população civil,
XLI e XLII do artigo 5º da Constituição Federal, de antes ou durante a guerra, ou perseguições por
Dagoberto Romani, Revista do Curso de Direito da
Universidade Federal de Uberlândia, v. 20, n. 1 e
motivos políticos, raciais ou religiosos, em exe-
2, p. 245-6, dez. 1991; Democracia racial e luta cução ou em conexão com qualquer crime da
anti-racista e racismo e justiça no Brasil, de jurisdição do tribunal, constituíssem ou não
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Teia violação da legislação interna do país onde os
Jurídica (Internet); e, de SILVA, Jorge da. Direitos fatos se tivessem realizado); e, finalmente, os
civis e relações raciais no Brasil. Rio de Janeiro : crimes de guerra (violação das leis ou dos
Luam, 1994. Em Costas Negras : uma história de costumes da guerra, como os assassinatos,
tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, maus-tratos, deportação para trabalhos forçados
de Manolo Florentino. São Paulo : Companhia das
Letras, 1997; História dos judeus em Portugal, de ou para qualquer outro fim, de populações civis
Meyer Kayserling. Tradução de Gabriele B. Corrêa dos territórios ocupados ou que neles se encon-
da Silva e Anita Novinsky. São Paulo : Pioneira, trassem, assassinatos ou maus-tratos de prisio-
1971; Os Judeus no Brasil Colonial, de Arnold neiros de guerras ou de pessoas nos mares,
Wiznitze. Tradução de Olivia Krahenbuhl. São Paulo : execução de reféns, despojamento da proprie-
Pioneira, 1960; de COULANGES, Fustel de. A dade pública ou privada, injustificável destrui-
cidade antiga. 2. ed. São Paulo : Martins Fontes, ção de cidades, povos, aldeias e devastação não
1987; CARNEIRO, Maria Luíza Tucci. Preconceito justificada por necessidades militares).
racial no Brasil Colônia. São Paulo, 1993.
3
LIPINER, Elias. O tempo dos judeus. São A Carta da ONU e a da OEA abominam
Paulo : Nobel, 1982. Liv. 2, tít. 67: Ordenações intransigentemente a discriminação, erigindo
afonsinas. como um dos seus objetivos maiores sua extir-
4
Op. cit., p. 243, remissão 1: Mouros livres, em pação.
oposição aos mouros escravos, prisioneiros de
5
guerra. Op. cit., liv. 2. tít. 41: Ordenações manuelinas.
20 Revista de Informação Legislativa
O crime de genocídio, cuja expressão fora O Direito Brasileiro, não obstante, teceu
cunhada pelo polonês Lemkim, foi adotado pela uma crescente e salutar evolução, no que diz
Convenção da ONU, aprovada em Paris, em 9 respeito à proteção das minorias e do ser
de dezembro de 1948, para entrar em vigor em humano, para integrá-los na sociedade e banir
12 de janeiro de 1951, após a ratificação por o preconceito ou a discriminação, seja qual for,
vinte e dois países. O Brasil fê-lo em 15 de conquanto a questão não seja apenas jurídica,
abril do ano seguinte, promulgando-o através senão e principalmente econômica, social,
do Decreto nº 30.822, de 6 de maio deste educacional e de formação, sem se apartar da
mesmo ano6. consciência. Esse fenômeno está extremamente
Com fonte nesse tratado e ainda sob os ligado à liberdade.
efeitos da hecatombe que dizimou milhões de Sem dúvida, essa avançada trincheira jurí-
pessoas inocentes e maculou para sempre com dica é um passo bem largo, nessa longa
sangue e dor esse período da história, foi editada trajetória, visando o aperfeiçoamento espiritual
a Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, defi- do homem através dos séculos. Afinal, o
nindo o crime de genocídio como o comporta- verdadeiro direito é aquele que anda de mãos
mento com a intenção de destruir, no todo ou dadas com a justiça social e com a realidade. E
em parte, grupo nacional, étnico, racial ou quiçá com a evolução do espírito humano.
religioso – e, com extrema sensibilidade, não o
A lei é amostra de comportamento que
considerava crime político, para efeito de
projeta a consciência social de um povo e de
extradição, corroborando, induvidosamente, o uma era e deve-se harmonizar com as novas
espírito do povo brasileiro, avesso a qualquer realidades e tendências que despontam, para
discriminação, já que produto de um amálgama não se apartar de vez do homem e fenecer soli-
de povos e etnias, às mais diversas, desde suas tária.
origens.
No Império, não era melhor a situação
A Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, desses desafortunados seres. A primeira Cons-
inspirada no inciso XLIII do artigo 5º da tituição brasileira, de 1824, manteve a Religião
Constituição, considerou o genocídio crime Católica Apostólica Romana como a religião
hediondo, ainda que apenas tentado, sendo, oficial do Estado, sendo toleradas as demais,
pois, insuscetível de anistia, graça ou indulto, com seu culto doméstico ou particular, em casas
cumprindo o réu a pena integralmente em para isso destinadas, mas sem forma exterior
regime fechado. de templo.
Pelo Decreto nº 21.177, de 27 de maio de O Código Penal do Império considerava
1946, o Brasil promulgou a Convenção sobre crime a perseguição por motivo de religião, se
o Fundo Monetário Internacional – FMI e sobre respeitada a do Estado e não ofendesse a moral
o Banco Internacional para a Reconstrução e pública. Só que o real significado da moral
Desenvolvimento – Bird, que trata também dos pública era uma incógnita! E a pena contra
haveres dos inimigos e propriedade saqueada quem cometesse esse delito era apenas de um a
durante a Segunda Grande Guerra. Aos 21 de três meses de detenção8. Ironicamente, a prática
maio deste ano, o Presidente da República, por de atos resultantes de preconceito de cor, raça,
decreto7, constitui a Comissão Especial de sexo ou estado civil era catalogada, como
Apuração de Patrimônios Nazistas. contravenção penal, pela Lei Afonso Arinos,
Ainda hoje perdura essa nefasta situação nas de 1951, até o advento da Lei nº 7.716, e suas
diversas regiões do planeta, como o demons- penas eram também apenas simbólicas, como
tram as atrocidades na África, Ásia, Europa, as ditadas pelo Código Imperial.
América, nos confins do mundo ou no dito As Constituições republicanas, desde a
Primeiro Mundo civilizado. A segregação é tão primeira, de 1891, vêm-se pautando, contudo,
má quando praticada pela maioria, quanto pelas pela igualdade de direitos e proibição de
minorias, que vêem nisso uma forma de se qualquer discriminação religiosa, racial ou de
proteger. outra ordem, lapidando e desbastando a pedra
6
bruta e cortando as arestas com o cinzel da
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito sabedoria e da inteligência.
Penal : parte especial. 9. ed. Forense, 1987. v. 1, p.
8
79-90. BUENO, Pimenta. Direito Público brasileiro
7
Decreto publicado no DOU de 22 de maio de e análise da Constituição do Império. Brasília :
1997, Seção 2. Senado Federal, 1978.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 21
A Carta Política de 1891 não só igualou a deveres individuais e coletivos, no Título
todos perante a lei, como permitiu que todos os destinado aos Direitos e Garantias Funda-
indivíduos e confissões religiosas exercessem mentais, prevendo que a prática do racismo
pública e livremente o seu culto, consagrando constitui crime inafiançável e imprescritível,
o caráter secular dos cemitérios, sem obstar a como já o fazia a Carta anterior10, sujeito à pena
liberdade de todos os cultos religiosos praticarem de reclusão (mais grave que a mera detenção),
seus respectivos ritos em relação a seus crentes, cabendo sua definição à lei. E mais, não satis-
desde que não ofendessem a lei e a moral pú- feito com essa garantia, o constituinte deferiu
blica, muito bem lembrada por João Barbalho9, à lei a punição de qualquer discriminação aten-
traduzindo a bíblica recomendação da frater- tatória dos direitos e liberdades fundamentais11.
nidade e do congraçamento humano. Desde a A Carta também constitucionalizou a prática
edição do Decreto nº 119, de 17 de janeiro de da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e
1890, a Igreja e o Estado estão efetivamente drogas afins, o terrorismo e os definidos como
separados. crimes hediondos, determinando que a lei os
A Lei Maior de 1934 repetiu o Diploma considere inafiançáveis e insuscetíveis de graça
Constitucional anterior e homenageou o ou anistia12.
princípio da inviolabilidade da liberdade de Entretanto, o eminente Desembargador
consciência e de crença, assegurando o livre Alcino Pinto Falcão, comentando esse disposi-
exercício dos cultos religiosos, desde que não tivo, afiança “que não há texto semelhante em
contrariassem a ordem pública e os bons outros Diplomas pátrios ou estrangeiros; um
costumes. Também os cemitérios continuaram particularismo, pois, do inciso em comentário,
a manter o caráter secular, com a liberdade de que, parece, por míngua do material interno,
todos os cultos e a previsão constitucional de ter mais um objetivo proclamatório, como o da
que as associações religiosas poderiam manter Declaração da Revolução Francesa (África do
cemitérios particulares. Sul, o endereço certo!)13”.
Outrossim, erigiu, entre os objetivos
A Constituição de 1937, a Polaca, nomi- fundamentais da República, a promoção do bem
nalmente, propiciou a liberdade de culto, de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo,
podendo, para esse fim, manter as associações
cor, idade e quaisquer outras formas de discri-
de caráter religioso e confessional. De forma
minação.
mais modesta e econômica, na descrição,
também, os cemitérios mantiveram o caráter Os nativos indígenas, bem como os negros,
secular. eram considerados coisas e podiam ser
vendidos, como parte da terra, e os judeus,
A Constituição, pós-ditadura, de 1946, com segregados, por leis que tinham até o respaldo
uma elasticidade que demonstra seu profundo divino14.
apego à democracia, convolou a inviolabilidade Alguns autores são unânimes em considerar
da liberdade de consciência e de crença, o racismo uma realidade incontestável, no
garantido o livre exercício dos cultos religiosos.
10
Os cemitérios continuaram a ter o caráter Cf. artigo 5º, XLII.
11
secular, permitida a prática religiosa por todas GUIMARÃES, Ylves José de Miranda.
as confissões e manutenção de cemitérios Comentários à Constituição. Rio de Janeiro :
particulares por associações religiosas. Forense, 1989. p. 68; LOBO, Eugênio R. H., LEITE,
Júlio C. Comentários à Constituição federal.
A Lei Magna de 1967 e a Emenda nº 1, de Edições Trabalhistas, 1989. v. 1, p. 83; FALÇÃO,
1969, não só mantiveram o princípio de igual- Alcino Pinto. Comentários à Constituição. Freitas
dade de todos perante a lei, sem distinção de Bastos, 1990. v.1, p. 270-272; MAGAHÃES,
sexo, raça, trabalho, credo religioso e convic- Roberto B. de. Comentários à Constituição federal
ções políticas, como inauguraram a constitu- de 1988. v. 1, p. 60.
12
cionalização do crime de preconceito de raça. Cf. artigo 5º, XLIII. Consultem-se, sobre crimes
hediondos, de João José Leal, Crimes hediondos.
A Magna Carta de 1988, relatada pelo atual Atlas, 1996; TORON, Alberto Zacharias. Crimes he-
Senador Bernardo Cabral, distinguiu esse diondos. Revista dos tribunais, 1996; SZNICK, Val-
crime com sede própria, entre os direitos e dir. São Paulo, 1993. (Edição Universitária de Direi-
to) e FRANCO, Alberto da Silva. Crimes hediondos.
9
Constituição federal brasileira : comentários. 3. ed. Revista dos Tribunais, 1994.
13
Rio de Janeiro : Companhia Litho-Typographia, Op. cit., p. 272.
14
1902. p. 297-308. Op. cit., conflitos raciais.
22 Revista de Informação Legislativa
Brasil, apesar dos inúmeros diplomas, em que inteligência do artigo 4º da Lei nº 1.390, de
se destacam: Lei Diogo Feijó (Lei de 7 de 1951: recusar a entrada de alguém, por
novembro de 1831 – 1ª lei contra o tráfico); preconceito de raça ou de cor, em estabeleci-
Lei Euzébio de Queiroz (Lei nº 581, de 4 de mento público de diversões ou de esporte. A
setembro de 1850 – 2ª lei contra o tráfico); pena de prisão simples, de 15 dias a 3 meses17,
Decreto dos africanos livres – Decreto nº é cômica.
13.003, de 28 de dezembro de 1853; novo Celso Bastos entende que o racismo não é
Decreto dos africanos livres – Decreto nº 3.310, um problema sério no Brasil, pois a elevação
de 24 de setembro de 1864; Lei Nabuco de do negro, como a do índio, fica na dependência
Araújo (Lei nº 731, de 5 de junho de 1854); do aprimoramento dos padrões de vida e de
Lei do Ventre Livre (Lei nº 2.040, de 28 de cultura das camadas inferiores da população,
setembro de 1871); Lei dos Sexagenários (Lei mas não faz qualquer objeção a essa penali-
nº 3.270, de 28 de setembro de 1885); Lei Áurea zação18.
(Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888) e de
inúmeras medidas que gradualmente reduziram No âmbito local, a lei do Estado do Rio de
as agruras dos escravos africanos e das diversas Janeiro – Lei nº 1.814, de 24 de abril de 1991
disposições constitucionais. – estabelece sanções de natureza administrativa
Jorge da Silva, num lamentável rasgo de aplicáveis a qualquer tipo de discriminação em
profundo pessimismo, acentua não ser com a razão de raça, etnia, cor, crença religiosa ou de
legislação penal que a questão social das ser portador de deficiência e o Decreto do Estado
populações negras deve ser enfrentada, senão de São Paulo cria a Delegacia Especializada de
com outras medidas, porque sua emancipação Crimes Raciais, destinada especificamente, con-
ainda está longe de ocorrer e que existe na correntemente com as demais e não de forma
sociedade brasileira uma segregação racial exclusiva, a apurar as infrações penais resultan-
concreta ou uma etiqueta15. Paranhos Sampaio tes da discriminação ou preconceito de raça, cor,
acredita que, no Brasil, existe a segregação religião, etnia ou procedência nacional.
camuflada, ou seja, a discriminação puramente No Município de São Paulo, a Lei municipal
social16. nº 11.995, de 16 de janeiro de 1996, veda
qualquer forma de discriminação no acesso aos
Os silvícolas também se beneficiariam de elevadores de todos os edifícios públicos
leis tuteladoras, que, na verdade, ao invés de municipais ou particulares, comerciais, indus-
protegê-los, prestaram-se mais para destruí-los. triais e residenciais multifamiliares, existentes
No início da década de 50, surge o primeiro no Município de São Paulo.
diploma infraconstitucional, com destino O artigo 3º desse diploma determina a
certeiro – a Lei Afonso Arinos (inclui entre as fixação de cartazes com os seguintes dizeres:
contravenções penais a prática de atos resul- “É vedado, sob pena de multa, qual-
tantes de preconceito de raça ou de cor) – Lei quer discriminação em virtude de raça,
nº 1.390, de 3 de julho de 1951, modificada sexo, cor, origem, condição social, porte
pela Lei nº 7.437, de 20 de dezembro de 1985, ou presença de deficiência física e doença
conquanto de duvidosa aplicação e com efeitos não contagiosa por contato social no
meramente simbólicos, por tratar a matéria acesso aos elevadores”.
como contravenção, com penas reduzidíssimas,
como desponta do julgado do Tribunal de Não que não possa haver, de forma sutil e
Alçada Paulista, que absolveu o réu acusado velada, ácido desconforto e preconceito latente
de haver proibido a entrada de estudante negro ou inconsciente; todavia, atualmente, a
no recinto de um clube, sob argumento não se questão é mais social e econômica que racial.
ter configurado a infração – contravenção penal – E, repita-se, intimamente ligada à educação,
mas sim apenas um mal-entendido entre ele e como fator preponderante e específico, haja
a diretoria do clube. Tratava-se, aduz a decisão, vista a narração de um episódio grotesco, pelo
de indivíduo estranho na cidade que não se cronista Millôr, que de imediato o fez lem-
identificou, desde logo, como componente de brar-se de uma “historinha” infantil do tempo
uma caravana estudantil. Estava em causa a 17
Revista dos Tribunais, n. 362/264.
15 18
Op. cit., p. 143. BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives
16
Comentários à nova Constituição brasileira. Gandra da Silva. Comentários à Constituição do
São Paulo : Atlas, 1989. p. 123. Brasil. Saraiva, 1989. p. 221.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 23
em que “se supunha que as crianças eram vamente seu alcance, como já o fazia a lei que
infantis”. Conta define o genocídio, de sorte que não só o crime
“que uma senhora vai passando pela pra- resultante de preconceito de raça ou de cor, mas
ça com a netinha de cinco anos e, de re- também a discriminação é aqui pontuada
pente, vê um marmanjão com seu (his) de expressamente, acrescendo-se ainda os crimes
fora, lavando diureticamente uma árvore resultantes de preconceito ou discriminação de
indefesa. A senhora não se conteve (era etnia, religião ou procedência nacional.
no tempo em que as senhoras não se con- O crime de racismo, gizado pela Consti-
tinham): – O senhor não tem vergonha, tuição, é inafiançável (a prisão não será relaxada
um homem desse tamanho, urinando em em favor do criminoso) e imprescritível (a pena
público, em plena luz do dia? Não respei- é perene, não ficando o Estado impedido de
ta nem a família? Não se pode nem passe- punir a qualquer tempo o autor do delito)21.
ar na praça com uma menina? E a meni-
na tão indignada quanto a avó, e mais com- Trata-se de crime formal ou de mera
petente do que ela acrescentou: – Pois é, conduta, isto é, sua consecução independe dos
vovó! E, além disso, judeu!”19. efeitos que venham a ocorrer. Não há necessi-
O bárbaro assassinato do índio, em Brasília, dade do resultado para que se consume o crime22.
por adolescentes da classe média, as tentativas Corrigiu a Lei nº 7.716, de 15 de janeiro de
de assassinatos de moças indefesas, nesta 198923, modificando os artigos 1º e 20, e revo-
mesma cidade, o trucidamento de um homem gou o artigo 1º da Lei nº 8.08124 e a Lei nº
por um casal de pouco mais de quinze anos, 8.88225, de 3-6-94.
em Nova York, a degola assustadora, na Todavia, sem qualquer razão plausível,
Argélia, por motivos religiosos, a monstruosa minorou as penas de alguns delitos e não apro-
recrudescência da violência na antiga União veitou a oportunidade de aprimorar o § 1º do
Soviética, hoje, Rússia, as gangues organizadas artigo 20, para agasalhar não só os símbolos,
em diversas partes, de norte a sul e de leste a insígnias, emblemas e distintivos nazistas,
oeste do planeta, a “limpeza étnica” na antiga como também os de outras seitas, que apregoam
Iugoslávia, a execução de um membro da KKK, a discriminação e o racismo.
nos Estados Unidos, por haver cometido crime
ligado ao racismo, projetam bem a imagem do A redação do texto legal, contudo, continua
mundo convulsionado, em que vivemos, agra- obscura e duvidosa em alguns pontos, como
vado, sobretudo, pela via sensível e rápida de bem observou Walter Ceneviva26.
comunicação, atingindo qualquer lugar, em
segundos. Tudo isso obriga o homem a repensar Senado Federal, 30 nov. 1996. p. 1360, e no Diário
a sociedade e suas relações. da Câmara dos Deputados, 4 set. 1996. p. 24632.
21
Artigo 1º da Lei nº 7.716, com a redação dada
2. A Lei nº 9.459/97 pela Lei nº 9.459; CRETELLA JR. Comentários à
Constituição de 1988. p. 483-4.
Serão punidos, na forma desta lei, os crimes 22
GARCIA, Basileu, Instituições de Direito
resultantes de discriminação, preconceito de Penal. Max Limonad, 1954. v. 1, t. 1-2, e, COSTA
raça, cor, etnia, religião ou procedência JÚNIOR, Paulo José da. Comentários ao Código
nacional. Penal. Saraiva, 1996.
23
A Lei nº 9.45920, de 13 de maio de 1997, Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº
alterou a lei vigente, para alargar significati- 668/88, do Deputado Carlos Alberto Cao, (no Senado
PLC 52/88), que deu origem à Lei nº 7.716/89,
19
A gentália do Império. Correio Braziliense, sancionada pelo Presidente da República, com vetos
Brasília, 8 mar. 1997. Caderno Dois, p. 5. (DCN de 5.4.89, p. 904).
20 24
Projeto de Lei da CD nº 1.240-A, de 1995, de Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº
autoria do Deputado Pedro Paim, transformado na 5.239/90, do Deputado Ibsen Pinheiro, tendo como
Lei nº 9.459. O Relator, Deputado Jarbas Lima, teve Relator o Deputado Sigmaringa Seixas. (no Senado
seu parecer aprovado, por unanimidade, quanto à 66/90). Transformou na Lei nº 8.081/90 (DCN de
constitucionalidade, juridicidade e técnica legisla- 30.10.90, p. 11.367).
25
tiva e, no mérito, foi admitido nos termos do substi- PL da Câmara dos Deputados nº 3.261/92, do
tutivo aprovado (DCD 4.9.96. p. 24632). Vide a Deputado Alberto Goldman (no Senado PLC 96/93),
justificativa ao projeto original, uma verdadeira aula transformado na Lei nº 8.882/94.
26
de humanismo, com o histórico dos que colaboraram Cf. artigo, Folha de São Paulo, transcrito na
para o êxito desse projeto (Advogados Bento página jurídica da Amatra X (Internet), em 31 de
Maia da Silva e Luiz Alberto da Silva), no Diário do maio de 1997.
24 Revista de Informação Legislativa
O comando constitucional, que fortalece o risco de produzi-lo, não se importando propria-
combate ao racismo27, não é auto-aplicável. O mente com o resultado, há que se falar em dolo
princípio da tipicidade cerrada, que subsidia o eventual. Todavia, ele consente no resultado.
direito penal28, confirma a teoria do moderno
direito penal de que não há crime sem lei A culpa, no sentido restrito, porém, é o
anterior que o defina, nem pena sem prévia elemento subjetivo da infração penal, que se
determinação legal, garantia basilar do Estado caracteriza pela ausência de vontade de produzir
de Direito29. Para que um comportamento seja o ato. Tampouco, ocorre o risco de assumi-lo.
tido como criminoso, mister se faz que a lei o O crime, isto é, a infração consuma-se em
declare tal, antes da sua prática. O mesmo virtude da imperícia (falta de prática ou ausên-
ocorre com a sanção. cia de conhecimento), imprudência (imprevi-
O crime pode ser comissivo ou omissivo. dência) ou negligência (falta de atenção ou de
No primeiro caso, o agente pratica a ação, tendo cuidado) do sujeito ativo (autor do crime). A
um comportamento positivo, de conformidade culpa pode ser consciente (o sujeito prevê o
com o tipo penal. No segundo caso, o compor- resultado mas está certo de que nada aconteça)
tamento caracteriza-se pela inércia do autor. e inconsciente (o sujeito não a prevê, mas ela é
Não há ação. Assim, no crime de omissão de perfeitamente previsível).
socorro, o autor deveria prestar socorro e não A culpa não se presume. O crime culposo
o fez. será assim punido se estiver expressamente
A coincidência entre o fato e a descrição da prevista a culpa. Do contrário, o crime será
norma penal dever ser absoluta. Será crime o doloso.
comportamento humano que se enquadrar, na Essa é a regra geral, insculpida no Código
plenitude, em um dos modelos consignados Penal, que se aplica tanto aos crimes previstos
nessa lei30. neste Código, quanto aos da legislação especial,
Mas há que se indagar o elemento subjetivo, como nas hipóteses da lei em apreço.
isto é, se o agente, sujeito ativo, o autor da ação Assim, os crimes oriundos de discriminação
quis ou não praticar o ato criminoso, o ato ou preconceito de raça, cor, religião, etnia ou
qualificado como crime pela lei. A vontade procedência nacional são dolosos.
adquire importância fundamental na ocorrência A pena é de reclusão ou de reclusão e multa.
do crime. As penas privativas de liberdade podem ser
O dolo e a culpa são os elementos subje- de reclusão e de detenção.
tivos, primordiais do direito penal. A reclusão difere da detenção, entre outros
O dolo configura-se pela consciência e motivos, pelo regime de cumprimento da pena,
vontade da realização do ato, tipificado como sendo que a pena de reclusão é bem mais
crime31. Para Damásio de Jesus, que adota a rigorosa.
teoria finalista, basta a vontade de concretizar A discriminação e o preconceito são
o ato, prescindindo da consciência do ato conceitos visceralmente distintos, para o legis-
contrário à lei. lador, a ponto de aquele diploma modificar o
Para o Código Penal, ocorre o crime doloso artigo 1º da Lei nº 7.716, de 1989, e reforçar,
direto, quando o autor da infração ou o sujeito de vez, o combate a este mal, em favor dos
ativo quer o resultado, quer especificamente valores éticos e fundamentais da natureza
realizar aquela conduta. Se apenas assume o humana. Esta é também a opinião de Jorge da
Silva, que empresta de Marie Jahoda o signifi-
27
Inciso XLII do artigo 5º. cado de preconceito, esclarecendo que este é
28
Inciso XXXIX do artigo 5º. “um sentimento, e mesmo uma atitude em
29
BECCARIA, Cesare Bonesana, Marquês de. relação a uma raça ou a um povo, decorrente
Dos Delitos e das Penas. 6. ed. (Biblioteca Clássica, da internalização de crenças racistas” (o senti-
v. 22). mento que pode acompanhar o homem em
30
Consultem-se de, COSTA JÚNIOR, Paulo José todos os momentos de sua vida) e a discrimi-
da. Comentários ao Código Penal. 4. ed. Saraiva,
1996; de CERNICCHIARO, Luiz Vivente, COSTA
nação, a sua manifestação32.
JÚNIOR, Paulo José da. Direito Penal na Consti- Aurélio Buarque de Holanda Ferreira enfa-
tuição. 2. ed. Revista dos Tribunais, 1991. tiza que preconceito vem do latim praeconceptu
31
Nesse sentido, TOLEDO, Francisco de Assis. e, entre os significados que lhe dá, fornece o de
Correio Braziliense, 26 maio 1977. Caderno Direito
32
& Justiça, p. 3. Op. cit., p. 41.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 25
conceito ou opinião formados antecipadamente essas pessoas, marcando-lhes a presença na
sem se levar em conta o fato que os conteste, e coletividade, permitindo sua identificação e
o de intolerância, ódio irracional ou aversão a localização.
outras raças, credos, religiões etc.; e discrimi- A Lei nº 7.716 havia sido modificada pela
nação é o ato ou efeito de discriminar; sepa- Lei nº 8.081, de 21 de setembro de 1990, que
ração, segregação, apartação – a discriminação deu nova redação ao artigo 20, e a Lei nº 8.882/
ou segregação racial33. 94 acresceu-lhe o § 1º, renumerando os exis-
Raça, cor, etnia, religião e procedimento tentes.
nacional têm significado próprio e determinado. A Lei nº 9.459 revogou as disposições em
Raça, segundo o Dicionário de Aurélio contrário, especialmente o artigo 1º da Lei nº
Buarque de Holanda, é o conjunto de indivíduos, 8.081/90, que dera nova reação ao artigo 20 da
cujos caracteres somáticos, tais como a cor da citada Lei nº 7.716 e a Lei nº 8.882 que modi-
pele, conformação do crânio e do rosto, o tipo ficara o artigo 20 citado, com a redação dada
de cabelo e outros traços, são semelhantes e se pela mencionada Lei nº 8.081.
transferem, por hereditariedade, conquanto Os artigos subseqüentes (3º a 18) da Lei nº
variem de pessoa para pessoa. Também 7.716 ficaram incólumes e descrevem minucio-
apresenta outros significados, entre os quais, o samente as hipóteses que corporificam os
conjunto de indivíduos com origem étnica, crimes resultantes de preconceito e de discri-
linguística ou social comum. minação.
Racismo é a teoria que estabelece que certos É crime impedir ou obstar o acesso de
povos ou nações são dotados de qualidades alguém, devidamente habilitado, a qualquer
psíquicas e biológicas que os tornam superiores cargo da Administração direta (ou centra-
a outros seres humanos34. lizada) ou da indireta ou, ainda, das conces-
Etnia, na definição de Aurélio, é um grupo sionárias de serviços públicos.
biológico e culturalmente homogêneo. Concessão é a atribuição, pela Adminis-
Religião, ainda, na palavra de Aurélio, é a tração Pública, de um serviço público a uma
crença na existência de uma força ou forças pessoa privada, para executá-lo na conformi-
sobrenaturais consideradas como criadoras do dade da lei, dos respectivos contratos e dos
Universo e que como tal devem ser adoradas e regulamentos, sob seu controle.
obedecidas. Também dá como significado a A permissão de serviço público, conquanto
manifestação de tal crença por meio de doutrina é dada, a título precário, também aí se inclui,
e ritual próprios que envolvem, em geral, posto que hoje se rege pela mesma lei37 e tem o
preceitos éticos. caráter contratual, como as concessões, segundo
Nacionais, segundo o ensinamento de a doutrina dominante38.
Hildebrando Accioli, são as pessoas submetidas A concessão pode ser atribuída com exclu-
à direta autoridade de um Estado, que lhes sividade ou não a pessoa jurídica ou física, exer-
reconhece os direitos civis e políticos, ofer- cendo a concessionária atividade puramente
tando-lhes proteção, inclusive para além de suas particular, seja com vistas à prestação de servi-
fronteiras35, através do Direito Internacional. ços, seja com relação ao seu pessoal39. Por
Esse renomado autor explica que cabe ao Estado exemplo, uma empresa concessionária de tele-
o direito e, ao mesmo tempo, o dever, pelo fonia, de linha de ônibus, de eletricidade etc.
menos, moral de proteger seus nacionais, no A empresa permissionária não está excluída.
exterior, pelos meios admitidos nesse ramo do Serviço público é toda atividade destinada
Direito, o que, via de regra, faz-se pela via a obter determinada utilidade de interesse para
diplomática36. a coletividade, é uma atividade essencial,
A nacionalidade é a qualidade inerente a
37
Cf. artigos 1º e 40 da Lei nº 8.987, de 13 de
33
Novo dicionário Aurélio da língua portu- fevereiro de 1995, e a Lei nº 9.074, de 7 de julho de
guesa. 2. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1986. 1995.
34 38
Nesse sentido, SOARES, Orlando. Comen- TÁCITO, TEIXEIRA, MOTTA apud MUKAI,
tários à Constituição da República Federativa do Toshio. Concessões, permissões e privatizações de
Brasil. Rio de Janeiro : Forense, 1990. p. 125. serviços públicos. Saraiva, 2. ed. 1997. p. 17-18.
35 39
Manual de Direito Internacional Público. Nesse sentido, MEIRELLES, Hely Lopes.
Saraiva, 1980. p. 70-71. Direito Administrativo Brasileiro. 7. ed. Malheiros,
36
Ibidem, p. 81. 1992. p. 339.
26 Revista de Informação Legislativa
necessária para a comunidade, exercitada pelo seja impedido de ter acesso a cargo, devida-
Estado ou por particular. mente habilitado, o qual deverá abranger o
A administração direta e a indireta de emprego ou função nestas entidades, para que
qualquer dos Poderes da União, dos Estados, a lei não caia no vazio, para estar configurado
do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive o crime. Não cremos que esta interpretação
a fundacional (fundações instituídas e mantidas abale o princípio da tipicidade cerrada.
pelo Poder Público), estão previstas na Consti- A gravidade do fato fez o legislador impor
tuição. A administração indireta compõe-se das a pena de reclusão de 2 a 5 anos.
sociedades de economia mista, das empresas Negar ou obstar emprego em empresa
públicas e das autarquias. Todavia, não se há privada é a figura penal, que ocorrida, deter-
de olvidar as empresas, sob seu controle direto minará a mesma pena.
ou indireto.
Basta a negativa ou o impedimento para que
Impedir ou obstar o acesso de alguém devi- se materialize o crime. São figuras semelhantes
damente habilitado a cargo (função ou (essa é a hipótese infra) tratadas de forma
emprego) das empresas concessionárias (ou diversa. Por que também a recusa não foi
permissionárias) é crime, mas também o é prevista aqui? Omissão, esquecimento ou equí-
impedir o acesso ou o uso de qualquer meio de voco do legislador?
transporte público, como aviões, trens etc.
A lei apenas exemplifica as hipóteses, não as Recusar ou impedir acesso a estabeleci-
exaure. mento comercial, negando-se a servir, atender
Impedir é criar obstáculo, proibir, obstruir, ou receber cliente ou comprador, constitui
estorvar, embaraçar, de qualquer maneira, o crime.
acesso de alguém, que esteja habilitado, a Permitir o ingresso mas não o atender,
qualquer cargo, nas entidades descritas. servir, ou receber, calcado em preconceito ou
Obstar é opor-se, causar embaraço. Ambos discriminação, também é crime, porque de nada
os verbos são sinônimos. Se se tratar de adiantará o dispositivo se, embora permitido o
obstrução ou impedimento de alguém não acesso, o cliente ou comprador não for atendido,
habilitado, forçosamente não se há de confi- recebido ou servido.
gurar o crime. Evidentemente, este impedimento Se o cliente ou comprador adentrar o esta-
deve calcar-se em motivos de preconceito ou belecimento apenas para olhar, se não for aten-
discriminação. dido, também estará sendo vítima desse crime.
No Código Penal existe a figura impedir, Cometerá o crime o preposto, o dono ou o
prevista no artigo 335, e também na Lei nº empregado do estabelecimento. A lei não o diz,
8.666/93 – que dispõe sobre as licitações e mas será impossível entender diferentemente.
contratos administrativos – (artigo 93). Impedir E o fornecedor não estará abrangido pela
é obstruir, ensinam Diógenes Gasparini e proteção legal? Claro que sim. A redação, sem
Vicente Greco Filho40. O artigo 98 também usa dúvida, peca pela economia de palavras e má
as expressões impedir e obstar. Vicente Greco qualidade. No entanto, o fornecedor ou
Filho, comentando essa disposição, menciona qualquer pessoa estão abrangidos pela defe-
que essas expressões são sinônimas, de sorte rência desta norma, cuja oração principal, o
que obstar é impedir através de obstáculos ou núcleo da oração, aponta uma seta imperativa
óbices; impedir é não deixar que aconteça, por e esclarece, de forma categórica, que o referido
qualquer meio, mesmo que por fraude ou crime se consuma se o autor da ação criminosa
violência41. impedir ou recusar o acesso (de alguém – sujeito
indeterminado ) a estabelecimento comercial.
O dispositivo está pessimamente redigido, A negativa de atender, servir ou receber é
refletindo dúvidas a todo o momento, e não meramente circunstancial, que não desnatura
responde se a expressão cargo abrange também a idéia principal.
a função e o emprego, para se harmonizar com Se o estabelecimento for industrial e não
a estrutura legal dessas entidades. Efetivamente, comercial, como descrito, dar-se-á o crime?
basta que o sujeito passivo do crime (a vítima) Literalmente interpretada a cláusula penal,
40
Crimes na Licitação. NDJ, 1996. p. 112, e chegar-se-á ao absurdo de que, naquela hipó-
Dos Crimes da Lei de Licitações. Saraiva, 1994. p. tese, não haverá o cometimento do crime. Essa
37, respectivamente. interpretação atenta contra a própria filosofia da
41
Ibidem, p. 63. lei e deve ser recusada, porque serão dois pesos e
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 27
duas medidas para hipóteses idênticas, porque, Não importa onde estejam localizados esses
como ministra Luiz Vicente Cernicchiaro, “o estabelecimentos. O simples obstáculo ou a
Direito, como sistema, é uno. Não admite con- oposição à hospedagem é indicativo do crime.
tradição lógica. As normas harmonizam-se”42. Permitir o ingresso mas recusar hospe-
A pena cominada para este crime é menor dagem configurará o crime, porque de nada
que nas outras hipóteses sublinhadas nessa lei, adiantará o ingresso nesses locais se houver
ou seja, poderá variar de 1 a 3 anos de reclusão. recusa em hospedar a pessoa.
Não há explicação lógica nem doutrinária para
a diminuição da sanção penal. Impedir o acesso ou recusar o atendimento
Recusar, negar ou impedir a inscrição ou em restaurantes, bares, confeitarias ou locais
ingresso de aluno em estabelecimento de semelhantes abertos ao público constitui crime
ensino público ou privado de qualquer grau. punível com pena de reclusão de 1 a 3 anos.
Esse dispositivo tem alguma semelhança Ao comentário acima, há de se ponderar
com a previsão do artigo 98 da Lei nº 8.666 que não se compreende a redução da pena para
citada. situações semelhantes.
Recusar e negar têm o mesmo sentido: Impedir o acesso ou recusar atendimento
opor-se, rejeitar. em estabelecimentos esportivos, casas de
É o bastante a recusa de inscrever ou diversões ou clubes sociais abertos ao público
impedir o ingresso de aluno em estabelecimento é crime penalizado também com reclusão de 1
de ensino, não importa se público ou privado, a 3 anos.
nem de que grau seja. A lei deve ser interpre- A diferença de tratamento também é estra-
tada de forma inteligente, de modo a que não nha, tendo em vista a similitude com o crime
conduza ao absurdo ou torne-a inócua. de impedimento de acesso ou recusa de hospe-
Há que se saber se, para a ocorrência do dagem em hotel, pensão, estalagem ou qualquer
crime, não importa tratar-se de estabelecimento estabelecimento similar.
regular, reconhecido ou não pelo Poder Público. Valem os mesmos comentários aos disposi-
Escolas de dança, datilografia, informática, ou tivos acima.
outras tantas, estarão enquadradas neste Impedir o acesso ou recusar o atendimento
dispositivo, porque estabelecimento privado em salões de cabeleireiro, barbearias, termas
pode ser tanto uma faculdade reconhecida, ou casas de massagens ou estabelecimentos
quanto uma escola ainda não reconhecida, com as mesmas finalidades impõe a pena de
como ainda uma escola integrada a um órgão reclusão de 1 a 3 anos.
da Administração Direta ou Indireta. Se assim Ainda aqui, é lamentável a pena menor em
não for, a lei será apenas mais uma a não ser desconformidade com os dispositivos antes
cumprida e terá nascido morta.
mencionados.
A pena mínima é superior às anteriores (três
anos) e a máxima é idêntica. Se o crime for A cláusula final não deixa margem a
praticado contra menor de dezoito anos, a pena qualquer dúvida. Não importa o nome que se
é agravada de um terço. der a esses locais ou estabelecimentos, porque
Impedir o acesso ou recusar hospedagem o legislador visa resguardar sempre o bem
em hotel, pensão, estalagem ou qualquer esta- protegido.
belecimento similar constitui crime punido a Impedir o acesso às entradas sociais em
pena de reclusão de três a cinco anos. edifícios públicos ou residenciais e elevadores
Esse dispositivo é superior aos demais. Pelo ou escadas de acesso aos mesmos faz também
menos, pouca dúvida oferta esse dispositivo, incidir a pena de 1 a 3 anos.
mercê da oração final. Consuma-se o crime ao se impedir qualquer
pessoa de ter acesso a esses locais, determinan-
Hotel, estalagem, pensão ou qualquer esta- do-lhe uma entrada específica e causando-lhe
belecimento similar: quando impedido o acesso constrangimento e vergonha. Não há que
ou negada a hospedagem, o infrator estará impedir a um empregado, a empregada ou a
sujeito a uma pena mínima de três anos e à um entregador de alimentos, por exemplo, o
pena máxima de cinco anos. acesso pela entrada ou pelo elevador social, sob
42
Correio Braziliense, 14 abr. 1997. Caderno pena de, assim o fazendo, cometer o crime
Direito & Justiça, p. 1. acima descrito.
28 Revista de Informação Legislativa
É muito comum o síndico de prédios resi- O obstáculo ou o impedimento de acesso ao
denciais, calcado em convenções de condo- serviço das Forças Armada é conduta punível.
mínio, regulamento ou regimento arcaicos e As polícias militares e os corpos de
inconstitucionais, proibir o acesso de empre- bombeiros, como forças auxiliares e reserva do
gados ou entregadores, pela entrada ou pelo Exército, não escapam a essa norma, assim que
elevador social. Nesse caso, é fora de dúvida também é crime obstar ou impedir o acesso ao
que estará cometendo o ilícito penal, pois não serviço dessas corporações.
poderá alegar estar cumprindo norma estatu- Impedir ou obstar, por qualquer meio ou
tária, se contrária ao direito e corresponder a forma, o casamento ou convivência familiar e
um tipo penal. social tem a pena mínima e máxima prevista
Faz-se o mesmo comentário com relação à de 2 a 4 anos de reclusão.
dosagem da pena.
Meio é o recurso empregado para atingir
Impedir o acesso ou o uso de transportes um objetivo. Tem como sinônimo expediente,
públicos, como aviões, navios, barcas, barcos, método43. Forma é a maneira, o jeito, o modo44.
ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio
de transporte concedido também prevê a pena Destarte, não são expressões sinônimas. São
de 1 a 3 anos de reclusão. situações distintas propostas pelo legislador.
Fez bem dizer qualquer outro meio de A lei resguarda a família, que é o sustentá-
transporte concedido (ou objeto de permissão), culo da sociedade, e tem proteção especial do
porque, com o progresso vertiginoso da huma- Estado, com fonte no Texto Constitucional. A
nidade, é imprevisível o tipo de transporte que família abrange não só o marido e a mulher,
pode surgir a qualquer momento. E não teria unidos pelo casamento civil ou religioso, na
sentido qualquer restrição. conformidade da lei, e os filhos, como também
Assim, o helicóptero, o táxi aéreo, a a união estável entre o homem e a mulher, que
charrete, o táxi, a “motocicleta-táxi” estão perfazem a entidade familiar. Esta compreende,
perfeitamente enquadrados. ainda, a comunidade formada por qualquer dos
pais e seus descendentes. A lei é bastante ampla
Entrincheiram-se, nessa cláusula, o trans- na sua expressão. Ao grifar a convivência
porte concedido ou objeto de permissão, familiar, envolve também os membros ligados
gratuito ou não, os ônibus destinados ao trans- por laços de parentesco e tem uma indicação
porte de escolares ou de servidores de serviço certa: qualquer obstáculo ou impedimento a esta
público ou operários de uma empresa. comunhão ou convívio constitui crime, não
Não se deve entender que somente estariam importando a forma ou o meio utilizados.
protegidos por essa norma quem fosse utili-
zar-se de transporte concedido, o que seria E, mais, a proteção vai além, porque
absurdo, porque um ônibus particular contra- também o convívio social entre amigos, ou
tado para o transporte de funcionários de pessoas que têm o trato diário, por exemplo,
determinada empresa não deixa de ser público. não necessariamente parentes, recebe o bene-
plácito desse diploma legal.
Essa interpretação comunga-se perfeita-
mente com o dispositivo, quando exemplifica Praticar, induzir ou incitar a discriminação
os barcos. Basta que o meio de transporte se ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
destine ao uso do povo. procedência nacional teve a pena reduzida,
Impedir ou obstar o acesso de alguém ao para o mínimo de 1 ano de reclusão e o máximo
serviço em qualquer ramo das Forças Armadas de 3 anos, acrescida da multa, como novidade
resulta como pena a prisão de 2 a 4 anos, sob o deste texto. Houve um abrandamento superla-
regime de reclusão. tivo da pena, em 50%, para a pena mínima e,
As Forças Armadas constituem-se da em quase 50%, para a pena máxima. Incom-
Marinha, do Exército e da Aeronáutica. preensível.
A redação do artigo 20 da Lei nº 7.716, dada
A Constituição, em homenagem à convic- pela Lei nº 9.459, difere da redação do artigo
ção filosófica e política e à crença religiosa, 20 da Lei nº 7.716, com as modificações intro-
faculta atribuir-se, em tempos de paz, serviço duzidas pelas Leis nos 8.081 e 8.882.
alternativo às pessoas que alegarem imperativo
de consciência, para se eximirem das atividades 43
FERREIRA, op. cit.
essencialmente militares. 44
Ibidem.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 29
O artigo 20 da redação originária da Lei nº a cruz suástica ou gamada para fins de
7.716 apenas tratava da data da vigência da divulgação do nazismo”.
lei. A Lei nº 8.081 modificou o artigo 20, para O § 1º do artigo 20, com a redação da Lei
definir, no caput, uma nova figura criminosa: nº 9.594 continuou a ter a mesma redação,
praticar, induzir ou incitar, pelos meios de manteve a pena anterior, de 2 a 5 anos de
comunicação social ou por publicação de reclusão, e acrescentou a pena de multa.
qualquer natureza, a discriminação ou precon- Não se justifica a redução da pena para o
ceito de raça, cor, religião, etnia ou procedên- crime desenhado na cabeça do artigo. Foi mais
cia nacional. Pena: reclusão de 2 a 5 anos. feliz o legislador ao manter a pena catalogada
Antes, o crime só ocorreria se se operasse no § 1º, com a adição da multa.
através dos meios de comunicação social ou Nesse caso, o magistrado poderá, depois de
por intermédio de qualquer publicação. ouvir o Ministério Público, ou a seu pedido,
Atualmente, a lei é elástica. Vale dizer, o mesmo antes de terminado o inquérito policial,
crime concretiza-se independentemente do mandar cessar as transmissões de televisão e
meio ou do veículo. Essa amplitude realmente rádio e recolher, incontinenti, ou proceder a
é mais consentânea com a natureza do bem busca e apreensão do material.
tutelado. Como conseqüência da condenação, impõe
Entretanto, se qualquer desses crimes for a lei a destruição do material apreendido.
praticado por meio de comunicação social ou O legislador deveria ter aproveitado a opor-
publicação de qualquer natureza, a pena é tunidade de rever o dispositivo para acrescentar
agravada. A pena mínima será de 2 e a máxima que os crimes ocorreriam quaisquer que fossem
de 5 anos de reclusão, mais a multa. os símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos
Praticar o crime é realizá-lo, por si mesmo. ou propaganda que se destinassem à propagação
O próprio agente comete-o, diretamente. de doutrina racista ou atentatória à liberdade.
Induzir ou incitar são figuras conhecidas. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade
O Código Penal contempla essas figuras. ou o decoro, utilizando-se de elementos refe-
rentes à raça, cor, etnia ou origem, provoca a
Induzir é persuadir, aconselhar, argumentar, aplicação da pena de reclusão de 1 a 3 anos,
pressupõe a iniciativa à prática, e pode fazer-se além da multa.
por qualquer meio.
O artigo 2º da Lei nº 9.459 enriqueceu o
Incitar é instigar, provocar, excitar a prática Código Penal, que já regula o crime de injúria,
do crime, por qualquer meio ou de qualquer acrescendo-lhe o § 3º, com fato novo, ou seja,
forma, sem necessidade de sê-lo pelos meios se a injúria consistir na utilização de elementos
de comunicação social ou de publicação. que digam respeito à raça, cor, etnia, religião
O crime é formal, independe do resultado ou origem. Aumentou-lhe a pena e agravou sua
ou da conseqüência da incitação e equipara-se natureza. Usou pela vez primeira a expressão
à própria prática. origem ao invés de procedência nacional, como
vinha fazendo, e permaneceu no artigo 1º, o
Fabricar, comercializar, distribuir ou que não altera a idéia ou a substância.
veicular símbolos, emblemas, ornamentos, O artigo 140 do Código Penal trata do crime
distintivos ou propaganda que utilizem a cruz de injúria. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a
suástica ou gamada para fins de divulgação dignidade e o decoro, é punido com a pena de
do nazismo. detenção de 1 a 6 meses, mais a multa.
A Lei nº 7.716, na redação originária, não A injúria consiste na ofensa ao decoro ou à
contemplava essas figuras criminais. dignidade de alguém.
A Lei nº 8.882 adicionou um parágrafo, o Trata-se de crime contra a honra.
1º, para conceituar esses novos delitos, e renu- Heleno Cláudio Fragoso ensina que nesses
merou os anteriores §§ 1º e 2º, que passaram a crimes cuida-se do respeito à própria persona-
ser os §§ 2º e 3º. O novo § 1º passou a ter a lidade e honra, assevera, é o valor social e moral
seguinte redação: da pessoa, inerente à dignidade humana45. Não
“Incorre na mesma pena quem se atribuem fatos à pessoa, mas vícios ou
fabricar, comercializar, distribuir ou defeitos morais.
veicular símbolos, emblemas, ornamentos, 45
Lições de Direito Penal : parte especial. 9. ed.
distintivos ou propaganda que utilizem 1987. v. 1, p. 191.
30 Revista de Informação Legislativa
Dignidade é o sentimento do valor social 3. Orientação dos Tribunais
da pessoa. Decoro, na expressão de Nelson
Hungria, “é o sentimento da própria respeita- O Poder Judiciário não se tem furtado de
bilidade da pessoa”. dar sua preciosa contribuição, visando aper-
A doutrina distingue a honra subjetiva e feiçoar as instituições e garantir a harmonia
objetiva. A primeira é o sentimento de cada social e a liberdade.
um acerca de seus atributos físicos, morais e O Supremo Tribunal Federal, em memo-
intelectuais e outros dotes da pessoa. A segunda rável decisão, assentou não ser tolerada
diz respeito ao que os outros pensam de alguém propaganda de guerra, de processos violentos
sobre suas qualidades morais, físicas, intelec- para subverter a ordem política e social, ou de
tuais. preconceitos de raça ou de classe (Relator Minis-
tro Mário Guimarães, julgamento da 1ª Turma,
A injúria visa atingir a honra subjetiva da em 5-9-53, RECR 20127, ADJ, 20-4-53, p.
pessoa ou, como acentua um julgado do 1201).
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, a Essa Excelsa Corte, em outro julgado, de
honra subjetiva, objeto da injúria, é o sentimento suma importância, relatado pelo insigne e
próprio sobre os atributos físicos, morais e combativo Ministro Ribeiro da Costa, deixou
intelectuais de cada pessoa46. claro que “a limitação à liberdade de imprensa,
O crime é formal, isto é, consuma-se, inde- sobrepondo-se ao interesse individual, atende
pendentemente do resultado, e configura-se, por as necessidades superiores do Estado e da
meio de meras palavras vagas e imprecisas, ao coletividade, dentro das exceções que o conceito
contrário do que ocorre com o crime de difa- de liberdade há de juridicamente suportar, como
mação, que exige a afirmação de um fato imperativo imanente ao procedimento humano,
preciso, segundo decisão do Tribunal de Alçada compatível ao convívio social. Essa limitação,
Criminal de São Paulo47. Não importa o meio entretanto, não a exerce a autoridade pública
de que se utilize, como despejar lixo na porta de forma arbitrária. A interdição de órgão de
do vizinho, com a intenção de ofender, ou pela publicidade somente se justifica quando se
afixação de palavras injuriosas na porta da demonstre o incitamento à subversão da ordem
loja48. pública e social, ou a propaganda de guerra
O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal ou de preconceitos de raça ou de classe” (cf.
de Alçada Criminal de São Paulo já decidiram RE25348/MG, julgado pela 1ª Turma, v. u.,
que a injúria também ocorre, se proferida na em 2-12-54, DJ de 5-11-54, p. 1998).
ausência do ofendido, desde que chegue ao seu O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO
conhecimento49. DO RIO GRANDE DO SUL, pela Terceira
Esse crime tem a pena acrescida, cometido Câmara Criminal, teve oportunidade de se
contra determinadas pessoas (Presidente da manifestar, na Apelação Crime 695130484 –
República, funcionário público), em razão de Porto Alegre, acerca do artigo 20 da Lei nº
suas funções, na pessoa de várias pessoas, ou 7.716, de 1989, com a redação dada pela Lei
por meio que facilite sua divulgação, ou se for nº 8.081/90, proferindo um julgamento histó-
cometido através de pagamento ou promessa rico e de suprema importância para as relações
de recompensa. humanas, tendo participado da sessão, além do
Se, contudo, a injúria consistir na utilização Relator, Desembargador Fernando Mottola, os
de elementos referentes à raça, cor, etnia, reli- Desembargadores José Eugênio Tedesco (presi-
gião ou origem, a pena será de 1 a 3 anos de dente) e Aristides Pedroso de Albuquerque
reclusão, além da multa50. Neto51. Nesse processo, a Câmara deu provi-
46
mento à apelação, por votação unânime, para
JESUS, Damásio de. Código Penal anotado. condenar o réu-apelado à pena de 2 anos de
2. ed. Saraiva, 1991. p. 384, e ac. inserto na Revista reclusão, com sursis por 4 anos, com funda-
dos Tribunais, n. 401, p. 298.
47
Julgados 91/402. mento no caput do citado artigo 20.
48
DELMANTO, Celso. Código Penal comentado. Nesse rumoroso processo, o eminente pro-
3. ed. Renovar, 1991. p. 242. motor público ofereceu denúncia, imputando ao
49
Decisões insertas na Revista dos Tribunais,
51
n. 606/414 e 425/345, respectivamente. Nesse processo, funcionaram, como assistentes
50
Redação dada pelo artigo 2º da Lei nº 9.459, da acusação, o Dr. Mauro Juarez Nadvorny e a
de 13 de maio de 1997. Federação Israelita do Rio Grande de Sul.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 31
réu o crime descrito no artigo 20 do mencionado a comungar com a vontade do “Fuhrer”, com
diploma legal, porque, o que está a violentar, com suprema força, o
“de forma reiterada e sistemática, edita texto da norma positiva.
e distribui, vendendo-as ao público, obras De fato, a liberdade, ao exteriorizar o
de autores nacionais e estrangeiros que pensamento, independentemente de censura,
abordam e sustentam mensagens anti- esbarra no supremo princípio constitucional da
semitas, racistas e discriminatórias, pro- igualdade, que é o ponto maior da construção
curando com isso incitar e induzir a dis- democrática, e vê-se reforçada pelas balizas
criminação racial, semeando sentimentos estruturais da Constituição, que manda punir
de ódio, desprezo e preconceito contra o qualquer discriminação atentatória dos direitos
povo de origem judaica”. e liberdades fundamentais e a prática do
A ilustre magistrada que recebeu a denún- racismo, que constitui crime inafiançável,
cia, com alicerce no § 1º do aludido dispositivo punido com pena de reclusão.
legal, ordenou a busca e apreensão de todos os Gilmar Ferreira Mendes estudando, com
exemplares das obras incriminadas. profundidade, a questão da colisão dos direitos
O juízo monocrático, porém, com a anuên- fundamentais, observa, com notável acuidade,
cia do Ministério Público, absolveu o denun- que “no processo de ponderação desenvolvido
ciado, sob o fundamento de que os textos dos para solucionar o conflito de direitos individuais
livros publicados não implicam induzimento não se deve atribuir primazia absoluta a um ou
ou incitação ao preconceito e discriminação outro princípio ou direito”. E, citando o Tribunal
étnica do povo judeu, visto constituírem-se em Alemão, prossegue: “Ao revés, esforça-se o
manifestação da opinião e relatos sobre fatos Tribunal para assegurar a aplicação das normas
históricos contados sob outro ângulo, simples conflitantes, ainda que, no caso concreto, uma
opinião, no exercício constitucional da liber- delas sofra atenuação” 52.
dade de expressão. José Joaquim Gomes Canotilho, em sua
A juíza de primeira instância enfocou a severa observação, pondera que: “os direitos
questão, sob prisma diverso da lei, entendendo fundamentais estão, por vezes, em conflito com
que houve apenas manifestação de pensamento outros bens ou direitos constitucionalmente
e relatos sobre fatos históricos contados sob protegidos. Impõe-se, nesse caso, a necessidade
outro ângulo, agasalhada no exercício consti- de ponderação (abwagung) de bens e direitos
tucional da liberdade de expressão. protegidos a nível constitucional”.
Essa decisão dissente totalmente dos Jorge Miranda, outro eminente constitu-
julgados do Supremo Pretório, antes citados, cionalista português, assentado em farta dou-
que, apesar de antiquíssimos, mostram-se trina, sentencia, com desbravada coragem, que:
atualíssimos, dada a sensibilidade dos julga- “Há sempre que interpretar a Cons-
dores, que marcaram definitivamente o cenário tituição como há sempre que interpretar
jurídico, com seu talento e inteligência. a lei. Só através desta tarefa se passa da
Não obstante, a Instância Superior, em leitura política, ideológica ou simples-
notável estudo, proclamou a ruína da sentença mente empírica para a leitura jurídica do
recorrida. texto constitucional, seja ele qual for. Só
O relator, Desembargador Fernando através dela, a partir da letra, mas sem
Mottola, em peça bem elaborada, cita os parar na letra, se encontra a norma ou o
diversos livros questionados e narra trechos sentido da norma”53.
expressivos, consignando que esse material O esclarecido desembargador enriquece,
expressa inverdades e falsificações históricas. ainda, seu voto, com opiniões valiosas de auto-
Um passeio pelas avenidas bem traçadas pela res, como Celso Bastos e Cretella Júnior. Bastos
decisão superior permite conhecer o verdadeiro escreve que a inspiração do dispositivo, sob
espírito e os desígnios malévolos do autor do cri- 52
Leia-se, a propósito, o excelente trabalho de
me e a configuração do dolo, de fundamental Gilmar Ferreira Mendes, Colisão de Direitos
importância para o deslinde da quaestio. Fundamentais, na Revista de Informação Legislativa,
Destarte, demonstra o culto julgador-relator n. 121, p. 297-301.
53
que o réu, ao afirmar que sua editora é ideo- Manual de Direito Constitucional. 2. ed.
lógica e pretende levar adiante um ideal, está Coimbra Ed. t. 2, p. 224.
32 Revista de Informação Legislativa
comento, foi a parte final do § 1º do artigo 153 O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO
da Constituição passada, que determinava a DE SÃO PAULO, entretanto, “absolveu um réu
igualdade de todos perante a lei, sem distinção que impediu a entrada de um homem preto num
de sexo, raça, trabalho, credo religioso e edifício residencial. A decisão baseou-se na
convicções políticas, ordenando a punição do falta de prova de que o fato estava vinculado a
preconceito de raça. O segundo autor precisa preconceito racial56”.
que a Constituição se refere à lei penal, que O TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO,
deverá estar de acordo com a norma maior. no Recurso Ordinário em Mandado de Segu-
Não é demais repetir as lições ministradas rança 208556/95-2 (Ac. SBDI2-943/96), rela-
pelas penas dos poucos autores que se preocu- tado pelo Ministro designado Valdir Righetto,
param em lapidar a Lei nº 7.716. recorrente: Centrais Elétricas do Sul do Brasil
S/A e recorrido: Vicente Francisco do Espírito
Valdir Sznick54 cumprimenta o legislador Santo, ofertou verdadeira aula de civismo, ao
da Lei nº 8.081, que modificou o artigo 20, corroborar a sentença da 2ª Junta de Conci-
enquanto que Fábio Medina Osório e Jairo liação e Julgamento de São José, no Estado de
Gilberto Schafer55 lembram que o novo dispo- Santa Catarina, que contou com o enriqueci-
sitivo mostra a tendência de reprimir, a todo mento, pelo Tribunal da 12ª Região, de lúcida
custo, as práticas discriminatórias de qualquer e significativa manifestação.
natureza, com o objetivo de proteger na esfera Eis a decisão da Junta:
penal o princípio isonômico. “ainda que o reconvindo não integrasse
O Desembargador José Eugênio Tedesco, a administração pública indireta, ainda
presidente e revisor, traz ao Plenário uma pren- que não houvesse qualquer restrição de
dada reflexão a respeito do papel da imprensa dispensa nas empresas estatais, como há,
e da atuação do Poder Judiciário com relação a ainda assim o direito potestativo do
ela no Estado de Direito e na democracia, e empregador de dispensar seus empre-
conclui, com admirável sabedoria, que é gados não poderia ter motivação racista.
“inaceitável se deixe de punir a mani- Se o racismo é crime inafiançável e
festação de opinião, quando transparece imprescritível, considerado hediondo,
evidente e cristalina a intenção de punido pelo ordenamento jurídico,
discriminar raça, credo, segmento social criminoso seria considerar tal motivo
ou nacional, ainda que sob o manto de como válido para legitimar uma rescisão
mera revisão da história”. contratual”.
Recorda, com muita propriedade, o parecer O Relator, em meticuloso exame microscó-
do Procurador da Justiça, Carlos Otaviano pico, transcreve irretorquível pronunciamento
Brenner de Moraes, que inferiu, com absoluta do Tribunal Regional do Trabalho, que serve
precisão cirúrgica, haver relação dos pontos de alerta para aqueles que não mais se lembram
questionados com a dignidade do homem e da de que há uma Constituição em pleno vigor e
raça, e indica, com plena certeza, a intenção legislação adequada, mas antes de tudo a plena
única de criar outra verdade, isto é, a execra- consciência do resguardo dos valores maiores
ção de uma raça, visando difundir uma reali- da humanidade, que se incompatibilizam
dade fincada em ideologia que chega às raias com o preconceito e com a discriminação,
do fanatismo, sem base histórica comprova- seja qual for.
damente séria e isso não pode ser considerado A decisão do Tribunal Regional assim se
revisionismo. consubstancia:
O crime objeto do presente decisório é
formal, não se exigindo de tal sorte a realização “Não basta a simples vontade. A
do resultado. Basta a concretização do observância da estrita legalidade e da
comportamento típico, acasalado com a motivação do ato se impõe.
descrição da lei e a intenção de realizá-lo. É o “Além disso, ou seja, do dever da
crime de mera conduta, ou seja, consuma-se motivação do ato administrativo, no caso,
independentemente de qualquer resultado. o motivo que os autos revelam violenta
os mais comezinhos princípios de
54
Novos crimes e novas penas no Direito Penal,
56
1992. AC nº 115463-3. Relator Des. Poças Leitão. 4
55
Revista dos Tribunais, n. 714, p. 329-38. de março de 1992. Ciência Jurídica cit., p. 279.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 33
dignidade do homem, consistente – os titui-se em ato criminoso e violador da
autos não autorizam a conclusão de que moral, gerando o dano coletivo e indivi-
se trate de política empresarial – na dual, este também passível de indeni-
prática do racismo, com despedida zação, nos exatos termos do artigo 5º,
discriminatória, conforme apregoou o inciso X, da CF. É que o sofrimento e a
postulante desde sua primeira partici- humilhação enfrentados pelo reconvinte,
pação nos autos. A relevância do tema não só com a perda do emprego, que
social posto à apreciação judicial me importa na dignidade funcional, mas
levou, secundado pela 2ª Turma do TRT, também pela decorrência discriminatória
a anular o julgado primeiro para permitir do racismo, restam imensuráveis, por
às partes a demonstração da existência impossível de restituição do statu quo
ou da inexistência do fatos. ante. O sofrimento decorrente do ataque
“O acerto daquela decisão vem moral, sopesado, se possível fosse,
agora ser confirmado, infelizmente, com gerador da amargura, estaria no rank da
a demonstração de que a despedida foi mais profunda dor psíquica, equiparável
também motivada pela cor do postulante, à perda do ser amado. A dignidade do
em ato odioso, ilegal, antiético, imoral homem não tem mensuração econômica.
e criminoso. Assim mesmo que a ré não fosse uma
“A imputação de racismo como fato estatal, sem qualquer dúvida, eu teria
motivador da demissão do recorrido, deferido o direito à reintegração, porque
apesar de fartamente demonstrada esta resta, em bom direito e a um Estado que
conduta criminosa e hedionda por se diz de Direito e Democrático, resta-
funcionário da Eletrosul em relação ao belecer sempre a dignidade de sua Carta
empregado demitido, não pode ser a ela Magna, exigindo e impondo o cumpri-
atribuída, uma vez que o sujeito ativo mento de suas regras e princípios, pena
(autor da ação criminosa – explicação de negar sua concreta existência e
nossa) deste tipo penal é a pessoa física, fomentar, de resto, o confronto com suas
e não a jurídica, circunstância devida- regras57”.
mente considerada pelo decisum. E, mais recentemente, em Minas Gerais,
De toda sorte, a teor do § 6º do artigo Santa Catarina e no Rio de Janeiro, o Poder
37 da Constituição Federal, responde a Judiciário tem repudiado, com energia, esse
pessoa jurídica, objetivamente, pelos crime, in verbis:
danos cometidos pelos seus agentes”. “1 - O Tribunal de Alçada de Minas
Enfatizou ainda o Tribunal que o Poder Gerais condenou Yara Menez a indenizar
Judiciário não pode permanecer inerte diante seu vizinho Genésio Rodrigues em R$
de uma situação como esta, porque se estaria 5.000,00, a título de danos morais. Yara
distanciando de sua finalidade social e consti- chamou Genésio, publicamente, de
tucional, e proferiu palavras de infinita gran- “macaco”, “nego fedorento” e “urubu”,
deza, ao proclamar que: palavras depreciativas e preconceituosas,
“dizer que o fato não tem relevância nesta ferindo a moral do ofendido”.
sede processual importa, data venia, em “2 - No Rio de Janeiro, o juiz da 7ª
denegar a magnitude da função judicial Vara Criminal condenou a 2 anos de
e em desguarnecer a sociedade”. detenção, com “sursis”, a empresaria
Prossegue o discurso magno, demonstrando Rosselita Lima que teria se referido a
uma vez mais que repugna à consciência dos uma candidata a emprego como “negri-
homens de bem e à nobreza do espírito humano nha maltrapilha e sem modos”.
qualquer espécie de segregação.
57
Leia-se a poética, não fosse dramática, Os Ministros da Subseção II Especializada em
advertência desse Pretório: Dissídios Individuais do Tribunal Superior do
Trabalho acordaram, por maioria, negar provimento
“Tal prática hedionda, além de ferir ao recurso, mantendo-se a reintegração deferida,
os princípios mais comezinhos da vencido o Ministro Nelson Antônio Daiha, relator.
dignidade do homem, cuja garantia Reformulou o voto o Ministro Valdir Righeto, que
ultrapassa a lei escrita, por estar vincu- redigiu o acórdão. Participou, também o Subpro-
lada à gênese da humanidade e da socie- curador Geral do Trabalho, João Batista Brito
dade, como direito natural de todos, cons- Pereira. Decisão de 7 de outubro de 1996.
34 Revista de Informação Legislativa
“3 - O Juiz da Infância e Adolescência vítima passou a ser lembrada graças à vitimo-
de Florianópolis, por seu turno, conde- logia, cujas bases foram lançadas por Benjamim
nou menor que, em jogo de futebol na Mendelsohn em 194560, nos seus estudos de
escola, chamou o colega de “negro feio”. Sociologia Jurídica e teve em Drapkin um dos
O menor foi condenado a 6 meses de seus mais bem sucedidos estudiosos, seguindo
liberdade assistida (Folha de São Paulo, os passos da Declaração Universal dos Direitos
15 maio 97)”58. do Homem, cujo discurso preambular é uma
das peças mais bem polidas pelo homem, in
verbis:
4. Parte conclusiva “Considerando que o desprezo e o
O Direito destina-se a disciplinar as relações desrespeito pelos direitos do homem
humanas, para o convívio harmônico e para o resultaram em atos bárbaros que ultrajam
bem-estar do homem, como de resto todas as a consciência da Humanidade e que o
coisas a ele se dirigem. Nada tem valor, se não advento de um mundo em que os homens
estiver em função do ser humano. Na verdade, gozem de liberdade da palavra, de crença
o universo tem sentido para o homem; os bens e da liberdade de viverem a salvo do
e as coisas existem para satisfazerem suas temor e da necessidade foi proclamado
necessidades. Assim, também as regras. como a mais alta aspiração do homem
comum”61.
O Brasil, desde o nascedouro da República,
no final do século XIX, registra, no Texto Cons- E o seu artigo II dispõe que:
titucional, a preocupação com o infortúnio “Todo homem tem capacidade para
daqueles que são vítimas de preconceito e gozar os direitos e as liberdades estabe-
discriminação, que encontraram neste século lecidas nesta Declaração, sem distinção
um ninho fértil para o seu desenvolvimento e, de qualquer espécie, seja de raça, cor,
paradoxalmente, prosseguem céleres, no final sexo, língua, religião, opinião política ou
deste milênio, disfarçados em perigosos de outra natureza, origem nacional ou
fundamentalismos religiosos, limpeza de etnias social, riqueza, nascimento ou qualquer
e até segregação social e biológica, que, na outra condição”,
verdade, ocultam todas as outras e devem ser conformando-se com o artigo I, molde primário
combatidos a todo custo. de todos os demais dispositivos, com a seguinte
Há que se pensar ainda nos crimes transna- dicção:
cionais, ou, como quer Cernicchiaro, crimes “todos os homens nascem livres e iguais
organizados59, que ultrapassam as fronteiras e em dignidade e direitos. São dotados de
atingem em segundos os mais longínquos razão e consciência e devem agir em
rincões do Planeta, via Internet, como ocorreu, relação uns aos outros com espírito de
há pouco, com a instigação do racismo por esse fraternidade”.
meio, sem que até o momento se tenha desco- Por ser um País imigratório, que forjou sua
berto os autores desse nefando crime. nação e o povo, pelo amálgama de povos, os
Deu-se um passo decisivo no campo legis- mais diversos, de etnias, procedência, credos,
lativo infraconstitucional, quando, então, a cor e religião distintos, os direitos e garantias
fundamentais de brasileiros e estrangeiros
58
Racismo from : “Gladston Mamede. mereceram do constituinte extremo apreço
<mamede@bhnet.com.br> desde o despertar da República.
Subject: Pandectas 22 Date: Wed, 11 Jun 1997 60
Cf. o excelente artigo de Paulo Tonet Camargo,
14:31:13-0300
Direito & Justiça cit., 2 jun. 1997, e o trabalho do
X-MSMail-Priority: Normal pranteado jurista, Laércio Pellegrino, Abuso do
P A N D E C T A S Boletim Jurídico, n. 22, 11/ Poder, exposto e debatido no 6º Simpósio Interna-
20 jun. 1997. cional de Vitimologia, realizado em Jerusalém, de
28 de agosto a 1º de setembro de 1988. Revista dos
Organização : Gladston Mamede (mamede Tribunais, n. 637, p. 369.
@bhnet.com.br) Doutor em Filosofia do Direito pela 61
Declaração Universal dos Direitos do Homem,
UFMG. aprovada em Resolução da III Sessão Ordinária da
59
Crime organizado. Correio Braziliense, 16 jun. Assembléia das Nações Unidas, em 10 de dezembro
1997. Caderno Direito & Justiça. de 1948.
Brasília a. 34 n. 135 jul./set. 1997 35
O preconceito e a discriminação foram A Constituição, ao reconhecer às comuni-
objeto de disciplina no plano maior das leis, dades indígenas o uso de suas línguas maternas
ganhando realce na última Constituição, e os processos próprios de aprendizagem,
precedida que foi de ampla discussão, com a consagrou uma notável inovação62, como forma
participação de grandes parcelas do povo. de preservar sua cultura.
A prática do racismo continuou a ser O Estado, cumprindo a ordem constitu-
considerada crime, com força constitucional, cional, deverá oferecer proteção não só às
agasalhada na Carta, que inscreveu entre os manifestações das culturas populares indígenas
princípios fundamentais a promoção do bem e afro-brasileiras, como também às de outros
de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, grupos que contribuem para o processo da
cor, idade e quaisquer outras formas de discri- nacionalidade. É tão significativo esse fato, que
minação e a regência por princípios, nas a lei deverá dispor sobre as datas de alta rele-
relações internacionais, de repúdio intransigente vância dos diversos agrupamentos étnico-
ao racismo. sociais63.
Esses princípios viram-se transformados em A manifestação cultural faz-se presente por
norma positivo-constitucional, consubstan- meio da criação artística, distinguindo-se os
ciando direitos e garantias, encimando a concertos, as danças, a música, exposições,
declaração impositiva de que todos são iguais literatura etc.
perante a lei, sem distinção de qualquer natu- Ao índio, destinou, ainda, o constituinte um
reza, garantindo-se aos brasileiros e aos estran- capítulo inteiro, reconhecendo-lhes sua orga-
geiros residentes no país a inviolabilidade do nização social, costumes, línguas, crenças e
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu- tradições.
rança e à propriedade, reforçando que a lei Da Lei Afonso Arinos até a Lei nº 9.459,
punirá qualquer discriminação, que atinja os passando pela legislação anti-escravista, há um
direitos e liberdades fundamentais, e que a lei longo caminho percorrido e um intenso esforço
criminal punirá a prática de racismo. produzido, no sentido de concretizar os postu-
O artigo 5º, inciso VI, abraça ainda uma lados da igualdade e da preservação de uma
garantia de invulgar interesse e importância, vida livre de preconceitos e discriminação, nem
tornando a liberdade de consciência e de culto sempre feliz, todavia pontilhado de relativo
inviolável e assegurando o livre exercício dos sucesso, no plano legal, visando a harmonização
cultos religiosos e a proteção aos locais de culto dos diversos grupos e segmentos da sociedade,
e as suas liturgias. para, de vez por todas, comungar-se com a voz
dos Salmos, que não distingue entre seus filhos,
Mas esse documento, de rara grandeza, não que os considera todos iguais, todos irmãos, ao
pára aí. proclamar:
O artigo 210 determina que o ensino reli-
“Ele ama a retidão e a justiça; a Terra
gioso, conquanto de matrícula facultativa, será está cheia de benignidade do Eterno... O
ministrado em horário normal das escolas Eterno olha lá do céu, vê todos os filhos
públicas de ensino fundamental (leia-se o dos homens. Lá do lugar da Sua habi-
ensino religioso, qualquer que seja, sem tação, dirige Seu olhar para todos os
restrição, porque essa norma deve ser lida em habitantes da Terra. É Ele quem forma o
consonância com as regras estudadas e no coração de todos eles, quem considera
contexto do sistema). todas as suas obras64.”

62
Cf. A Constituição na Visão dos Tribunais,
pelo Tribunal Regional da 1ª Região, sob a direção
do Juiz Tourinho Neto, 3/1348.
63
Cf. artigos 210, 215, 216, § 5º.
64
Cf. Salmo 33.
36 Revista de Informação Legislativa

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