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No Reino da Toupeira.

Autoridades Tradicionais do M'balundu


e o Estado Angolano
Fernando Florêncio
NO RÉINO DA TOUPEIRA. AUTOftlóAOES TRADICIONAIS DO M'IALUNOU E O ESTADO ANGOLANO

Prelúdio
Nos últimos vinte anos, nomeadamente desde os finais dos anos oitenta do século
XX, a problemática das autoridades tradicionais africanas e da sua relação com os estados
independentes tomou foros de agenda política e académica de enorme relevo. Na sequên-
cia da crise generalizada dos estados africanos independentes; da consciência, no final da
década de oitenta, da deficiente governabilidade dos aparelhos administrativos estatais e
suas elites políticas nacionais; e do falhanço dos sucessivos modelos de desenvolvimento
e das estratégias de reajustamento estrutural; e correlacionada com a emergência de novas
dinâmicas políticas, endógenas e exógenas, centradas nos processos de transição e conso-
lidação do multipartidarismo; na crença das virtualidades das sociedades civis africanas;
dos processos de descentralização político-administrativa e de uma hipotética democra-
cia participativa regeneradora das assimetrias internas; as autoridades tradicionais ressur-
gem e reassumem papéis e estatutos sociais "adormecidos" desde o final do colonialismo.
As autoridades tradicionais africanas, que desempenharam um papel fundamental
nos sistemas administrativos coloniais, através da sua incorporação pelos estados colo-
niais numa política de indirect rule, mais ou menos matizada consoante os estados e os
períodos históricos, reemergiram assim progressivamente, sobretudo a partir da década
de noventa, ocupando os espaços sociais "abandonados" pelos aparelhos administrativos
e políticos dos estados independentes, com especial incidência nos universos rurais. E
foram sendo progressivamente incorporadas nos processos de reconstrução dos estados,
sobretudo ao nível local, participando directamente e formalmente nos modelos de des-
centralização político-administrativa que foram desenhados na generalidade dos estados
africanos, a partir da década de noventa. Desempenhando tarefas administrativas que lhes
eram familiares desde o período colonial, mas integrando novas funções, e novos modos
de actuação na suas práticas e estratégias, quer administrativas quer sociais, conjugan-
do um novo modelo relacional, quer com os aparelhos estatais, quer com os aparelhos
político-partidários, quer mesmo com outros actores emergentes e com a população em
geral, que se poderia designar de neo-indirect rule.
Em múltiplos aspectos, a actual situação angolana encontra fortes semelhanças com a
generalidade dos países africanos, nomeadamente com a situação moçambicana a seguir
à assinatura do Acordo de Paz de 199254, sobretudo em duas dimensões: uma guerra ci-
vil que induziu uma profunda desestruturação das sociedades rurais e violentos desloca-
mentos populacionais; um Estado central ainda largamente incapaz de exercer autoridade
sobre partes significativas do território nacional e dificuldades de legitimação para uma
parte significativa da população.
Com o final da guerra civil em 200 l, o Estado angolano necessitou de estender a sua
autoridade à totalidade do território, iniciando um processo de formação e consolidação
em wnas onde a sua presença era fraca, ou mesmo inexistente. No caso das populações
Ovimbundu, são quase inexistentes estudos actuais sobre as autoridades tradicionais; so-
54 Sobre a situação das autoridades tradicionais e o Estado moçarrbicano cf.; Florêncio, 2008, 2005, 2003, 2002a, 2002b.

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bre a sua legitimidade faces às populações, dinâmicas e conflitos internos e, por conse-
guinte, sobre o papel que podem desempenhar neste processo de reconstrução do Estado
local. No entanto, tomando como modelo comparativo o que se vem passando na gene-
ralidade dos países africanos, desde os finais da década de oitenta, é de esperar que as
autoridades tradicionais Ovimbundu constituam um grupo de actores políticos locais de
forte legitimidade para as populações, com uma importância relevante na condução dos
processos de desenvolvimento socioeconómico e de formação e consolidação do Estado.
Neste sentido, esta investigação, que se centra sobre reino do M'Balundu, no actual
município do Bailundo, província do Huambo, constitui uma abordagem a esta proble-
mática e pretende colmatar precisamente a ausência de estudos concretos sobre esta insti-
tuição de poder tradicional do reino do M'Balundu, da sua evolução histórica, condições
actuais de existência e de reprodução sociopolítica, e capacidade de influência da vida das
populações, numa zona do país de fulcral importância, quer do ponto de vista histórico,
económico, político e social.
Esta investigação desenvolveu-se e é tributária do projecto "Dinâmicas Sociais na Es-
truturação dos Espaços Políticos em Contextos Rurais Africanos': financiado pela FCT55 •
Nesse âmbito, foram efectuadas duas missões de pesquisa de terreno no município do
Bailundo, entre Junho e Setembro, de 200456, e entre Julho e Agosto de 2007. Deste modo,
a presente investigação não contempla directamente os desenvolvimentos, locais e nacio-
nais, que ocorreram em Angola desde a realização dessa última pesquisa de terreno.
A metodologia empregue assentou sobretudo no método do trabalho de campo, com
recurso a técnicas de recolha directa tais como a observação participante, as entrevis-
tas semi-estruturadas, e as histórias de vida. A escolha das técnicas obedece fundamen-
talmente à natureza e construção do objecto científico, e neste caso o objecto centra-se
sobretudo em processos sociais e nos modos como os actores participam, constroem e
representam, esses mesmo processos. A perspectiva émica é pois então fundamental na
construção do próprio objecto. Os actores sociais locais envolvidos na pesquisa foram as
autoridades tradicionais, dirigentes dos dois principais partidos, elementos do aparelho
administrativo municipal e comunal, membros das confissões religiosas, activistas de or-
ganizações não-governamentais, e elementos da população comum.
A utilização da técnica da observação-participante serviu para potenciar uma convi-
vencialidade quotidiana com os actores sociais locais, e propiciou uma observação e parti-
cipação directa das práticas sociais, uma aprendizagem dos sistemas de significação local,
ou seja dos sistemas culturais, e uma envolvência e empatia com os respectivos actores,
o que facilita uma maior profundidade e valência dos dados recolhidos e das informa-
ções obtidas. Por seu turno, as entrevistas semi-estruturadas, desenvolvidas mais segundo

55 Opresente texto é igualmente tributário da preciosa ajuda da historiadora Conceição Neto. a quem se presla assim um enorme agrade-
cimento.
56 A pesquisa empírica de 2004 esteve igualmente ligada ao projecto de pós-doutoramento denominado 'As Autoridades Tradicionais
Ovill'ilundu do Planalto Central de Angola e sua Participação na Formação do Estado', na FCSH da Universidade Nova de Usboa, e ou
projecto 'Politica, Actores Sociais, e Cidadania em África', do CEA/ISCTE.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

uma espécie de "conversas com um objectivo: quer individuais quer colectivas, permitiu o
acesso privilegiado ao universo émico em questão, abrindo as portas para a compreensão
dos modelos de representação social dos respectivos actores. Por outro lado, sobretudo no
caso das entrevistas colectivas57, foi possível confrontar diferente perspectivas e observar
o posicionamento dos actores em interacção uns com os outros, quer segundo modelos de
relacionamento político, quer hierárquico.
Por último, o recurso a histórias de vida, parcelares, de actores sociais relevantes per-
mitiu ilustrar os modos como os actores experienciam individualmente o social, e como
um percurso biográfico único e singular se cruza, ilustra ou contradiz, dinâmicas sociais
colectivas. Permitiu assim deste modo perceber que os indivíduos produzem diferentes
significados e sentidos à sua experiência histórica e à sua inserção nos processos sociais.
Deste modo, pode desde logo adiantar-se que o presente texto não pretende traçar
um modelo analítico dos processos de relacionamento entre as autoridades tradicionais
do reino do M'Balundu, quer com as autoridades estatais, quer com outros actores locais.
Existem, é verdade, dinâmicas sociais que se pretendem hegemónicas, mas a realidade
municipal é muito mais complexa e fragmentada, e extravasa largamente do âmbito dessas
dinâmicas comuns e modelares. A investigação não conseguiu dar conta da pluralidade
de dinâmicas sociais colectivas e individuais que inter-relacionam todos estes actores do
município, e muito menos pretendeu dar conta das interacções entre o local/municipal, o
provincial e o nacional. Aqui equacionaram-se apenas algumas das linhas processuais que
surgiram como mais relevantes, quer na pesquisa bibliográfica, quer durante as diferentes
fases da pesquisa de terreno.

57 No f11al do artigo surge uma ista das principais entrevista efectuadas durante as duas missões de terreno, fista que não é exaustiva e
nem esgota lodos os informantes contactados e entrevistados.

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No Reino do M'balundu

Os reinos Ovimbundu
Segundo José Redinha, as populações que actualmente se designam de Ovimbundu58
constituem o maior grupo etnolinguístico angolano, cerca de um terço do total da popu-
lação, e subdividem-se em IS subgrupos, de entre os quais de destacam os denominados
de Huambos, de Bienos e de Bailundos. Os Ovimbundu ocupam uma faixa territorial
rectangular entre o litoral e o planalto central da zona do Huambo e Bié (Redinha, 1974;
39). As origens dos Ovimbundu não são muito claras, e Gladwyn Childs fala do herói
fundador Feti, e do mito da fundação, primeiro lugar de ocupação dos Ovimbundu, num
local perto da confluência dos rios Kunene e Kunyonãmua (Childs, 1970: 241) 59 •
Os Ovimbundu possuem um imbricado sistema de parentesco, que se expressa num
modelo de dupla-descendência: patrilinear (a oluse) e matrilinear (a oluina60 ). A oluse
define actualmente o modelo de sucessão política e, deste modo, todos os cargos de au-
toridade e poder, do sekulu 61 ao ossoma62, transmitiam-se por via patrilinear. Por sua vez,
o sistema matrilinear, a oluina, definia e os modos de transmissão da propriedade e da
organização da vida económica, incluindo o comércio caravaneiro. Os clãs matrilineares
possuíam os seus próprios chefes, através do tio materno (manji a nyõho), que possuía po-
deres políticos e religiosos sobre os membros do seu ossongo63 • Por seu turno, estes chefes
dos clãs matrilineares também podiam ser macotas do assoma {idem; 58-59). Primordial-
mente, os Ovimbundu traçavam a descendência e as relações sociais predominantemente
através da oluina, ou seja através do sistema matrilinear, contudo, ultimamente é através
da oluse que se dá a descendência e a transmissão de propriedade e do poder político. Al-
guns autores referem que essa mudança está fortemente associada à influência das igrejas,
sobretudo protestantes {ArJaGo, 1999: 44).
Segundo Douglas Wheeler e Diana Christensen, os reinos Ovimbundu, que seriam
cerca de vinte e dois nos primórdios do século XX, começaram a formar-se durante o
século XVII em resultado da integração de grupos de populações Imbangala, ou Jaga,
que se deslocaram do norte e nordeste do planalto e se misturaram com populações que
já residiam na região (Wheeler e Christensen, 1973: 55). De acordo com Conceição Neto,
estas populações Imbangala estavam relacionadas com os Lunda e os Luba, e a fusão

58 Plural de Ocimbundu. A língua designa-se por Umbundu. A língua Umbundu é actualmente falada por povos que não habitam apenas
na região do planalto central, no triângulo Huambo-Ballundo-Bié, e que se estendem quer ao norte. na provlncia do Kwanza Sul. quer
ao sul, na provin<:ia da Huíla (Neto. 1997).
59 Sendo a história deste conjunto de populações obviamente um aspecto hmdamental na compreensão do objecto deste estudo, ela não
é contudo o seu pilar central, de modo que o uso da história será aqui uma ferramenta, que será sempre deficiente. na perspectiva de
um historiador.
60 Vários autores usam uma grafia diferente. trocando por exemplo ou por w. Assim. por exemploArJaGo usa olwina (ArJaGo. 1999), e
Conceição Neto usa Ekv.ikwi em vez de Ekuíkui (Neto, 1994).
61 Chefe pequeno. também dito chefe de aldeia.
62 Chefe, rei.
63 CIA matrilinear. Plural é olossongo.
NO IUINO DA TOUPEII\A. AUTORIDADES TI\ADICIONAIS DO M'BALUNOU E O UTAOO AN(iOLANO

com as populações do planalto resultou nos precursores dos actuais Ovimbundu (Neto,
1997).
Os vinte e dois reinos Ovimbundu apresentavam diferentes tipos de constituição e di-
ferente importância política e social, e na sua maioria eram constituídos somente por uma
ombala64 , unidade sociopolítica que reunia vários conjuntos de pequenas aldeias, liderada
pelo ossoma, o soberano. Cada conjunto de pequenas aldeias denominava-se de etambu,
e era chefiado por um sekulu, ou chefe de aldeia, em geral membro do clã real do ossoma,
por via patrilinear. O ossoma detinha o poder máximo, do ponto de vista político e reli-
gioso, e era coadjuvado por um conjunto de conselheiros, os macotas, constituído pelos
seus sekulu, por anciãos proeminentes do reino e membros da linhagem real do ossoma.
Os reinos mais importantes seriam os do Bié, Bailundo e Huambo65 , que pela sua
dimensão (eram constituídos por numerosos conjuntos de olumbala66 ) e posição geográ-
fica dominavam a quase totalidade do planalto central e do comércio caravaneiro com o
interior do continente. Vários olossoma, menos importantes, eram membros dos olossongo
reais do Bié, Bailundo e Huambo e dependiam, do ponto de vista político e religioso, des-
tes soberanos (Wheeler e Christensen; 58-59).

O reino da toupeira real


O reino do M'Balundu é o maior e um dos mais importantes entre os reinos Ovim-
bundu. De acordo com Gladwyn Childs, o reino do M'Balundu chegou a incorporar reinos
não-Ovimbundu e chegou a dominar até ao rio Kuanza (Childs, 1970: 246). Ao longo da
sua história, o reino do M'Balundu sofreu um conjunto de profundas influências e trans-
formações, sobretudo a partir da dominação colonial portuguesa, e mais concretamente
a partir de 1902, data da última sublevação dos Bailundos contra o domínio colonial. A
partir dessa época, o reino perdeu a sua independência e foi progressivamente submetido
à lógica político-administrativa colonial, destacando-se nesta vertente duas dimensões: a
subordinação das suas estruturas políticas ao poder administrativo colonial e a progressi-
va diminuição da base territorial do reino.
No período pré-colonial67 , a ofeka68 do M'Balundu ocupava uma vasta região do pla-
nalto central, a partir do seu centro fundador, a montanha de Halavala69 • A partir de 1902
a ofeka foi progressivamente restringida na sua base territorial e submetida à lógica das
divisões administrativas coloniais, até se confinar aos seus actuais limites, que correspon-

64 A ombala designa também o centro político e mágico-religioso onde vive o ossoma, ou seja uma espécie de capital.
65 Wheeter e Christensen denominam estes reinos de Bihe, Bailundu e Warmu. Neste texto utiliza-se a ortografia portuguesa dos reinos,
com excepção do caso do Bailundo em que se usa a denominaçêo ortográfica de M'Balundu. tal como foi referido por diversos Infor-
mantes, incluindo o actual rei Ekuikui IV, no trabalho de campo de 2004, de molde a aproximar da denominação original.
66 Plural de ombala.
67 Entendido aqui como o período anterior a 1902.
68 Termo Urmundu que significa território, nação.
69 Monte sagrado situado em pleno coração da actual vila do Bailundo, sede do município.

u I as
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dem, grosso modo, ao actual município do Bailundo e algumas regiões dos municípios
adjacentes.
Segundo a história oral local, o reino do M'Balundu foi fundado, provavelmente no
século XVI, por um caçador de nome Katiavala, que veio da região de Sumbe, ou Seles, na
actual província do Kwanza Sul. Segundo a história contada por Ekuikui IV, actual soma
inene70 :

"( ... )Antes do inicio do reinado, já existia Umbulu e o Katiavala, e as suas famílias. Foi no
tempo em que nem se conhecia a raça branca. Muito menos a arma, canhangulo. Viviam
apenas como gente, povo.( ... ) Então ele [Katiavala] foi a descendência da famllia do rei,
até o ponto da colonização portuguesa.( ... ) O reinado da Katiavala vem de Seles, donde
saíram estes reis todos. O Socassange era o pai do Katiavala. São provenientes de Seles,
província do Kwanza Sul. O objectivo da sua instalada por cá foi por causa da caça, à
procura de animais. De Seles para cá então se instalaram numa ombala chamada Ngonga.
Entretanto naquela altura devido à muita caça que conseguiam, caçavam e vendiam, con-
seguiram fazer a criação de gado bovino. Os pastores deste gado eram Katiavala e o soba
Ndalo. Naquela altura a alimentação era só na base da carne de boi. ( ... ) Katiavala não
era soba não, era pastor até. Entretanto os pastores tinham aquela necessidade de comer
carne de boi. Então naquelas circunstâncias, os dois pastores chegaram a um método para
se poder abater uma cabeça (de gado). Entretanto os dois pastores aguçaram uma vara e
introduziram no ânus de um animal. Ao tirarem aquele pau as miudezas do ventre tapa
automaticamente o ânus, e impede a evacuação e fez com que fermentasse a barriga do
animal e o boi morre. Naquela altura aqueles que pretendiam comer a carne então ficaram
satisfeitos, mas o dono do animal ficou aborrecido. Este método foi utilizado por duas ve-
zes. O dono dos animais ficou triste por não encontrar a doença que estava a matar o seu
gado. Entretanto havia um espia que foi denunciar ao dono dos bois dizendo que quem
está a criar aquela situação eram os próprios filhos da casa [Katiavala e Ndalo). Então dali
o dono dos bois [Socassange, pai de Katiavala e Ndalo] ficou tão irritado com os pastores,
então a acção do dono dos bois criou a fuga do Katiavala e do soba Ndalo. ( ... ) Nessa
altura, aqui na montanha onde nos encontramos (montanha sagrada de Halavala, onde
se encontram os túmulos de Katiavala e Ekuikui II], já se encontrava Umbulu Tchingala.
Então Katiavala achou que tinha que vir até cá para apresentar-se ao rei.( ... ) Então Katia-
vala ao dirigir-se a esta gente, aqui já existia uma camada jovem nestas gentes, e foi bem
recebido porque era visita, e perguntaram-lhe donde vinha e ele disse que vinha da ombala
Ngonga, e perguntaram-lhe de novo 'o que é que veio fazer?' e ele dizia que era caçador e
que encontrava-se naquela montanha de Sambo, bem recebido, e foi-lhe dito 'então fica lá
onde estás. Nós por cá também temos nosso caçadores e ficamos por di. Naquela altura
de caça o Katiavala sempre que caçava um animal tirava sempre uma coxa então envia-
va ao Umbulu Tchingala. Era uma oferta aos reis que se encontravam aqui. Também os
caçadores de cá quando matassem então recordavam-se da oferta que o Katiavala fazia
e então também levaram uma prenda, então foi oferecido ao Katiavala um dos braços (o
membro posterior de uma peça de caça). O Katiavala ficou pouco satisfeito e recordou-se
que sempre que ele matava um animal levava para aquela famflia uma coxa e então como é

70 ln enlrevisla com o rei Ekuikui IV, na montanha de Halavala, a 20/08/2004, EBai2004-2.


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que ao contrário em vez de trazerem a coxa trazem o braço? Para ele significou uma ofen-
sa. Então o Katiavala cria uma oportunidade, à medida que aqui se planeava uma caçada,
tendo ficado aqui apenas mulheres e crianças, Katiavala sobe até esta montanha com a
sua espingarda. As casas eram de capim, ele foi amarrando alguns feixes de capim, então
disparou o canhângulo, como na ocasião a população não conhecia a arma a população
ficaram todos um tanto ou quanto assustados e ele foi incendiando os feixes de capim.
Então daqui alguém foi ao encontro daqueles que estavam em caçada para dizer de como
o Katiavala tinha incendiado a aldeia. Então alguns caçadores suspenderam a caça e vêm
ao encontro do prejufw. O Katiavala ao dar conta de que os residentes estavam a vir ao seu
encontro então fez um segundo disparo e aumentou a chama, meteu mais capim e a chama
foi crescendo. Então os que vinham ao seu encontro já não chegam e meteram-se em fuga.
E dali correu [o Katiavala] com toda a população e fugiram. Foi quando Katiavala sobe até
aqui na montanha [instala-se), saindo do sitio onde estava. Então é dali onde começa o
reinado." (in EBai2004-2)

Nesta região existiam originalmente cinco aldeias, kimbu 71 : Halavala, Tchilapa, Ngo-
la, Ndulu e Viyé. Cada kimbu organizava-se em torno de grupos de parentes e eram poli-
ticamente independentes uns dos outros, não existindo uma organização política central.
Foi Katiavala que, ao dominá-los, deu unidade política a estes kimbu, fundando assim
o reino de M'Balundu, e fazendo-se entronizar com o titulo de Katiavala I. Pelo relato
exposto, Katiavala teria dominado essas populações pelo facto de deter uma vantagem
tecnológico-militar, pois já possuía uma espingarda, um canhângulo72 • Ao criar o reino do
M'Balundu, Katiavala introduz dois princípios fundamentais: centraliza politicamente as
aldeias e introduz um facto cultural novo, e que marca ainda na actualidade a identidade
cultural M'Balundu, o culto dos reis, através de dois cultos diferentes: o culto dos crânios
reais, guardados nos akokotos e dos corpos, guardados nos etambu 73 • Continuando no
relato do soma inene Ekuikui IV:

"Depois de se instalar aqui na montanha Katíavala mandou chamar os chefes dessas cinco
aldeias, que vieram ao encontro de Katiavala. Então Katiavala com a sua espingarda ao
ombro recebeu aquelas visitas e disse-lhes que a partir daquela altura não queria ouvir
nenhuma sentença naquelas aldeias sem que a sentença fosse resolvida apenas nas suas
mãos. Quando pensa fundar o seu próprio reino manda chamar o seu pai. Dali mandou
novamente chamar os soma dessas cinco aldeias. Então todos reunidos aqui é quando o
Katiavala diz 'a partir de hoje eu vou iniciar com o sobado: ( ... ) Katiavala mandou cavar
um buraco e mandou meter lá a cabeça de um galo, cabrito, porco, cão, boi e a cabeça de
uma pessoa. la iniciar o reinado com aquele costume.( ... ) E o Katiavala mandou os seus
homens para que apanhassem um homem, desde que estivesse a andar isolado, e trazer

71 Termo Umbundo que designa uma aldeia.


72 Oque indicia que já possuía uma cultura superior à das populações locais e mesmo contactos com estrangeiros, de onde teria obtido a
espingarda.
73 Quando morre um ossoma inene ou um assoma, a sua cabeça deve ser separada do resto do corpo, embalsamada e guardada em local
próprio, os akokotos, assim como o corpo, no etambu.
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a cabeça e deixar o corpo abandonado. Por ser uma ordem de Katiavala os seus homens
foram ao terreno e trouxeram uma cabeça e a cabeça foi depositada naquele buraco. Então
mandou tapar aquele buraco e sobre aquela campa plantou uma árvore chamada de Olum-
bi, que cresce rapidamente" (in EBai2004-2).

Ao fundar o reino, Katiavala introduz também a sua designação, a partir de um cos-


tume local que o precede, pois os homens dessa região pintavam um risco preto desde a
testa até à ponta do nariz e que designavam por ombalundu. Katiavala teria então asso-
ciado este costume local ao m'balundu, toupeira-real que tem um risco semelhante, mas
branco, passando assim a designar esta terra por M'Balundu. Segundo o relato de Augusto
Katchiopololo:

"( ... ) uma vez que o inicio do reinado já estava a crescer apareceu um ratinho que se
designa por toupeira, em Umbundu onete, aquela toupeira trazia um sinal na testa. O
Katiavala apanha aquela toupeira, pegou nela e com o sinal bate nele na testa, no peito e
no pescoço, dali recordou-se logo de Umbulu Tchingala que viviam aqui, eram eles que
viviam aqui, eram eles que tinham a tradição de um sinal preto que partia da testa até ao
nariz. Aquele sinal é que tinha o nome de M'Balundu. Dali o Katiavala achou que o nome
de Halavala seria designado de M'Balundu. O significado de M'Balundu é o seguinte, 'eu
ainda que estiver coberto por um chapéu, de boas roupas, de sapato, tenho tudo tapado
menos a testa, que é difícil ser escondidà. M'Balundu é uma coisa vista por todos. É assim
que surge o nome de M'Balundu, excluindo de uma vez por todas o nome de Halavala" (in
EBai2004-2)

A actual estrutura de poder tradicional do reino M'Balundu têm-se mantido relati-


vamente estabilizada, quanto à sua forma, desde o período pré-colonial. Ela engloba um
número significativo de escalões e de figuras de poder que, na sua globalidade enquadram
o que se denomina de autoridades tradicionais. De forma esquemática, a estrutura de
poder tradicional expressa-se segundo o seguinte esquema74:

74 Taf como na generaidade das sociedades sem escrita, as concepções da estrutura de poder variam bastante de região para região,
neste caso de ombala para ombala, e mesmo de informante para informante. Os termos de assoma vila e seku/u tmNo nem sel11l"e
são mencionados. Por contra, alguns olossoma grandes, ou seja ill'90flantes e com vasto território e população, designavam-se a si
próprios como assoma inene, precisamente para demarcarem a diferença com outros olossoma menos importantes.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

OSSOMA INENE
(rei, soma grande)
c) ELENGO

o~ c) ELENGO

_[]_
OSSOMA. VITITO
(soma pequeno)
c) ELENGO

_[]_
SEKULO INENE
(chefe de kimbu, aldeia)

_[]_
SEKULO VITITO
(representante de um bairro ou família)

O processo de sucessão nos cargos de ossoma inene e ossoma é hereditário, mas ao


longo da história têm vindo a sofrer progressivas alterações. No período pré-colonial o
processo de sucessão era eminentemente matrilinear. O soberano escolhia ainda em vida
o seu sucessor que, em geral seria o filho primogénito da irmã mais velha. Contudo, o so-
berano podia ainda optar por outras escolhas, tais como um irmão, ou até um tio, irmão
da mãe. No entanto, desde o período caravaneiro que o sistema tem vindo a transformar-
se15 passando progressivamente a patrilinear.
Na actualidade o sistema é predominantemente patrilinear, recaindo a escolha num
dos filhos do falecido ossoma, mas existem fortes elementos de bilateral idade, uma vez
que os filhos das irmãs não estão completamente excluídos da sucessão. Como refere o
ossoma de Chijamba, Jino Kaiangula76 , "antigamente a sucessão era mais para o lado do
sobrinho. Começou a passar mais para o lado dos filhos, agora é mais para o lado dos
filhos, ou pelo filho de um irmão" (in EBai2004-4). Por outro lado, na actualidade ainda
se mantém a prerrogativa do ossoma escolher ainda em vida o seu sucessor, como refere
o ossoma de Chilala, " antes de morrer o soba já indica 'se eu morrer vai o fulano: mesmo

75 ~ito provavelmente pela influência das rrissões protestantes e católicas.


76 ln entrevista realizada com o ossoma Jino Kaiangula, da ombala de Chijamba, da comuna de Luvemba, a 3110812004, EB!i.2004-4.

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VOZES DO UNIVERSO lt.Uit.AL. lt.EESCII.EVENDO O ESTADO EM Áflt.ICA

dentro da famílià' (in EBai2007-08).


Em raras excepções o sistema tradicional de sucessão permite que seja nomeado o
esposo de um irmã do falecido ossoma. Neste caso o eleito recebe o título de handanga, e
na prática governa em nome da esposa. Em qualquer dos casos a sucessão recai sempre
dentro de um elemento do kukululu 77 real, que tem como antepassado fundador Katiavala.
No entanto, na prática e tal como acontece noutros exemplos etnográficos78, no processo
de sucessão entra em jogo um conjunto de factores determinantes: a intervenção do mweka-
lia, que em certas olumbala nomeia o futuro sucessor; seguindo-se a consultado ocimbanda 79
nos akokoto aos espíritos dos falecidos olossoma; e a aprovação final do elengo. Finalmen-
te, o rei tem que aprovar a escolha do futuro ossoma.
Por sua vez, o cargo de sékulu, ao contrário dos olossoma, não é herdado mas sim
eleito pelos homens velhos do kimbu. Segundo o actual rei Ekuikui IV, "o poder do sékulu
não passa por uma eleição mas acontece o seguinte, numa aldeia as pessoas conhecem-se
e escolhem alguém que tenha capacidade para disciplinar aquela aldeia. Mas não é he-
reditário.( ... ) Na morte de um sékulu os mais velhos da aldeia reúnem e nomeiam um
outro:' (in EBai2004-2)
A semelhança de outros contextos etnográficos, como no caso Ndau de Moçambique,
existem variâncias regionais significativas no sistema de sucessão. Assim, por exemplo na
ombala de Lunge, segundo o ossoma Adolfo Chitoma80 , a sucessão não pode recair num
dos filhos do falecido ossoma, mas deve passar para uma das casas reais, epata lionjo81 , de
um dos seus irmãos, numa espécie de "sistema de alternância de casas reais", pois como
afirma o ossoma, "não pode passar no filho. Eu quando falecer não pode ser na minha
famüia, tem que ser noutra. Esta [a do ossoma] tem que esperar. Passar dois sobas, ou
assim. Quanto então vão lembrar da minha parte e escolher outra vez na minha família.
Só assim" (in EBai2004-6).
A lista dos ossoma inene, ou seja de soberanos do reino do M'Balundu, desde o fun-
dador até à actualidade, é a seguinte82:

1- Katiavala I, (cerca de 1700 (Childs, 1970: 245))


2 - Jahulo I, (cerca de 1720 (Childs, 1970: 245))
3 - Somandulo, (s/d)

77 Oequivalente a uma linhagem. Grupo fundado a partir da 4• geração ascendente. e que respeita a bilateralidade do sistema, pois quer
a inha materna quer a paterna estão representadas (in EBai2004-8).
78 Vide o exei11Jio dos vaNdau, (cf. Florêncio, 2008. 2005, 2003, 2002 a. 2002b).
79 Espécie de curandeifo.adivinh<Hllédium, e a quem os portugueses chamavam quimbandeiro, ou quimbanda, nomes muito correntes na
actuaidade.
80 ln entrevista realzada com o assoma Adolfo Chitoma, da ombala de lunge, na sede da comuna de Lunge, a 0110912004, EBai2004-6.
81 Que pode significar 'lamifia da casa", e que segundo o actual ossoma inene representa o grupo formado por um homem e seus filhos e
fillas (in EBai2004-8).
82 Dados, nomes e ortografia obtidos na primeira visita ao rei Ekuikui N. em 2004, e que foram transcritos tal corno constam da istagem
oficial fornecida pelo actual soberano do Bailundo. Neste sentido. mantêm-se a grafia ofiCial dos nomes, que deve resuttar de algum tipo
de aportuguesamento, corno no caso de Ekuikui. Confrontar com o nome original de Ekwkllooi, segundo Conceição Neto (Neto, 1994).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIOAOES 1"1\AOICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTAOO ANGOLANO

4 - Tchingi I, (1774-1776)
5 - Tchingi II, (Tchiliva Banbangulu, 1778)
6 - Ekuikui I, {1780)
7 - Numa I, {s/d)
8- Hundungulu I, (s/d)
9 - Tchissende I, {s/d)
10- Junjulu, (s/d)
11 - Ngungi, (s/d)
12- Chivukuvuku Chama, (Tchongonga, s/d)
13- Utondosi, (1818-1832)
14- Bungi, {1833-1842)
15- Bongue, (1842-1861)
16- Tchissende II, (1816-1869)
17- Vassovava, (1869-1872)
18- Katiavala II, (1872-1875)
19- Ekongoliohombo, (1875-1876)
20- Ekuikui II, (1876-1890)*
21 -Numa II, (1890-1892)**
22- Morna, (1895-1896)
23- Kangovi, (1897-1898)
24- Hundungulu II, (1898-1900)
25- Kalandula, (1900-1902)
26- Mutu-Ya-Kevela, (1902-1903)***
27- Tchissende III, (1904-1911)
28 - Kandimba Jahulu, (1911-1935)
29- Mussitu, {1935-1938)
30- Tchinendele, (1938-1948)
31- Filipe Kapoko, (1948-1970)
32- Félix Numa, (1970-1982)
33- Tchongolola, (José Maria Pessela, 1982-1985)
34 - Ekuikui III, (Manuel da Costa, 1985-1996)
35- Ekuikui IV, (Augusto Katchitiopololo, 2002 ... )****83

Como se pode constatar no organigrama da estrutura de poder, em cada nível de che-


fia, excepção para os olossékulu, existe um grupo de conselheiros, denominado de elengo84

83 Notas: • faleceu em 1893; .. estas datas não parecem estar correctas. ou houve um hiato entre 1892 e 1895; ... n6o foi rei mas sim
vice-rei: .... quando faleceu Ekuikui III. em 1996, o município do Bailundo estava ocupado pela UNITA, foi então nomeado como rei
Utondossi 11. que no entanto segundo algumas informações nllo chegou a ser entronizado. Quando a Unita abandonou o municlplo, em
1999, o rei Utondossi 11 acompanhou a retirada do movimento. Oactual rei, Ekuíkui IV, é rnernbro do CC do UPI.A a chegou eo municlpio
em 2001 tendo sido nomeado como rei pela administraçllo municipal em 2002. e entronizado posteriormente pelo elengo.
84 linda Heyv.ood denonina este conselho de corte e dá-lhe o nome de corte lmpungs (Heyv.ood. 1998:155).

90 I 91
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

, responsável por assessorar e aconselhar os detentores desse cargo. Este grupo é composto
por um vasto conjunto de conselheiros, cada qual com as suas atribuições específicas, de-
veres e responsabilidades. Apesar da composição do elengo variar de ombala para ombala,
em geral é composto pelos seguintes elementos85:

Mwekalia (figura maior do elengo, pode propor a nomeação e a destituição do assoma;


pode substitui-lo em certas circunstâncias),
Epalanga (ajudante, pode ser um irmão do assoma e viver na ombala),
Kaley (atende às preocupações e questões colocadas pela população e apresenta-as ao
assoma),
Nganbole (executa um papel importante nos julgamentos pois é ele quem profere a
"última palavra" ou a "sentença final"),
Komandanti (conselheiro; sem papel específico),
Tchilala (coordena o embelezamento e limpeza dos etambu, unta as visitas da
ombala),
Tchikola (auxiliar do Tchilala),
Tchikakula (é o responsável pela recolha das multas pagas nos julgamentos tradicio-
nais e as guarda na ombala),
Kesenje (recebe as visitas na ombala),
Henjengo (serve como polícia nos julgamentos tradicionais),
Utchilã (espécie de "animador" do assoma),
Ndalu (responsável pela manutenção do fogo sagrado da ombala),
Tchitonga (responsável pela manutenção do ondjango, espécie de "casa dos homens"
da ombala),
Chindako (conselheiro; sem papel específico),
Kassoma (conselheiro; sem papel específico; em geral um irmão do assoma),
Sassoma (igual ao Kassoma),
Mwetchalo (guarda-costas do assoma),
Nunume (recebe as ordens do assoma),
Sunguhanga (nos julgamentos tradicionais nomeia as milícias responsáveis pela de-
tenção do culpado).

Além do elengo, os olossoma, e sobretudo o assoma inene, também se rodeiam de


um outro grupo, constituído pelas suas esposas. As rainhas, como também por vezes é
designado este conjunto de esposas dos soberanos, desempenham igualmente um papel
relevante na estrutura de poder tradicional. A primeira esposa do assoma inene, a inakulu,
desempenha um papel de grande relevo político no aconselhamento, e é verdadeiramente

85 Esta ista. que está inscrita num registo do próprio rei Ekuikui IV, constitui assim uma espécie de ista oficial. Informações obtidas na
entrevista com o ossoma ilene Ekuikui W, in EBai2004-2. Em 2007 o elengo de Ekuikui W ainda não estava todo completo e estas
funções ainda não tinham sido todas preenchidas.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO 11'1ALUNOU E O ESTADO ANGOLANO

a rainha. O ossoma inene possui ainda outras esposas, que desempenham tarefas especi-
ficas, mas sem relevância política, tais como a nangandala, cuja função principal é a de
transportar os pertences do ossoma86; a siya, que acompanha o ossoma inene em todas as
suas actividades; a mbaravela e a chiwi-chipembe, cujas funções principais são a prepara-
ção das refeições na ombala e a acomodação das visitas.
Segundo o missionário Daniel Hastings, que esteve no planalto central em missão, e
que escreveu uma tese de doutoramento em 1933, os soberanos Ovimbundu, o ossoma
inene, é coadjuvado na sua entouraje por quatro grupos de actores sociais e políticos com
enorme relevância no reino. O primeiro grupo é constituído pelos príncipes de sangue
real e por alguns olossoma importantes, que ficam na ombala real como conselheiros do
rei. O segundo grupo, o elengo, verdadeiramente dito, é composto por um conjunto de
"mais velhos" conselheiros, e é o grupo mais importante, que controla realmente o poder
do soberano, podendo mesmo destituí-lo. O terceiro grupo, segundo Daniel Hastings, é
composto pelas esposas do ossoma inene, e exerce uma grande influência sobre o rei, e
também assumem papeis de conselheiras, sobretudo em matérias que dizem respeito ao
universo feminino. Finalmente, o quarto grupo, e o menos importante, é constituído por
jovens mensageiros, guardas e servidores do soberano (Hastings, 1933, 54).
Por sua vez, Daniel Hastings fornece uma longa e mais detalhada lista dos membros
e funções de cada um dos elementos dos referidos quatro grupos de poder em torno do
ossoma inene, que importa reter, pois ela resulta da sua observação directa no reino, na dé-
cada de 1930, e permite comparar com as transformações actuais, expressas na lista oficial
de Ekukui IV. Deste modo, este autor começa logo por explicar que o rei tem o título de
Os oma ou Nala Njamba 87 (Hastings, 1933:55). A seguir, Daniel Hastings elabora a seguinte
lista e funções de cada elemento do primeiro grupo, príncipes e olossoma importantes
(Hastings, 1933: 55-60):

Epalanga li Uluvulu (uluvulu, significa planície): sucessor do trono. Raramente é um


filho do soberano, pode ser um irmão, sobrinho, primo, ou até um parente mais
afastado. Uma vez escolhido, o epalanga é colocado como ossoma numa ombala,
para ganhar experiência de governação.
Soma Kesenje ("a pedra do rei"): um dos principais conselheiros.
Kasoma ("pequeno rei"): pode suceder ao epalanga na governação da ombala, quando
o epalanga for entronizado como rei.
Sunguahanga ("ajudante dependente"): conselheiro jurídico nos julgamentos.
Nunda ('eu venho"): irmão mais novo do soberano, que anda sempre junto dele, para
tratar dos seus assuntos pessoais. Pode representar o rei quando este se ausenta.
Henjengo Yepata ("guardião da casa real"): irmão do rei. ~ ele quem toma conta dos
assuntos da "família" real, em representação do soberano.

86 Para o efeito é utilizado um cesto especifico que se denomina precisamente de nganda/a.


87 Na/a, signiftea Senhor, Njamba, elefante.

92 1 93
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

Henjengo yombala ("guardião da capital"): irmão do rei. Vive na corte para tratar e
guardar o rei.
Chuvali ("o segundo"): conselheiro, que pode vir a vestir o manto do rei, mas sem
aspirações ao trono.
Chinjamba ("do elefante"): filho do rei. Governa uma ombala.
Chitekulu ("o que alimenta"): responsável pela alimentação da corte.
Ukuahamba ("pequeno cesto"): em geral o filho mais velho do rei. Depois de acumu-
lar poder pode ser alcandorado à posição de Chijamba.
Cativa ("o que une"): conselheiro que vive na corte e ajuda o rei a resolver problemas.
Kandona ("pequena dama"): conselheiro que assiste o epalanga.
Nongandu ("mãe do crocodilo"): conselheiro que assiste o epalanga.
Ekulika (" o solitário"): conselheiro do rei, bravo e leal.
Gueyaomanu ("visitantes que chegam"): conselheiro que avisa o rei da chegada de
visitantes na ombala.
Njambakandi ("a perna de elefante"): mensageiro e que faz "recados" ao rei.
Lumbungululu ("estrelas"): conselheiro e guardião do rei.
Chatulika ("o que torna magnifico"): conselheiro e guardião do rei.
Lucamba ("nunca faltá'): previne que a na ombala nunca falta comida e protecção.
Demba ("poderosô'): vela para que o poder do rei num esmoreça.
Chissanga ("o que recebe"): conselheiro que obteve um lugar na corte e que deve gra-
tidão ao rei.
Chikuma : observador das fronteiras do reino.
Chitiva ("coração destroçado"): deve reportar ao soberano qualquer sublevação ou
problemas.
Kanjaya ("o prudente"): chefe de uma ombala, ou região, onde ocorreu uma subleva-
ção.
Katoto ("o calmô'): tem como função manter a calma na corte e que não se causem
desagravos ao rei.
Chikopa ("o magrô'): a sua função é recordar que todas as coisas possuem uma força
interior.
Genda ("aquele que anda"): significa que se um ossoma sente que tem problemas, não
se deve sentar mas sim ir ter com o rei e contar-lhe os problemas.
Kalunga ("o discretô'): nome que pode ser atribuído a alguém que possa vir a ser
nomeado ossoma.
Chitikingi ("o cautelosô'): aquele que usa o nome, e todos os membros da ombala
devem comportar-se de modo a não desagradar ao rei.
Gandu ("crocodilo"): nome que pode ser atribuído a alguém que não tem uma função
específica, mas que deve ficar à espera de ordens do rei.
Chikumbi ("grilhetas"): é um nome atribuído para que todos os que têm cargos de
NO ltEINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TltADICIONAIS DO M'BALUNOU E O ES1'ADO ANGOLANO

poder para que se recordem que devem governar bem, e não ficarem "presos nas
suas próprias grilhetas':
Bonga ("campos incultos"): é um nome para lembrar que não se devem deixar campos
por cultivar.

No que diz respeito ao elengo do ossoma inene, grupo que Daniel Hastings enuncia
como de importância capital, pois são elementos que vivem com o rei na ombala real, e
que, apesar de nunca aspirarem ao lugar de rei, contudo são eles que decidem e elegem o
sucessor, ou que podem destituir um ossoma inene. O autor descreve os seguintes títulos e
funções do elengo (Hastings, 1933: 61-65):

Mwekalia ("o Dono não deve comer"): é primeiro representante e porta-voz da po-
pulação do reino. Todos os problemas, e demandas são-lhe reportados primeira-
mente antes de chegarem ao rei. Sobre estas questões ele deve formular opiniões
e julgamentos, apresentá-los ao rei e velar para que seja feita justiça. A sua im-
portância é tal que deve prevenir o rei de cometer excessos, diz Daniel Hastings
"should the chief be angry and start out revenge, this man willlie in the path so that
the chief dare not pass over is body. That would be like passing over the dead bodies
of all his people, and might lead to revolt and deposition" (Hastings, 1933: 61). A
sucessão ao cargo é efectuada pela linha matrilinear, a oluina, ou seja, só um filho
de uma irmã pode suceder no cargo.
Galamboli ("pedras pequenas"): é o mais "velho dos mais velhos': e que também serve
de assistente do mwekalia.
Essongo ("líder"): é o comandante dos exércitos.
Chinduli ("Protege"): guarda e protege os segredos mais profundos da corte.

De acordo com Daniel Hastings, estes quatro personagens são os quatro mais im-
portantes do elengo, e encarnam o poder e a moral do reino, e as suas origens. Assim, o
mwekalia e o Galamboli representam os primeiros Ovimbundu e donos da terra. O es-
songo é de origem escrava e representa as populações escravizadas pelos Ovimbundu, e o
chinduli, representa um grupo não Umbundu e que se juntou e incorporou pacificamente
neste povo. Segundo o autor, quer o rei quer os outros elementos reais devem governar
de acordo com estes personagens (Hastings, 1933: 62). De notar que na lista oficial do
rei Ekuikui IV destes quatro só surge referenciado o mwekalia, o que pode significar que
as outras personagens foram desaparecendo ao longo dos últimos 70 anos da história do
reino. Por outro lado, essa lista oficial do elengo inclui, na actualidade, elementos do pri-
meiro grupo de Daniel Hastings, como o epalanga, soma kesenje, kasoma, sunsguahanga
e henjengo, por exemplo.
Outros membros deste grupo são:

94 1 9s
VOZES DO UNIVERSO II.UII.AL. II.EESCII.EVENDO O ESTADO EM AFII.ICA

Munene ("Pessoa poderosa"): vive afastado da ombala real, e é ele que é chamado a de-
por o ossoma inene se o grupo constituído pelo mwekalia, o galamboli, o essongo
e o chinduli assim o decidirem.
Kapoko ('~cião''): é um assistente do mwekalia, e o seu nome simboliza "aquele que
sempre foi fiel desde o princípio':
Lusenje ("O chão do tribunal"): vela pela manutenção do espaço onde se realizam as
sessões de tribunal. Durante a sessão é ele quem chama as diversas testemunhas
do caso.
Lumbo ("Vedação"): é o responsável pela manutenção das vedações e das portas da
ombala e o seu nome significa a protecção que o reina oferece ao soberano.
Donbe ("Peixe.gato"): o seu nome significa astúcia, que previne que aconteça alguma
maldade na ombala.
Chambela ('~quele que coloca coberturas de colmo"): é o encarregado das coberturas
de colmo das casas da ombala.
Chimanu ("Muro''): é o encarregado dos muros da ombala.
Mueleuvelo ("Porteiro''): é o encarregado das portas da ombala.
Bumba ("Inspector sanitário''): é assistente do essongo, a sua principal função é velar
para que a ombala esteja sempre limpa e em condições.
Chitungu (""Fardo"): a sua principal função e verificar se os casos que são apresenta-
dos ao soberano estão bem correlacionados.
Chico ("Fogo de salà'): vela para que os fogos da ombala nunca se apaguem.
Muesanjala ("Guardião da aldeià'): é o responsável pela parte da aldeia que fica no
exterior da ombala, e onde vive a população.
Chiliasoko ("Nunca faltà'):responsável pelo abastecimento em comida da ombala.
Chitonga ("Troncos para fogueirà'): responsável pelo abastecimento de lenha para as
fogueiras da ombala.
Kongengele ("Sacerdote"): de origem escrava, este tem como funções organizar a guer-
ra sagrada, chamada de olonunga.
Kangende ("Espantalho"): tem como função manter os "mexericos" fora da ombala.
Muefunda ("A pessoa sensata"): é um dos "advogados" da ombala, e a sua função é
prevenir que não surjam casos que possam trazer algum tipo de vergonha social,
como acusações contra o sogro ou a sogra.
Beu ("Tartaruga"): é o elemento mais de grau mais inferior do elengo. O seu nome
significa que cada um deve ficar onde está até ser promovido a um cargo superior.

Parece que se pode depreender da narrativa de Daniel Hastings, que há época em que
o missionário visitou o reino ainda existiam um conjunto de cargos no elengo que, entre-
tanto, foram deixando de existir, ou de fazer sentido, como por exemplo o de kongengele,
pois já não existe, nem existiam à época, guerras sagradas entre grupos rivais Ovimbundu.
Por outro lado, e comparando com a estrutura actual do elengo, segundo a descrição de
NO JI.EINO DA TOUPEIJI.A. AUTOJI.IDADES TJI.ADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

Ekuikui IV, nota-se que os actuais elengo não somente reduziram a sua constituição, como
mesclam elementos e funções que, segundo Daniel Hastings, no passado eram constituti-
vas de grupos diferenciados.
Outro grupo referenciado pelo missionário é o das esposas oficiais do soberano. Tam-
bém este grupo apresenta uma hierarquia e uma diferenciação de funções. Deste modo, e
segundo Daniel Hastings, pode enunciar-se as seguintes esposas, e suas funções:

Inikulu 88 ("A Mãe dos mais velhos"): é a rainha, apesar de, segundo Daniel Hastings,
poder não ser a primeira esposa do soberano. A rainha tem que ser de origem es-
crava. É ela que pode atender certos casos na ausência do soberano. É a única que
tem um lugar/cadeira de trono, ao lado do rei, e que se pode sentar lá, e quando o
faz todas as pessoas presentes a devem saudar e prestar homenagem, aplaudindo
na forma tradicional.
Chipembe ("Escárnio''): é a segunda esposa na hierarquia, e não pode ser de origem
escrava. Ajuda a entreter e a receber as visitas na ombala.
Bavela ("Seguindo em frente"): é a principal assistente da chipembe e pode suceder-
lhe.
Namakama ("Mãe do leito''): é a amiga e a conselheira das esposas mais jovens. Tam-
bém actua como intermediária entre o soberano e as jovens esposas.
Kapitango ("Líder"): é ela quem providencia pelas refeições. É igualmente ela quem
vigia as andanças das mulheres da ombala, à medida que saem ou entram.
Muesaka Yosoma ("Provedora chefe"): é a cozinheira do soberano. Segundo Daniel
Hastings, "A chief can eat only what is prepared by special persons because of
certain taboos. This woman, who is menseless, is therefore set aside by Elders as
his cook" (Hastings, 1933:67).
Dumbila ("Refugio"): é a esposa que guarda a "pedra do refúgio~ ou seja, a pedra onde
se sentam todos aqueles que se sentem em dificuldades. Toma conta igualmente
das mulheres que se sentam nessa pedra simbólica.
Syia ("Eu não venho"): é a esposa que ajuda na preparação de novos fogos reais sagra-
dos, e que prepara o banho matinal do soberano.
Quanza ("Cão do caçador"): é a esposa que prepara a bebida tradicional dos caçado-
res.
Chupuku Covita ("Divindade da guerra"): esta esposa presta assistência à Quanza
quando se realiza uma caçada. Quando existe uma guerra estes dois papéis in-
vertem-se.

Segundo Daniel Hastings, as figuras de Syia, Quanza e Chupuku Covita, dizem res-
peito a esposas do soberano que estão possuídas por espíritos e, por conseguinte desem-
penham funções cerimoniais mas não devem ter filhos. Ainda segundo o autor, na ombala
88 Segundo as informações recolhidas, a grafia de Daniel Hastings está incorrecta pois o titulo é inakuAJ.
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM AFRICA

habitam muitas outras mulheres, que podem ser esposas do soberano, mas que não têm
funções, nem nomes específicos (Hastings, 1933:68). De notar que, em relação à descrição
feita pelo actual Ekuikui IV, certos nomes e funções de esposas reais não estão na actu-
alidade em uso, pois na lista do actual ossoma inene só surge a inakulu, a nangandala, a
siya, a mbaravela e a chiwi-chipembe. Por sua vez, a nangandala não é referida por Daniel
Hastings.
Na obra deste missionário ainda consta o grupo dos servidores do ossoma. Trata-se
de um grupo numeroso de servidores, mensageiros, e demais, dos quais Daniel Hastings
destaca os seguintes cargos e funções:

Cilala: que recebe instruções do soberano e as reencaminha aos outros servidores.


Kapitango: que tem a seu cargos as ramas reais de guerra.
Citali: que supervisiona as mulheres da ombala real.
Ukuepangu: é o porteiro do soberano, este só transpõe uma porta depois do ukuepan-
gu a abrir.
Cilomboconoma: transporta o sabre real em certas ocasiões.
Comandante: nome de origem portuguesa, e que designa um servidor com a missão
de entregar mensagens importantes.
Kalufele: tem como função propor soluções para certos problemas que aborrecem o
soberano.
Kapu kapu: dirige os trabalhos de um grupo de pessoas.
Ukuambonge: guarda o celeiro real.
!anjo: espécie de "ouvido" do soberano. Que lhe conta o que ouviu dentro e fora da
ombala.
Ciyokola: é um mensageiro especializado em colectar impostos e tributos devidos ao
soberano.
Ukuaciyao: ajuda as mulheres nos trabalhos culinários.
Lembuasoma: mensageiro.
Cimanu: guarda do soberano.
Katombela: representa o soberano nas cerimónias fúnebres dos príncipes que morrem
em olombala exteriores e afastadas.
Lungualula: vai na dianteira da caravana real a anunciar a chegada do soberano.
Cikulo: viaja ao lado do soberano como protector.
Cilume: servidor pessoal do soberano que tem como função verificar e manter o man-
to real em condições apropriadas.
Cikuakula: mensageiro que "leva o medo" onde quer que seja enviado, no fundo re-
presenta o medo que se deve ter do soberano.
Cisaselo: trata das peças de carne que são oferecidas ao soberano, como tributo ou
oferenda, dividindo-a em partes.
Soma Keyanja: escolha as partes que são devidas ao soberano. Também zela pelos
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNOU E O éS'tAOO ANGOLANO

trabalhos nas lavras do soberano.


Kandamba: zela por todas as necessidades dos soberanos89 •

Esta profusão de grupos sociais em torno do ossoma inene, e de cargos e funções na


ombala real, e que se reproduzem em cada ossoma e em cada ombala, consubstanciam um
reino profundamente complexo e organizado, centralizado, é verdade, mas também muito
institucionalizado, no qual o poder do ossoma inene, simboliza a liderança da estrutura
de poder, mas na qual esse poder deve ser repartido e redistribuído pelos escalões e figu-
ras imediatamente inferiores, nomeadamente pelos elementos do elengo, mas igualmente
entre o grupo de príncipes, de esposas e de servidores, numa espécie de delegação de po-
deres em cascata, que controla tendências autocráticas dos soberanos e estabelece um pro-
cesso de politicai accountability entre os vários detentores, segundo a expressão de John
Lonsdale, que defende que "accountability organises powerful individuais by obliging them
to be collectively responsible for the social acceptability of their power" (Lonsdale, 1986: 136).
Numa perspectiva mais ampla do poder político do soberano, este caracteriza-se pelo
entroncamento de várias componentes: pela força da tradição; pelo livre arbítrio do so-
berano, a quem a tradição outorga legitimidade de decisão, assim como define os limites
das suas ordenações, e pelo seu carisma pessoal (Weber, 1944: 181). Significando que o
soberano tem legitimidade para distribuir, ordenar ou punir, segundo a sua própria von-
tade pessoal. Mas também pelo seu papel e lugar mágico-religioso. No dizer de Georges
Balandier, " os soberanos são os parentes, os homólogos ou os mediadores dos deuses" (Ba-
landier, 1987: 105), nesse sentido, a sacralização do poder político do soberano constituí
um importante aspecto da sua legitimidade, e o garante da continuidade reprodutiva dos
homens e das coisas, pelo lugar de representação e mediação dos homens com as suas
divindades que o soberano detêm e manipula.
Linda Heywood reforça esta ideia, muito comum às ideologias tradicionais africa-
nas sobre o poder político, defendendo que a ideologia tradicional do poder político
Ovimbundu continha uma espécie de balanço entre duas tendências contraditórias: "one
notion concerned a constitutional principie, which define power as a balance between the
consultative element (the blacksmith king or spokesman concept), and the authoritarian ele-
ment (the hunter king concept). The other notion concerned the supranatural, expressed as
magic and withcraft" (Heywood, 1998: 149). Na verdade, esta expressão da autora coloca
a figura do soberano entre a concepção do rei conquistador/caçador, em geral o funda-
dor, como Katiavala, e a figura do rei reprodutor e consolidador do reino, no caso do
M'Balundu perfeitamente identificado na figura do ossoma inene Ekuikui II, que reinou
entre 1876-1890, e que simboliza a fertilidade e a prosperidade do comércio (Neto, 1994)90

89 Daniel Hastings ainda caracleríza mais alguns cargos e funções, contudo neste texto adiantam-se somente os restantes nomes de
cargos: Tone, Cipule, Ukuancla. Ukuavate, Ukuelonga, Ukuasapi, Ukuekopo. Soke, Cliye, Kapitemolo. Lutucufll, Ukuakukula, Kassongo
Ye~mba, Kaleikailslcu/u, Ukuetambo, Dumba Kepila, Citue ca Huvi, Buta, Kapila e Chandala (Hastlngs, 1933:71-73).

90 Foi no reinado de Elwikui 11 que as nissões protestante e cat6llca se instalaram no BaiiJndo. Oreinado de Ekuikui 11 é ainda actualmente
memorizado corno de prosperidade e abastança, e de diplomacia faca à chegada dos nissionários estrangeiros. Contudo, como de-
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

. No entanto, Linda Heywood defende que a noção de soberano prevalecente entre os


Ovimbundu em geral, quer no final do século XIXC quer mesmo durante as primeiras dé-
cadas do século XX, era a do rei-conquistador-caçador, pois segundo ela "Ovimbundu ru-
lers seemed to rely on the hunter imagery to support their claims to leadership" (idem: 152)91 •
O soberano, ossoma olossoma, enquanto figura superior da hierarquia entrona em
si os poderes supremos, jurídico, legislativo, executivo, militar e, muito em especial, os
poderes mágico-religiosos. A sua figura é especialmente venerada e temida, como repre-
sentante vivo da linha dos falecidos olossoma. Ele representa essa continuidade da primor-
dialidade do poder dos antepassados na ofeka, e a continuidade reprodutiva da sociedade.
Deste modo, e apesar do poder do soberano do M'Balundu não ser exercido de forma
autocrática, pois na prática é sempre controlado pelo elengo, dependendo igualmente do
carisma e da idiossincrasia do ossoma inene reinante, contudo, a estrutura e o exercício do
poder é fortemente centralizado, culminando na figura do soberano real.
O soberano do Bailundo possui um conjunto de símbolos de poder que consubstan-
ciam o seu estatuto e lugar social. Os mais importantes são o bastão, assapata; o banco,
otchalo; a zagaia, horjonje; e a catana, omoku.
Sobre segunda grande figura do poder político tradicional, no seio do elengo, existe
uma forte disparidade de opiniões. Por exemplo Fola Soremekun defende que a segunda
figura da corte é o epalanga (Soremekun, 1965: 9), e o próprio Daniel Hastings define-o
como o sucessor do ossoma. No entanto, num certo número de olumbala o epalanga não
pode suceder ao ossoma, como defende o ossoma de Chilala, segundo o qual "O epalanga
não pode suceder não. O epalanga também tem a sua linha, que é mesmo de epalanga"
(in EBai2007-08).
A maioria dos informantes defende que é o mwekalia a segunda figura mais impor-
tante do elengo e que detêm mesmo um poder maior que o do ossoma inene, uma vez que
o pode destituir, ou pelo menos propor a sua destituição ao conselho do elengo. Por outro
lado, o mwekalia, além de ser o principal conselheiro do ossoma inene, é ele quem propõe
a nomeação do sucessor aquando do processo de sucessão, como afirma o rei Ekuikui IV,
"o mwekalia é muito importante porque no caso da morte de um soba é ele que se respon-
sabiliza por organizar o óbito, e pode nomear ou propor o futuro soma, ou alguém para
substituir o soma': (in EBai2004-2).

monstra Conceição Neto, não se pode esquecer as rivaHdades mantidas neste periodo com outros reinos Ovimbundu, nomeadamente
com o Bié, e a aiança de Ekuikui 11 com os portugueses (Neto, 1994).
91 A autora fala da existência de (31ibaismo ritual entre o Ovimbundu, no processo de entronização de um novo rei e de que este devia
'comer o seu antecessor", diz mesmo que estes rituais simbólicos continuaram depois da conquista portuguesa, em 1902, e referindo-se
a Wilfred Hambly, este refere que o saorificio de animais veio então substituir o sacrifício humano (Hey\\OO(l. 1998: 154).
NO II.EINO DA TOUPEIRA. AUTOII.IDAOES TII.ADICIONAIS 00 M'BALUNOU E O ESTADO ANGOLANO

O Reino do M'balundu e a Administraçio Colonial

Revoltas e alianças dos reinos do planalto


Até aos finais do século XVIII a presença da administração portuguesa nesta região
era praticamente inexistente, restringindo-se à região costeira, onde existiam algumas
fortificações, tais como a de Benguela Velha (mais tarde denominada Porto Amboím)
e a de Novo Redondo (actualmente Ngunza}, fundada em 1768/69 por Sousa Coutinho
(Pélissier, 1986, vol. I; 62). Saliente-se que na década de trinta do século XIX a principal
presença portuguesa concentrava-se na região da Catumbela (idem; 63). Apesar da fraca
presença da autoridade portuguesa nesta região, contudo os portugueses já tinham esta-
belecido, desde o século XVII, fortes relações comerciais com o hinterland das terras altas
do planalto central, conhecidas pela designação de "terras do Nano~ Vários mercadores
portugueses já se tinham estabelecido no planalto central, desenvolvendo relações co-
merciais com os Ovimbundu, pelo menos desde o século XVII (Neto, 2000). Neste perí-
odo, os Ovimbundu tinham já desenvolvido um forte sentido comercial, controlando e
organizando caravanas comerciais que ligavam o interior do continente com os centros
comerciais costeiros.
As relações entre as autoridades portuguesas e os Ovimbundu foram sempre extre-
mamente ambíguas, marcadas ora por alianças precárias com certos olossoma, ora, so-
bretudo, por uma enorme conflitualidade, bem documentada para o período a partir de
finais do século XVIII. Nesse capítulo, o século XIX foi farto em guerras entre os Ovim-
bundu e as autoridades portuguesas, denominadas de "guerras do NanO. Os portugueses
procuravam incessantemente controlar os olossoma Ovimbundu, para assim controla-
rem o comércio caravaneiro com o interior do continente africano. No caso do reino do
M'Balundu, as autoridades portuguesas lançaram um forte ataque contra este reino entre
1874 e 1876, obrigando o ossoma inene a prestar vassalagem às autoridades portuguesas,
estatuto que na prática não tinha qualquer expressividade pois o reino continuou pratica-
mente independente (Pélissier, 1986, vol. I; 69).
As autoridades portuguesas estabeleciam constantes alianças com os olossoma Ovim-
bundu no sentido de os utilizarem, mesmo que temporariamente, uns contra os ou-
tros, numa clara demonstração da política do "dividir para reinar': Assim sucedeu entre
1852/53 e entre 1863 e 1867, quando populações Seles se revoltaram e atacaram algumas
aldeias portuguesas e as autoridades socorreram-se da ajuda dos olossoma do Huambo,
Bailundo e Galanga para aplacar as revoltas (Pélissier, 1986, vol. I; 166-167}. Contudo, a
rivalidade entre os reinos Ovimbundu e as autoridades portuguesas não impedia que as
trocas comerciais florescessem nesse período, e a Catumbela tornou-se um próspero lugar
de troca com as caravanas Ovimbundu, que vinham do interior, do Bié e do Bailundo
(Pélissier, 1986, vol. I; 170).
A instabilidade que se sentia nesta região central não se apaziguou com a realização
da Conferência de Berlim, e as primeiras décadas do século XX foram mesmo bastante

100 1 101
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

sangrentas. Além de numerosas revoltas de olossoma de menor importância92 , destaca-se,


logo em 1902, uma grande revolta de populações Seles, que chegou a colocar em perigo
a capitania de Novo Redondo, tendo sido dominada apenas em 1908 (Pélissier, 1986, vol.
II; 39-42). De Maio de 1917 a Junho de 1918, os Seles rebelaram-se novamente contra
as autoridades portuguesas. Mais uma vez os portugueses recorreram à colaboração de
olossoma Ovimbundu, nomeadamente do M'Balundu, para constituir uma coluna militar
de maioria africana e esmagar a revolta. Segundo René Pélissier estas revoltas dos Seles
estavam fortemente relacionadas com o tráfico de escravos, que no início do século XX
ainda persistia na região e afectava enormemente estas populações, e com os interesses
dos colonos portugueses que, desde os finais do século XIX, se mostravam cada vez mais
atraídos pela produção de café, na região dos Seles, (Pélissier, 1986, vol.II; 44-45).
Esta estratégia das autoridades portuguesas em estabelecer e promover alianças espo-
rádicas com soberanos Ovimbundu, sempre que enfrentavam dificuldades militares, es-
teve igualmente na base do esmagamento da revolta do reino do Bié, em 1890, governado
pelo ossoma Ndunduma. Nessa ocasião, as autoridades coloniais de Benguela apoiaram-se
no auxílio do ossoma inene do M'Balundu, Ekuikui II, para esmagar aquela que seria a
última fonte de resistência do reino do Bié à penetração colonial portuguesa (Pélissier,
1986, vol.II; 69-74).
A fragilidade destas alianças, e no fundo a incapacidade de dominação das autorida-
des portuguesas neste final do século XIX e início do século XX, encontra-se bem expressa
na revolta dos "Bailundos': em 1902, que rapidamente transbordou das fronteiras deste
reino e mobilizou um grande número de reinos Ovimbundu. Para René Pélissier as razões
desta revolta prendem-se com dois tipos de factores: a) a queda dos preços da borracha,
que no final do século XIX constituía a principal mercadoria das caravanas que faziam a
ligação comercial entre o interior do continente e as feitorias portuguesas do litoral; b) a
crescente presença e influência de missionários protestantes, nomeadamente dos missio-
nários da American Board of Commissioners for Foreign Missions, que se tinham insta-
lado no reino do Bailundo durante o reinado de Ekuikui II {1876-1893) (Pélissier, 1986,
vol.Il; 80-81).
Por sua vez, Douglas Wheeler e Diane Christensen defendem que as razões da revol-
ta prendem-se sobretudo com a conflituosidade existente entre os reinos Ovimbundu e
as autoridades portuguesas. Segundo estes autores, os conflitos derivavam das sucessivas
tentativas dos Ovimbundu em resistirem à crescente dominação portuguesa e tentarem
preservar a sua independência (Wheeler e Christensen, 1973; 61-63). Estes autores não
discordam que as missões protestantes, sobretudo a ABCFM, tivessem uma forte influ-
ência na revolta dos Ovimbundu, apesar dos missionários não se terem envolvido direc-
tamente. Estas missões estavam em franca expansão no planalto e as suas escolas, onde
se ensinava nas línguas Umbundu e Inglesa, constituíam um forte atractivo para as elites
locais, sobretudo os mais jovens. Por outro lado, os missionários envolviam-se politica-
92 Em geral chefes pequenos, ou mesmo olossekulu subordinados aos grandes monarcas.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

mente em assuntos como a abolição do tráfico negreiro e a escravatura e a produção e


consumo de aguardente (idem; 64).
A revolta do M'Balundu (Bailundo) surgiu durante o reinado do ossoma inene Ka-
landula mas foi liderada por Mutu-ya-Kavela, que era conselheiro, macota, do falecido rei
Hundungulu. Mutu-ya-Kevela conseguiu dinamizar vários olossoma de pequenos reinos
Bienos e Huambos na sua campanha contra os portugueses. Com a morte de Kalandula,
durante as hostilidades, Mutu-ya-Kevela foi eleito osso ma inene do Bailundo ( 1902-1903).
As autoridades portuguesas lançaram então várias ofensivas, acabando por dominar a re-
belião, submetendo todos estes reinos, incluindo o do Huambo.
Segundo René Pélissier, esta revolta consubstancia o último grande momento de re-
sistência dos reinos Ovimbundu à dominação colonial portuguesa (Pélissier, 1986, vol.II;
100). Douglas Wheeler e Diana Christensen também concordam que a vitória portuguesa
na guerra do Bailundo marca o fim da resistência dos reinos Ovimbundu e a sua intei-
ra submissão à administração colonial. Segundo estes autores, a pacificação dos reinos
Ovimbundu permitiu então uma rápida colonização do planalto central, com consequên-
cias graves para o modelo económico das populações africanas (Wheeler e Christensen,
1973; 78).
O reino do M'Balundu, como se viu, teve uma importância muito ambivalente nesta
relação entre os portugueses e os reinos Ovimbundu. Essa relação de charneira, nesse du-
plo sentido, teve o seu expoente máximo no reinado de Ekuikui II, 1876-1890. Ekuikui II,
cujo túmulo se encontra na montanha sagrada de Halavala, junto do fundador Katiavala,
é representado na actualidade como um soberano que consolidou a paz e a prosperidade
do reino, e que soube conduzir com diplomacia a relação com os portugueses e com as
igrejas, que se instalaram na região durante o seu reinado.

Colonização e transformação social no planalto


Do ponto de vista histórico, as sociedades Ovimbundu sofreram sucessivas transfor-
mações na estrutura socioeconómica, por condicionantes exógenas e endógenas. Segundo
Hermann Possinger, até ao início do século XIX o modelo de produção e reprodução
socioeconómico Ovimbundu era bastante semelhante ao da maioria dos povos bantu das
savanas. Baseava-se predominantemente na agricultura, caça e colecta (Possinger, 1973;
33). A partir de meados do século XVIII os Ovimbundu começaram a estabelecer redes
comerciais com as populações do interior do continente.
O contacto cada vez mais frequente com comerciantes europeus, nomeadamente por-
tugueses, que se foram estabelecendo no planalto impulsionou os Ovimbundu para ser-
virem de intermediários entre o interior e os entrepostos comerciais europeus, nomeada-
mente com Benguela. Nesse sentido, os Ovimbundu desenvolveram um intenso comércio
caravaneiro, que em meados do século XIX constituía já a sua actividade económica mais
importante (Possinger, 1973; 36). Numa primeira fase, as caravanas Ovimbundu, as qui-

101 1 1o3
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

pucas, dedicavam-se sobretudo ao comércio de escravos, cera e marfim. Nas últimas déca-
das do século XIX o comércio de marfim estava em franco declínio e a escravatura formal-
mente abolida. As caravanas Ovimbundu passaram então a transaccionar essencialmente
borracha, que adquiriam junto das populações Ngangela do interior (Neto, 1997}.
O sistema das caravanas provocou profundas alterações no modelo produtivo Ovim-
bundu, com os homens a dedicarem-se quase exclusivamente a este sistema, sobretudo
como carregadores, e a crescente introdução do modelo de acumulação capitalista cons-
tituiu um factor de desigualdade social. No campo político, este modelo provocou uma
maior hierarquização das estruturas de poder e consolidação do estatuto económico e
político dos olossoma e dos chefes dos clãs matrilineares, os ossongo, que na generalidade
dominavam o comércio caravaneiro (Possinger, 1973; 37). O comércio das caravanas tam-
bém esteve na origem do crescimento de vários reinos, que se consolidaram em torno de
certos olossoma proeminentes nesta actividade comercial.
Por volta de 1912, devido à queda abrupta do comércio da borracha o sistema carava-
neiro ruiu completamente e, segundo Hermano Possinger, "this event determined the end
of the selfsustained and autonomous development of the Ovimbundu. 1heir social structure,
based on commerce and maintained by a politicai powerfounded on commerce, disintegrated
rapidly" (Possinger, 1973; 38}. No novo ciclo que se seguiu, a economia Ovimbundu ficou
completamente dependente de dois factores exógenos: a ocupação do planalto central por
colonos portugueses e a crescente implantação da administração colonial, após a pacifi-
cação do planalto central. Segundo Conceição Neto, a ocupação europeia do planalto, no
caso a ocupação colona portuguesa, a partir dos finais da década de 1940 e sobretudo na
década de 1950, foi muito rápida e em grande escala, tornando particularmente sensível
o problema da procura de terras férteis, e da densidade populacional nativa, com menos
terras disponíveis e uma maior mão-de-obra "nativà' (Neto, 1997).
Por outro lado, este novo ciclo encontra-se também fortemente ligado à introdução
da agricultura comercial intensiva, quer através de colonos portugueses, quer no próprio
sistema produtivo Ovimbundu, sobretudo da cultura do milho e do café (este último em
menor escala}, na qual se ocupam predominantemente os homens, enquanto as mulheres
continuavam responsáveis pela produção para a auto-subsistência dos agregados familiares.
Esta nova mudança produziu profundas alterações nas estruturas políticas, económi-
cas e sociais. A introdução da agricultura comercial provocou desde logo a necessidade de
alterar o modelo de gestão fundiária tradicional. No período pré-colonial a propriedade
da terra era comunitária, em geral propriedade do ossongo, e cada família tinha direito a
usufruir de parcelas que cultivava durante cinco ou seis anos, findo os quais a terra voltava
para a comunidade, ficando em pousio durante uma geração, cerca de trinta anos.
O novo modelo de ocupação colonial obrigou a uma maior procura de terras dispo-
níveis, por parte das populações Ovimbundu; a uma maior privatização da propriedade;
e um menor período de pousio das terras, que era de cerca de trinta anos (uma geração),
e que neste novo sistema passou a ser de apenas quatro a seis anos, o que provocou uma
NO ~EINO DA TOUPEIRA. AUTO~IDAO&S TRADICIONAIS 00 M'IALUNOU E O ESTAOO ANGOLANO

rápida degradação na fertilidade dos solos. Nurn período inicial, a pr()priedade da terra
continuou a processar-se dentro do grupo familiar alargado, o ossongo, segundo o modelo
de sucessão matrilinear, mas aos poucos foi-se modificando, houve uma crescente indi-
vidualização da propriedade e a estrutura familiar ficou cada vez mais centrada na epata,
conjunto de núdeos familiares, em geral de irmãos, e o sistema patrilinear foi-se impondo
progressivamente (Possinger, 1973; 39). No entanto, no final da década de 1960 até já a
estrutura da epata se encontrava muito fragilizada, com os mais novos a rejeitarem-na
(Possinger, 1986, 105).
A necessidade de expansão dos grupos domésticos por todo o planalto central; a in-
tensificação da produção comercial do milho e as transformações do sistema produtivo,
nomeadamente a necessidade de alterar o sistema de pousios que, recorde-se, Este pro-
cesso foi mais rápido e acentuado sobretudo nas regiões onde predominava a cultura do
café. A incessante necessidade de procura de novas terras e de aumento da quantidade de
terra utilizável conduziu a uma progressiva desestruturação dos kimbu Ovimbundu, com
uma rápida passagem para o habitat disperso, que predominava já em meados da década
de 1960 (Possinger, 1973; 46).
Mais tarde, a partir de 1968, a administração colonial exerceria enorme pressão para
eliminar este tipo de habitat disperso, através da imposição de uma política de aldea-
mentos, enquanto mecanismos de controlo da população, devido ao intensificar da guer-
ra colonial93 • Este reassentamento compulsivo das populações rurais, que no entanto foi
abandonado em 1970, provocou um decréscimo significativo na produção agrícola e uma
enorme reacção dos camponeses. Por contra, contou com a cumplicidade e anuência de
uma parte significativa das autoridades tradicionais, que encontraram neste processo um
modo de renovar o seu poder sobre as populações.
A diminuição da produtividade dos solos; a enorme densidade populacional, sobre-
tudo na região central do planalto, em especial do Bailundo, Bié e Huambo (Neto, 1997};
a competição com os colonos portugueses, mais favorecidos no processo de aquisição de
terras; tudo isto constitui factores que conduziram a uma progressiva proletarização de
uma parte significativa das populações Ovimbundu. No que respeita à distribuição de
terras aos colonos, Gerald Bender salienta que "entre 1968 e 1970 a quantidade de terras
entregues aos europeus, no distrito do Huambo, foi além do dobro [... ], enquanto a área
cultivada por africanos foi reduzida em mais de um terço[ ... )" (Bender, 2004: 221).
Neste processo, grandes vagas de mão-de-obra masculina Ovimbundu foram utili-
zadas sazonalmente, até ao final do período colonial, nas plantações de café do norte de
Angola, nas províncias de Kwanza Norte e Uíge. Hermano Possinger calcula que nos dez
anos últimos antes da independência cerca de 80 a 100.000 indivíduos, sob o regime de
contracto, iam anualmente para as plantações do norte do pais. Simultaneamente, cerca
de 20.000 procurava trabalhos nas indústrias de Luanda, Lobito e Nova Usboa (Possinger,

93 A adrrinistração colonial portuguesa usou este processo nas províncias ullramarinas que foram palco da guerra anti-colonial, tal como
em Moçambique e na Guiné-Bissau. enquanto forma de enquadrar e controlar a população indígena.

10-4 I lOS
VOZES DO UNIVERSO RURAL REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

1973; 48). Segundo David Birmingham a maioria desses trabalhadores provinha da parte
central do planalto, sobretudo da região do antigo reino do M'Balundu, razão pela qual os
portugueses denominavam de "Bailundos" a todos os trabalhadores Ovimbundu (Birmin-
gham, 2002, 139; Neto, 1997).
O contracto, apesar do seu enquadrado legal e baseado numa relação livre entre tra-
balhador e contratante, acaba na prática por expressar uma forma encapuçada de escra-
vidão, conforme descreve Fola Soremekun, reportando-se ao relato de um jornalista in-
glês que visitou Angola entre 1904-05. Henry Navinson, o referido jornalista, relata que a
mão-de-obra era angariada através dos chefes locais, muitas das vezes de forma abusiva e
forçada, e o contracto, que deveria ter um período de cinco anos, acabava por se prolon-
gar quase indefinidamente e o contratado quase nunca regressava à sua terra de origem
(Soremekun, 1965: 140-142).
O contracto não era a única forma de assalariamento da mão-de-obra do planalto,
pois como adianta Conceição Neto, também os caminhos-de-ferro, a CFB, constituiu um
pólo de atracão da mão-de-obra Ovimbundu ( Neto, 1997). Esta autora realça a enor-
me importância desta companhia nas transformações sociais que ocorreram no planal-
to central, pelo menos nas primeiras décadas do século XX. Não só porque permitiu o
desenvolvimento da cidade de Nova Lisboa, porque criou vilas ao longo do seu trajecto,
e possibilitou o assentamento de colonos e comerciantes portugueses, e porque engajou
quantidades significativas de mão-de-obra africana, de forma muitas vezes compulsiva,
como no início do século XX, chegando a recorrer ao trabalho compulsivo feminino e
infantil (Neto, 2000).
Um outro factor importante no processo de colonização, e que teve um enorme im-
pacto no processo de transformação social das populações do planalto, e em geral nas res-
tantes populações, foi o imposto anual indígena. O imposto foi introduzido em Angola em
1907, denominado inicialmente de imposto de "cubata" até 1920, e depois dessa época era
pago por "cabeça" (Neto, 2000). O imposto foi idealizado como um incentivo ao aumento
da produtividade agrícola indígena e ao assalariamento, contudo, na verdade o que aca-
bou por acontecer era que, de forma perversa, potenciou o endividamento das populações
rurais e a sua dependência face aos chamados "comerciantes do mato': pois estes avança-
vam o dinheiro do imposto anual "sob a garantia da colheita seguinte" (Neto, 2000). No
caso do planalto central, a região do Bailundo detinha uma posição de grande evidência
face ao elevado número de população indígena, e por conseguinte de imposto recolhido.
Além de provocar o empobrecimento da população rural africana, e sua dependência, a
questão do imposto provocou várias revoltas da população.
As igrejas tiveram também um enorme impacto, quer nas transformações sociais
ocorridas entre os Ovimbundu, quer nas relações e na estrutura política tradicional. No
caso do Bailundo, os primeiros missionários que se instalaram na região foram os mis-
sionários protestantes, da American Board of Commissioners for Foreign Missions e da
Canadian Congregational Foreign Missionary Society (que estão na origem da actual
NO II.EINO DA TOUPEIII.A. AUTOII.IDADES TII.ADICIONAIS DO M'BAlUNOU E O ESTADO ANGOLANO

IECA, Igreja Evangélica Congregacional de Angola). O primeiro grupo destes missioná-


rios, constituídos pelos reverendos William Sand, Barst e Samuel, chegaram a Benguela
a 11 de Novembro de 1880, com o intuito de prosseguirem viagem com destino ao Bié.
Entretanto chegaram ao M'Balundu a 26 de Março de 1881, durante o reinado de Ekuikui
II. O rei não deixou que os missionários prosseguissem viagem, e estes instalaram-se no
reino, fundando a missão do Chilume94 • Alguns anos mais tarde, chegaram os primeiros
missionários católicos, que fundaram a missão da Handa.
Nesse capítulo, o reino do M'Balundu e o rei Ekuikui II tiveram um papel determi-
nante. Segundo Ekuikui IV:

"o Ekuikui é que recebeu os brancos. Foi quem recebeu o capitão Teixeira da Silva. O capi-
tão Teixeira da Silva de Benguela passou pelo Bié e do Bié para o Bailundo. No Bailundo o
Teixeira da Silva deixou um irmão. Deixou outro irmão na vila de Seles e então veio para o
Bailundo. Quem o recebeu foi o rei Ekuikui. Também foi ele que recebeu os primeiros mis-
sionários mandatados pelos colonos de Benguela. Mandaram os pastores para ensinarem
a ler, a escrever e a evangelizar. De Benguela de inicio era para se instalarem no Bié, serio
o ponto de inicio da civilização dos indígenas. Agora no respeito humano, todo aquele que
estiver a passar no território alheio tem que se apresentar às autoridades. Eles vinham em
cima de alguns burros e naquela coisa de se apresentarem às autoridades instalaram -se na-
quela localidade. É dali que saíram as pessoas que se apresentaram ao rei Ekuikui, de como
vinham de Benguela para o Bié para fazerem os seus trabalhos.( ... ) Eram os americanos.
E o rei Ekuikui preocupou-se de saber que tipo de trabalho iam fazer no Bié. Ekuikui disse
se ensinar a ler e a escrever não vai contra a cultura, e estes missionários diziam que não
pelo contrário havia de facilitar quando chegassem os brancos.( ... ) Então Ekuikui achou
que não avançassem para o Bié mas indicou uma aldeia chamada Chilume para iniciarem
ali a actividade e foi aí que ficaram." (in EBai2004-2)

Só mais tarde, mas ainda no reinado de Ekuikui II é que se instalou a primeira missão
católica. Ainda segundo Augusto Katchiopololo:

"Depois dos protestantes é que apareceram os católicos. Apresentaram-se ao rei Ekuikui e


disseram que vinham do Bié, mas ele quis saber qual o objectivo desses padres. Igualmen-
te os padres responderam ao rei que o objectivo era de ensinar e evangelizar. Na altura o
rei não sabia a diferença nas crenças e indicou os padres o mesmo lugar de Chilume. Ao
encontrarem por lá no Chilume os protestantes os padres acharam que a relação não havia
de ser boa e retiraram-se ao encontro do rei e disseram ao rei que os outros e eles a relação
não era boa e dificil para coabitar. Então o rei Ekuikui indicou um dos seus ajudantes para
que acompanhasse os padres até uma aldeia chamada Handa:' (in EBai2004-2)

94 Segundo o reverendo Afonso Júnior Díngu, a 4 de Julio de 1884, por influência de um comerciante português. de nome Braga, o rei
Ekuikuí 11 encerrou a missão de Chílume e os missionários regressaram a Benguela. A missão do Chilume viria a ser definitivamente
reaberta a 23 de Outubro de 1884, depois de sanados os problemas com o rei {in EBai2004-12).

10, 1 101
VOZES 00 UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

As missões, quer fossem protestantes, católicas ou mesmo adventistas9S, constituí-


ram sempre um importantíssimo factor de transformação social das populações rurais
Ovimbundu, permitindo-lhes uma estratégia de mobilidade social, que o sistema colo-
nial claramente não lhes oferecia, bem pelo contrário. Elas permitiam aos "indígenas"96
acederem a um sistema de escolarização e de formação profissional. Neste âmbito, des-
tacam-se, sobretudo na fase inicial do colonialismo, as missões protestantes, mais incisi-
vas e eficazes, oferecendo escolarização e formação profissional, como complemento da
evangelização. Para Conceição Neto, a influência das missões protestantes, possibilitou
mesmo a emergência de uma pequena elite escolarizada Ovimbundu, "ocidentalizadà',
"escapando" à influência portuguesa (Neto, 1995).
Didier Péclard defende que as missões protestantes eram um veículo de modernidade
e de acesso a novos produtos, simbólicos e materiais e, por conseguinte de transformação
social (Péclard, 1999: 125). As missões católicas acabariam por adoptar esta mesma estra-
tégia dos protestantes, mas somente a partir dos anos de 1940 (Neto, 1997).
Didier Péclard defende igualmente que as missões cristãs no planalto central assen-
tavam sobre três pilares, a evangelização, a educação e a saúde. Nesse sentido, segundo o
autor, as missões cristãs, e em especial as protestante, nomeadamente a congregacional,
incrementaram uma profunda alteração dos modos de vida das populações rurais do pla-
nalto, pois como defende "aucun aspect de I avie ne pouvait échapper à une reformulation
en termes chrétiens, de I'habitat à lá formation scolaire, de l'hygiene corporelle à lá pro-
duction agricole, de l'habillement à lá spiritualité ou à lá sexualité, entre autres" (Péclard,
1999: 114). As missões protestantes foram assim progressivamente implementando um
processo de evangelização, que se complementava com um processo de mudança social,
nas crenças e nas práticas. A organização social centrava-se nas aldeias cristãs indígenas,
segundo moldes urbanísticos ocidentais, e na consubstanciação da família nuclear en-
quanto modelo de família cristã, e da organização social aldeã 97 • A organização do espaço
e da vida doméstica, a que o autor chama de processo de domesticação, agregavam-se ain-
da outros factores primordiais, como o acento na produção agrícola familiar, com realce
para a produção de milho, e a introdução de uma ética do trabalho, como forma e força
libertadora e de proximidade divina. 98
Mas a organização social das aldeias, durante o período colonial, reflectia igualmente
as divisões, e mesmo os antagonismos, entre as confissões protestante e a católica, pois as
aldeias eram divididas em bairros diferenciados, segundo o tipo de confissão. Como relata
o reverendo Afonso Dingu:

95 Os Adventistas do Sétimo Dia constituem muito provavelmente o terceiro maior grupo religioso no município do Bailundo.
96 Classificação colonial que englobava a esmagadora maioria da população africana. As outras duas categorias eram as de civilizado e a
de assimilado.
97 Oferecendo às rrulheres e jovens Ovimbundu um projecto de formação cunural que as preparava essencialmente para serem 'boas
mães e esposas• cristãs.
98 Sobre a ímportancia do trabalho como uma ética e uma moral nos grupos protestantes cf. Max Wf!J>ar e a sua Ética Protestantes e o
Espírito do Capita~smo.
NO II.EINO DA TOUI'EIII.A. AUTOII.IDADES TII.ADICIONAIS DO H'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

"Hoje pode existir em cada aldeia um catequista da IECA, um catequista católico, um


catequista adventista, um dos metodistas, pronto. Actualmente isto está a funcionar as-
sim, mas outrora nós éramos divididos. Numa aldeia, suponhamos na parte de cima eram
simplesmente os católicos e na parte de baixo eram simplesmente os evangélicos, então
nós funcionávamos assim, mas por causa da guerra [depois da independência] agora nós
misturamos e estamos agora todos no mesmo sitio." (in EBai2004-12).

A autora Fola Soremekun defende que as igrejas protestantes, desde muito cedo, ini-
ciaram um combate contra alguns dos pilares fundamentais da organização tradicional,
tal como a poligamia; as crenças religiosas tradicionais, nomeadamente os cultos dos
antepassados, a feitiçaria, e as cerimónias de iniciação, masculina e feminina (Soremekun,
1965:69,97, 206). A autora conclui mesmo, talvez de modo abusivo que"[ ... ) by 1936 the
average Ocimbundu had forgotten his traditions. 1he society had been broken up to such a
degree that the past had become Jar way indeed" (Soremekun, 1965: 253).
No geral pode assim avançar-se com a ideia de que a influência transformadora das
igrejas protestantes, sobretudo da IECA, foi mais efectiva e mesmo eficaz do que a sua
congénere católica. E esta influência não residia apenas nas transformações sociais e ide-
ológicas das populações do planalto. A influência das confissões protestantes alargava-se
significativamente também ao modo de relacionamento das populações para com a domi-
nação colonial. Nesse sentido, sempre foi clara a posição da igreja protestante quer contra
os abusos individuais que os colonos perpetuavam sobre as populações, nomeadamente
contra o comércio do álcool e contra o trabalho forçado, mas igualmente contra o sistema
colonial em si mesmo. Deste modo, a IECA viria a sofrer fortes perseguições por parte do
Estado colonial, pelo seu suposto apoio e identificação à UNITA. Como sublinha Cândido
Uquélonga:

"Na altura dos portugueses desconfiava muito dos professores e das missões protestantes.
Por exemplo no Chilume saiam muitos com a PIDE. Em 1970, 1971, a PIDE tirou muitos
professores e até enfermeiros. ( ... ) Ao contrário da igreja católica. Poucos da igreja católica
foram sofrer. A igreja católica não perseguia o poder. Os catequistas católicos não pagavam
imposto, e os professores recebiam do Estado o dinheiro." (in EBai2007-09)

Os sobas do M'Balundu sob o domínio do lndirect Rule


No que respeita às autoridades tradicionais do M'Balundu, são escassos os estudos
que ofereçam um profundo panorama sobre a sua relação com o Estado colonial e a sua
legitimidade para com as populações. Contudo, desde logo deve realçar-se o processo de
enquadramento exercido sobre o reino pela administração colonial, a partir de 1902, que
conduziu a uma profunda diminuição dos limites territoriais da ofeka do M'Balundu, e,
concomitantemente a uma significativa diminuição dos poderes do seu assoma inene. Um
dos maiores reinos Ovimbundu viria progressivamente a ficar confinado quase aos limites

1oa I 10,
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

geográficos de um concelho, no caso, o concelho do Bailundo. 99


Ao contrário do que sucedeu noutras regiões coloniais, como por exemplo no caso
de Moçambique, em que as sucessivas reformas administrativas coloniais assentaram na
consideração dos territórios das autoridades tradicionais, controlando-os, mas traçando
os limites das circunscrições e dos postos administrativos a partir da existência de rege-
dorias e regulados, no planalto central angolano as reformas territoriais coloniais estavam
mais relacionadas com a penetração de colonos europeus, e com a lógica de expansão
económica do Estado colonial.
No entanto, e no que respeita ao reino do M'Balundu, apesar dos limites do reino não
se confinarem aos limites do distrito do Bailundo, nem a administração se interessava
por isso, contudo, a administração procurou sempre que os níveis inferiores da estrutura
de poder tradicional, as olombala estivessem contidas nos limites geográficos dos postos
administrativos, e os olossoma na dependência directa do respectivo chefe de posto. Como
relata Adolfo Chitoma, era ao chefe de posto administrativo que tinham que reportar e
prestar contas das suas atribuições:

"Os sobas cumpria, como estamos hoje a trabalhar coma Administração, e tinha que cum-
prir mesmo naquele tempo. O soba na ombala, tudo o que ele fazia aqui na ombala era
entregue ao chefe de posto, que era informado de tudo o que se passava aqui. Tinha que ser
isso mesmo. Pessoas que erravam, ou talvez violava, ou talvez roubava, ou talvez essa coisa
de feitiço, tudo entrava no soba. Então o soba informava o chefe de posto, assim, e assim.
Se não cumprir bem, então o indivíduo que foi criminoso então vai pagar. E se o crime for
maior então vai seguir para aí para o contracto, ou vai para São Tomé:' (in EBai2004-6)

Deste modo, em cada posto administrativo a administração implementava uma re-


lação hierárquica entre as autoridades tradicionais, nomeando alguns olossoma inene, a
quem a administração colonial designava por sobas grandes, como os sobas mais impor-
tantes do posto administrativo, dando-lhes ao mesmo tempo o título de regedores. Assim,
num posto podiam existir vários regedores, que detinham a responsabilidade sobre vários
olossoma e respectivas olumbala. Por sua vez, a administração escolhia um dos regedores,
em geral aquele em cuja área original se encontrava a sede do posto, e conferia-lhe um
estatuto de líder, ou seja de regedor de todos os regedores do posto (in EBai2007 -09) 100 •
No que respeita às funções que desempenhavam para a administração colonial, as
próprias autoridades tradicionais do M'Balundu salientam como mais importante: a re-
colha do imposto anual de cubata; o controlo da mão-de-obra e do trabalho obrigatório,
o "contracto"; o controlo da ordem social, através dos julgamentos tradicionais; o controlo
das produções comerciais obrigatórias, como o café e o sisai; e a manutenção das princi-
pais vias de comunicação, estradas e pontes. Como refere o assoma Jino Kaiangula:

99 Não se trata efectivamente de uma correspondência integral, pois, como se demonstrará, a ofeka do M'Balundu abrange regiões de
concelhos adjacentes.
100 A administração colonial usava um processo semelhante em Moçambique com os régulos. Sobre este assunto cf. Florêncio 2003, 2005.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

" Antigamente o soba mandava capinar as estradas, controlar os impostos, fazer selecção
dos indivíduos da mesma ombala para alguns ritos nos akokotos. Aqui havia também o
trabalho forçado sim. A partir dos sékulus da aldeia até ao soba. A selecção dos contratados
era a partir do sékulu da aldeia. [a ordem] Era a partir da Administração para os sobas e
dos sobas para os sékulus, então arranjavam homens que eram encaminhados. O soba não
recebia nada por esse trabalho, mas apanhava porrada [palmatória], [do chefe de posto]
se houvesse incumprimento. Nos sékulus batiam os cipaios101 • Chamava-se umgamba. 102
(... )Também havia o imposto, elicimo. Era de 380 escudos. 103 Era pago uma vez por ano.
Todos os homens da aldeia pagava. Só os homens, casado, solteiro, a partir dos 18, 19 anos.
Quem recolhia era o sékulu da aldeia que entregava no soba. ( ... )Sim, [o soba] depois
entregava na Administração. Anteriormente não davam nada, mas a partir de 1961 então
tinha uma percentagem, dependia do número de aldeias que controlava. O objectivo desse
salário era só para quando chegava na ombala, ou o sékulu no bairro, então conviviam:'
(in EBai2004-4).

Como se depreende deste depoimento, às autoridades tradicionais, sobretudo aos


olossoma e aos olosékulu cabia a parte mais odiosa da dominação colonial, nomeadamente
a recolha do imposto anual, o elicimo, e a organização e recrutamento forçado da mão-
de-obra para o contracto anual, o umgamba, quer nas plantações da província, quer, so-
bretudo, nas plantações de café no norte de Angola. Este posicionamento das autoridades
tradicionais afectava sobretudo os olossekulu, pois eram eles quem nas aldeias recolhiam
directamente o elicimo e escolhiam os indivíduos para o contrato, ou para o umgamba,
como diz o assoma Adolfo Chitoma, "o soba não tem nada a ver. O sékulu é que tem esse
direito de recolher o imposto lá da população. Então o soba é só chegar com ele [sékulu]
lá na Administração. É só acompanhar:' (in EBai2004-6). Contudo, apesar de o assoma
não recolher directamente o imposto, era ele quem ordenava aos seus olossekulu que o
recolhessem, como adianta o assoma de Chilala:

"Os sobas são eles mesmo que fazia essa actividade. Os sobas dão aviso no quimbo que é
preciso pagar imposto, de pessoas, depois imposto daqueles que são apanhados a fabricar
caxi104, e depois imposto daquelas danças catita e dança caiombe105• Aquilo tudo era pagar
imposto, para se fazer aquilo. Nessa altura eles davam aviso, as pessoas dão esse dinheiro e
depois eles levam junto do posto administrativo." (in EBai2007-08)

Quem não conseguia pagar o elicimo era compelido ao trabalho forçado, o contracto,
como adianta Cândido Uquélonga,

101 Espécie de corpo de guarda africano da Administração colonial.


102 Termo Umbumdu que designa trabalho forçado.
103 Não sabia em que ano se refere esse quantia, mas deve referir-se já ao período fmal do colonialismo.
104 ~uardente tradicional.
105 Danças lradicionais.

110 I III
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

" o contracto era assim: quem não pagar imposto, quem não consegue pagar o imposto
vai para o contracto. Para lá vai ganhar e quando regressar paga o imposto atrasado e o
deste ano.( .. . ) Em 1957 ou 58 ganhava 1800 escudos no contracto [num ano] e quando
regressava ia directamente no posto e pagava dois impostos, que era de 300 escudos cada:'
(in EBai2007-09).

O contracto foi um factor de enorme disrupção social nas famílias do planalto cen-
tral, sobretudo no Bailundo, e as autoridades tradicionais acabariam por ficar com o ónus
dessa imposição colonial, pois a elas cabia a parte de recrutamento, como refere Adolfo
Chitoma:

"O chefe recebe a ordem do chefe de posto, então distribuir a ordem nos sekulus, cada
aldeia uma pessoa, cada aldeia uma pessoa, até quando completar esse grupo que seja
rendido na Administração, que é o chefe que pode dizer:'há-de me trazer x homens'. Então
o soba recebe a ordem, dá ao sékulu, que vai nomear, cada aldeia uma pessoa, uma pessoa,
uma pessoa, .. até fazer as suas contas. Então traz no soba que leva ao chefe que faz o envio
desses homens. ( .. .) Contratados. Cada mês há um grupo que vai, cada mês vai um. Cada
grupo ia 50 pessoas. la para o norte. Ia para as fazendas de Benguela." (in EBai2004-6)

O imposto anual e o contrato, com base no trabalho forçado estavam assim intima-
mente relacionados, e constituíam a base dos recursos e proventos da administração colo-
nial, como relata Ekuikui IV,

"No tempo quando o português chegou no Bailundo, porque a habilitação dos sobas era
assim pouca, não tinha muita habilitação, então ele começou a dominar os sobas pouco
a pouco, a pagar os impostos, até porque o próprio imposto que os sobas iniciaram a pa-
gar eram ovos de galinha, porque ainda não conheciam o dinheiro. Então começaram a
pagar ovos de galinha. Mais tarde o português trouxe o dinheiro dele. Iniciou-se a pagar
o imposto a 10 escudos, depois 20, até 50, 100. Ultimou-se nos 380 escudos, mas naquela
época quem não tinha dinheiro era maltratado, era carregado à cadeia, até por fim ia para
as lavras de café, de cultivo. Era castigado por causa de não ter dado o imposto. E ia ao Mo-
çamedes para apanhar peixe. ( .. . ) As lavras de café eram no norte sim. Aqui havia serviço
muito forte também, serviço muito forte para com os angolanos. Era de reabilitar estradas.
Eram forçados para reabilitar estradas e não tinham instrumentos para tal. O instrumento
eram as enxadas, levar terra na cabeça para as estradas. No Bailundo o castigo mais pe-
sado foi de construir uma ponte que cai na área da missão do Janjo. A ponte sobre o rio
Keve. A ponte foi construída de um modo sofisticado para os angolanos que carregavam
os sacos de cimento daqui do Bailundo até naquela área, pela cabeça [numa distância que
deve rondar os 90 km], até que aquela ponte acabou. Hoje em dia é um símbolo aquela
ponte que durante toda a guerra não se destruiu.( ... ) O trabalho forçado era a umgamba.
O português exigia ao soba e um dos sékulus é que ia escolher os homens que são capa-
citados. Depois com o andamento do tempo o português resolveu que não se pode mais
levar o homem ao contrato, ao umgamba, sem lhe pagar nada, nesse momento tem que
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

haver um contrato que tem que lhe pagar. Ele vai um ano, depois ganha alguma coisa para
vir na aldeia, na sua família. ( ... ) Isso foi nos anos 60, 61, 62, 65 até 70. ( ... ) Antes também
havia pagamento. Iam ao contrato semear o café, semear eucaliptos, mas então, quando
você vai lá já aqui te cobraram o imposto, então assim trabalhaste e o que ganhaste já não
chega com a família, então assim trabalhas mais um ano só para ver se há uma parte que
vai sobrar para a família. Quando lá tem que vir directamente ao posto [administrativo]
pagar o imposto de 2 anos. E disso só sobra um bocadinho para a ajudar a família, já não
chega, nem pano para a mulher nem camisa para o filho." (in EBai2004-8).

Para além destas importantes tarefas, as autoridades tradicionais ainda eram respon-
sabilizadas pela recolhas de outros impostos, como salienta o actual soma inene Ekuikui
IV,

"naquela época dos portugueses era trabalho de cobrar impostos, de pagar as licenças de
cães, os cães pagavam licença naquela época, era o trabalho de apanhar os jovens para a
tropa colonial. ( ... ) O trabalho do soba era muito, o trabalho nas estradas era dividido
pelo rei e pelos sobas pequenos nas suas áreas, de reconstruir pontes e estradas. ( ... ) Havia
também o imposto de bicicleta, quem não paga era apanhado e ele e a sua bicicleta e ia na
cadeia:' (in EBai2004-8)

Além das tarefas de recolha do imposto e do contracto, as autoridades tradicionais


exerciam outras tarefas de enorme importância na vida das populações, como as tarefas
de manutenção da ordem pública e da resolução de conflitos entre "indígenas': e na orga-
nização da administração do território, como por exemplo na construção e manutenção
das vias rodoviárias. Nesse sentido, cada ombala era responsável por um troço de estrada,
um talhão, e cabia às autoridades tradicionais arranjarem mão-de-obra nas aldeias para a
construção e manutenção da via, como adianta Cândido Uquélonga, "Além dos trabalhos
do contracto havia mesmo o trabalho das estradas, de transportar brita, e havia cipaios
que serviam como cantoneiras. Cada ombala tinha um talhão da estrada, cada ombala
um talhão. E a ombala também dividia, cada aldeia um talhão, cada aldeia um talhão:' {in
EBai2007-09).
Por sua vez, no caso dos conflitos, nos julgamentos tradicionais, denominados de
ecanga, as autoridades tradicionais não só jogavam um importante papel, como eram fun-
damentais106. Estes tribunais existiam em todos os escalões da estrutura das autoridades
tradicionais, das aldeias até à ombala real. Como argumenta o ossoma de Chijamba,

"os sékulus nas aldeias também tinham tribunais, mas quando não conseguiam solucionar
o caso então era encaminhado ao soba. O soba tendo conclusão tudo bem, se não o caso
era transferido à Administração.( ... ) Não ia ao rei. No tempo colonial ficava mesmo no

106 Sobre a importâlcia do papel jurídico das autoridades tradicionais para a Administração colonial portuguesa, e sobre a sua concepção
de uma espécie de pluraismo jurídico, bem patente na imposição do Estatuto do lndigena, ver a obra de Adriano Moreira (1955), ou cf.
Florêncio (2003:241-243).

112 1 113
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

soba. O rei também tinha o seu tribunal. ( ... ) Podia resolver casos de ferimentos, viola-
ções, insultos, adultérios. Conflitos de terras também." (in EBai2004-4)

Estes tribunais circunscreviam-se apenas a contendas ou disputas entre indígenas,


pois quer os assimilados quer os europeus não estavam abrangidos pelo Estatuto do Indi-
genato e regulavam os seus direitos e deveres pelo código civil. A grande maioria dos casos
julgados nos tribunais das autoridades tradicionais envolviam ou relações de adultério ou,
sobretudo, casos de feitiçaria, pois como adianta o assoma de Chijamba, "os casos eram
mais de feiticismo e adultériô' (in EBai2004-4). O mesmo sublinha o assoma de Lunge,
ao dizer que "Tinha que haver justiça aqui na ombala. Isso nunca acabou, feitiçarias, rou-
balheiras, esses de caçar as mulheres dos outros, porradas, tudo isso. Desde os tempos
passados" (in EBai2004-6)
As autoridades tradicionais recebiam regalias pecuniárias do contracto e da recolha
do imposto. Manuel Tuca dá o exemplo do ossoma Kakelu que, em 1962 recebia 2 escudos
do salário de cada trabalhador africano da fazenda de São Miguel (Tuca, 2004: 66). Con-
tudo, e apesar de retirarem daí alguns dividendos pecuniários, nomeadamente da colecta
do elicimo, no entanto estes eram bastante escassos, e não permitiam que as autoridades
tradicionais, sobretudo os olossékulu, beneficiassem ao ponto de se constituírem como
uma classe rural privilegiada em relação à população comum, apesar de usufruírem de
vantagens da sua posição de poder, pois a população contribuía, e ainda contribui na
actualidade, com trabalho e mão-de-obra nas lavras dos olossoma, como explica Adolfo
Chitoma, "isso é lei. O soba não tem tempo para trabalhar, então eles mesmos nas aldeias
escolhem um dia e vão trabalhar para o soba. Até hoje é assim:' (in EBai2004-6).
Por outro lado, sobretudo os olossoma mais importantes, e o próprio assoma inene,
recebiam ainda outras prebendas da administração colonial, tais como casas de alvenaria
e bicicletas.
A subordinação das autoridades tradicionais à administração colonial não se tradu-
zia somente numa posição social que lhes permitia usufruir de regalias dessa posição,
encravadas entre a Administração e as populações, as autoridades tradicionais contudo
também eram penalizadas sempre que a própria administração entendia haver incumpri-
mento, desleixo, ou mesmo resistência das autoridades tradicionais, sobretudo nos dois
capítulos mais importantes na lógica da administração: a colecta do imposto e a organiza-
ção da mão-de-obra africana. Em geral, essas penalizações resultavam em castigos físicos,
a famosa palmatória. Esta era aplicada sobretudo aos olossekulu, pois como se viu eram
estes quem tinha a responsabilidade principal de recolher o elicimo e de organizar o tra-
balho forçado e o contracto. Como referiu o ossoma Jino Kaiangula, citado anteriormente,
"o soba não recebia nada por esse trabalho, mas apanhava porrada [palmatória], [do chefe
de posto] se houvesse incumprimento. Nos sékulus batiam os cipaios': (in EBai2004-4), e
o ossoma Adolfo Chitoma retoma essa ideia afirmando que "quando era apanhado o soba
vai cumprir, podia ir como contratado. ( ... ) Soba não pode apanhar palmatória, só sekulu
NO REINO DA TOUI'EIRA. AU'rORIDADES 'tRADICIONAIS DO M'IALUNOU E O ESTADO ANGOLANO

é que apanhava. Quando não cumprir, quando vir vai apanhar palmatóriá' (in EBai2004-
6). Quem fazia cumprir estes castigos físicos nos olossekulo não era directamente o chefe
de posto, mas sim o cabo de posto, que era um cipaio.
Aliás, o relacionamento das autoridades tradicionais com a administração colonial
processava-se de uma forma profundamente hierarquizada e indirecta, pois estas só oca-
sionalmente é que se relacionavam directamente com o chefe de posto, uma vez que no
geral dependiam do cabo de posto, que era um cipaio ao serviço do chefe de posto, e que
funcionava como elo de ligação às "autoridades gêntilicas~ como sublinha Ekuikui lV,

"O trabalho dele [cabo de posto) é acompanhar o soba para saber se o trabalho que está a
ser distribuído pela administração está a ser acompanhado ou não. Esses controlava tam-
bém o dinheiro dos impostos. Ele é que controlava se o soba estava a cumprir os manda-
mentos que vinham do posto, ele é que controlava os homens que saiam de uma área para
irem ao contrato de cultivo. Ele é que controlava se o trabalho de reabilitação das estradas
está a andar ou não.( ... ) O soba se tinha alguma actividade de ir ao administrador ele ti-
nha direito de ir ao administrador. Naquele tempo reunia com o administrador, duas vezes
por mês, de 15 em 15 dias, para receber orientação do administrador, que o soba depois vai
incentivar no sobado." (in EBai2004-8).

Estas funções contribuíam para uma progressiva perda de legitimidade das autori-
dades tradicionais face às suas populações, caso que foi comum em todo o continente
africano sob as administrações coloniais.
Pode-se adiantar como exemplo significativo deste processo para o caso angolano
um relatório de 1948 da Companhia de Diamantes de Angola (Diamang, 1948}, sobre
as relações entre os sobas da província da Lunda, sob a jurisdição da Diamang, e as suas
populações. Nele pode ler-se:

"( ... )Quando o tempo o permite conversamos com eles [sobas] ouvindo pacientemente
as suas queixas e aspirações. É frequente consultarem-nos na resolução das suas questões
mais difíceis ( ... ). Acrescentam os chefes indígenas que a sua gente vai desaparecendo, uns
fogem para o Congo, outros para as sanzalas de sobas de tribos diferentes, outros ainda
formam pequenos núcleos abandonando o soba ( ... ).Os poucos que ainda restam, não
me têm respeito, não pagam os tributos devidos, nem me consultam na resolução das suas
questões; só servem para me arranjar sarilhos junto da autoridade ... ( ... ):' (in Diamang,
1948)

E mais adiante:

"Os sobas estão de facto em difícil situação mantidos somente para haver um responsável
perante a autoridade; eles são mal tratados pelos "cipaios" que muitas vezes indispõem
os administrativos contra os chefes indígenas em proveito próprio. É vulgar encontrar os
sobas pelos caminhos andrajosos e por vezes famintos em busca de mão-de-obra, vadios,

,,,. 1 11s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

tratando da cobrança de impostos, de multas de licenças, etc. Sem o prestígio de que


necessita, o soba não passa dum manequim entre os seus e a autoridade, estando sempre
com um pé na sua aldeia e outro na cadeia, muitas vezes por culpa doutros.» (in Diamang,
1948)

Donde se depreende que as populações, pelo menos estas da Lunda sob o controlo
da Companhia, optavam por estratégias de escape ao trabalho e ao pagamento de im-
postos, fugindo para o vizinho Congo belga, aproveitando a sua localização de fronteira.
A posição de charneira das autoridades tradicionais, encravadas entre a autoridade da
Diamang, e as demandas e aspirações das suas populações, concorria para que perdessem
rapidamente influência e prestígio junto de uma parte dos seus súbditos, e até mesmo das
autoridades administrativas da Companhia 107• Contudo, e apesar disto, o relatório não
deixa de reconhecer:

"(. .. )A justiça que eles temem é a dos seus sobas, que falam a sua língua, que vivem entre
eles, comungando do mesmo credo religioso, cujos preceitos se repercutem constante-
mente nas leis civis e que é o único apto a compreender o seu espírito, as suas tendências,
e todo o lado íntimo da sua existência.» (in Diamang, 1948).

O que demonstra que essa perda de legitimidade não é completa, e que as populações,
ao se afrontarem e confrontarem com dois sistemas antagónicos de poder e controlo, não
deixam completamente de reconhecer no seu modelo de poder e de reprodução social,
e nos actores chaves desse modelo, as autoridades tradicionais, uma maior legitimidade,
porque constituiu a principal fonte de significados simbólicos.
Neste relatório aborda-se ainda um outro assunto importante, e característico das es-
truturas de poder tradicional em zona fronteiriça, que é a sua relação, de dependência ou
não, entre estruturas de poder de ambos os lados das fronteiras, coloniais ou até actuais 108 •
No relatório salienta-se ainda que os principais sobas da Lunda situam-se na parte do
Congo belga (os sobas Muatianvua, Kasongo Nhembo, Mukenge Kalamba, Mai-Munene,
Kabongo, Lupumgo, Lukuengo uá Babuka, entre outros). Por outro lado, adianta que:

"( ... )Como se sabe entre os negros não existem fronteiras e aquelas figuras [os sobas do
Congo belga] têm ainda hoje um enorme prestígio em toda a antiga LUNDA. Não têm
sido poucos os sobas da Lunda-Angola, que o Muatianvua tem mandado castigar e substi-
tuir, e há a notar que grande parte dos kiokos são governados e orientados por lundas. ( ... )
O soba Ditenda do Chitato está a organizar uma comitiva para levar o "milando» (tributo)
ao seu senhor Muatianvuam que reside no Congo belga. Em breve seguirá outra comitiva

107 Deve saienlar-se que a Diamang, enquanto empresa privada e operando numa espécie de "Estado dentro do Estado", pode constituir
um caso e~cepcialal, e diferente da "normaidade" da adllinistraçiio púbtica colonial, devido às capacidades e potencialidades efectivas
de controlo do tenil6rio e das populações sob a sua área de jurisdiçio, ao contráo:io da administração pública que, em muitas regiões
de Angola, e noutras ex1Jr0VIndas ullrantélinas nAo detinha os recursos, humanos e maleriais, para exerce um efectivo controlo das
populações e das autoridades tradicionais. Sobre esse assunto para Moçambique cf. Flocêncio 2003, 2005.
108 Sobre este assunto, e para o caso Ndau de Moçambique, nomeadamente do distrito de Mossurize, ver Florêncio, 2003, 2005.
NO II.EINO DA TOUPEIII.A. AUTOII.IDADES TII.ADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

do sob Iunda do Posto do Cambulo, Sakazamba "piri-píri~ com o mesmo destino." (in
Diamang, 1948)

Por seu turno, no que respeita ao caso Umbundu, Hermann Possinger defende que
as autoridades tradicionais foram perdendo relevância e poder ao longo do periodo co-
lonial, pelas transformações na sociedade Umbundu e pela subordinação da instituição à
administração colonial. No entanto, tomando como referência comparativa outros exem-
plos empíricos já estudados, pode adiantar-se que as transformações sociais e políticas
ocorridas nas instituições de poder tradicional, por via dos impactos das administrações
coloniais ou das transformações internas das próprias sociedades, nem sempre foram sufi-
cientes para destituir estas instituições da sua legitimidade política e religiosa, pelo menos
para partes significativas das populações rurais africanas.
Mesmo porque as autoridades jogavam por vezes um papel profundamente ambíguo
entre a defesa dos interesses do Estado colonial e das suas próprias populações, e não ra-
ras vezes assumiam mesmo um papel de liderança na resistência ou revolta das próprias
populações. Conceição Neto argumenta que a recolha do imposto e a pauperização que
provocava nas populações rurais obrigava mesmo as autoridades tradicionais a actuarem,
até para não perderem o respeito das suas populações, e por vezes revoltavam-se contra
a administração colonial, como no caso da revolta liderada pelo soma do Balombo, em
1930, que, segundo a autora, chegou a concentrar na sua ombala cerca de oitocentos ho-
mens armados (Neto, 2000).
No entanto, é inegável que os processos de transformação social ocorridos no planalto
central durante o século XX provocaram uma forte ruptura na relação de politicai ac-
countability entre súbditos e chefes, e que o surgimento de novas aldeias, a influência dos
missionários, as rupturas geracionais, e o modelo de organização social do trabalho, pro-
vocaram e permitiram o aparecimento de novos actores sociais, missionários, catequistas,
professores, enfermeiros, que concorriam directamente com as autoridades tradicionais,
em termos de liderança social e de prestígio (Possinger, 1986: 110).
A procura de novas terras conduziu à dispersão das populações dos seus kimbu
originais e essa emigração esteve na origem da criação de novas olovemba ( plural de
olumbala)i09 • Este processo produziu igualmente alterações no modelo da estrutura de
poder tradicional. A criação de novas olovemba conduziu ao surgimento de novas chefias,
novos olossékulu e chefes de clã, sem ligação ao modelo tradicional, mas que acabariam
por ser reconhecidos pela administração colonial em pé de igualdade com as legítimas
autoridades tradicionais.
A emigração acarretou também a perda de importância de vários olossoma, sekulu, e
chefes de clã, que viram diminuídos o seu poder face ao decréscimo populacional. Mesmo
os poderosos olossoma, tais como os soberanos dos grandes reinos, foram perdendo gra-
109 Segundo Hermann Possinger, este processo expansionista Ovimbundu conduziu à ocupação de todas as terras dispon lveis do planalto
central e à inCOIJlO!iiÇão de pequenos grupos não Ovimbundu. Para este autor o processo terminou apenas em 1957, altura em que foi
edificada a úhima aldeia por emigrantes Ovimbundu (Possinger, 1973; 43).

11, 1 111
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

dualmente o seu poder face aos seus olossékulu e outros olossoma subordinados, uma vez
que estes estavam agora mais dependentes da Administração colonial do que do próprio
rei (Possinger, 1973; 43).
Nesse sentido, pode afirmar-se que no Bailundo, e em geral em todo o planalto cen-
tral, as autoridades tradicionais Ovimbundu foram igualmente perdendo poder nas zonas
de forte influência missionária, sobretudo protestante. Novas aldeias foram florescendo ao
redor das missões e das escolas, nas quais a organização social já não assentava na lideran-
ça dos sekulu e dos chefes de clã, mas sim nos catequistas e nos missionários.
Por outro lado, a própria administração colonial também influiu bastante neste pro-
cesso de transformação do habitat, nomeadamente ao criar aldeamentos, ou concen-
trações, em especial durante a guerra de libertação colonial. No caso do Bailundo esses
aldeamentos forçados foram bastante escassos, pois tratava-se de uma região não abran-
gida pela acção dos movimentos guerrilheiro (MPLA, UNITA, FNLA), contudo sempre
existiram alguns, como salienta o ossoma de Chijamba, "[os portugueses] na região de
Luvemba só fizeram um [aldeamento], que era governado por um sékulu. Os que estavam
ali concentrados vinham de vários kímbos. Quem indicou o sékulu foi mesmo o soba
daquela área onde se construía a concentração" (in EBai2004-4).

Angola independente, da guerra à reconstruçio

Dinâmicas sociais da guerra angolana


As diferentes fases da guerra civil que depois da independência marcaram a história
de Angola110, a que se juntaram elevados movimentos populacionais do campo para as
cidades, constituíram um forte entrave à realização de estudos aprofundados sobre as
dinâmicas das populações rurais Ovimbundu e, no que importa a esta investigação, sobre
as transformações, os processos de legitimidade e a participação das autoridades tradicio-
nais Ovimbundu nessas dinâmicas rurais, quer nas zonas controladas pelo Estado quer
nas controladas pela UNITA. Um dos raros exemplos de trabalhos recentes com alguma
profundidade sobre as dinâmicas das sociedades rurais Ovimbundu é o de Fernando Pa-
checo (Pacheco, 2001).
O estudo de Fernando Pacheco desenrolou-se principalmente entre Janeiro e Feverei-
ro de 1997, em torno de quatro comunidades da província de Huambo: Pedreira, perto da
cidade do Huambo; Tchitwe, no município de Ekunha; Mbenda e Tchivembe, no municí-
pio de Tchikala Tcholohanga. A preocupação central do autor foi a de estudar as principais
transformações ocorridas nestas comunidades rurais desde a independência, os principais
impactos da guerra e os modos de organização e de reconstrução social utilizados pelas
comunidades.

110 Por uma questão de 'econooia de exposição' toma-se impraticável no âni>ito deste texto anaisar a guerra em Angola nas suas múHi-
plas e complexas vertentes.
NO 1\EINO DA TOUI'EIU. AUTOI\IDAOES TI\AOICIONAIS DO 11'1ALUNDU E O &STAOO ANGOLANO

Da leitura deste estudo sobressai uma primeira ideia, a da enorme fragmentação so-
cial que estes estudos de caso apresentam e que derivam da complexidade das dinâmicas
da própria guerra na região. Houve zonas que foram sendo sucessivamente ocupadas pe-
los dois beligerantes, provocando constantes flutuações populacionais e sucessivas recom-
posições sociais, e zonas mais estáveis onde o controlo político esteve mais tempo sob
a alçada de um ou do outro movimento. Nesse sentido é quase impossível adiantar um
padrão de transformação social para a região.
A guerra teve obviamente um enorme impacto nestas comunidades do planalto
central, provocando uma desestruturação do tecido produtivo familiar, quer ao nível da
produção agrícola quer das enormes perdas de gado; deslocações de população, quer em
movimentos voluntários quer forçados 111 ; ruptura no sistema de trocas comerciais, com o
desaparecimento de comerciantes e respectivas redes; e mesmo na fuga de missionários,
clérigos e catequistas. Segundo o autor, " ... rural communities were even more left to their
own devices, in a context of complete improvisation and uncertainty" (Pacheco, 2001: 68).
Por exemplo, no caso de Pedreira, que esteve quase sempre sob o controlo das forças
governamentais, no ano de 1983, face ao avanço das forças da UNITA, a população foi
forçada pelo governo a mudar-se para um lugar mais seguro, em Calima, e passado dois
anos teve novamente que se mudar para Tchipipa, regressando a Pedreira em 1986. A par-
tir de 1989 a população dispersou-se ainda mais, partindo para destinos como Benguela,
Luanda, e mesmo a Namíbia, à medida que a guerra se intensificava. Uma parte dessa
população não regressaria, nem mesmo durante o período de paz proporcionada pelos
acordos de Bicesse.
Segundo Fernando Pacheco, esta área foi profundamente desestabilizada durante a
guerra. Assim, depois da assinatura do Protocolo de Lusaka, em Novembro de 1994, as
forças em fuga da UNITA roubaram todo o gado da população, o mesmo fazendo as for-
ças governamentais que entretanto reocuparam a área. A população dedica-se sobretudo
a produção de subsistência. Contudo, a proximidade da cidade do Huambo permite, pelo
menos no período após a conquista da cidade pelas forças governamentais, uma certa
continuidade de trocas e de abastecimento (Pacheco, 2001:70-75).
A aldeia de Tchitwe 112 dista cerca de seis quilómetros da vila-sede do distrito de Eku-
nha. Neste caso a população manteve-se sempre nestas aldeias, que eram controladas pe-
las forças governamentais, à excepção do período entre 1993 e 1994, em que a UNITA
controlou a região. Aliás o pior período sucedeu após a retirada da UNITA, quando as
forças governamentais pilharam a aldeia. Nesta área, a população conseguiu, em geral,
manter o seu sistema produtivo, as suas terras de cultivo e o seu gado. Contudo, como
sublinha o autor, nesta região nos agregados familiares predominam as mulheres, o que

111 Estes movimentos forçados relacionam-se com as deslocações forçadas das populações rurais pa"a centros de pi'!Xecção, por parte
das forças governamentais, situados em geral nas vilas IT1Jniclpais, ou nas sedes comunais.
112 O au1or diz que a aldeia de Tchitwe não ebem uma aldeia, mas sim um agregado de várias aldeias, doninadas pela aldeia de Tchi1we-
Orri!ala. que é o núcleo onde habila o ossoma inene da região.

11a 1 119
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

implicou algumas mudanças na divisão sexual do trabalho familiar, e "women have taken
on responsability for marketing products, a role they did not have in the past" (Pacheco,
2001: 82).
Por sua vez, o caso de Mbenda é diferente dos casos anteriores, pois a aldeia princi-
pal, onde se situa a ombala, é habitada maioritariamente por populações pertencentes ao
grupo etnolinguístico Ngangela. Mbenda foi uma região dominada e ocupada predomi-
nantemente pela UNITA. Em 1987 foi atacada pelas forças governamentais, e a população
teve que fugir para aldeias vizinhas e só regressaria após os acordos de Bicesse. Nesse
processo de fuga, a população de origem Ngangela haveria de se misturar com populações
Ovimbundu, que se refugiaram na região. A aldeia de Mbenda fica afastada das principais
redes comerciais, o que significa que existe aí, segundo Fernando Pacheco, uma enorme
falta de bens de consumo que não sejam directamente produzidos pela agricultura local.
A população dedica-se assim sobretudo à produção alimentar de subsistência.
Tchivembe, também no distrito de Tchicala Tcholohanga, é uma ombala que resulta
de movimentos forçados da população, desde o período colonial, quando aí foi criado
um dos muitos aldeamentos que a administração portuguesa criou no planalto central,
como forma de controlar a população rural, e de a subtrair à influência dos movimentos
independentistas. Durante a guerra Tchivembe sofreu pressões de ambos as partes em
conflito, ora obrigando ao êxodo da população, ora sofrendo represálias e recrutamentos
forçados de ambos os lados. Em 1980 as forças governamentais atacaram a aldeia, e obri-
garam a população a refugiar-se na aldeia de Sambo, que é a sede da comuna. Contudo,
alguns camponeses preferiram refugiarem-se na zona controlada pela UNITA (Pacheco,
2001: 94). Em 1984, a UNITA ocupou a aldeia de Sambo, mas a população foi forçada
pelas forças governamentais a abandonar o lugar e a refugiar-se em Cuando. Ainda nesse
ano o governo atacou e ocupou novamente Sambo, e a população voltou a essa aldeia. Em
1990 a UNITA voltou a atacar Sambo, e a população, uma vez mais, foi forçada a evacuar
para Cuando, tendo regressado novamente a Sambo, em 1991, após os acordos de Bicesse.
Em 1993 a região, agora sob o controlo da UNITA desde 1992, foi atacada pelas forças
governamentais, e a população acabou por se dispersar, refugiando-se nas "matas·: Em
1995, após a assinatura do Protocolo de Lusaka, é que a população se voltou a juntar em
Tchivembe.
A história destes quatro exemplos demonstra bem, por um lado a pluralidade e a
fragmentação empírica com que se deparou a pesquisa enunciada, devido à diversidade
das dinâmicas locais e, sobretudo, devido às diferentes estratégias e interesses político-mi-
litares dos dois beligerantes, arrastando as populações locais nessas dinâmicas, exógenas e
desestruturantes, mas de dimensões e geometrias sócias, económicas e políticas diferentes
de local para local.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO H'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

O Estado angolano e as autoridades tradicionais


Por outro lado, o estudo do Fernando Pacheco também dedica uma parte importante
da pesquisa ao papel das autoridades tradicionais em todo este processo social e político
local, sublinhando igualmente a actual fragmentação e pluralidade de situações empíricas.
Começando por se referir ao período colonial, Fernando Pacheco concorre na mesma
direccionalidade do que foi dito anteriormente neste texto, e sublinha que nas regiões em
que efectuou esta pesquisa as mudanças ocorridas no planalto central por influência do
colonialismo provocaram um certo desgaste das autoridades tradicionais, e uma redução
significativa dos seus poderes, e que estas eram sobretudo encaradas como delegadas do
poder colonial, responsáveis por colectarem o imposto e controlarem o recrutamento para
o contrato. E que se defrontavam com outros actores sociais locais, tais como comercian-
tes, clérigos, catequistas e professores (Pacheco, 2001: 62). Fernando Pacheco também
alerta para o facto de que, em certas situações, as populações decidiam estrategicamente
apresentar às autoridades coloniais alguém que seria nomeado soba, mas que na realidade
não o era legitimamente, protegendo-se assim o verdadeiro assoma da dominação das
autoridades coloniais (Pacheco, 2001: 86).
No que se refere à actualidade, no caso da aldeia de Tchitwe, o assoma, que tinha sido
entronizado em 1987, desfrutava de grande prestígio entre a população, sendo simul-
taneamente o representante da autoridade tradicional e o indivíduo mais importante e
mais rico da região. Nele se combinando os aspectos da tradição com os da modernidade,
pois ele era igualmente o principal empregador da região, financiava pequenos projectos,
e arrendava meios mecânicos agrícolas e terras (Pacheco, 2001; 86). Deste modo, pode
dizer-se que o assoma era um actor social híbrido, como salienta Rouveroy van Niewaal a
propósito do papel actual das autoridades tradicionais africanas, na medida em que com-
binam de forma sincrética a modernidade com a tradição (van Niewaal; 1999).
Ao invés, em Mbenda, ainda segundo a pesquisa de Fernando Pacheco, a autoridade
tradicional local, que era de origem Ngangela, praticamente perdeu as suas prerrogativas
de poder político-administrativo, a favor do representante local da UNITA, que controla-
va a região, assim como as prerrogativas mágico-religiosas para os líderes das igrejas pro-
testantes (Pacheco, 2001: 92). Neste caso, o assoma detinha sobretudo um papel simbólico
para a população.
Em Tchivembe, por outro lado, parece que existia em 1997 um certo equilíbrio e coo-
peração entre a autoridade tradicional local, o assoma, e a autoridade política, a UNITA. O
assoma, nomeado em 1993, detinha um certo prestígio pois provinha de uma familia real,
e liderava com "bom senso': No entanto, o autor adianta que o assoma vinha perdendo os
seus poderes mágico-religiosos em favor dos líderes das igrejas locais (Pacheco, 2001: 98).
No geral o autor conclui que a instituição das autoridades tradicionais Ovimbundu
atravessava em 1997 um período de crise de legitimidade, desde o período colonial, com
enormes variâncias locais, consoante a história da própria comunidade, da relação das au-
toridades tradicionais com o Estado colonial e, na actualidade, com os partidos políticos.

120 1 121
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

Em certas regiões as autoridades tradicionais representam simultaneamente a tradição e


a modernidade e noutras perderam completamente todos os poderes para outros actores
políticos locais, partidos e igrejas (Pacheco, 2001: 107).
O próprio Estado tem provocado algumas alterações na estrutura de poder tradicio-
nal, introduzindo a figura do regedor geral, ou soba geral, uma espécie de "regedor dos
regedores" ao nível provincial. Deste modo, a percepção do autor é a de que o Estado tem
vindo progressivamente a "capturar" as autoridades tradicionais, atribuindo-lhes algumas
pequenas regalias, como uniformes e salários, e algumas tarefas administrativas, "and this
reinforces the perception that chiefs do not function as leaders of their people: they are simply
facilitators of community relationships, administrators of justice, lands, and housing, con-
flict managers, and intermediaries between the community and the State" (Pacheco, 2001:
108). E, ainda segundo este autor, mesmo os poderes mágico-religiosos das autoridades
tradicionais têm sido cerceados e "capturados" para outras instituições, nomeadamente as
diferentes congregações religiosas.
Em certa medida, parece passível adiantar-se que o Estado angolano procure utilizar
as autoridades tradicionais como estruturas administrativas locais, sob o seu controlo,
servindo de intermediários com as populações. Contudo, e como sublinha o próprio Fer-
nando Pacheco, este seu estudo apenas serve como indicador da situação, uma vez que
os dados recolhidos são bastante fragmentados e mesmo contraditórios, tornando-se im-
prescindível a realização de estudos mais aprofundados sobre as autoridades tradicionais
Ovimbundu (Pacheco, 2001: 106).
A relação entre o Estado e as autoridades tradicionais consolidou-se sobretudo após
o terminus da guerra civil. Confrontado com a principal questão de uniformizar a ad-
ministração da globalidade do território e da população angolana113 , o Estado angolano
acabaria por aceder a uma via já em voga nos restantes estados africanos 11 \ ou seja, o de
incluírem as autoridades locais, nomeadamente as autoridades tradicionais no processo
de formação do Estado pós-guerra civil, sobretudo ao nível rural.
Nessa conjuntura do pós guerra civil, a obra de Marques Guedes e Maria José Lo-
pes torna-se um marco incontornável na análise dos actuais processos de incorporação
das autoridades tradicionais angolanas no processo de formação do Estado (Guedes and
Lopes: 2007). Segundo Marques Guedes, o Estado angolano já sentia a necessidade de
incorporar as autoridades tradicionais no processo de controlo territorial e populacional,
desde o final da década de 1980, e a partir de 1992 atribuiu fardamentos, em tudo seme-
lhantes ao que o estado colonial tinha atribuído às autoridades tradicionais, um subsídio
mensal, e em certos casos até jeeps (Guedes, 2007: 31). Marques Guedes, retomando algu-
113 No sentido político-territorial, o tenitório angolano foi durante muito tempo após a independência bi-administrado, pela UNITA e pelo Es-
tado, e até mesmo tri-adminis1rado, pois a estas duas formas de administraçao politico-territorial ainda se deve considerar a existência
de areas significativas que nem eram administradas por nenhum dos dois movimentos.
114 Sobre esta temática existe uma eoormlssima billiografia desde a segunda metade da década de 1990, aqui indicam-se apenas alguns
autores tais oomo: Biersctlenk end Olvier de Sardan (1998); Fklrêncío (2005, 2008); Kessel and Oomen (1997): lundil and Machava
(1995): Mappa (1998): Rouveroy van Nieu\Mllll (1996, 1999) e Rouveroy van Nieuwaal and Rijk van Oijk (1999): Trolha (1996): Perrot
and Fauvelle-Aymar (2003): West (1998, 2005).
NO ltEINO DA TOUI'EIItA. AUTORIDADES TltADICIONAIS DO M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

mas das proposta teóricas já avançadas pela literatura, fala do papel de intermediários das
autoridades tradicionais115, ou como estando "half way points between the 'local' and the
'centrar (Guedes, ibidem: idem).
Neste trabalho, e a partir de quatro exemplos recolhidos na província do Huambo, ou
o autor analisa algumas dimensões das relações entre as autoridades angolanas e o Estado.
No primeiro caso, ocorrido em Novembro de 2002, na comuna de Sambo, um homem,
acusado de prática de feitiçaria, foi seviciado pela população local, facto que não resultou
em homicídio devido à intervenção do soma local. Foi caso foi depois apresentado ao
administrador da comuna, sob a acusação de feitiçaria. O administrador decidiu não dar
provimento ao caso. A população e o soma decidiram levar o acusado ao soma inene do
Sambo, Cipriano Kaningi. Este finalmente decidiu "exilar" o acusado para uma comuna
distante, em Chipeio, no município de Ecunha. Analisando o caso numa perspectiva legal,
Marques Guedes avança com a ideia de que o administrador mostrou uma ambivalência
sobre o caso, não o recusando nem o resolvendo, e o que o soma inene mostrou igualmen-
te estar "on the path to internalizing legal hybridism ( ... )"(Guedes, ibidem: 43). No final, a
actuação do administrador resultou "in a curtailing of the rights of circulaHon of the man
accused of witchcraft." (Guedes, ibidem: idem).
O segundo caso apresentado, ocorreu em 1999, na comuna do Mungo, que à época
estava ocupada pela UNITA. O soma, simpatizante do MPLA, fugiu para Luanda, e a
UNITA elegeu três mulheres para ocuparem o lugar vazio do soma. Com o fim da ocupa-
ção pela UNITA, e quando o Estado-MPLA assumiu o controlo do município, o anterior
soma regressou e com a ajuda do governador reassumiu a chefia da ombala e as mulheres
foram destituídas. Segundo Marques Guedes, este caso constituí uma "narrative about
pragmatic power politics in a situation of exceptional need" (Guedes, ibidem: 45), e uma
"desvalorização positivà' "( ... )as a normative fact, by the destitution carried out by the
returning soma" (Guedes, ibidem: idem).
Já no terceiro caso, o autor apresenta-nos uma situação que ocorria no campo de
refugiados de Casseque, perto da cidade do Huambo, na qual o líder do campo era o Co-
ordenador para a Cultura, António Pinho, um elemento do MPLA. Este elemento levava
a cabo as suas funções políticas e jurídicas num modelo híbrido entre tradicionalismo e
"participação popular~ combinando duas modalidades de regulação da ordem jurídica
local, assumindo o papel de soma e, por conseguinte de chefe do tribunal costumeiro, mas
sujeitando a sua decisão final à participação da assembleia, ou seja, imiscuindo um prin-
cípio da participação popular no sistema tradicional de julgamentos. Segundo Marques
Guedes, este modus operandi do coordenador da Cultura, resulta num "jurai and judicial
hybridity" (Guedes, ibidem: idem).
O quarto caso desenrola-se no ano de 2002, na província de Cuando-Cubango. Um
conjunto de sobas, liderados pelo rei Bingo-Bingo apresenta ao governador provincial oito

115 Sobre o papel de intennediários ver por exemplo Rouveroy van Nieuwaal (1996, 1999) e Rouveroy van Nieuwaal and Rijk van Dijk
(1999).

122 I 1n
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM AFRICA

sobas acusados de feitiçaria, pedindo a sua detenção. O governador, alegando que o caso
não se consignava com a lei, recusou a sua detenção. Contudo, o governador decretou
a criação de uma comissão para "julgar" o caso. A comissão julgou e condenou os oito
acusados à pena de morte por pelotão de fuzilamento militar. A execução, que ocorreu
uns meses depois foi pública. Quando o facto se soube no governo central, os membros
da comissão e do pelotão, assim como o governador foram igualmente julgados e detidos.
Segundo Marques Guedes, este caso demonstra bem a ambivalência com que as au-
toridades angolanas lidam com as autoridades tradicionais e com as leis costumeiras. Se-
gundo o autor," From the States angle, the recognition-integration of local power figures ful-
fills two main functions: it allows for an extention of its implantation, even if only in indirect
terms; and generates and gives off dreamy images of a return to national forms of organiza-
tion(... )", por sua vez, para as autoridades tradicionais "such a recognition-integration also
fills various functions, by widening its territory and implantation, augmenting its means for
the exercise of power (... )"(Guedes, ibidem:47).
Nesta abordagem do autor ressaltam talvez dois dos assuntos mais problemáticos da
integração das autoridades tradicionais nos processos de formação do estado em Afri-
ca: o papel ambivalente das autoridades tradicionais e a integração de ordens jurídicas
controversas. No primeiro caso, o sistema de indirect rule, que durante muito tempo era
encarado como uma relação de dominação-subordinação dos estados sobre as autorida-
des tradicionais 116, começa agora a ser encarado como uma relação muito mais complexa
e ambivalente, em que ambos os actores usam as suas capacidades e legitimidades, ora
reforçando-se mútua e estrategicamente, quer em termos de legitimidade quer de fontes
de dominação, ora degladiando-se, pela dominação da relação. Aliás, este ponto é bem su-
blinhado por Marques Guedes ao sublinhar precisamente que "Indirect rule does increase
State capabilities, also at the levei of local recognition (... ). Likewise, mechanisms of indirect
rule do indeed also offer local chiefs a supplement both offorce and legitimacy (... )':e ainda
para consubstanciar a complexidade da relação, "Both State and local social actors have
what are often fairly clear-cut agendas( .. .)"(Guedes, ibidem:57).
O segundo aspecto conduz à temática do pluralismo legal, e das suas consequências,
sobretudo no caso dos estados fracos 117 • Para o caso de Angola, é bastante interessante a
análise que N'Gunu Tiny produz na obra de Marques Guedes e Maria José Lopes.
N'Gunu Tiny neste artigo interessa-se por saber em que medida a actual, e a futura,
Constituição angolana íntegra as autoridades tradicionais no seio do sistema legal ango-
lano. Nesse sentido começa por adiantar que a actual Constituição não faz nenhuma refe-
rência explícita às autoridades tradicionais, e o que o projecto em discussão para a futura
Constituição menciona o direito tradicional, ou costumeiro, como sendo parte integrante

116 Um dos expoentes desta leitura é sem dúvida Trutz voo Tráha que no artigo de 1996, 'From Administrativa to Civil Chieftaincy. Some
Problems 111d Prospec1s of African Chíeftaincy", argumenta precisamente que os estados coloniais esvaziaram as autoridades tradicio-
nais ao ponto de as encapsularem em tarefas rreramente administrativas. Uma possivel crítica a esta postura pode-se encontrar em
Florêncio, 2005 e 2008.
117 Tomando de e!l1ll'éstimo o conceito de weak state de John Migdal.
NO ~EINO DA TOUPEI~A. AUTO~IDAOES T~ADICIONAIS DO M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

do sistema legal angolano (Tiny, 2007: 69). Por outro lado, o projecto da futura Consti-
tuição pretende incorporar as autoridades tradicionais africanas, enquanto elementos que
constituem o denominado "poder local" (Tiny, ibidem: 70}.
Numa discussão mais teórica, e de certo modo legalista mas que se torna relevante no
contexto deste trabalho, este autor defende que existem dois modelos de acomodação 118
das autoridades tradicionais e dos sistemas costumeiros no sistema legal nacional: o mo-
nista, ou de integração; e o dualista, ou de reconhecimento. No primeiro caso, as autori-
dades tradicionais são integradas como parte da administração pública, numa espécie de
sistema de indirect rule 119• No segundo modelo, as autoridades tradicionais são encaradas
enquanto representantes e líderes das suas próprias comunidades. Contudo, em qualquer
dos modelos a relação entre o Estado e as autoridades tradicionais é sempre encarada de
um prisma hierárquico de subordinação dos segundos aos primeiros, isto é, nenhum dos
dois modelos expressa uma verdadeira visão pluralista da relação (Tiny, ibidem: 74}. No
caso angolano, e seguindo a ideia do autor, a relação é hierárquica e vertical e, por conse-
guinte, não se trata de um sistema pluralista, no sentido nem prático nem normativo. Na
verdade o modelo da relação começou por ser do tipo dualista, ainda nos anos de 1980,
e na actualidade é mais do tipo monista (Tiny, ibidem: 77), tentando com isso o Estado
angolano exercer um controlo sobre as autoridades tradicionais e sobre as próprias comu-
nidades120.
Contudo, e como já foi demonstrado por vários autores 121 , esta relação nem sempre
pende a favor do Estado, e a capacidade das autoridades tradicionais manipularem a rela-
ção em seu favor é bastante significativa, variando logicamente de contexto para contexto,
e dependendo também do carisma e da fonte de legitimidade das próprias autoridades
tradicionais, tomadas no sentido singular. Deste modo, e ce-pegando a questão do plura-
lismo jurídico, em muitas situações a autoridade jurídica das autoridades tradicionais, não
só não constitui um complemento de democraticidade ao sistema legal nacional, como
ainda coloca em risco, ou constitui uma ameaça, a esse mesmo sistema nacional, nome-
adamente em todos os assuntos que envolvem feitiçaria, mais concretamente no que diz
respeito aos sistemas punitivos costumeiros.
Esta questão da "supostâ' democraticidade do modelo de pluralismo jurídico encon-
tra-se fortemente relacionada com os actuais processos de formação dos estados africa-
nos, do mesmo modo e em concomitância com o relevo dado às autoridades tradicionais.
Após o indiscutível falhanço do Estado em África, nas décadas de 1970 e 1980122 , a mira-
culosa solução surgiu nos anos 1990 com a introdução das agendas sobre a democracia, a

118 No original em inglês usa-se o lermo 'accommodstion' .


119 Sobre a pertinência da utiizaçio actual do termo ildrect rule ou soa substituição pela expressao neo-indillct rule cf. Florêncio, 2008.
120 Apesar do conceito de comunidade apontar para uma a111Jia discussAo sobre o seu emprego no contexto actual africano, nio se pre-
tende aqui discuti-lo e assim eiTipfllga-se sem outro alcance senio o de sinónimo de conjooto de populaçOes locais.
121 Por exemplo Florêncio, 2005, 2008.
122 De destacar, na imensa ~teratura sobra o assunto, a l"lJrescindivel obra de Jean-François Bayart, de 1989, L'État en Afrique. La poiti-
que du ventre, Paris, Fayard.

t24 1 12s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

descentralização, ou a community based development e a good governance, enquanto pana-


ceias retemperadoras dos malefícios provocados pelo centralismo e autoritarismo estatal.
No âmbito da procura da autenticidade comunal africana, as "traditional authorities was
ready candidates as community representatives" (Orre, 2007: 140). Nesse sentido, no pós-
guerra civil o Estado angolano tem seguido uma prática em tudo semelhante a outros es-
tados africanos, nomeadamente, como sublinha Aslak Orre, ao caso moçambicano (Orre,
ibidem: 184).
No caso angolano, ainda segundo Aslak Orre, pode demarcar-se duas tendências con-
traditórias: a de centralização dos processos de construção do Estado, durante as décadas
de 1970 e 1980, fortemente marcadas contudo pela ineficácia e incompletude do proces-
so, ao nível nacional, devido à guerra civil e à tri-administração do território; e a actual
tendência de desconcentração e de descentralização. Segundo este autor, esta nova fase
inaugura-se a partir da criação do decreto-lei 17/99 que define os papéis e competências
do governo local (Orre, ibidem: 185). Na verdade, e segundo Aslak Orre, o que está em
jogo nesta lei é a implementação de um processo de desconcentração dos serviços e fun-
ções estatais, aos níveis provinciais, municipais e comunais, mas que não preconizam uma
descentralização efectiva do estado, antes um reforço da autoridade e hierarquização do
Estado central ao nível da globalidade do território nacional (Orre, ibidem: 186).
Esta tendência de controlo e autoridade do Estado central angolano, ou mais concre-
tamente do Partido-Estado 123 , que se pretende hegemónico, revela-se também no modo
de relacionamento e de integração das autoridades tradicionais no actual processo de for-
mação do Estado local. Processo marcado por uma fortíssima ambivalência, pois por um
lado, assente numa tendência dirigista hegemónica do tipo top-down, todo o processo é
controlado a partir do MAT (Ministério da Administração Territorial); mas com sinergias
e dinâmicas muito variadas e pragmáticas ao nível local.
Por outro lado, a ambivalência também se faz notar ao nível da natureza da própria
aliança estratégica entre Estado e autoridades tradicionais. Se por um lado o Estado tenta
instrumentalizar as autoridades tradicionais enquanto "funcionários administrativos, e
partidários, locais, como parte do processo de extensão, consolidação e legitimação para
as populações, sobretudo rurais, por outro lado, como sublinha Aslak Orre,

"the traditional authorities are also themselves suffering (... )a legitimacy crisis. (. . .) Due
to enormous demographic changes associated with the war refugees and urbanization, tra-
ditional authorities's power is waning. Many are also afraid of the consequences of raising
their heads as traditional authorities, dueto previous alliances with UNITA during the war
"(Orre, ibidem: 191).

123 Apesar das profundas a~erações constitucionais de 1992, no caso angolano ainda é perfeitamente plausivel a apicação em termos
pragmaticos e de agenciaidade da noção de Partido-Estado.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

Este enfraquecimento dos processos de legitimação das autoridades tradicionais fo-


ram igualmente assinalados por Fernando Pacheco e Conceição Neto 124•
A referida tendência monista com que o Estado angolano pretende enquadrar as
autoridades tradicionais nacionais fica bem expressa num relatório de 1996, realizado a
pedido do MAT, e coordenado por André Sunda Dialamikua. Neste relatório, assume-se
claramente a necessidade de enquadrar as autoridades tradicionais angolanas debaixo da
alçada da administração central, pois como afirmam os autores,"( ... ) a necessidade de en-
quadrar, integrar e modernizar as Autoridades Tradicionais, reconhecê-las, respeitá-las e
torná-las mais adequadas e operacionais, constitui um assunto ao qual a política adminis-
trativa e o saber científico nacional não podem, nem devem escapar." (Dialamikua, 1996:
1). Aqui fica bem expresso que, o reconhecimento e o respeito que o Estado deve prestar
às autoridades tradicionais concretiza-se nesse cenário de integração e enquadramento.
A leitura do relatório também revela um aspecto interessante, e esquecido pela gene-
ralidade da literatura sobre o tema, nomeadamente o reconhecimento dos conflitos exis-
tentes, ao nível local, entre as autoridades tradicionais e os coordenadores dos Comités do
Bairro 125• Pode então ler-se neste relatório,

"O caso da contenda, em alguns pontos do País, entre os coordenadores dos Comités de
Bairro e os sobas é clarividente nos nossos dias de pós-independência. Reconhece-se que,
durante a luta contra a ocupação colonial, as Autoridades Tradicionais desempenharam
um papel activo e positivo, colaborando com as forças nacionalistas. Mas proclamada a
independência e projectada a reconstrução nacional as chefias tradicionais não foram re-
conhecidas e tidas em conta para a administração local, sendo substituídas pelos Coorde-
nadores dos Comités de Bairro, muitas vezes desconhecidos ou estranhos da colectivida-
de, que a ninguém representavam, mas a quem, por medo deviam obedecer" (Dialamikua,
1996: 3)

Contudo, é só a partir de 2000 que a questão da integração das autoridades tradi-


cionais, e sobretudo a questão do poder local e da descentralização, começam a ganhar
especial relevo, quer nas agendas políticas estatais quer da sociedade civil. Nesse sentido,
saliente-se o relatório de 2001, elaborado pelo Grupo Técnico para as Questões Jurídico-
Legais, apresentado ao Conselho de Ministro, em Setembro desse mesmo ano. Denomi-
nado de Plano Estratégico da Desconcentração e Descentralização Administrativas: o Poder
Local Autárquico e o Poder Tradicional em Angola, este relatório apresenta um conjunto
de propostas com vista a traçar uma estratégia de organização da administração ao nível
local, municipal e comunal.
Logo na sua Introdução, os autores justificam tal estratégia com base em dois pressu-
postos de enorme significado. Por um lado a constatação do falhanço das anteriores ini-

124 Ver ambos supra neste trabalho.


125 Estrutura do partido MPLA e do Estado, um pouco à semelhança dos secretários de bairro. em Moçambique. Sobre o conHito entre as
autoridades tradicionais em Moçambique e os secretários de bairro. cf. Florêncio 2003, 2005.

12, 1 121
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

ciativas legislativas, nomeadamente dos decretos-lei 17/99, 27/99 e do Decreto-Executivo


80/99. Em segundo lugar, e de modo bastante relevante, os autores justificam a neces-
sidade deste plano estratégico precisamente a partir das debilidades do Estado central,
num contexto ainda marcado pela guerra civil, pois como afirmam " A situação de guerra
e de instabilidade militar reflecte-se imediatamente, na debilidade geral do Estado e da
sua administração, estruturação, funcionamento, autoridade, coesão e eficiência" (Grupo
Técnico para as Questões Jurídico-Legais, 2001 : 5). Ou seja, o processo de construção do
Estado local deve constituir uma prioridade dada a ineficácia, incapacidade e falta de le-
gitimidade do Estado central em controlar administrativamente a totalidade do território
e da população.
Os autores da proposta defendem um processo de construção do Estado local gradu-
alista, assente em 3 fases: uma fase inicial de desconcentração administrativa, seguida de
uma fase de descentralização administrativa, e posteriormente da criação de autarquias.
Nas suas próprias palavras " ( ... ) um programa global, faseado e gradualista de, num
primeiro momento, reforma da administração local do Estado, e, depois, de institucio-
nalização de um poder local autónomo autárquico e tradicional" (Grupo Técnico para
as Questões Jurídico-Legais, 2001: 10). O que se concebe como poder local autónomo
autárquico e tradicional não é cabalmente definido, o que pode significar que, em 2001,
ainda não existia uma ideia clara do lugar e tipo de papel que as autoridades tradicionais
poderiam jogar neste processo. Nesta aparente confusão, os autores defendem que "o prin-
cípio da autonomia local não pode ser sinónimo de autarquias locais mas deve, no plano
orgânico, ter como manifestação não só as autarquias locais mas, também as instituições
organizatórias tradicionais" (Grupo Técnico para as Questões Jurídico-Legais, 2001: 14-
15). Aliás, os autores enfatizam mesmo que as autoridades tradicionais são,
"uma das manifestações da autonomia local e desde logo, como um elemento estru-
turante e qualitativo do nosso conceito de poder local( ... ). O reconhecimento do poder
tradicional como uma instituição autónoma é um imperativo do princípio do Estado de-
mocrático de direito aplicado a uma realidade específica como a nossa."( Grupo Técnico
para as Questões Jurídico-Legais, 2001: 29).
Nesse âmbito, o relatório defende que as competências das autoridades tradicionais
deve confinar-se ao espaço territorial-administrativo das povoações e comunas, e que as
suas funções se enquadrem na,

"administração de bens próprios, na promoção do desenvolvimento e da actividade pro-


dutiva; abertura e manutenção de vias de acesso; recenseamento da população; protecção
do meio ambiente, do património físico e cultural; divulgação e implementação das deci-
sões dos órgãos autárquicos e do Estado,( ... )"(Grupo Técnico para as Questões Jurídico-
Legais, 2001: 30).

Por este relatório pode depreender-se que para os autores as autoridades tradicio-
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDAOU TRADICIONAIS 00 M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

nais, assim como as autarquias, fariam parte desse poder local, a ser institucionalizado ao
nível das comunas e das povoações. No entanto, o plano estratégico é bastante ambíguo,
ou pelo menos bastante impreciso, na definição do que seria o "poder local autárquico
e tradicional': Muito mais preciso é o texto de Carlos Feijó, produzido ainda em 2000.
Nesse texto o autor precisa o que entende por poder local, diferenciando as relações entre
o Estado, as autarquias e as autoridades tradicionais.
Essencialmente centrado sobre as questões da descentralização, neste texto de Carlos
Feijó interessa preferencialmente retirar a noção de poder local, pois ela virá a influenciar
alguma da produção legislativa consequente, até pelo papel do autor nessa mesma pro-
dução. Desde logo, o autor refere que o poder local se encontra relacionado com a auto-
determinação, e que ele deve ser constituído por órgãos representativos das populações, e
que o poder local se diferencia da descentralização administrativa, por exemplo,

"( ... ) o poder local não é operacionalizado por qualquer descentralização territorial. ~
necessário que a descentralização administrativa seja encarada no plano jurídico e pollti-
co, isto é, não é, pelo facto de, por exemplo, existirem autarquias locais, no plano jurídico,
que se deve aferir a existência de um verdadeiro poder local. E. necessário, ainda, apurar
se no plano político, os órgões das autarquias locais são, livremente, eleitos pela população
locais" (Feijó, 2000: 3).

Avança depois para uma definição de poder local, que,

"deve ser definido como aquele poder político originário ou derivado exercido, nos termos
da lei, a nível das comunidades locais através de órgãos descentralizados, de instituições
organizatórias tradicionais e de outras formas de participação democrática das população
visando a satisfação dos seus interesses próprios" (Feijó, 2000: 3).

Carlos Feijó apresenta assim uma visão autonómica do poder local, englobando nele
as autarquias, as autoridades tradicionais e outras organizações de base, como as comis-
sões de moradores, por exemplo (Feijó, 2000: 4). Neste contexto, a visão do autor poderia
definir-se mais no sentido de uma integração dualista das autoridades tradicionais, pois
o próprio autor define este tipo de poder local como "anterior do Estado ou até mesmo
desenvolver-se fora dele': e ainda de que esta instituição deveria ter um reconhecimento
constitucional, mas, segundo o autor, " trata-se de apenas de reconhecimento de uma
realidade pré e extra-estadual( ... )"(Feijó, 2000: 4).
Ainda com a guerra a decorrer, a FONGA' 26 realiza em 2001 duas importantes inicia-
tivas, o Workshop de Reflexão sobre o Papel das Autoridades Tradicionais na Construção
da Paz em Angola, entre o dia 8 e lO de Agosto; e o Encontro "A Autoridade Tradicional
em Angola: Estudo Analítico e Avaliativo da Crise em Angola", entre os dias lO e l3 de
Setembro. No primeiro caso, o workshop tinha como objectivos:

126 Fórum das Organizações Não Governamentais Angolanas.

121 1 12,
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

"I) Juntarmos entre as autoridades tradicionais, filhos genuínos, intelectuais vinculados


no poder moderno, para junto mediar a dimensão dos reinados visando a consolidação do
seu poder; 2) Pôr em destaque a legitimidade das autoridades tradicionais angolanas e o
seu papel na busca da paz genuína para todos; 3) facilitar o papel do governo angolano em
termo da criação de estruturas base para um recenseamento populacional nacional, algo
que sempre foi difícil desde a independência" (FONGA, 2001:1).

No segundo caso, o Encontro apresentou os seguintes objectivos:

"( ... ) criar um espaço apropriado para o verdadeiro exercício do poder tradicional, na
busca definitiva em Angola, a) informando os participantes em particular e a sociedade
em geral, sobre o estado actual do exercício do poder tradicional( .. . ) b) Buscando conhe-
cimentos e experiências dos mais velhos em termo de mecanismos apropriados para facili-
tar a busca de paz em Angola com contributo do poder tradicional- c) Criando condições
para a elaboração de uma proposta lei de base sobre o poder tradicional em Angola - d)
Formulando um plano/agenda para a paz em Angola:' (FONGA, 2001: 1-2).

Do Encontro saíram ainda uma série de conclusões e recomendações, que importam


referenciar:

"1 o Criação de um espaço jurídico das autoridades tradicionais angolanas para a defesa
dos interesses
1.1 A criação de uma comissão das autoridades tradicionais para a mediação do con-
flito angolano;
1.2 A realização de encontros das autoridades tradicionais angolanas com sua Exce-
lência presidente da república, o Eng. o José Eduardo dos Santos e com o líder da
UNITA, o DR Jonas Malheiro Savimbi;
1.3 A promoção de uma agenda de encontros entre as autoridades tradicionais ango-
lanas com as autoridades tradicionais de outros países para troca de experiência.
2° Recomendações
2.1 Ao governo angolano a criação de duas câmaras parlamentares a dos deputados
eleitos e as do poder das autoridades tradicionais;
2.2 Ao governo angolano de promover o diálogo entre as partes em conflitos, o cessar-
fogo imediato e a participação das autoridades tradicionais angolanas na resolu-
ção do conflito;
2.3 Que o poder tradicional abrange no orçamento de estado;
2.4 Ao governo angolano não vender as terras para outros fins que sejam;
2.5 Ao governo angolano criar um quadro legislativo para as autoridades tradicionais;
2.6 Que sejam envolvidas ou/e consultadas as autoridades tradicionais locais na ex-
ploração dos recursos naturais;
2.7 O governo angolano garante a justiça social em Angolana e sobretudo a restrição
da dignidade humana através do reassentamento populacional nas áreas de ori-
gem." (FONGA, 2001: 2).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO H'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

Este conjunto de conclusões e recomendações parece bastante revelador no que con-


cerne algumas questões envolvendo as autoridades tradicionais. Desde logo, parece evi-
dente que não se queriam encerrar num papel eminentemente consultivo e culturalista,
pelo contrário, planeavam até um papel de intermediários activos na agenda pela paz. A
recomendação 2.1 é bastante lapidar na proposta de criação de uma câmara paralela à dos
deputados, conferindo às autoridades tradicionais um lugar de poder constitucionalizado.
Também a reivindicação de regalias previstas no orçamento de Estado, denota uma pre-
tensão política e uma intenção de integração no aparelho administrativo estatal, de resto,
algo bastante semelhante à situação auferida sob a administração colonial.
Aliás, a questão da constitucionalidade das autoridades tradicionais angolanas é uma
das principais reivindicações de alguns dos seus titulares, bem assim como de académicos
(Tiny, 2007; Dialamikua, 1996; Feijó, 2000, entre outros}, e políticos, como atesta a comu-
nicação do antigo Primeiro-ministro, Fernando da Piedade Dias dos Santos, que defendeu
em 2003 que o Estado angolano tinha que "conferir dignidade constitucional ao poder
ou autoridade tradicional no país': e que "deve ser reconhecido no texto da Constituição
angolana como uma das manifestações da autonomia local, a fim de se constituir num
'elemento estruturante e qualificativo do conceito de poder local" (ANGOP, 25/02/2003).
O Estado central angolano, uma vez terminada a guerra civil, e em face de se ver con-
frontado com o processo de extensão da administração à totalidade do território nacional,
e mais concretamente com o esforço de formação do Estado ao nível local, centrou em si
a condução do processo de desconcentração e de descentralização, através da intervenção
do MAT (Ministério da Administração do Território). Nesse âmbito, o MAT desenvolveu
e patrocinou uma série de estudos que se centram na adjudicação de modelos de descon-
centração e descentralização, de definição de Poder Local, de criação de autarquias e de
inclusão das autoridades tradicionais. Num modelo essencialmente de top-down, dirigido
a partir do Estado central.
Nesse propósito, o MAT organizou em 2002 o 1° Encontro Nacional Sobre a Autori-
dade Tradicional em Angola 127• Num documento síntese desse encontro, o MAT esclarece
desde logo as intenções da organização do evento, nomeadamente a,

"necessidade de criar mecanismos que permitam que a Autoridade Tradicional tenha uma
acção complementar ao Estado Democrático e de Direito, com um único objectivo, um
melhor enquadramento das populações para uma harmonia sã e permitir a consolidação
da unidade nacional. Neste contexto, a Autoridade Tradicional pode e deve ajudar a ac-
ção governativa do Estado pelo que necessita do apoio moral das autoridades modernasn
(MAT, 2002).

Igualmente de enorme relevo é a lista de propostas que as próprias autoridades tradi-


cionais presentes nesse encontro elaboraram:
127 Em 2008 o WIT palrocinou um 2" Encontro dasAu1oridades TradicionrisAngolalas, cujas conclusões pouco adiantam em relação ao
1• Encontro, e que retorçam sobretudo a necessidade de enquadramento juridico-legal ao nível nacional das autoridades lradiclonais.

13o 1 131
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

"Propostas da Autoridade Tradicional sobre a coabitação com o Estado.


Reconhecimento do seu Estatuto e da sua dignidade sob o ponto de vista constitucio-
nal.
Reconhecimento da sua comparticipação na melhoria das condições de vida das suas
comunidades.
Reconhecimento da sua qualidade e guardião da cultura.
Reconhecimento das suas decisões no âmbito do Direito consuetudinário deixando
ao Estado apenas casos de maior gravidade.
Introdução de matérias de identidade cultural angolana, como por exemplo as Lín-
guas Nacionais, nos currículos escolares para a conservação dos bons hábitos na ju-
ventude.
Recomendação ao Governo da busca da paz de modo a permitir o regresso das po-
pulações as suas regiões de origem, para o cultivo da terra, a união das famílias e da
sociedade em geral.
Entronização dos reis de acordo com as regras usos e costumes de cada reino.
Aceitação, por parte do governo, do papel de consulta e de apoio das Autoridades
Tradicionais para a solução de problemas a tomadas de decisão sobre matérias de
interesse Nacional.
Manter o seu traje tradicional de acordo com seu grau hierárquico.
Construção de monumentos a outros heróis da resistência colonial tal como se fez ao
Rei Mandume.
Protecção por parte do Governo dos povos não Bantu do Cunene (Vatwa, Koisan,
e Kwisi), criando-lhes as indispensáveis condições essenciais e canónicas:· (MAT,
2002).

Apesar do clima de aliança que pareceu marcar este encontro, contudo a leitura deste
documento revela que o MATe as autoridades tradicionais não parecem partilhar o mes-
mo modelo relacional, pois o primeiro aponta para um modelo de integração essencial-
mente monista, como se esclareceu anteriormente, e as autoridades tradicionais parecem
reclamar um modelo de integração mais dualista.
O processo iniciado, ainda em 2001, de preparação deste encontro nacional, permitiu
ao MAT recensear uma vastidão de autoridades tradicionais em todo o território. Por
exemplo só na província do Huambo o MAT recenseou 85 sobas grandes, 333 sobas e
2.452 sékulus. No total nacional foram recenseados 15 reis e rainhas, 1.973 sobas grandes,
11.574 sobas, 18.653 sékulos 128,
Em 2003, e ainda da iniciativa do MAT, elaborou-se um relatório sobre a desconcen-
tração e descentralização (MAT, 2003). Neste documento, defende-se logo no inicio que
o processo originado pela implementação do Decreto-lei 17/99 fomentou a criação e con-
solidação das administrações provinciais mas que não foi mais além, e, há época da ela-
boração do documento, ainda não se tinham consolidado as administrações municipais,

128 MAT, 'Mapa de Controlo Estatístico do Poder Tradicionar. de 30.06.2004. De referir que no caso da provincia do Huambo não é referido
neste documento nenhum rei, deste modo parece que, pelo menos em 2004 o Estado ainda não reconhecia o actual rei do Bailundo,
Ekuikui IV, nessa categoria.
NO "EINO DA 'I'OUI"EikA. AUTOIUDADES TII.ADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

e muito menos ainda as comunais (MAT, 2003: ii). Neste domínio, o documento salienta
que as comunas, que estavam inscritas na Lei Constitucional de 1975, foram abolidas em
1989, Decreto-Lei 21/88, e reintegradas em 1999, pelo Decreto-Lei 17/99. E que os bairros
e povoações, ou seja, as categorias administrativas inferiores às comunas nunca foram
objecto de enquadramento institucional (MAT, 2003: 9). Nalgumas províncias criou-se a
figura do administrador de sector ou de bairro, precisamente para preencher essa lacuna
da organização administrativa territorial.
Nesse mesmo relatório reforça-se a ideia, já anteriormente exposta, de que o poder
local é o conjunto integrado pelas autarquias locais, instituições do poder tradicional e a
sociedade civil (MAT, 2003: iv), e que o poder tradicional, "é um poder político anterior
ao poder de Estado, com suporte na religião, na organização social e no parentesco, não
reconhecido no plano jurídico e constitucional" (MAT, 2003: v). Ao nível das funções,
defende-se que as funções das autoridades tradicionais devem ser :

"( ... ) nos domínios de gestão de terras comunitárias e participação na definição dos direi-
tos de posse ou ocupação, uso e fruição sobre os terrenos rurais comunitários; abertura e
manutenção de vias de acesso aos terrenos vicinais; recenseamento da população; registo
de nascimento e falecimento; educação para a saúde e cuidados primários de saúde; alfa-
betização; ordenamento do território ( ... );construção e manutenção de infra-estruturas
sociais; execução de programas de auto-construção; preservação de floresta e fauna bravia;
conservação do património físico e cultural; organização de produção agro-pecuária; ex-
ploração de recursos naturais; lenha; reassentamento da população; cobrança de taxas e
impostos; organização dos mercados locais" (MAT, 2003: v)

Realce-se que estas funções já estavam quase todas elas consignadas na RAU e nas
atribuições das autoridades tradicionais para o Estado colonial. Também se deve salientar
que o relatório não defende nenhum papel das autoridades tradicionais no capítulo jurídi-
co. Além disso, o documento reconhece que em muitas partes do território, precisamente
pela ausência de escalões administrativos inferiores às comunas, e pela ausência de ad-
ministradores de sector ou bairro, do ponto de vista informal as autoridades tradicionais
já asseguravam a actividade administrativa, exercendo mesmo algumas destas funções
(MAT, 2003: 9).
Num outro sentido, o relatório adianta que o "poder tradicional" foi homogeneizado
ao nível nacional, existindo actualmente três escalões, o de soba grande, soba e sekulu,
divisão essa que, no entanto, já prevalecia no período colonial, e que estava enquadrada
pela RAU, em 1933. E que o actual Estado paga subsídios a cerca de 37.930 autoridades
tradicionais (MAT, 2003:9). Neste aspecto este relatório parece algo contraditório, pelo
menos se tomarmos como referência outros documentos produzidos pelo próprio MAT,
pois este relatório contém um quadro (Quadro 8.1., pp.46) com o número e distribuição
por província das autoridades tradicionais que recebem subsídio do Estado, e no caso
da província do Huambo são referenciados 5 reis, ou seja 5 soma inene. Contudo, num

132 1 133
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

relatório de 2004, também elaborado pela MAT, não surge referenciado nenhum rei para
a província do Huambo. 129
Este modo de captação das autoridades tradicionais e sua integração no processo de
formação do Estado local angolano provocou contudo algumas reacções nos círculos ex-
ternos ao próprio MAT. Por exemplo, uma das vozes críticas do processo foi a de Concei-
ção Neto, que em várias comunicações, incluindo no próprio 1o Encontro, chamou a aten-
ção para várias questões importantes (Neto, 2002a e 200b). Sobretudo para a pluralidade
de situações e de contextos histórico-sociológicos angolanos, facto esse que obriga a um
relativizar constante, segundo a autora, do próprio conceito de autoridades tradicionais.
Essa história diferente e diferenciada coloca hoje problemas de legitimidade e inserção
local, como de resto já se tinha sublinhado anteriormente. Por outro lado, a influência do
regime colonial nestas instituições, e em certos casos de outros actores sociais, como as
igrejas, e que conduziram a mudanças significativas nas estruturas, fontes de legitimidade
e de poder, e de funções, leva a que a autora se insurja contra a perspectiva do "regresso':
ou do "restauro" das autoridades tradicionais': e interrogue sobre "que regresso?" e que
"autoridades tradicionais?" e que "funções?" (Neto, 2002a:8).

129 Vide supra, nota n• 62, deste texto.


NO 1\EINO DA TOU,EII\A. AUTOI\IOADES TI\ADICIONAIS 00 M'IALUNOU E O ESTADO ANGOLANO

As autoridades tradicionais do M'balundu e o estado local

Novas e "velhas" atribuições das autoridades tradicionais


O município do Bailundo faz parte da província do Huambo, e a vila-sede, vila do
Bailundo, dista cerca de 75 km da cidade de Huambo. Na actualidade o município cobre
uma área de 7.065 quilómetros quadrados, com uma população estimada em cerca de
243.349 habitantes.
Do ponto de vista administrativo, o município do Bailundo subdivide-se em seis co-
munas (comuna sede, Lunge, Luvemba, Bimbe, Hengue e Cuhulu); 64 olumbala; 555 kim-
bu/aldeias; 70 povoações 130 • Por exemplo, no caso da comuna de Luvemba, que no período
colonial era posto administrativo do distrito do Bailundo, criado em 1956, existem na
actualidade 17 olumbala, com 17 olossoma, dos quais 3 são considerados "grandes~ Chi-
jamba (que governa 18 aldeias/kimbu); Chiculupungu (13 aldeias}; Janjo (12 aldeias), (in
EBai2004-3) 131 • Na comuna de Lunge, existem actualmente 16 olumbala, das quais 3 são
consideradas "grandes" (Lunge, Ulundu e Chilemba), e 13 "pequenas': Existem 158 aldeias
na comuna (in EBai2004-5}.
Na comuna de Bimbe existem 13 olumbala, das quais 2 são "grandes (Chilala e Gan-
da}, e 77 aldeias, (in EBai2007-07}.

Divisão administrativa actual elo municipio do Bailundo 132


MUNICIPIO
-0-
COMUNAS

-0-
SECTORES
-0-
OMBALAS
-0-
KIMBUS/ALDEIAS

130 Em 2004, quando estes dados foram recollidos no governo municipal, segundo a informação da adrrinistradora municipal, Dona Bea·
triz, as povoações estavam todas desb'u idas ou ainda desabitadas (in entrevista EBai2004-1, de 19/0812004).
131 Entrevista com o administrador da comuna. sr. Joaquim Jarma, na aldeia de Lunge, sede da comuna, em 01/0912004.
132 Segundo dados recolhidos na entrevista com a administradora do municipio, Dona Beatriz, em 19108/2004; EBai2004-1.

11.o~ 1 11s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFIUCA

Estrutura de poder segundo a actual divisio administrativa 133


MUNICIPIO ADMINISTRAÇÃO OSSOMA INENE
_[]_ _[]_
COMUNAS ADMINISTRADOR
_[]_ _[]_
SECTORES SECRETÁRIO
_[]_
OMBALAS
_[]_
KIMBUS/ALDEIAS
D
SECRETÁRIO
OSSSOMA
_[]_
SÉKULU

Esta concepção da relação entre a divisão administrativa e as estruturas de poder


estatal e autoridades tradicionais, veiculada pela própria administração estatal munici-
pai, em 2004, denota uma profunda confusão conceptual e das práticas, misturando, no
mesmo modelo administrativo, duas estruturas, a tradicional e a estatal, sem qualquer
enquadramento legal que suporte esta concepção, e sem que seja claro se se trata de uma
concepção monista, dirigida a partir da administração e na qual as autoridades tradicio-
nais estão subordinadas, ou se, pelo contrário, se se trata de uma concepção dualista, na
qual as autoridades tradicionais gozam de autonomia. Em qualquer dos casos, ao nível
discursivo, e segundo a interpretação adiantada pela própria administradora municipal, o
rei do Bailundo, o assoma inene Ekuikui IV, estaria num nível similar ao da administração
e governaria os seus subordinados de forma autónoma.
Esta confusão conceptual encontra também, desde logo um problema prático, é que
os limites territoriais reconhecidos na actualidade ao reino do M'Balundu não coincidem
com os limites do município, e o reino abrange igualmente áreas nos municípios do Mun-
go, Lounduimbale e Tchicala-Tcholoanga, igualmente na província do Huambo, com al-
guns olossoma a exercerem o seu domínio nesses municípios, mas dependentes do assoma
inene Ekuikui IV. Neste sentido, pode dizer-se que, contrariamente ao que tem sido de-
fendido nos relatórios produzidos pelo e para o MAT, a área de jurisdição das autoridades
tradicionais do Bailundo vai muito para além dos limites territoriais municipais, o que co-
loca óbvios problemas de articulação entre o Estado local (municipal) e autoridades tradi-
cionais. Problema que se agrava com a inexistência de legislação nacional sobre o assunto.
Neste caso, o rei Ekuikui IV na prática, e para certas questões, tem que lidar com quatro
diferentes administrações municipais e quatro diferentes administradores municipais.
Contudo, é na área da administração municipal do Bailundo que o reino se encontra,

1331dem.
NO 1\EINO DA TOUPEII\A. AUTOI\IDADES TI\AOICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

"informalmente" pode dizer-se, enquadrado. Nesse sentido, a administração estabeleceu


desde 2004 um conjunto de encontros formais, mensais, com o ossoma inene, e os o/osso-
ma mais importantes, chefes de um número significativo de olombala, e que a administra-
ção, à semelhança do Estado colonial, apelida de sobas grandes. O rei faz também parte
integrante do concelho municipal, que é composto ainda pelo administrador, chefes de
secção da administração, pelo representante da IECA e da Igreja católica, do 1o Secretário
municipal do MPLA, e de entidades convidadas.
Também ao nível comunal se dá este tipo de articulação, pois trata-se de uma espécie
de emanação da forma de articulação municipal. No caso da comuna de Luvemba, a ad-
ministração comunal reúne a cada 15 dias (aos dias 15 e 30 de cada mês) com os olossoma
da comuna. É também ao nível comunal que mais se sente essa ambiguidade entre a divi-
são administrativa e a divisão do partido no poder, o MPLA. Por exemplo, no caso da co-
muna de Luvemba, o MPLA tem em cada ombala um comité de sector, com um secretário
de sector, e comités de acção, ao nível das aldeias, com um secretário de aldeia. De acordo
com o vice-administrador da comuna, Craveiro Lopes, apesar desta sobreposição de di-
visões e de responsáveis, não existem grandes conflitos entre os secretários de sector e os
olossoma, nem entre os secretários de aldeia e os olossékulu. Contudo, reconhece que por
vezes a administração utiliza os secretários como intermediários com as autoridades tra-
dicionais, e que isso coloca estas numa espécie de relação de subordinação aos secretários
(in EBai2004-3) 134• Isso também provoca uma enorme ambiguidade entre a administra-
ção, as autoridades tradicionais e o partido MPLA, uma vez que os secretários, sendo uma
estrutura partidária, acabam por jogar esse duplo papel com as autoridades tradicionais.
No caso da comuna de Lunge parece haver um entendimento diferente desta organi-
zação administrativa municipal, pois para o Administrador comunal não existe diferença
entre sector e comuna, e aqui só existe um sector. Por outro lado, em Lunge, e devido aos
efeitos da guerra civil, em 2004 a grande maioria dos olossoma ainda não vivia nas suas
olumbala originais, que é o lugar onde se encontram os akokotos. Além disso, e por falta
de meios, a Administração comunal só reúne com as autoridades tradicionais uma vez
por mês, precisamente a cada dia 30. Do ponto de vista do controlo exercido pelo MPLA
ao nível desta comuna, o partido instituiu em cada aldeia um comité de acção, com sete
elementos e um secretário, e que executa tarefas para o partido, mas também para a ad-
ministração, muito semelhantes às exercidas pelos respectivos olossekulu (in EBai2004-5).
Parece até que a confusão adensa-se precisamente ao cruzarem-se estes três tipos de
estruturas: governamental, partidária e tradicional. Deste modo, na comuna de Lunge, e
por iniciativa do partido MPLA, foi introduzida nas aldeias uma subdivisão em bairros,
ou zonas. Cada uma dessas zonas é agora igualmente controlada por um sekulu vitito,
como explica Adolfo Chitoma:

134 Entrevista com o IJice.Administrador da comuna de luvemba, sr. Craveiro Lopes. Sede da comuna, vila de São Miguel, em 31/0812004.

136 1 137
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

"bem, nas aldeias há sekulu pequeno porque há ajudante que ajudam o sekulu grande da-
quela aldeia, e esse ajudante é o sekulu pequeno. Sekulu grande é sekulu inene, o tal que
manda na aldeia, e sekulo pequeno é sekulu vitito. O tal ajudante só na ausência do sekulu
inene é que pode resolver problema. As aldeias agora estão divididas em zonas, bairros,
por causa do trabalho do partido [MPLA) e do governo. Nessas zonas está o sekulu e o
ajudante, e o catequista, da igreja católica, protestante, qualquer catequista. Este catequista
também está no conselho da aldeia" (in EBai2004-6)

Deste modo, afigura-se que na organização das aldeias, pelo menos a este nível, con-
correm diferente actores sociais locais, desde autoridades tradicionais (sekulu), autorida-
des partidárias (secretário do comité de acção), e religiosas (catequista), cada qual com
a sua estrutura de legitimidade e de poder político, e que em grande medida concorrem
para o controlo da população. Mesmo não existindo conflitos abertos, existe uma enor-
me sobreposição de funções entre estes actores sociais locais, nomeadamente entre os
secretários e os o/assoma e olossékulu, assim como divisões de tratamento, sobretudo ao
nível remunerativo, pois as autoridades tradicionais do M'Balundu recebem um subsidio
mensal, que foi definido ao nível nacional pelo MAT, enquanto os secretários de sector e
de aldeia não recebem qualquer tipo de remuneração nem subsídio.
Um outro tipo de confusão conceptual, que não é recente mas que advém já desde
o período colonial e que se perpétua, é a dos títulos. Por exemplo, o título de inene, que
como já se referiu em Umbumdu significa "grande~ pelo menos na actualidade acaba mui-
tas vezes por ser entendido num ponto de vista relativo e não num sentido substantivo.
Deste modo, o rei, que é considerado o ossoma o/assoma, literalmente "o soma dos somas~
é o ossoma inene para o conjunto da ofeka, reino, assim como os olossoma que se encon-
tram no escalão inferior ao rei são assoma inene para os seus subordinados, como salienta
o senhor Jino Kaiangula, actual assoma da ombala de Chijamba, na comuna de Luvemba,

"soma inene é soba grande, constitui o soba que é coordenador de todas as ombalas que
constituem a comuna. A comuna tem dezassete ombalas, mas essas dezassete ombalas que
representa como chefe de todas as ombalas. (... )esta ombala [Chijamba] é a ombala co-
ordenadora de todas as ombalas que constituem a comuna. (.. .) Soba é o regedor das
ombalas" (in EBai2004-4).

De igual modo, se diz que o sékulo do kimbu, da aldeia, é sékulo inene para todos os
membros do kimbu, como se pode constatar do depoimento anterior de Adolfo Chitoma.
Esta confusão semântica, prende-se com o facto de a Administração colonial ter in-
troduzido outras designações, que equivalem e substituem, ainda hoje, a de assoma, tais
como as de soba, ou mesmo a de regedor, como se constata do depoimento anterior. No
entanto, de modo algum se pode afirmar que a confusão semântica expresse alguma for-
ma de ambiguidade das práticas, uma vez que o reino contínua, apesar de tudo, a ter uma
estrutura de poder fortemente centralizada na figura do soberano, do assoma inene, do
NO 1\EINO DA TOUPEIIIA. AUTOIIIDAóE5 TIIADICIONAI$ 00 M'IALUNDU li O ESTADO ANGOLANO

ossoma olossoma. Como sublinha o ossoma Adolfo Chitoma, da comuna de Lunge:

"Nós cumprimos todos a lei do Katchiopololo, que é a nossa. Eu sou menor dele. Sou
grande aqui na comuna mas quanto ao munidpio quem manda é o mais velho. Nós, todos
problemas que passa aqui na comuna temos que ir cumprir ou buscar ao rei. Ele é que nos
manda, todos os sobas do munidpio, as quatro comunas, cumprimos ao rei. Então temos
que deixar tudo o que nos falta. Então temos que ir a ele puxar o que devemos trabalhar
aqui nas comunas"(in EBai2004-6).

Contudo, em certos casos o discurso das autoridades tradicionais já incorporou no-


ções que lhe são exógenas, e que têm a ver com a modernidade e os discursos sobre a
democracia e a "vontade do povd: Por exemplo, o discurso do ossoma Adolfo Chitoma,
se por um lado reforça e sintetiza a componente hierárquica e centralizadora da estrutura
tradicional, como se constata no trecho anterior, por outro, introduz nuances discursivas
contraditórias, mas que sublinham essa visão da democracia e da modernidade, ao dizer,
a propósito do processo de sucessão dos olossekulu, que:

"quando morrer, a própria população, nesse dia mesmo, reúne e escolhe esse que vai traba-
lhar com a população. Pode ser membro da famflia [do falecido), pode, depende do juizo.
Aquele que está a trabalhar já está também de olho naquele que servir naquele trabalho.
Não importa se é um filho ou quê, o que interessa mais à população é aquele tratar bem
ao povo. Também quem escolhe o sekulu vitito é a população. A partir de mesmo nós
[olossoma], sem povo, sem ser escolhido pela população não pode servir pessoas. Não. O
soba sozinho não pode destituir o sekulu, só o povo é que pede para o sekulu vir no soba
e queixar-se, só assim. O soba não pode escolher um sekulu, só a população. Quando for
escolhido o sekulu o soba tem que estar de acordo, porque quando o povo decidir o soba já
não pode negar, ele tem que cumprir o que fez o povo. O soba só pode educar como é que
ele [sékulu] vai trabalhar com a população. Mesmo no tempo dos portugueses era assim.
Mesmo quando morre um soba é logo escolhido outro soba antes do enterro dele, o outro
soba tem que estar já presente, e quem escolhe é a população" (in EBai2004-6)

Num certo sentido, este discurso é bem elucidativo e pode perfeitamente integrar-se
no debate, quer angolano quer africano, sobre a natureza do poder tradicional e da sua
incompatibilidade com a modernidade e a democracia. Na aparência este discurso já in-
tegra os discursos sobre a democracia e a "vontade popular~ contudo, uma análise mais
profunda sobre o poder tradicional, entendido numa perspectiva histórica, detecta per-
feitamente que não se trata apenas de uma abusiva introdução de elementos discursivas
novos. Na verdade, o poder tradicional, e o caso do reino do M'Balundu é exemplificativo,
apesar da sua centralização e hierarquização, e da sucessão hereditária, sempre inscreveu
no seu sistema de politicai accountability uma componente fundamental de participação
dos súbditos, que aprovam ou rejeitam, em última instância os detentores dos diversos
cargos políticos da estrutura, incluindo mesmo o cargo de ossoma inene. Obviamente, se-

13a 1 139
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

ria profundamente romântico e abusivo defender que se trata de uma democracia, mesmo
utilizando conceitos anacrónicos como "democracia primitivà', por exemplo. Mas, não
deixa de ser verdade que não se trata de uma autocracia "pura e durà: como muitos au-
tores defendem. Não é um poder democrático, mas contém aspectos de, e por isso não é
nem adverso nem incompatível.
Depois deste quase parêntesis, retomando a questão da relação entre a estrutura orga-
nizacional municipal e a tradicional, pode dizer-se que, por outro lado, a consignação das
autoridades tradicionais à divisão administrativa, e sobretudo ao nível comunal, prática
também introduzida pela Administração comunal, e a designação de um olossoma mais
importante na comuna, reproduz um desequilíbrio fictício entre os diversos o/assomam.
Por exemplo a ombala de Chijamba é considerada a mais importante da comuna
de Luvemba, e o assoma Jino Kaiangula considera-se assoma inene da comuna, contu-
do, como se depreende pelo depoimento do próprio vice-administrador comunal (in
EBai2004-3), a comuna tem três olossoma grandes, Chijamba, Janjo e Chiculupungu, sem
que, aparentemente e formalmente exista qualquer hierarquia entre eles, como em parte
também reconhece o próprio assoma de Chijamba, quando refere que "( ... ) sim, sim, o
caso da ombala Janjo e da ombala Chiculupungu, são ombalas com o mesmo número de
aldeias. Sim sim, são olossoma inene, são sobas grandes, são coordenadores de algumas
ombalas, mas dependem daqui [ombala Chijamba]:' (in EBai2004-4).
Esta concepção hierárquica entre os olossoma da mesma comuna é igualmente parti-
lhada pelos membros da ombala de Janjo, uma vez que o ossoma Manuel Savilinga se con-
sidera dependente do ossoma Jino Kaiangula. No entanto, e contrariamente ao referido
anteriormente, em 2004 o próprio assoma de }anjo não se considerava um assoma inene,
pois não tinha mais nenhum assoma sob as suas ordens. Tinha várias aldeias, mas nenhu-
ma ombala subordinada. Como refere um elemento do seu elengoB6,

"ele [o assoma de Janjo) agora não tem ombalas, não tem. Tem aldeias. E presta contas ao
soma Kaiangula. São assuntos que ele leva lá. Os assuntos que acontecem nas aldeias ele
vai expor lá no soba maior. O soba grande dá-lhe instruções para ele poder cumprir aqui
na região. ( ...) E o sobamaior pode até destituí-lo, sim, lá no Kaiangula vão ver as virtudes
dele. Se a chuva chove, muito bem, se há comida, muito bem. Se não chove, se não há co-
mida, então vão ver porquê. Se o reinado dele não estiver bem, a própria população vai ao
soba grande, este depois faz reunião e ele pode ser substituído" (in EBai2004-7).

Este facto devia-se à própria dinâmica da guerra civil, pois a região de }anjo foi muito
desestruturada pelo conflito, e houve uma grande dispersão das populações. Em 2004 as
populações ainda estavam a reconstruir aldeias, e, por isso mesmo, a estrutura tradicional

135 Era bastante comum a administração colonial eleger o assoma cuja omba/a estava mais perto da sede da comma como uma espécie
de ossoma dos obssoma da COITllna, para assim melhor implementar o sistema de indirect rule, prática essa que as actuais adminis-
lrações l1llfliciplis vêm seguindo igualmente (cf. Pacheco. 2001). Sobre esta prática em !AoçarOOique cf. Florêncio. 2005, 2003.
136 Esta entrevista que decorreu na ombala de Janjo. e na presença do assoma, foi no entanto conduzida com elementos do elengo, que
também estavam presentes, pois o sr. Manuel Saviinga não apresentava condiçOes psicológicas para responder.
NO II.EINO DA TOUPEIII.A. AUTOII.IDADES TII.ADICIONAIS DO M'BALUNDU E 0 ESTADO ANGOLANO

foi "destruída" durante o conflito e ainda estava a ser reconstruída à época.


Por seu turno, também o ossoma de Lunge defende a mesma concepção hierárquica
em relação aos outros olossoma da sua comuna que, apesar de serem considerados "gran-
des" são subordinados dele,"[ ... ] sou o mais comunal. Sou o único. Esses outros estão lá
fora [não vivem na sede da comuna]. Cumprem a mim. Chilemba e Ulundu cumprem a
mim. Tudo o que querem resolver naquelas ombalas com outras ombalas, então cabe-me
a mim. Têm que me trazer e então vou levar ao rei" (in EBai2004-6).
Contudo, não ficou claro de quem a responsabilidade por esta hierarquização dos
olossoma em cada comuna. Por exemplo, Celestino Ambrósio, chefe de gabinete do vice-
administrador municipal, defende que esse ossoma mais importante da comuna, a quem a
administração chama de regedor, é escolhido por todos os olossoma da comuna, que par-
ticipam posteriormente ao rei a escolha. Este, se sancionar a referida nomeação, dá depois
conhecimento à Administração municipal (in EBai2007 -01 ). Segundo este informante, "a
Administração comunal é consultada, mas não toma decisão. ( ... ) Em geral, o regedor é
o soma que fica na sede da comuna" (in EBai2007-0l). Esta afirmação permite-nos duas
conclusões, primeiro, de que as administrações comunais são verdadeiramente isentas
deste processo, pois aqui o uso do conceito de "consultà' é ambíguo, em segundo lugar, a
prática de nomeação de um regedor cuja ombala fica situada na sede da comuna perpétua
a prática anteriormente introduzida pela administração colonial.
Na actualidade, as autoridades tradicionais do M'Balundu participam no processo
de construção do Estado local, em grande medida exercendo funções e tarefas muito si-
milares às que desempenhavam para a administração colonial, numa espécie de sistema
de indirect rule, exceptuando, como é óbvio, a questão dos recrutamentos forçados para
o contracto e para o trabalho forçado, pois ambos foram abolidos com a independência
do país.
No que respeita às funções que as autoridades tradicionais exercem na actualidade
pós-guerra civil, elas assemelham-se, em grande medida, às que eram exercidas para a
administração colonial, exceptuando os casos da colecta do imposto, porque ainda não
existe um imposto nacional, e do contrato forçado, como salienta o rei Ekuikui IY,

"O trabalho dos sobas não diminuiu, ainda aumentou. Neste momento o que está di-
minuindo para os sobas era o peso de serem castigados. E o trabalho do imposto e dos
contratos. Hoje não paga imposto, nem tem contratos. Mas o trabalho aumentou-se por
causa da guerra no nosso país. Havia refugiados nas zonas e o trabalho aumentou por-
que assim estão a regressar [em 2004), quem tem o poder de receber esta gente, para
onde ele vai construir, para onde vai abrir a sua lavra, tem que ser os sobas e os sekulos."
(in EBai2004-8}

De entre as funções que na actualidade mais impacto têm na vida das populações
destaca-se, desde logo, a função jurídica e de manutenção da ordem, uma vez que o mu-
nicípio ainda não tem a estrutura judiciária e judicial a funcionar na plenitude, como

14o 1 141
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

sublinha o Procurador municipal, Gabriel Caála (in EBai2007-5). Neste caso, existe um
juiz municipal mas o tribunal ainda não funciona, por falta de mais juízes. Também a PIC
(Polícia de Investigação Criminal) só existe na sede do município, na vila do Bailundo,
sendo que nas comunas só existe mesmo o corpo regular de Polícia. Ao nível comunal
também só existe a Procuradoria na sede, tendo o Procurador que se deslocar às sedes de
comuna sempre que é solicitado. Uma vez que existem mesmo municípios que não têm
Procurador, como no caso do Mungo e Cunduimbai, é o Procurador do Bailundo que
tem que se deslocar a estes sítios. Contudo, e ainda segundo o Procurador do Bailundo, a
Procuradoria tem imensas dificuldades e problemas com transportes, e por essa razão é a
polícia desses municípios quem traz os casos ao Bailundo para aí serem julgados.
Deste modo, e tomando como exemplo o caso da comuna de Luvemba, as autoridades
tradicionais acabam por desempenhar um papel jurídico fundamental, sobretudo ao nível
comunal, estando, tal como no passado colonial, autorizadas a resolver pequenos casos
nos seus tribunais de ecanga, tais como adultérios, pequenos furtos, feitiçaria, etc. Outro
tipo de crimes, como violações, crimes de sangue, como agressões violentas e homicídios,
devem ser encaminhados para a administração comunal, que, por sua vez reencaminha
para a polícia comunal. Como ao nível comunal não existe Procuradoria, a polícia comu-
nal reenvia o caso para o Procurador municipal. (EBai2004-3).
Esta separação de competências juridicas entre a Procuradoria e as autoridades tradi-
cionais não é muito clara, e o próprio procurador assume que muitas vezes as autoridades
tradicionais exacerbam as suas competências, julgando crimes de homicídio, ou outras
ofensas de sangue, sem sequer participarem à polícia comunal. Estes casos de homicídio
não-participados em geral estão relacionados com acusações de feitiçaria, como sublinha
o epalanga da ombala de Chilumbe, " Agora matar pessoa vai na polícia, matar assim de
facada, se for de feitiçaria fica mesmo no soba" (in Ebai2007-06). Uma vez tomado conhe-
cimento destas situações, a Procuradoria intervêm e pode processar o ossoma responsável.
Mas esta medida correctiva é mais formal que real, pois na prática isso ainda não sucedeu
com nenhuma autoridade tradicional do Bailundo.
No entanto, e na generalidade dos casos, os olossoma respeitam as suas competências
e limites, e enviam para a polícia comunal os casos mais graves, que por sua vez os enca-
minha para a PIC e para a Procuradoria. Também existem situações inversas, em que a
própria Procuradoria municipal encaminha determinados casos para as autoridades tra-
dicionais (in EBai2007-5).
Os casos de feitiçaria continuam a constituir a grande maioria das acusações apresen-
tadas nos tribunais das autoridades tradicionais, e só podem mesmo ser resolvidos com
recurso ao processo de julgamento tradicional, que envolve uma complexa teia de proces-
sos, desde a adivinhação e consulta a oráculos, à utilização de ordálios.
Sobre a feitiçaria, ou mais concretamente sobre o oculto em África, existe é claro todo
um conjunto de concepções, e de narrativas, que não fazem parte do âmbito deste traba-
lho, contudo importa aqui sobretudo falar na relação entre as autoridades tradicionais e
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TilADICIONAIS DO M'IALUNDU E O &STADO ANGOLANO

as poderosas forças do oculto 137 • O soberano é sempre entendido como um poderoso re-
gulador da ordem, daí as suas funções jurídicas e legislativas, mas também urn regulador
do universo mágico-religioso e um intermediário com os espíritos dos seus antecessores,
nomeadamente do falecidos soberanos. Acredita-se, assim, que o soberano é possuidor,
por essa intermediação, de capacidades específicas de usar as forças do oculto, quer em
seu proveito próprio quer da própria sociedade. Nesse sentido, a sua ambiguidade joga
igualmente nessa espécie de liminariedade entre ser um fazedor de ordem e um fazedor
de desordem. Pode ser mesmo um poderoso onganga, feiticeiro, ou de tal ser acusado e
temido, como diz o ossoma Jino Kaiangula.

"o soma nunca pode ser um quimbandeiro 138, ( ••• )Antigamente os sobas tinham os seus
quimbandeiros fixos nas ombalas, mas agora isso já não se verifica. Os quimbandeiros
existem, estão nas aldeias e ainda praticam, mas nas ombalas já não. Mas agora o soba
pode ser acusado de feitiçaria, se for acusado pela população era encaminhado ao soba
grande para ser julgado. [... ] se for acusado ele é julgado pelos seus componentes que
constitui a ombala [elengoJ. O mwekalia convoca os outros e esses é que são de direito
de julgar o soba. Se a acusação é concreta então é substituído. Isso nunca aconteceu aqui.
Se alguém quiser enfeitiçar o soba isso não acusa [não resulta]. O ser soba mesmo é que
impede que chegue o feitiço" (in EBai2004-4)

Ou, como defende o ossoma Adolfo Chitoma, no passado os olossoma tinham poderes
mágicos, pois "os sobas podem ter feitiço, sim. Nos tempos passados acontecia isso, o soba
dizia mesmo 'você sai dai, senão acontecia mesmo qualquer coisa': Esse poder mágico
era uma imanência dos espíritos dos antepassados, como diz o próprio ossoma, "antiga-
mente acontecia isso, sim, vinha dos antepassados': Mas, na actualidade as autoridades
tradicionais foram perdendo essa capacidade mágica, e "hoje não, hoje não. Hoje o soba
é enfeitiçado também. Antigamente metia medo quando via o sobà' (in EBai2004-6) 139 •
No caso de uma acusação de feitiçaria sobre uma "pessoa comum~ o processo de-
corre segundo um modelo que mantêm muitos dos traços do passado, e que se mante-
ve quer na época colonial quer actualmente. Em primeiro lugar, a pessoa que se julga
"enfeitiçadà: ou um familiar desta, apresenta o caso na sua autoridade tradicional. Esta
designa um quimbandeiro que irá proceder à adivinhação do infortúnio. Os processos
de adivinhação são múltiplos, como relata o quimbandeiro Fernando Adonho Mbonga,
segundo o qual "Uns adivinham pelo espelho, mete o espelho e adivinha pelo espelho,
no espelho pode surgir a pessoa que está a enfeitiçar, o feiticeiro. Outros é pela caneca,

137 Nao se pretende aqui inlroduzir nenhuma discussão. nem sobre a diferença entre feitiçaria (son:ery) e bruxaia (l!oitchcrall). nem sobre a
própria noção de oculto. Usa-se aqui o termo oculto para designar todas as brças espirituais, em geral espirilcs, farrilia'es ou nAo, e sua
capacidade de inteMr na vida dos humanos, seja uma intervançlo protectora ou nAo. (sobre esse tema existe uma vasta bibWografia,
desde o clássico de Evélls-Pritchard, aos mais recentes trabalhos de Peter Geshlere, Harry West, Alcinda Honwana, etc.,)
138 O mesmo que ocimbanda.
139 No passado, ou na actuaWdade, as autoridades tradicionais, nomeadamente o ossoma Íllfll'lfl e os oloGsoma, rodeiam-se de poderosos
quimbandeiros, que os protegem contra as forças maléficas, e 'ajudam' nos processos de adivinhaçio em tribunal.

1-42 1 1-43
VOUS DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

na água que está dentro da caneca vê a doença, ou quem está a provocar a doença" 140
(in EBai2004-10).

Uma vez detectada a fonte do infortúnio, ou seja o agente maléfico, o onganga, o


quimbandeiro, reporta o caso à autoridade tradicional, que manda reunir o tribunal, já na
presença do respectivo "acusado". Se a acusação se reportar a um acto grave de feitiçaria,
como por exemplo envolvendo mortes, então o acusado pode ser submetido a um ordálio
especial, o umbulungu 141 • Segundo Jino Kaiangula,

"tem métodos tradicionais para resolver esses casos. Utilizávamos galinhas, tem os seus
métodos. Caso o acusado seja utente do que é acusado [seja feiticeiro] então o indicado
animal sofreria algo. Esses casos eram resolvidos a partir dos quimbandeiros. Quem man-
da ir no quimbandeiro é o soba. [antigamente] utilizava-se um medicamento tradicional,
o umbulungu. A pessoa que fosse acusada tomando aquele medicamento se fosse mesmo
feiticeiro morria. Hoje não, onde se faz é mais na ombala grande, na ombala M'Balundu.
[... ]os portugueses não proibiram isso, porque eram práticas tradicionais nossas que en-
contraram. [... ] Quando há um caso, o acusado vai ao soba, depois é que vai ao quimban-
da que pratica esses actos" (in EBai2004-4}

Na ombala de }anjo o processo de "procurà' de onganga é muito semelhante ao rela-


tado anteriormente,

"no caso de feitiço, aquela pessoa [o acusador] não tem provas concretas porque é uma
coisa invisível, não dá para acusar assim directamente, não se pode indicar que fulano tem
tal feitiço. Então é preciso chamar o quimbanda, é ele que conhece a matéria de feitiço, ele
sabe muito bem quem tem. Aquele que enfeitiçou também sabe muito bem que aquela
pessoa que está doente tem feitiço. Esse que enfeitiçou tem que arranjar medicamento que
é para curar o outro.( ...) Sim, aqui existe umbulungu, quem faz é o quimbanda. Quando
a pessoa morrer é porque é feiticeiro sim~ (in EBai2004-7).

Sobre o uso do umbulungu, que como se disse é um ordálio de veneno, existe uma
profunda ambiguidade. Muitos defende que o umbulungu que se usava no período pré-
colonial já não é usado directamente nos seres humanos, mas sim em animais, como por
exemplo nas galinhas, numa espécie de processo de transferência ou da utilização de um
"bode expiatório" que expie as penas humanas, como defende o assoma de Chilume, se-
gundo o qual "Antigamente havia [de matar], mas agora viraram e já não há mais esse um-
bulungu de tomar [veneno]. Do tempo colonial para cá já não. Tem mais outro umbulungu
que não é de tomar" (in EBai2007 -06). O mesmo afirma o assoma de Chilala,

140 Estes métodos servem vérios propósitos, quer para adivinhar o tipo de infortúnio, ou de doença, quer para adivinhar o causador, se
pessoa, feiOOeiro, ou se algum espirita.
141 O umbu~ngu é um veneno feito a partir da casca de uma álvore, e o processo é conhecido apenas por certos experts, tais como alguns
os quimbandeiros locais de renome.
NO REINO DA TOUP'EIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

"Hoje no umbulungu eles apanham galinha, ou então um salalé, aqueles mesmo da mata.
Então fazem a experiência aí, fazem isso em nome de um [acusado], depois esperam o
resultado, depois fazem em nome do outro, esperam resultado. Lá onde houver problemas
e fizerem na minha vez e houver sinais então significa que eu sou culpado. Mas se não hou-
verem sinais significa que está ileso. A experiência faz-se assim. No passado era mesmo
de beber e humanamente vitimava pessoas. Mesmo se ele era feiticeiro, mas depois disso
ele morre. Mas agoram viram que não e é só experimentar numa coisa e depois os sinais
aparecem, em vez de dar numa pessoa para depois morrer. Pode dar-se numa galinha, ou
numa outra coisa, depois os sinais vêm e vê-se que o fulano é feiticeiro, e não dá no próprio
indivíduo porque depois morre." (in EBai2007-08}

No entanto, um pouco mais adiante o senhor Mário Jorge Calesse não deixa de su-
blinhar que,

"( ... ) no tempo dos portugueses era mesmo de fazer experiências nas galinhas e outras
coisas, mas nesse tempo de guerra de agora, como normalmente é que havia mais intensi-
dade de feitiçaria é que se aplicava directamente nas pessoas. Agora regressou-se ao pas-
sado, já não se pode aplicar nas, tem que ser nas galinhas. Nesse tempo de guerra na havia
uma acalmia que as pessoas pudessem trabalhar num único sitio, então era lá mesmo onde
houvera esse problema de feitiçaria, então aplicava lá mesmo" (in EBai2007-08}

Outros informantes apontam para a sua realização, secreta, sobretudo na ombala real
do M'Balundu. Contudo, por estes dois depoimentos pode perceber-se que a prática do
umbulungu em seres humanos acusados de feitiçaria, apesar de muito rara e esporádica,
ainda pode acontecer em certos casos. A ser inteiramente verdade, tal constituí uma óbvia
inconstitucionalidade, pois na prática a administração de um veneno num ser humano
corresponde a uma quase sentença de morte, ou semi-sentença, e a prova de que adis-
cussão sobre as virtualidades do pluralismo jurídico afigura-se, nas práticas, muito mais
complexa e difícil, do que na teorização.
Deste modo, pode dizer-se que é no que respeita à tipologia de penas que estes tri-
bunais podem aplicar, que a situação é ainda bastante confusa, e mesmo controversa, até
porque as autoridades tradicionais alegam e reclamam da "tradição" para aplicarem essas
penas, ou até, como se viu anteriormente, dos ordálios de feitiçaria, o umbulungu. Como
por exemplo, defende o ossoma de Lunge.

"Quem matar, é matar também. Ou então, se ele tiver famflia forte entrega pessoa vivo e
uns tantos cabeças de gado para pagar a vida do outro. E essa pessoa que vai ser entregue é
logo cravado aíH2. Feiticeiro é diferente, depende. Os velhos fazem prova própria. Depois,
se a pessoa for mesmo verdade feiticeiro era queimado ou botado na água. Afogado, é. Essa
prova é o umbulungu. Quem sabe mesmo fazer é o quimbandeiro. O quimbandeiro é que
faz a prova própria, e todo o mundo está aí a ver se é mesmo o próprio. Se ele ficar aí e per-

142 No período anterior à dominação colonial os castigos por homicídio em geral resultavam na empalação do culpado.

144 1 14s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

der a razão então ele é amarrado e metido na água. Ou arranjar lenha, ele fica ali sentado
e queimá-lo. Mas é problema, se ele não é e saltar nesse fogo para fora, aquela família que
o acusou esses também são presos no soba. Esses dão boi, e dá uma pessoa que vai render
o próprio [o que foi falsamente acusado]. Porque se ele é o próprio feiticeiro morre com
o fogo, mas se não for quando vai rebentar, salta daí do fogo. Se ele for na verdade, fica aí
assim" (in EBai2004-6)

Contudo, e como se afirmou anteriormente, estas afirmações não são pacíficas, e são
desmentidas por muitos, incluindo o próprio rei Ekuikui IV, que afirma,

" O umbulungu até hoje está a fazer-se. Só se faz na ombala do rei. Não se pode fazer fora.
O umbulungu de matar pessoa já não se faz mais. Agora o umbulungu é só de mostrar um
sinal de que este aqui tem culpa. Nos tempos anteriores, esse que morre [de umbulungu] é
porque tem culpa, foi julgado pelo rei, foi julgado pelos sobas, e essa culpa será mesmo de
que esse homem não merece viver, tem que morrer. Então o rei é que dá a admissão. Mas
isso passou já nos tempos. O português quando veio proibiu que se matassem pessoas, mas
com o andar dos tempos fomos vendo que os portugueses levavam pessoas, castigavam e
morriam, e isso na mente dos sobas fez-nos confusão, 'como é que ele nos proíbe de matar
e arrasta pessoas para a morte?"' (in EBai2004-8)

Seja em que situação for, contudo a realização de um ordálio de umbulungu em prin-


cípio só pode determinado pelo ossoma inene, como sublinha o epalanga de Chilumbe
"Outras coisas eles podem decidir [os sobas1mas há coisas que aqui [na ombala1não
podem fazer, tem que ir lá na ombala grande, é a prova do umbulungu. Umbulungu tem
que ser só feito a partir da ombala grande." (in Ebai2007 -06).
No entanto, nem todas as penas têm este quadro jurídico, e mesmo nos casos de acu-
sação de feitiçaria, estas penas só são aplicadas quando o caso envolve mortes. No geral, as
penas envolvem indemnizações pecuniárias, ou em géneros, como sublinha nesta entre-
vista, "se alguém bateu no outro, paga um porco, ou um cabrito, ou outro animal, do valor
da ofensa. ( ... ) Dinheiro também usa, por exemplo se for preciso pagar os tratamentos ao
outro.( ... ) Se matar alguém vai na polícia:' (in EBai2004-7). Se for caso de adultério, por
exemplo, o caso é diferente, "a mulher não tem culpa, o acusado sabe muito bem que essa
mulher é alheia, então devia ter respeito pelo dono da esposa. O homem que é dono da
esposa não vai largar a mulher, por causa dos filhos e fica com a mesma mulher. Então o
acusado é que paga, o que o elengo decidir. Tudo vai cair sobre o acusado" (in EBai2004-7).
A apresentação de uma acusação também envolve uma contribuição ao tribunal, em
geral em géneros, por exemplo na ombala do Janjo, "Quem vem apresentar um caso abre
a assembleia e dá qualquer coisa para a abertura e também para o fecho. Pode ser galinha,
porco. O tal que apresenta queixa terá que dar coisas que é para o tempo que fizer aqui as
pessoas precisam de comer, precisam de beber, então precisa de dar fuba, precisa de dar
galinha e também a bebida, tem que ser um garrafão:' (in EBai2004-7).
NO 1\EINO DA TOU~EII\A, AUTOI!.IDADES TI\ADICIONAIS DO M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

Num julgamento tradicional existe uma forte componente de participação popular,


pois toda a comunidade pode participar, e os membros do elengo executam tarefas de "ad-
vogados de acusação" e de "advogados de defesa': A resolução final é da responsabilidade
da autoridade tradicional reinante no tribunal, o ossoma ou ossoma inene, no caso dos
julgamentos na ombala real do M'Balundu. No entanto, este modelo de julgamento varia
bastante de ombala para ombala. Desde logo no local da sua realização, em quase todas as
olumbalas o julgamento realiza-se no ondjango 143, contudo, na ombala real os julgamentos
realizam-se no terreiro exterior à entrada.
O processo varia também na importância que em cada ombala é atribuída a membros
específicos do elengo. Por exemplo, nos julgamentos realizados na ombala Chijamba cabe
ao tchinduli anunciar o veredicto e as penas a aplicar (in EBai2004-4). Contudo, este não é
o entendimento de todos os olossoma, e por exemplo o ossoma Adolfo Chitoma argumen-
ta que, na sua ombala quem anuncia o veredicto final do tribunal e as penas é o mwekalia
e não o tchinduli (in EBai2004-6). Por contra, na ombala do Janjo o elemento mais impor-
tante é o ndaka (in EBai2004-7).
Mas importa sublinhar que, em boa medida, a estrutura dos julgamentos, e até mes-
mo o tipo de casos e de acusações presentes nestes tribunais das autoridades tradicionais,
ou que o Estado "autoriza" que aí se resolvam, continuam muito semelhantes ao período
colonial, destacando-se largamente as acusações de feitiçaria, roubo, adultério e agressões
físicas.
No caso do M'Balundu, e ao contrário por exemplo do que sucede em Moçambique,
nomeadamente na zona centro deste país 144, estes tribunais das autoridades tradicionais
do M'Balundu não reúnem periodicamente num determinado dia, mas sim de modo ale-
atório, ou sempre que seja necessário, como afirma Adolfo Chitoma,

"Depende quando calhar o caso, então é que vamos sentar. Não, não, não há dias para isso.
Há coisas graves que não pode esperar amanhã ou depois. É logo resolvido porque às vezes
há-de sair alguém que vai preso. O que pode esperar, que pode dar mais cinco dias ou quê
é quando dá coisa de feitiçaria, mas quando dá porrada isso não pode esperar, na mesma
altura é chamar o indivíduo que deu porrada e é logo julgado, se o caso não der [se não se
puder resolver na ombala, caso haja um homiddio por exemplo) é logo levado ao Estado
[à polícia ou à Procuradoria municipal]" (in EBai2004-6).

Num certo sentido, a existência deste pluralismo legal é visto como bastante positiva
pela população, que realça o respeito pela sua "cultura" e o facto do Estado e do direi-
to constitucional não conseguirem resolver problemas fundamentais do seu quotidiano,
como por exemplo os casos relacionados com o oculto, como a bruxaria e a feitiçaria. No

143 O Olldjango é uma cabana redonda com duas entradas, uma para os membros da omba/a e o outra para as visitas, e é um dos lugares
mais sagrados e míticos de todo o espaço da omba/a, exceptuando os ako/cotos, pois tral&-se de um lugar de reuniAo, de assentlleia,
de produção da palavra, de consensos e de decisões colectivas.
144 cf. Florêncio, 2003, 2005.

1-" I 147
VOZES DO UNIVERSO RURAL REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

entanto, é preciso sublinhar-se que o chamado direito tradicional, costumeiro ou consue-


tudinário, e o direito constitucional colidem e sobrepõem-se em certas áreas, entrando
mesmo em contradição (in EBai2007-04), nomeadamente em duas áreas bastante sensí-
veis, tais como os castigos físicos e mesmo a prova de umbulungu usada nos processos de
feitiçaria, e o direito da mulher e da família. No primeiro caso, é evidente que o oráculo do
veneno do umbulungu, assim como os castigos físicos infligidos aos acusados de feitiçaria,
são profundamente inconstitucionais, e só acontecem com o beneplácio das autoridades
estatais. No segundo caso, o direito tradicional restringe direitos das mulheres, que estão
consagrados na Constituição.
O Estado está consciente desta discrepância, e mesmo da inconstitucionalidade de
certas práticas e sentenças dos tribunais das autoridades tradicionais, como sublinha o
Procurador do Bailundo,

"Nos tribunais tradicionais existem processos e penas que são inconstitucionais, como por
exemplo os que são usados para os casos de feitiçaria, como o umbulungu e o lomanjo 145,
no caso do umbulungu as pessoas que o tomam morrem na maior parte das vezes.( ... ) Por
vezes são as próprias famflias que denunciam estas provas tradicionais junto da polícia. A
policia depois vai investigar. Por exemplo no Mungo, numa das ombalas da comuna de
Cabuengo o soba autorizou o umbulungu, a pessoa morreu, ele [o ossoma) foi julgado e
preso no Huambo." (in EBai2007-5)

Na verdade, estas situações derivam da inexistência de um quadro jurídico nacional


que regule as competências e atribuições dos tribunais das autoridades tradicionais nas
questões jurídicas, proposição esta que o próprio Procurador está de acordo (in EBai2007-
5), sendo que, deste modo quer o Estado angolano quer as autoridades tradicionais con-
tinuam a seguir as representações que têm das competências que as últimas desempenha-
vam para o Estado colonial.
Parece igualmente relevante afirmar que a autoridade jurídica das autoridades tradi-
cionais está em declínio entre os jovens urbanizados, sobretudo da vila-sede do Bailundo,
que preferem dirigirem-se aos tribunais das autoridades tradicionais não por estes serem
mais legítimos, mas sim porque, como declaram alguns jovens da vila-sede,

"têm mais medo da policia, porque prende, e os sobas e os sékulus não, aí basta pagar
qualquer coisa e a pessoa vem embora.( ... ) Nos químbos os jovens seguem os mais velhos,
aí não há polícia, não há Estado, e os jovens estão mais oprimidos pela familia, pelos mais
velhos. Então aprendem desde novos a respeitar e a obedecer aos mais velhos, e aos sobas
e sekulus" (in EBai2007-04).

145 O lomanjo é um pequeno bastão que serve para apertar os tornozelos e o crânio dos acusados de actos de feitiçaria. e que acabam por
ficar nessa situação vários dias de castigo.
1
NO kEINO DA TOUPEIRA. AUTOklbADES 'rkADICIONAI$ 00 11 1ALUNDU E O EStADO ANGOLANO

Outra área de enorme relevância na qual as autoridades tradicionais desempenham


um papel substancial é nas questões das terras, quer na sua definição cadastral (terra pri-
vada, do Estado ou comunitária), quer na titulação de direitos de aquisição privados, quer
na gestão de diferentes tipos de conflitos em torno da posse das terras e da propriedade.
Por exemplo, na comuna de Luvemba existiam em 2004 alguns problemas com a gestão
fundiária. Esses problemas relacionavam-se com o regresso das populações refugiadas du-
rante o conflito armado, e que ao regressarem reclamavam as suas terras. Em 2004 ainda
não tinha sido publicada a Lei da Terra, no entanto às autoridades tradicionais já se lhes
conferia a função de definirem a distribuição de terra, e a titulação das terras, sobretudo
das que eram parte do fundo fundiário comunitário, e só depois é que se podem legalizar
os títulos junto da administração comunal (EBai2004-3). O mesmo sucedia, em 2007, na
comuna de Bimbe (in EBai2007 -07).
Por outro lado, as autoridades tradicionais não desempenham apenas tarefas ad-
ministrativas, quer no período da Administração colonial, quer na actualidade, e não é
completamente acertada a preposição de Trutz von Trotha quando as apelida de "admi-
nistrative chieftancies': Elas desempenham ainda um papel fundamental no sistema de
reprodução social e no modelo de articulação entre a ordem "terrenâ e a "ordem cos-
mológica~ precisamente pelo lugar de intermediários com os espíritos dos antepassados,
mormente dos falecidos olossoma. Algumas manifestações sociais são fundamentais para
a manutenção e o equilíbrio dessa relação com os espíritos, de entre as quais se destacam
as cerimónias colectivas de propiciação aos espíritos da ofeka, e que podem ser cerimónias
regulares, como as são efectuadas na época das colheitas e das sementeiras, ou cerimónias
extraordinárias, em tempos de crise, como por exemplo as cerimónias da chuva, denomi-
nadas de aiélé. Estas cerimónias são importantíssimas para a reprodução da relação entre
os dois universos, o dos vivos e o dos espíritos e para o respectivo equilíbrio cósmico. São
lideradas pelos olossoma, ou mesmo pelo rei, e devem ser efectuadas nos akokotos.
No caso do município do Bailundo, pelo menos em certas áreas, essas cerimónias per-
deram bastante da sua eficácia no período a seguir à independência, devido à guerra civil
e às deslocações populacionais, e raramente se efectuavam. Mesmo na actualidade, no pe-
ríodo pós-guerra, ainda não foram completa e regularmente repostas 146, como adiantava
o rei Ekuikui IV em 2004,

"Ainda não fizemos esse acto porque até aqui encontra-se o povo na miséria. Não possu-
íam ainda umas boas casas deles, ainda vivem nas tendas, não conseguiram umas boas
casas, e não têm comida. Também ainda não houve eleições para haver um dos presidentes
que a gente fica mesmo com o coração bom de que não vai haver mais a guerra. Por isso
mesmo ainda não fizemos isso, mas temos boa noção de fazer quando houver essa via, com
o povo e com os governos:' (in EBai2004-8).

146/v:J contrário do que sucedeu noutros países. como por exemplo em Moçambique em que mesmo durante a guerra civil as populações
chegavam a exigir aos régulos e às adminlstraç6es que efectuassem esses cerimónias, e assim que terminou o conflto reloma'em
imediatamente essa prática (Fiorên<:io, 2003. 2005).

,.... 1 '"'
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTAOO EM ÁFRICA

De igual modo, o assoma de Chijamba, sublinha que,

" antigamente, depois das colheitas o soba imperava nas suas aldeias, então faziam cerimó-
nias. Cada um contribuía um bocado, então chegavam na casa do soba e faziam cerimó-
nias, festa da colheita. Em Setembro/Outubro, antes da população iniciar as suas lavras, as
suas culturas, primeiro iam à lavra do soba e a partir daí iam para as suas lavras. Depois
dos conflitos armados [guerra civil] ainda não foi realizado. Agora depois dos conflitos ar-
mados a população ganhou aquele incumprimento, considera aquilo actos ultrapassados.
Mesmo depois das colheitas, agora já não se faz mais~ (in EBai2004-4)

Também no caso de Janjo, na comuna de Luvemba, as cerimónias propiciatórias es-


tiveram interrompidas, precisamente devido à guerra civil e aos movimentos populacio-
nais147, como sublinham os elementos do elengo da ombala, "as cerimónias ainda pararam
devido à situação de guerra. Ainda não há uma organização das próprias aldeias. Vão
continuar quando virem que há uma aldeia já organizada, por enquanto, como as popu-
lações ainda se estão a juntar só quando houver uma situação assim boa, então é que se
vai proceder às cerimónias como no passado:' (in EBai2004-7). O mesmo sucedendo na
ombala de Chilumbe, na qual, segundo o assoma Abel Ngunje, não se realizam cerimónias
propíciatórias desde 1975.
Contudo, o assoma de Chilume sublinha que os motivos para pararem com a realiza-
ção das cerimónias da chuva prendem-se não apenas com a guerra mas igualmente com
a influência das igrejas, sobretudo da IECA, pois segundo ele "isso [cerimónias] parou
devido às igrejas. Não estão a permitir mais esses métodos. Tocar batuque, fazer mais o
quê, pedir a Deus que chova, não. A igreja paralisou isso tudo. Sobretudo a IECA sim:' (in
EBai2007-06).
Aliás, a influência das igrejas, nomeadamente a da IECA, como se demonstrou no
capítulo sobre o período colonial, tem sido determinantes na transformação social e das
representações culturais locais "tradicionais~ sobretudo as representações religiosas, e
essa mudança impacta inclusivamente as autoridades tradicionais, como se depreende do
depoimento do próprio epalanga da ombala de Chilume 148 que, a propósito da realiza-
ção das cerimónias tradicionais, como as de ulengo, afirma que, "Eu não acredito mesmo
[nos espíritos]. Eu não acredito não. Se tiver que fazer cerimónia, ou ir nos akokotos eu
vou, contra-vontade vou assistir, mas é uma coisa que sou obrigado, não é de vontade."
(in EBai2007 -06). Aliás, o caso da ombala de Chilumbe é até em si paradigmático da
influência da IECA uma vez que, devido à sua proximidade com a missão protestante do
Chilumbe, até a existência de akokotos e etambus foi proibida, impedindo-se deste modo
a realização de cerimónias, como refere o assoma Abel Ngunje "aqui não há akokotos nem

147 A região de Janjo esteve ocupada mii tarmente pela UNITA entre 1975 e 1992, mas a população fugiu da área, que ficou inteiramente
despovoada nesse período. ~ as eleições de 1992 e até 2000, a UNITA continuou a controlar a ãrea, e a urna parte da população
regressou, ficando sob o controle desse movimento.
148 Relembre-se que o epalanga é urna figura central na estrutura do e/engo e que em geral pode mesmo suceder no cargo de ossoma.
NO REINO DA TOUPEikA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO H'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

etambus, aqui é mais a igreja. Essa missão está ai desde 1881, então já não liga mais no
passado." (in EBai2007 -06).
Por outro lado, assoma Jino Kaiangula reconhece que em certas olumbala essas ceri-
mónias das sementeiras, que se denominam de ulengo, já se realizam, ou sempre se reali-
zaram, dependendo da área, da dinâmica da guerra e da população, e mesmo do próprio
assoma local. Por exemplo, na comuna de Lunge as cerimónias de ulengo sempre se rea-
lizaram, mesmo durante o conflito armado. Estas cerimónias de ulengo realizam-se nos
akokotos, como sublinha Adolfo Chitoma,

"tem que fazer trabalho nos akokotos, não pode falhar, ano e ano, não pode falhar. Mesmo
o soba, eu, tenho que pagar galinha, tenho que pagar fuba 149, e o resto, e o mwekalia e eu,
e o resto [do elengo] todos da ombala, e então vamos aos akokotos. (... ) Sim, uma vez por
ano, esse mês mesmo de Setembro.( ... ) Os sobas pequenos também fazem nas suas om-
balas, os sekulus não fazem, os sekulus não têm akokotos" (in EBai2004-6)

A população da ofeka contribuí para a realização das festividades, mas não pode as-
sistir à abertura dos akokotos, facto que fica reservado apenas aos elementos do elengo do
assoma. A cerimónia de ulengo tem como finalidade pedir aos espíritos que chova com
regularidade e que o ano agrícola seja profícuo.
Por sua vez, na comuna de Bimbe também já se efectuam as cerimónias de ulen-
go, assim como os rituais de iniciação dos rapazes, com especial relevância para o ritu-
al de circuncisão, que marcam a passagem do estatuto de adolescente para adultos (in
EBai2007 -07).
Além destas tarefas exercidas na actualidade, e que marcam uma certa continuidade
com o passado colonial, as autoridades tradicionais do M'Balundu são chamadas a exer-
cer actualmente outro tipo de tarefas para a Administração municipal, e que contribuem
igualmente para o processo de construção do Estado, quer ao nível local, quer até nacio-
nal. Entre elas destacam-se as tarefas de mobilização das populações para as campanhas
relacionadas com a Saúde, nomeadamente as diversas campanhas de vacinação, de escla-
recimento da população para respeitar e introduzir hábitos de higiene, e a intermediação
entre as populações e os centros de saúde 150• Por outro lado, em 2007, as autoridades
tradicionais também participavam activamente no processo de recenseamento eleitoral
das populações rurais (in EBai2007-01).
Pode então afirmar-se que na actualidade perpetua-se um conjunto de continuida-
des, bastante significativas, e significantes, na relação entre as autoridades e o Estado.
Essas continuidades expressam-se não apenas nas funções que actualmente as autoridades

149 Massa feita de milho.


150 Nos traballos de C8fT1lO de 2004 e 2007, em conversas com os técnicos de saúde e mesmo com 'populaçio comum', constatou-se que
na generalidade a população ainda mantinha uma forte relutância em adoptar a 16gica da medicina convencional, e em frequentar os
hospitais e postos sanilàrios, e que, pelo contrario, continuava a preferir seguir a sua 16glca tradicional e consultar os quiiiÍlalldeiros e
outros especialistas do oculo. AAdrTinistração tinha uma celta esperança de que as autoridades ltadicionais exercessem uma 'mudan-
ça de mentaKdades' entre apopulação e divulgassem a neoessidade de passarem a visitar os hospitais e os postos de saúde comunals.

ISO I 151
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

tradicionais exercem para o Estado angolano, e que são quase as mesmas que desempe-
nhavam no passado para o Estado colonial, mas igualmente noutros aspectos, como por
exemplo no capítulo das regalias. Por exemplo, e à semelhança do que sucedia no período
colonial, na actualidade as autoridades tradicionais também recebem um subsídio estatal,
ao nível nacional, e que é estipulado e controlado pelo MAT. No caso do município do
Bailundo, até Junho de 2004, os olossekulu recebiam um subsídio trimestral de 150 Kwan-
zas, os olossoma de 300 e o assoma inene de 400 Kwanzas. Contudo, a partir de Junho desse
ano este subsídio foi aumentado, passando a ser de 8.000 Kwanzas para os olossoma, e de
4.000 para os olossékulu 151 • No entanto, a atribuição deste subsídio a todos os olossoma e
olossekulu do município só se concretizou em 2007.
As autoridades tradicionais usam igualmente, e à semelhança do período colonial, um
uniforme que as identifica como tal e que, apesar de ligeiramente diferente, pois contém
agora as insígnias da República de Angola, no entanto mantêm as mesmas características
do período colonial, e é até semelhante ao que usam, por exemplo, as autoridades tradi-
cionais de Moçambique. Como refere Jino Kaiangula, "[o uniforme] é um pouco diferente
do tempo colonial. Mas no tempo colonial os sekulus também tinham farda e agora o
governo só disponibiliza aos sobas" (in EBai2004-4). No período colonial, o uniforme
usado pelas autoridades tradicionais continha insígnias (divisas) que distinguia o tipo de
autoridade tradicional, no entanto, na actualidade, como refere Jino Kaiangula, "agora só
usa divisas, só o rei" (in EBai2004-4), deste modo, os olossoma também reclamam are-
posição das divisas no uniforme, pois "como no tempo colonial os sobas usavam divisas,
agora também seria melhor", como adianta o assoma de Chijamba (in EBai2004-4).
Por contra, outras prebendas que as autoridades tradicionais recebiam do Estado co-
lonial, em 2004 ainda não tinham sido repostas pelo Estado angolano, apesar das reclama-
ções, como por exemplo a distribuição de meios de transporte, tais como bicicletas, e casas
de alvenaria, "no tempo colonial tínhamos meio de transporte bem como vivenda. Agora
ainda não" (ín EBai2004-4). No entanto, esta situação viria a ser colmatada no período
entre 2004 e 2007, e neste último ano muitos dos osso ma já tinham recebido motorizadas,
e usufruído de alguns inputs agrícolas, tais como sementes e charruas (in EBai2007-0l).
No entanto, em 2007 esta situação ainda não tinha sido generalizada à totalidade dos aios-
soma do município, o que provocava algumas desigualdades, como salienta o assoma de
Chilala, na comuna de Bimbe, que se queixava de não ter sido contemplado com nenhum
meio de transporte, nem motorizada nem mesmo bicicleta (in EBai2007-08).

151 Não foi possível obter informação sobre o actual subsídio atribu ido ao rei Ekuíkui IV. Por outro lado o montante de subsídio parece gerar
uma certa confusão, pois as diferentes informaçôes obtidas apontam sempre para montantes diferentes do enunciado. Por exe11111o. o
ossoma do Chilume af1m111 que recebe 13.000 Kwoozas por mês e os seus olossékuli cerca de 11.000 kwoozas Qn EBai2007-06).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

As autoridades tradicionais do M'Balundu sob o controle da UNITA


O município do Bailundo viveu entre 1977 e 2001 debaixo de uma situação de pro-
funda instabilidade social e política, devido à guerra civil que afectou todo o país. Du-
rante uma parte significativa desse período, nomeadamente numa primeira fase, que se
pode configurar grosso modo entre 1977 e 1992, ano da realização das primeiras eleições
legislativas e presidenciais, o município foi ocupado diferentemente pelos duas forças
oponentes do MPLA e da UNITA, sendo que as forças governamentais controlavam es-
sencialmente a vila-sede do município, e a UNITA as regiÕes e as comunas do interior,
principalmente Luvemba e o Bimbe. Nesta última comuna a UNITA teve uma presença
quase constante entre 1981 e 1999 (in EBai2007-08), e de modo ainda mais significativo,
a região de Janjo, na comuna de Luvemba, esteve sob o domínio deste praticamente entre
1977 e 1999. Os movimentos populacionais nesta fase foram bastante pronunciados e uma
parte significativa da população optou por estratégias de fuga das suas aldeias, ora para a
sede do município, ora para as aldeias sede de comuna, ou mesmo para as cidades mais
próximas.
Por isso, e num certo e relativo sentido, pode afirmar-se que a maior parte do munid-
pio foi maioritariamente ocupado pela UNITA durante este período de guerra civil, com
maior incidência sobretudo no período entre 1993 e 1999 152 , altura em que o movimento
rebelde controlou a totalidade do território. Face à necessidade de gerir e controlar as
populações civis e os recursos da região, este movimento acabaria por utilizar um modelo
de enquadramento e de governação indirecta do território e das populações que, como se
tem vindo a defender foi implementado pelo Estado colonial, através do modelo de indi-
rect rule. Nesse caso, as autoridades tradicionais, ou na sua ausência indivíduos que eram
apontados como tal pelo movimento, eram chamados a exercerem funções de controlo e
de regulação da vida das populações, de modo muito similar de resto ao que sucedia no
período colonial e, em grande medida, mesmo na actualidade.
De facto, a organização administrativa da UNITA no município do Bailundo entre
1993 e 1999 era muito similar da actual. Segundo o 1o secretário da UNITA, o Nataniel
Ecolelo 153 , a UNITA tinha a sua organização militar, mas paralelamente uma organização
civil, como se pode constatar pelo esquema,

152 A UNITA teve que abandonar a sede do município do Bailundo a 24 de Setembro de 1999.
153 Entrevista na sede do partido UNITA na vila Bailundo, a 7/09/2004, EBai2004-11.

152 1 153
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

Organlzaçio administrativa municipal da UNITA


ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL
ADMINISTRADOR

D
ADMINISTRAÇÃO COMUNAL

SETORES/OMBALAS

D
CORRESPONDENTES/ALDEIAS

Estrutura de poder segundo a divisio administrativa da UNITA


MUNICIPIO ADMINISTRAÇÃO OSSOMA INENE
_[]_ _[]_
COMUNAS
_[]_
ADMINlSTRADOR
_[]_ j}
SECTORES/OMBALAS SECRETÁRIO OSSSOMA.

j} j} j}
KIMBUS/ALDEIAS CORRESPONDENTE SÉKULU

Como se depreende pelo organigrama, a partir do escalão dos sectores/ombalas, a


UNITA também fazia equivaler a estrutura administrativa com a estrutura tradicional,
no entanto, e partindo da informação disponibilizada, ao contrário da situação actual, o
secretário de sector da UNITA não exercia poder sobre os olossoma, mas estava antes ao
mesmo nível hierárquico. A UNITA também conferia ao ossoma inene, ao rei, um lugar de
destaque na estrutura, equivalente ao administrador municipal.
No caso do ossoma ínene, houve mudanças durante o período de domínio da UNITA,
uma vez que o ossoma inene Ekuikui III, Manuel da Costa, entronizado em 1985, faleceu
NO REINO OA TOUPEIAA. AUTOkiOAOES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

em 1996, sendo entronizado como sucessor o senhor Jeremias Lussáti, com o título de
Utondossi 11154•
Sobre as relações entre as autoridades tradicionais e a UNITA, pode referir-se, como
exemplo, o que destacam a esse propósito os elementos do elengo do ossoma de Janjo,
"Aqui, no tempo da UNITA os soma tinham ido, mas havia restos [do elengo) que
tinham ficado 155• Esses é que faziam os trabalhos, as cerimónias, e tudo. Também faziam
os julgamentos, mesmo sem a presença do soma. Depois o soma veio e continuou os
trabalhos. De 92 a 2000 estava cá e trabalhou com a UNITA. Fazia julgamentos e cerimó-
nias. O soma trabalhava também para ajudar a alimentar as bases da UNITA sim. Havia
uma simpatia com o soba 156, então o soba avisava a população que era preciso organizar
comida. Os sobas trabalhavam directamente com a UNITA sim. Mas os sobas não usa-
vam fardamento como agora, isso não. Nem recebiam nada da UNITA, como agora." (in
EBai2004-7).
Este trecho da entrevista na ombala de Janjo, revela algumas informações corrobora-
das posteriormente noutros locais e entrevistas, sobre a relação de aliança entre o movi-
mento da UNITA e algumas das autoridades tradicionais do M'Balundu, e mesmo inclu-
sivamente com partes significativas da população do munidpio 157•
Em termos das tarefas exercidas pelas autoridades tradicionais para a administração
da UNITA, Nataniel Ecolelo destaca que,

''As tarefas das autoridades tradicionais eram praticamente as mesmas tarefas que fazem
para o governo. No tempo da UNITA os sobas não tinham nenhuma milícia para defender
o território, isso era do exército [da UNITA). As autoridades tradicionais também podiam
participar no recrutamento de jovens para o exército.( ... ) Existia um imposto, que eram
contribuições. Podia ser em comida, para o exército e para a administração, mas neste caso
quem recolhia da população nos kimbos, não era as autoridades tradicionais mas sim os
correspondentes do partido:' (in EBai2004-ll ).

Posição semelhante assume o ossoma de Chilume, que estando no cargo desde 1975,
trabalhou também com a UNITA, e que defende que:

154 Como se pode constatar. não surge o nome de Utondossi 11 na lista oficial do reino. tal deve-se a um enorme conflito entre o Utondossi
11 e o actual Ekuikui IV, que, como se verá, é sobretudo um conflito político-partidário. Utondossi 11 abandonaria o Bailundo, em 1999,
aCDfl1lanhando a retirada da UNITA.
155 Neste caso, os oJossoma da omba/a de Janjo estiveram ausentes da região, enlnl 1975 e 1992, mas nesse ano o ossoma Manuel
Savilinga regressou do seu refúgio na cidade do Huambo, e passou a residir na embala.
156 Nesta afirmação, em que um elemento do elengo aponta claramente a filação entre o ossoma e o movimento rebelde, notou-se um
sorriso aberlo enlrelodos aqueles que assistiam à entrevista, incluindo o secretário da aldeia, do partido MPLA.
157 Este trabatlo não se centra sobre a questão da identificação politica des autoridades tradicionais do M'Balundu, e muito menos da
população do llllllicípio, de modo que esta asserção só se toma i~te porque pemite sublinhar que a actuai blpolarizaçio polftica
do municlpio intersecta o p!Óprio universo das autoridades tradicionais do M'Balundu, de um lado com a figura do ossoma i r - Ekuikui
IV, membro do Cooité Central do MPLA, e de seus seguidores, e do outros alguns olossoma e olossélwlu, e membros dos divinOS
elengo. enquanto si~tes. ou mesmo merrtros do partido UNITA.

154 I 155
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

"Sim, a UNITA controlava isto. ( ... ) Tinha que viver. Qualquer que viesse, qualquer go-
verno que viesse o soba tem que obedecer. Tem que ser neutro, não pertence a partido ne-
nhum. Para a UNITA fazia também certas campanhas. Aquilo que eles quisessem mandar
a gente fazia. Mas não recebia nada." (in EBai2007-06)

Uma arena política bipolarizada


Na actualidade pós-guerra civil, pode dizer-se que um dos factos mais marcantes da
dinâmica social local em que as autoridades tradicionais estão inseridas prende-se com a
fragmentação das arenas políticas locais, após a independência, e a pulverização de novos
actores políticos, que concorrem igualmente pelo controlo, social, político, económico e
simbólico, das populações. Fruto da própria história nacional, o universo rural sofreu um
conjunto de profundas transformações sociais, políticas e económicas, nomeadamente a
guerra civil, a partidarização e bipolarização das arenas 158 políticas locais, o surgimento de
novos actores locais, ligados à politização desses espaços políticos, ou aos novos cenários
ligados ao desenvolvimento, entre outros.
No caso do município do Bailundo, - e contrariamente ao que sucedia durante o
período da administração colonial, no qual as autoridades tradicionais do M'Balundu ti-
nham como actores locais concorrentes no controlo das populações somente os actores
religiosos (pastores, padres e catequistas)- na actualidade as autoridades tradicionais do
M'Balundu confrontam-se e concorrem com uma pluralidade de actores locais nacionais,
tais como os partidos políticos (MPLA e UNITA), os empresários locais, as ONGs na-
cionais e internacionais, os diversos tipos de associações, e diferentes igrejas e confissões
religiosas.
Por outro lado, e devido à situação de guerra vivida no município durante muitos
anos, a arena política está muito bipolarizada, do ponto de vista político, entre a UNITA e
o Estado-MPLA. Nas regiões do município que foram ocupadas pela UNITAI 59, como se
disse, este movimento usou igualmente as autoridades tradicionais, para controlarem as
populações rurais, cobrarem impostos, em geral em géneros; vigiarem e organizarem as
milícias locais; recrutarem jovens das aldeias; e manterem a ordem pública.
Na actual conjuntura do pós-guerra, as autoridades tradicionais "jogam" um papel
ainda mais ambíguo do que no passado do período colonial, pois elas são simultaneamen-

158 O conceito de arena surge neste texto seguindo a definição dada por Thomas Bierschenk e Oivier de Saldan. de que se trata de
'un lieu de confrontitíoos conaé111s d'acteurs socíaux 1111 interBCtion autours d'enjeux oommuns. Un projed de dévllloppemen/ f!SI une
an!ne. Le pcuvair Wlageois est une aténe. Une coopéflllive est une trine' (Bierschenk and Oivier de Sardan, 1998: 262). Por sua
vez. Sheldon Krimsky e Dominlc Goldíng definem uma arena politica como ' a metaphor lo describe /tJe symbolic lccation of politicai
BCtions ltlst ilfAience collllctive decisions or policies' (Krimsky end Golding, 1992: 181 ). Na verdade, este conceito de arena apresenta
bastantes semellanças com o conceito de caqx~ politico, definido este como '1m espace social 61 ferrilorisl à rinterieur duque/ sont
reliés les uns aux adras les scfeurs impliqués dsns un processus politique' (Bierschenk and Oivíer de Serdan, 1998: 261), noção que,
e
de resto bastante próxima da delinlção de C8qlO político de Pierre Bourdieu, que diz que 'Le ch8mp pollíque est Ullfl 'ar611e' qui se
don11e comme te/1 et dsns lequelle i y B des oombsts, des sll'rontements déclarés. Comme dens kxA les champs, Ry a sccumulation de
force, de Cllplsl pollique, c'às+dre de rílpcifltion' (Bourdieu citado em Lourenço, 2006:47).
159 E recorde-se que no período de 1994 a 1999 o município esteve inteiramente dominado e conlrolado por este movimento.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

te controladas e enquadradas quer pelo Estado, pela administração municipal, quer pelo
partido MPLA. Daí uma espécie de "duplo enquadramento social e político das autorida-
des tradicionais': Resulta então, quer ao nível das práticas quer dos discursos, uma enorme
ambiguidade sobre o seu actual papel social das autoridades tradicionais do M'Balundu.
Por exemplo, o ossoma Adolfo Chitoma, quando questionado sobre qual a instituição que
dá instruções às autoridades tradicionais, responde:" Do governo [administração munici-
palj, e do Partido [MPLA I. O partido pode querer alguma coisa da população, ele tem que
dizer ao soba e o soba é que vai dizer como fazer e mobilizar:' (in EBai2004-6).
Em boa verdade, este enquadramento resulta em grande medida do facto de que o
Estado e o partido MPLA desenvolvem um projecto de controlo hegemónico do território
e das populações, assim como tentam controlar hegemonicamente as arenas políticas e
económicas nacionais e locais. Nesse aspecto, é ainda pertinente o uso do conceito de
Estado-Partido (MPLA), para contextualizar a situação, quer ao nível nacional, quer ao
nível local. Disso mesmo se dá conta quando, retomando a questão inicial do ponto an-
terior, se percebe a manifesta simbiose que a administração municipal pretende traçar
entre os organigramas da administração municipal, do partido MPLA, e da estrutura das
autoridades tradicionais.
Esta leitura é igualmente partilhada pelo próprio partido MPLA. Segundo o 1o se-
cretário municipal, Manuel André 160, em muitos municípios no país não existia ainda em
2004 uma diferenciação nítida entre as estruturas do partido e da administração muni-
cipal, o que levava a que em muitos casos os dois cargos, de 1o secretário municipal e de
administrador municipal, fossem ocupados pelo mesmo indivíduo. Caso que, como se
pode ver, não sucede no Bailundo, quer ao nível do próprio município, quer ao nível das
comunas, nas quais existe um separação funcional entre o administrador comunal e o I o
secretário comunal (in EBai2007 -07).
No que respeita à relação com as autoridades tradicionais, o partido, apesar de defen-
der a independência e autonomia desta instituição 161 , nas práticas concebe a relação como
de controlo e subordinação, uma vez que, no seu entender, as estruturas partidárias locais,
nomeadamente os secretários e os comités de sector, devem controlar as autoridades tra-
dicionais. Nesse sentido, já em 2004 o MPLA estava a tentar implementar em um modelo
de articulação e controlo entre as duas estruturas, pois, segundo o I o secretário municipal,
" O secretário de sector controla várias ombalas. E em certas ombalas já existe um secretá-
rio do partido no elengo da ombala. Em geral um mais jovem, que sabe ler e escrever, e que
tem como função registar tudo o que se passa, mesmo nos julgamentos" (in EBai2004-10).
Este secretário do MPLA nas olumbala é designado com o nome de ossonei.
No fundo, esta estratégia do Estado-MPLA de controlar e enquadrar as autoridades

160 Enlre'lista reaizada na sede mmicipal do partido t.f'I.A, na vila do Bailundo, a 710912004, EBai2Q04.10.
161 lliJ nível diSQJrsivo esta é a posição veiculada pelo Estado central, nomeadamente pelo MAT, e por certos analistas polltk:os, conforme
se saientou anteriormente.

156 1 t57
VOZES 00 UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTACO EM ÁFRICA

tradicionais do M'Balundu 162 , parte de duas constatações imediatas, por um lado da as-
sunção da própria incapacidade do Estado-Partido em controlar todo o território nacio-
nal, pois como adiantava o próprio 1o secretário municipal, " o Governo e o Partido só a
partir de 2002 é que conseguiram atingir certas áreas, pois algumas estavam sob a tutela
da UNITA desde 1993, ou ainda antes:' (in EBai2004-10). E, em segundo, também do
reconhecimento da legitimidade das autoridades tradicionais junto das populações, pois
o próprio afirmava que,

" O MPLA está consciente que as autoridades tradicionais são os 'donos do povo', e que
têm maior aceitação. Nesse sentido, o partido acha que deve utilizar essa capacidade de
integração das autoridades tradicionais na população. ( .. .) Na visão do partido, as au-
toridades tradicionais interpretam a tarefa do governo junto das populações. São orien-
tadas para essa função. ( ... ) São os representantes do governo junto das populações"
(in EBai2004-IO).

Deste modo, pode dizer-se que, a estratégia nacional e local do Estado-MPLA face às
autoridades tradicionais angolanas, assenta em dois propósitos: o de controlar e enqua-
drar as populações, sobretudo nos meios rurais, precisamente pelo controlo das próprias
autoridades tradicionais; e de legitimar-se, ao nível local e nacional, face a populações que,
devido às dinâmicas do conflito militar, dificilmente se identificam com o Estado e com
o partido MPLA.
No sentido estratégico de precisamente de enquadrar e controlar as autoridades tradi-
cionais ao nível nacional, o Governo MPLA criou em 2004, por iniciativa do MAT, a Asso-
ciação Angolana das Autoridades Tradicionais (AAAT), com representações/delegações
ao nível provincial e municipal. Nas palavras do seu vice-presidente ao nível municipal,
Joaquim Calado:
"Esta associação não é só ao nível do Bailundo, esta associação vem através da nossa
capital Luanda. Nós vimos para reinforçar as autoridades tradicionais. Pertencemos no
Governo. Temos trabalhadores da função pública, que também pertencem no Governo. A
iniciativa partiu mesmo do Governo. Lá mesmo na capital" (in EBai2007-02)
No município do Bailundo a AAAT foi criada em 2005 e, para além de responder às
emanações e directivas do governo provincial, a associação ainda assume um carácter mu-
tualista, pois as intenções são as de receber um subsidio do Governo e contribuições dos
seus membros 163 que possam posteriormente ser redistribuídas aos membros em casos de
doença, ou falecimento, como adianta o próprio Joaquim Calado:

"No nosso caso de autoridades tradicionais quando falece, quando nos tira do serviço ...
eheh, não tem mais subsidio. No mesmo dia que é tirado não tem mais subsidio. Por isso

162 De notar~ não se trata obviamente de uma estratégia local, mas sim nacional. e que se estende a lodo o pais.
163 Em 2007 a AMT/Ballundo recolhia 200 kWillzas por mês de cada membro, que eram depositadas numa conta bancária no rrunicipio
(in EBai2007-{)2).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TltADICIONAIS DO M'8ALUNOU E O ESTADO ANGOLANO

é que vamos criar a Associação das Autoridades Tradicionais. E então quando eu fale-
ce ainda há conserva que é para ajudar na minha morte. E quando eu adoece também
há conserva para ajudar na minha doença.( ... ) Nós normalmente vamos fazer um sub-
sídio em kwanzas para onde este em nome, um sékulu ou um soba. Aí, se o soba está
doente nós também vamos tirar para o soba ser tratado no hospital. ~ da Associação, é
mesmo assim. Os sobas então têm assim um banco para quando está doente, ou faleceu;"
(in EBai2007-02).

No município do Bailundo a AAAT pretende enquadrar todas as autoridades tradi-


cionais, à excepção do próprio rei, segundo Celestino Ambrósio 164, "A aristocracia toda
está inclusa, menos o rei. Não está porque o rei não está no salário, não recebe salário.
Então com exclusão do rei, porque não está nominal ali nas listas dos subsídios." 165 (in
EBai2007-02). No entanto, e ainda segundo este informante, o rei Ekuikui IV homologou
formalmente a associação no município do Bailundo. Por outro lado, a afirmação do Ce-
lestino Ambrósio de certo modo realça o carácter de semi-funcionalismo público que o
Governo acaba por atribuir às autoridades tradicionais, quer por estatuto quer nas práti-
cas. Situação esta que mais uma vez coloca as autoridades tradicionais num papel de forte
ambiguidade e ambivalência social.
Em 2007 a AAAT no Bailundo ainda se encontrava numa fase muito incipiente de
institucionalização, e com enormes problemas de organização, pois muitas das autori-
dades tradicionais do município ainda não faziam parte da mesma, e ainda nem sequer
tinham uma sede, ou mesmo um local para se reunirem. Também não possuíam trans-
porte próprio, o que dificultava a mobilização das autoridades tradicionais espalhadas
pelas comunas, e mesmo o cartão de identificação, elaborado e institucionalizado ao nível
nacional pelo MAT, ainda não existia em número suficiente para ser distribuído por todos
os elementos do município.
No entanto, apesar deste processo de tentativa de controlo das autoridades tradicio-
nais do município do Bailundo, devido à história da própria guerra civil o Estado-MPLA
confronta-se com uma situação particularmente adversa, face a uma população domina-
da e controlada pela UNITA, durante largos períodos de tempo após a independência.
O mesmo sucedendo com a estrutura política das autoridades tradicionais. Confrontado
com esse princípio, quer o Estado-MPLA municipal, quer a própria liderança da estrutura
tradicional, sobretudo o actual assoma inene 166 , têm sido "acusados" de estarem a modifi-
car politicamente a estrutura tradicional, removendo os olossoma que se identificam com
o partido da UNITA, ou que exerceram funções durante o período de dominação deste
movimento. O discurso do 1o secretário é elucidativo, pois segundo ele, " O MPLA e o
Governo não estão a tirar os sobas que eram da UNITA, estão é a repor os 'verdadeiros'

164 Ver EBai2007-01, e que também esteve presente nesta entrevista colectiva.
165 De acordo com este informante, o rei Ekuikui IV não recebe subsidio do MAT porque como membro do Corrité Central do MPLA tem
direito a um sa15io, e optou antes por esta regatia ao invés do subsídio.
166 Que é membro do corrité centrei do MPLA e, actualmente, deputado por este partido na Assembleia Nacional.

J5s 1 159
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

porque os que estavam na UNITA não eram 'verdadeiros' 167" (in EBai2004-lO).
Claro que esta afirmação não é corroborada pela UNITA, que salienta precisamen-
te que o partido MPLA, a administração e o próprio rei Ekuikui IV têm uma estratégia
comum de substituir as autoridades tradicionais que não se identificam com o partido
dominante168, como realça o 1° secretário da UNITA, sr. Nataniel Ecolelo,

" As autoridades tradicionais que estavam no tempo da UNITA estão a ser substituídas
ou preteridas. É o próprio rei Ekuikui quem tem liderado o processo de substituição. Te-
mos muitos exemplos: o rei Utondossi; o soma Chijamba, o Bartolomeu Mbila; o soma
de Bimbe, Lucas Sambundo; alguns mesmo do elengo do rei, o mwekalia Mateus Jaulu, o
tchicucula Bento Ossi, o komandanti, o tchitonga, que foi batido pelo próprio rei agora a
13 de Agosto; o soma de Kavindi, Alexandre Mete, e mais outros. O rei Ekuikui que é do
comité central do MPLA, quer problemas com a UNITA e orienta os outros sobas para
não receber nem pessoas nem os próprios desmobilizados da UNITA:' (in EBai2004-ll).

E realça precisamente o entendimento que existiu, e segundo ele, ainda existe, entre
o partido da UNITA e as autoridades tradicionais do M'Balundu, "muitos sobas e sekulos
são da UNITA, simpatizantes ou membros, e frequentam as casa da UNITA, ou a sede,
mas a medo de serem descobertos e castigados. Por isso em geral não dizem nada, a estra-
tégia é não se manifestam:' (in EBai2004-ll ). 169
Alguns sectores da população local, sobretudo afectos à UNITA, também defendem
que as autoridades tradicionais e o Partido-Estado MPLA estão numa relação de aliança
com o propósito de implantar esse modelo hegemónico de controlo da população e da
vida política local. Numa conversa havida com um grupo de mulheres, afectas ao partido
UNITA, foi salientado que:

" certos sobas e certos sekulus são importantes porque resolvem problemas nos bairros.
Mas certos sobas e sekulus não resolvem problemas dos da UNITA. Quando tem pro-
blemas apresenta nos sekulus, mas não dá razão se for da UNITA, então o sekulu vai dar
razão àqueles que não têm razão. Por exemplo em Luvemba houve atritos com os homens
da UNITA, foram batidos, roupas queimadas, casas queimadas, e os homens que tinham
razão é que foram para a cadeia porque eram da UNITA." (in EBai2007-03)

167 Pelo que se constatou no trabalho de call1Xl de 2004. nomeadamente pelas informações recolhidas, os critérios para apurar a 'legiti-
midade' deste ditos 'sobas nêo verdadeiros", nêo se pautava por critérios históricos ou dinásticos, mas sim politicos.
168 Amalaia dos actuais obssoma do M'Balundu mm todos entronizados a partir de 2004, pelo rei Ekuikui fV e pela actual administração
municipal.
169 Em 2004 existiam ainda mu~os problemas e coni"ontos violentos entre partidários dos dois pal1idos poiHicos. O 1• secretário municipal
da UNITA fomeoeu uma lsta de incidentes, segundo a "'eitura' deste partido Qlle se transcreve aqui. apenas para ilustrar esse cima
conflituoso que se vivia na época do trabaho de campo de 2004. Segundo a ista fornecida pelo sr. Nataniel Ecolelo. 'foram incendiadas
as sedes da UNITA na coi!Uia de Bimbe (2003). de Hengue por ruas vezes (2004): em LuventJa mm Qlleimadas as casas de 7
membros da UNITA (23/0712004, a UNITA acusou os cheles dos Antigos Combatentas. do MPLA. Maleus Cameísa e Adriano Chiaiu);
comma de LuventJa, queimada uma casa comercial de um l'!lelltto da UNITA, na zona de Lupire; na mesma comma, na aldeia de
Assonjo foi queimada uma casa por ordem do soba Assonjo, Apoinirlo Samakunha (18/07/2004); na vila do Lunge. foi queimada uma
casa duas vezes; na CO!l'llna do Lunge, sector Monte Belo, foi Qlleimada a bandeira da UNITA por duas vezes." (in EBai2004-11 ).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TllADICIONAIS DO M'BALUNOU E O ESTADO ANGOLANO

E as lamentações atingem mesmo o próprio rei Ekuikui IV que, segundo estes sim-
patizantes da UNITA, está a promover a perseguição das autoridades tradicionais que são
afectas à UNITA, e mesmo a restante população, "o actual rei Ekukui não resolve as coisas,
o verdadeiro rei é o Utondossi, que no passado mês de Agosto levou dois tiros e está hos-
pitalizado no Huambo. Katchiopololo não gosta das gentes da UNITA, e os que gostam da
UNITA não gostam dele, mas sim do Utondossi." (in EBai2007-03).
Não é possível postular com clareza e independência se existe efectivamente uma es-
tratégia comungada entre o assoma inene Ekuikui IY, o partido MPLA e o governo muni-
cipal, quanto à substituição de olossoma afectos à UNITA, ou mesmo a sua não nomeação.
São conhecidos casos em que o rei não aceitou certas nomeações de futuros olossoma,
como por exemplo no caso da ombala de Dende, que depende da ombala de Chilala, na
comuna de Bimbe, e em que o assoma nomeado pelo elengo da ombala e confirmado pelo
assoma de Chilala seria posteriormente rejeitado pelo rei Ekuikui IY, obrigando o elengo
de Dende a nomear outro sucessor a assoma (in EBai2007-08). Contudo não existem da-
dos que permitam afirmar que se trata de uma estratégia política do rei, e sucede mesmo
amiúde que um candidato a assoma seja depois rejeitado pelo ossoma superior, e até mes-
mo pelo rei.
O que se pode afirmar é que a posição de charneira, e de independência, que o Estado
e o Partido MPLA pretendem, na aparência, conceder à instituição, conduz a que as pró-
prias autoridades tradicionais fiquem "encravadas" nessa confrontação político-partidária
local170• Essa aparência de independência da instituição, -que, como se viu anteriormen-
te, se joga ambiguamente no modelo de descentralização que, ao nível nacional, o MAT
e certos analistas da descentralização defendem, colocando as autoridades tradicionais
como independentes do Estado, e dos partidos, e como instituição autónoma de poder
local, - produz nas práticas situações ambíguas, pois as autoridades tradicionais "têm que
atender a todos': como salienta Adolfo Chitoma, e adianta que, "A UNITA também vem
aqui. Tem acontecido. Se ali tiver visita tenho que ir lá, não posso dizer que não:' (in
EBai2004-6).

Um reino bicéfalo: lutas em torno de uma dominação legítima


A bipolarização político-partidária do município do Bailundo, enquanto arena polí-
tica, joga-se assim entre os dois partidos nacionais, o MPLA e a UNITA, e essa clivagem e
luta política atinge e contamina igualmente a estrutura de poder tradicional do M'Balundo,
que acaba igualmente por incorporar essa bipolarização, com a existência de um enorme
conflito entre dois ossoma inene, Utondossi II e Ekuikui IY, conflito que se agravou expo-
nencialmente com o regresso em 2003 do anterior ossoma inene do M'Balundu, Utondossi

170 Obviamenle que neste ponto não existe nenhuma inocência da parte das autoridades tradicionais, pois estao bem conscienles daste
lugar social e político, 'encravado' entre a administração local e os plridos MPLA e UNITA, e tentam igualmente manipular e orientar
esta posição social em seu beneficio pessoal.

160 I 161
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

II, o que, de certo modo, tem criado uma situação muito ambígua.
Utondossi II foi entronizado soma inene do M'Balundu em 1996. Até então reinava
na ombala real o senhor Manuel da Costa, com o título de Ekuikui III, e que tinha sido
entronizado em 1985. Quando o Ekuikui III faleceu, em 1996, o município do Bailundo
estava já ocupado pelas forças da UNITA. Nessa altura colocou-se então a questão da
substituição do ossoma inene, e foi então escolhido um seu sobrinho, filho de uma irmã,
seguindo-se o princípio da sucessão por via da oluina. Foi entronizado com o título de
Utondossi II 171 • Este reinou até 1999, período em que a área estava ocupada pela UNITA.
No entanto, nesse ano o movimento rebelde teve que abandonar a região devido à ofensiva
militar governamental. Utondossi II, bem assim como uma parte do seu elengo, e mesmo
população comum, abandonaram igualmente o município.
Entretanto, a região foi ocupada pelas forças governamentais e em 2001, com o fim
da guerra civil, o senhor Augusto Katchiopololo regressou ao município. Augusto Ka-
tchiopololo, era o ossoma da ombala de Chijamba, na comuna de Luvemba, até 1994,
mas abandonou o município quando este foi ocupado pela UNITA, tendo-se refugiado
primeiro em Benguela e posteriormente em Luanda, onde permaneceu até ao final da
guerra civil. No seu refúgio de Luanda, Augusto Katchiopololo teve uma actividade políti-
ca proeminente e, em 1998, durante a realização do 4° Congresso do MPLA foi nomeado
para membro do Comité Central deste partido. Ao regressar ao município do Bailundo,
Augusto Katchiopololo viria a ser nomeado ossoma inene do M'Balundu, em 2002, e en-
tronizado em 2004, com o título de Ekuikui IV.
Esta situação levanta uma certa celeuma, surda pode dizer-se 172 , entre uma parte da
população do município e uma parte da estrutura de poder tradicional, olossoma e olos-
sékulus, afectos ao partido UNITA, e entre os activistas desta mesma força política, que
não atribuem legitimidade ao actual ossoma inene Ekuikui IV, e que defendem que se trata
de uma imposição do Estado-MPLA, quer por ele ser membro do Comité Central do par-
tido no poder, quer para reforçar o controlo do partido sobre as autoridades tradicionais
do reino. Por exemplo, o ossoma de Chilume defende que Utondossi II "é que é o verda-
deiro descendente dos antigos sobas, dos primeiros sobas': Contudo, este ossoma assume
uma posição de extrema cautela e pragmatismo 173 , adiantando que,

"O Utondossi é que foi nomeado mas através da guerra ele teve que sair, foi quando veio
este ai.( ... ) Não se pode comparar o Utondossi ou o Katchiopololo. De momento quem
está aqui é o Katchiopololo, e então tem que respeitar o Katchiopololo, mas o Utondossi é
que nasceu na ombala inene, na ombala grande. Ele é respeitado. Ele é mais poderoso. Ele
está na história dos reis, dos antepassados" (in EBai2007-06)
171 Segundo alguns depoimentos recollidos dLKante o trabalho de C8111l0 de 2004. e sobretudo junto de indivíduos simpatizantes do
MPLA, Utondossi 11 não teria mesmo chegado a ser entronizado segundo os procedimentos rituais tradicionais, mas sim nomeado pela
UNITA.
172 Devido à presença e hegemonia actual do MPLA no município a contestação não é manifesta. nem aberta.
173 Esta postura pragmática, e defensiva, é usada por quase todos os olossoma que estiveram no poder sob o controlo da UNITA, sendo
ou não afectos a este partido. e revela o medo que têm do actual controlo hegemónico do Estad<>-MPLA.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

Esta situação agravou-se substancialmente em 2005, porque o anterior ossoma inene,


Utondossi II, regressou ao Bailundo 174 e continuou a deter uma forte legitimidade, sobre-
tudo para os sectores da população e das autoridades tradicionais afectas à UNITA.
Contudo, formalmente, e mesmo para o Estado, o legitimo detentor do trono é mes-
mo o Ekuikui IV, e é ele quem governa a estrutura de poder tradicional. Mas, por outro
lado, e aparentemente, não só a população, como as próprias autoridades tradicionais es-
tão divididas, quanto à legitimidade dos dois indivíduos. Deste modo, no Bailundo vive-
se uma situação de forte ambiguidade, e mesmo de grande conflito e antagonismo no
seio da estrutura de poder 175, com duas fontes de legitimidade diferenciadas e distintas,
colocando-se mesmo em causa a legitimidade do actual ossoma inene. Os partidários de
Utondossi II defendem mesmo que o senhor Augusto Katchiopololo nunca podia ser osso-
ma inene, pois não provêm da linha matrilinear, oluina, do anterior ossoma inene, Ekuikui
III, ao contrário de Utondossi II, esse sim legitimo, por essa via.
Mas a "históriâ' é, contudo, mais complicada, pois a legitimidade de Ekuikui IV apa-
rentemente não pode ser questionada deste modo, e, segundo alguns informantes, o actu-
al ossoma inene do M'Balundu tem toda a legitimidade no cargo. O senhor Augusto Ka-
tchiopololo, como se disse anteriormente, era ossoma da ombala de Chijamba. Em 1990 o
rei Ekukui III foi preso pela UNITA e levado para a Jamba. O elengo, ou o que restou dele
no Bailundo, reuniu-se e escolheu Augusto Katchiopololo para sucessor do ossoma inene.
O ossoma de Chijamba foi assim escolhido para suceder ao ossoma inene Ekuikui III,
preenchendo todos os requisitos necessários à sucessão, pois provinha da linha patrili-
near da oluse de Ekuikui III, uma vez que era filho de um tio do rei, e, como se demons-
trou anteriormente, desde o final do século XIX, pelo menos, que a sucessão aos cargos
de poder pode contemplar qualquer uma das linhas familiares, por patrilinearidade ou
matrilinearidade. No entanto, segundo alguns informantes (in EBai2007-09) o Augusto
Katchiopololo não aceitou ser entronizado como ossoma inene, dado que o Ekuikui III
ainda estava vivo, aguardando pelo seu falecimento para ser entronizado como ossoma
inene do M'Balundu.
Com a ocupação da região pela UNITA, em 1994, e por não se identificar com o mo-
vimento rebelde, o Augusto Katchiopololo fugiu da área e não estava presente quando o
Ekuikui III regressou ao município, nesse mesmo ano. Entretanto o Ekuikui III viria a fa-
lecer em 2006. E é neste contexto que Utondossi II foi eleito e entronizado em 2006 como
ossoma inene do M'Balundo. Utondossi viria posteriormente a abandonar o município,
acompanhando a retirada da UNITA. Ao regressar ao Bailundo em 2001, após o final da
guerra civil, e ao ser entronizado como ossoma inene em 2004, Augusto Katchiopololo

174 A data do regresso de Utondossi ao Bailundo é um pouco contraditória. Mlitos dos informantes referem que ele regressou um 2005,
contudo o sr. Cândido Uquélonga refere o ano de 2003, adiantando que o Utondossi viveu desde essa altura sempra na sua casa, pois
são cunhados (in EBai200Hl9). Uma hipótese possível de expNcaçlo é a de que as notícias públcas do regrasso de utondossi só
tenham começado a ciraJiar em 2005. Outra hipótese será a de uma certa confusão de datas dos informantes.
175 Esse conflito chega a tomar proporções bastante violentas, pois utondossi 11, chegou a ser vítima de uma tentativa de homcidio, em
Abril de 2007.

t62 1 163
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

acaba por repor a linha de sucessão que foi interrompida em 1996.


No entanto, e apesar da legitimidade do actual ossoma inene parecer indiscutível, isso
não obsta a que o reino viva sob a ambiguidade e a conflitualidade de dois "reis" simultâ-
neos, com diferentes diques de adeptos e de "súbditos': Conflitualidade essa que atingiu
em Junho de 2007 um pico de violência com a suposta tentativa de assassinato de Uton-
dossi. Este, ao regressar ao município, com 60 anos de idade, instalou-se na aldeia de
Étunda, na comuna do Lunge, onde detinha uma loja comercial. No inicio do mês de Ju-
nho de 2007, seria vitima de um ataque na sua loja, tendo sido atingido com dois disparos
e posteriormente evacuado e internado no Huambo. Esta acção, que não foi esclarecida
pelas autoridades policiais, provocou não somente consternação entre os seus defensores,
mas uma onda de críticas e acusações contra o actual rei Ekuikui IV, "acusado" de ser o
mandante da tentativa de assassinato de Utondossi 176•
Esta interpretação da história recente da sucessão ao titulo de ossoma inene do
M'Balundu continua a suscitar muitas e diferentes interpretações, e até atingiu uma certa
dimensão nacional, como prova esta interpretação, defendida por Mbela Isso, no site
Nação Ovimbundo.Org.

"A Hin6rlCI mais recente do "reino.. do Sallunclo


Sábado, 03 Outubro 1009 08:51 Mbela Isso

Pretendo, com este artigo, apresentar alguns factos mais recentes sobre a história do que
foi, em tempos, um dos mais poderosos reinos dos estados do planalto, ou seja, o Reino do
Bailundo, sem qualquer desprimor para outros estados, importantes que foram e são, quer
para as lutas contra a ocupação colonial, quer para o processo da construção da Nação-
Estado, em curso, e incluso no grande projecto de edificação da sociedade angolana.
Os estados Ovimbundu, embora os dados de que dispomos apontem para o facto de os
mesmos terem sido constituídos muito antes do século XIX, são mais fáceis de descrever
a partir dos anos de 1800, sobretudo no que diz respeito aos Estados da Cingolo, Cyaka,
Gumba, Kalengue, Kaluquembe, Bailundo, Ndu1u; Ngalangui; Sambu, Viye, Wambu, para
além dos reinos não menos importantes como o de Caconda (Cilombo Coiioma), Ekeke-
te, Chitata e outros. [... ]
Falando, concretamente, do reino do Bailundo, que nos interessa neste artigo, é de referir
que o mesmo perdeu a sua independência em 1896, logo após a morte de Ekuikui II, e du-
rante o reinado de Numa II que o sucedera. Recorde-se que este fora vencido pelo capitão
Justino Teixeira da Silva, que, vindo do Bié, o atacou sem dó nem piedade.
A Numa II (assassinado por ordens do jovem capitão Teixeira da Silva) sucederam outros
reis, com pouca expressão, como foi o caso de Kalakata e Kalandu1a. Estes, transidos pelas
derrotas, nada fizeram para contrapor com retaliações a impunidade com que os portu-
gueses agiam no reino recém-conquistado. De facto, os comerciantes portugueses agiam
com uma impunidade total, sobretudo no que dizia respeito à procura de milho, cera,

176 O senhor Jeremias Lussáti, Utondossi 11 faleceu em 2008.


NO "EINO DA TOUPEI"A. AUTO"IDADES T"ADICIONAIS DO M'8ALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

borracha e de mão-de-obra escrava para a agricultura.


Houve, entanto, um homem, que não era rei, mas que estava ligado à corte do reino do
Bailundo, que não esteve para meias medidas. Esse homem chamava-se Mutu-ya-Kevela,
que quis pôr freio aos apetites desmesurados dos portugueses. Mutu-ya-Kevela viria a ser
dominado e morto em 1902, muito antes do aprisionamento, na região do Bimbe, do seu
conselheiro, Samakaka, famoso pelos seus conhecimentos de magia, utilizado, em vão,
para ludibriar as forças portuguesas. Dali em diante, os portugueses tiveram um domínio
total do "Reino" ao ponto de, por um lado, influenciarem nas sucessões ao trono e, por
outro, mobilizarem os reis, agora convertidos em sobetas, para as suas missões mais bizar-
ras como foi, por exemplo, a mobilização dos bailundos, sob o comando do rei Candimba
para a chacina da população dos Seles.
A história do "Reino· do Bailundo, depois de passar por um período de relativa acalmia,
viria, no entanto, a tornar-se conflituosa, fruto das convulsões políticas e sociais que se
verificaram logo após a ascensão do pais à independência e, concomitantemente, a guerra
que se seguiu.
O último dos soberanos que regeu o Bailundo, sob a bandeira colonial, foi Félix Numa
Candimba, da linhagem do rei Candimba. Félix, durante o tempo colonial e os anos que se
seguiram a independência nacional, conciliava a função de rei (soba) com a de contínuo
na Escola Primária no 44, do Munidpio do Bailundo.
Na Angola independente (1976) o Municlpio do Bailundo era governado pelo Comissário
Municipal André Ulamba, mais tarde substituído por Chipindula e David Sapata, respec-
tivamente. A nomeação de David Sapata viria a coincidir com a morte de Félix Candimba.
É de referir que David Sapata foi nomeado Comissário do Municlpio do Bailundo, no ano
de 1977. Tratou-se de um homem que ficou célebre pelo seu carácter sanguinário ao ponto
de, segundo se conta, ter tido o desplante de apresentar a certos visitantes ao Município a
sua famosa "lavra~ leia-se cemitério. Como se isso não fosse suficiente, o comissário David
Sapata foi a primeira autoridade governamental a subverter os princlpios da entronização
dos "reis" do Bailundo, segundo os quais, apenas podem ser reis pessoas de sangue azul,
ou seja, que possuem a linhagem real. David, sub-repticiamente, favoreceu e contribuiu
para que um dos seus amigos, Benjamim Pesela Tchongolola, um granjeiro, se autoprocla-
masse rei do Bailundo, embora por pouco tempo, porque, em 1979, o comissário David
Sapata não sobreviveu a uma emboscada da Unita, que também dizimou centenas de pes-
soas que vinham com ele na via do Alto-Hama ao Bailundo.
Manuel da Costa (Ekuikui III)- Rei do Bailundo (1977-1998) Ao comissário David, su-
cedeu Arão Chitekulu. Este, com o intuito de mostrar uma nova face na sua governação,
embora não se não se tenha livrado da fama de carrasco, organizou um grupo de Sekulu
(mais-velhos) com o fim de tirar Pesela do trono, o que foi conseguido pelas razões atrás
apontadas. Apesar disso, o gesto de Arão Chitekulu caracterizou-se, em certa medida, por
um igual desrespeito às tradições. É que, Manuel da Costa, o rei escolhido, não pertencia
a linhagem dos reis do Bailundo, mas sim dos reis da Luvemba. Fosse como fosse, Manuel
da Costa subiu ao trono com o epíteto de Ekuikui III, tendo sido respeitado como tal. O
mesmo teve, no entanto, um percalço quando, nos anos 80, foi raptado pela Unita e levado
para o antigo bastião do "Galo Negro': a Jamba. No entanto, pelo que se sabe, mesmo na ali,
o mesmo foi tratado com a deferência própria de um rei. Foi nesta qualidade que, em 1992,
após as escaramuças que se seguiram as eleições de 1992, a Unita não torcesse o nariz ao

16-4 I 16s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM AFRICA

facto de Manuel da Costa (Ekuikui III) ter retomado o trono, diante da fuga de um outro
rei que lhe tinha tomado o lugar durante a sua ausência, ou seja, Augusto Kachytiopololo,
um homem comum, não pertencente a qualquer linhagem dos reis do Bailundo, que foi
elevado à categoria de rei por questões essencialmente políticas, com o patrocínio do Co-
missário Provincial Arão Chiteculo.
Augusto Kachytiopololo, entronizado aquando da estadia de Ekuikui III na Jamba, refu-
giou-se na cidade do Huambo logo que a Unita fixou a sua direcção nas vilas de Andulo
e Bailundo. No entanto, Ekuikui III viria falecer nos finais dos anos 90, mergulhando, de
novo, o reino numa crise. Dada a vacatura e, sob a influência do líder da Unita, foi decidi-
do preenche-la com candidatos de sangue azul e da linhagem dos reis de Etunda, Lunge.
Recorde-se que fora daí de onde saíra, em 1820, o rei Utondossi que reinara no Bailundo
até 1842. Definidas assim as coisas, a escolha recaiu para duas individualidades de sangue
azul e da linhagem real dos Utondosi: Alice Ngueve Simões (mãe do embaixador e ex-
presidente da bancada da Unita, Alcides Sakala Simões), e Jeremias Lussati, a quem se
decidiu entregar o trono, com o epíteto de Utondossi II.
Com a morte do líder da Unita, o fim da guerra e are-proclamação de Augusto Kachytio-
pololo para rei, com o epíteto de Ekuikui IV, O "reino" do Bailundo entrou na sua fase
mais crítica, cuja nota predominante é a vassalagem total ao Mpla e JES. Daí que o passo
a seguir, conforme foi orquestrado por essa força política, com o beneplácito de Augusto
Kachytiopololo, foi a eliminação fisica de Utondossi II, o que se conseguiu, em 2008, como
consequência de um atentado sofrido em 2007 na localidade de Lunge, onde vivia.
Estes factos apenas atestam quão contraproducente é a intromissão abusiva da política e
do poder instituído no poder tradicional. Mas, apesar disso, nos "akokoto" mentais das
populações do Bailundo apenas têm lugar os reis de sangue azul. Quantos aos outros, serão
esquecidos logo que deixarem o mundo dos vivos" m

No fundo esta visão da sucessão acentua predominantemente o carácter de ilegitimi-


dade do actual ossoma inene Ekuikui IV, uma vez que, por um lado sucede a um soberano
também ele ilegítimo, o Ekuikui III, e que ambos provêm da linhagem dos reis da Luvem-
ba, e não da legítima linhagem dos reis da Candimba. A Candimba é o verdadeiro nome
da ombala real do M'Balundu, e os seus ossoma inene derivam de Utondossi I.
Num outro sentido, o actual cisma do reino, centra-se igualmente em torno da posse
dos símbolos do poder real do M'Balundo 178, uma vez que segundo consta, o actual os-
soma inene possui na sua ombala real o assapata (bastão}, o otchalo (banco) e a horjonje
(zagaia}, enquanto o Utondossi detêm a omoku (catana).
No fundo este cisma 179 não se centra sobre legitimidades tradicionais, pois como
referem muitos dos informantes, incluindo Cândido Uquélonga, "ambos são legítimos,
isso só depende da população, do elengo." (in EBai2007-09). Ele reflecte isso sim, e é uma
consequência, da ruptura maior, ao nível nacional, entre a UNITA e o Estado-MPLA,
ruptura que recai inevitavelmente nas dinâmicas políticas locais, pois que, como sublinha

1n ln h!lp:llwMv.ovintundu.org/Os=OyjntunduMs!oria-dgs-OvinDmdu/A-Hj!!IDó!HnajHOCI!!!!t«HeiJoklndo hbnl .
178 cf. Cap. O Reino da Toupeira.
179 Cisma que leve o seu epilogo em 2008 com a morte de Ulondossi 11.
NO itEINO DA TOUP'EIIt.A. AUTOit.IDADES Tlt.ADICIONAIS DO H'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

Cândido Uquélonga, " A população quase toda é do Katchiopololo. Mas aqueles que vie-
ram das matas esses são do Utondossi" (in EBai2007-09}.
As autoridades tradicionais do M'Balundu encontram-se obviamente submergidas e
submetidas por esta luta política nacional, mas, ao contrário de serem actores locais pas-
sivos dessa luta, elas reapropriam-se e reutilizam o discurso político partidário nacional,
transformando-o num discurso sobre legitimidades tradicionais locais. A actualidade no
entanto não deixa de assinalar que essa luta anuncia um vencedor, o MPLA, e o seu pro-
jecto hegemónico de controlo e domínio do Estado, do território e das populações, projec-
to esse no qual as autoridades tradicionais intervêm enquanto "força de enquadramento
e mobilizaçãô das populações e, simultaneamente, enquanto força legitimadora local do
próprio Estado-MPLA. Mas este processo, em grande medida de top-down, não deixa de
reflectir entre as autoridades tradicionais do M'Balundu as contradições e as dinâmicas
nacionais, mas ao mesmo tempo expressa uma pluralidade de estratégias políticas indivi-
duais e colectivas, e uma capacidade de sobrevivência da instituição e de manipulação de
dinãmicas exógenas, quer no período de dominação colonial, quer na actualidade.

Conclusio
O reino do M'Balundu é o maior e um dos mais importantes entre os reinos Ovimbun-
du do planalto central angolano. Ao longo da sua história, o reino do M'Balundu sofreu
um conjunto de profundas influências e transformações, sobretudo a partir da dominação
colonial portuguesa, e mais concretamente a partir de 1902, data da última sublevação dos
Bailundos contra o domínio colonial. A partir dessa época, o reino perdeu a sua indepen-
dência e foi progressivamente submetido à lógica político-administrativa colonial.
Apesar das alterações produzidas durante o período colonial, a estrutura de poder
tradicional do reino M'Balundu têm-se mantido relativamente estabilizada, quanto à sua
forma, desde o período pré-colonial. Nesse ãmbito, ela engloba um número significativo
de escalões e de figuras de poder que, na sua totalidade enquadram o que se denomina
de autoridades tradicionais, e que se organizam de forma hierarquizada e centralizada a
partir da figura superior do rei, o ossoma inene.
Durante o período de dominação colonial, as autoridades tradicionais do M'Balundu
foram integradas no processo administrativo, à semelhança do que sucedeu na maioria
das colónias africanas, e sofreram um processo de cerceamento da sua autonomia e das
suas prerrogativas de poder e foram chamadas a desempenhares papeis e tarefas para as
respectivas administrações coloniais, segundo um modelo do estilo do indirect rule britâ-
nico, com múltiplas nuances locais e temporais. No que respeita às funções que desempe-
nhavam para a administração colonial, as próprias autoridades tradicionais do M'Balundu
salientam como mais importante: a recolha do imposto anual de cubata; o controlo da
mão-de-obra e do trabalho obrigatório, o "contracto''; o controlo da ordem social, através
dos julgamentos tradicionais; o controlo das produções comerciais obrigatórias, como o

166 1 167
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

café e o sisai; e a manutenção das principais vias de comunicação, estradas e pontes.


Os processos de transformação social ocorridos no planalto central angolano durante
o século XX, provocaram igualmente uma forte ruptura na relação de politicai accounta-
bility entre as populações Ovimbundo e as suas autoridades tradicionais. Entre as mu-
danças ocorridas, o autor salienta o surgimento de novas aldeias, a influência decisiva dos
missionários, sobretudo dos missionários protestantes, as rupturas geracionais, e as alte-
rações ao modelo tradicional da organização social do trabalho, alterações essas que pro-
vocaram e permitiram o aparecimento de novos actores sociais, tais como missionários,
catequistas, professores, enfermeiros, que concorriam directamente com as autoridades
tradicionais, em termos de liderança social e de prestígio.
No entanto, à semelhança do que sucedeu noutros contextos coloniais africanos, essa
perda de legitimidade das autoridades tradicionais do M'Balundu não foi completa, e as
populações, mesmo afrontando-se e confrontando-se com dois sistemas antagónicos de
poder e organização social, o tradicional e o colonial, não deixaram completamente de
reconhecer no seu modelo de poder e de reprodução social, e nos actores chaves desse
modelo, as autoridades tradicionais, uma maior legitimidade, porque esta constituiu a
principal fonte de significados simbólicos.
A seguir à independência, em 1975, as diferentes fases da guerra civil e os elevados
movimentos populacionais do campo para as cidades, constituíram um forte entrave à
realização de estudos sobre as dinâmicas das populações rurais Ovimbundu e sobre as
transformações, os processos de legitimidade e a participação das autoridades tradicionais
nessas dinâmicas rurais, quer nas zonas controladas pelo Estado quer nas controladas pela
UNITA.
No caso do planalto central, concretamente do município do Bailundo, deu-se então
uma enorme fragmentação social que deriva da complexidade das dinâmicas da guerra na
região. Houve zonas que foram sendo sucessivamente ocupadas pelos dois beligerantes, e
wnas mais estáveis onde o controlo político esteve mais tempo sob a alçada de um ou do
outro movimento. Nesse sentido é quase impossível adiantar um padrão de transformação
social para a região durante o período entre 1975 e 2002. Com o final da guerra civil, e
com a extensão do domínio e controlo do Estado central à totalidade do território, entrou-
se numa nova era que se pode consubstanciar em duas tendências: a) a participação das
autoridades tradicionais angolanas no processo de reconstrução e consolidação do Estado
em meios rurais; b) a participação das autoridades tradicionais nos processos de descen-
tralização e de construção do Estado Local.
No caso do município do Bailundo o Estado municipal começou a integrar as autori-
dades tradicionais do M'Balundu no processo de reconstrução e consolidação do Estado
sobretudo a partir de 2003/2004. Como se demonstrou, essa integração demonstra uma
profunda confusão, quer ao nível conceptual quer das práticas, misturando-se no mesmo
modelo administrativo, duas estruturas, a tradicional e a estatal, sem qualquer enquadra-
mento legal que suporte esta concepção.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'IALUNDU E O EStADO ANGOLANO

Deste modo, desde 2003 que as autoridades tradicionais do M'Balundu participam no


processo de construção do Estado local, em grande medida exercendo funções e tarefas
muito similares às que desempenhavam para a administração colonial, numa espécie de
sistema de indirect rule, excluindo a questão dos recrutamentos forçados para o contracto
e para o trabalho forçado. Neste âmbito, destacam-se na actualidade as tarefas de manu-
tenção da ordem social, através dos julgamentos tradicionais, função que, como se viu,
coloca problemas de constitucionalidade e equaciona a legitimidade do pluralismo jurídi-
co, sobretudo no que diz respeito por exemplo aos julgamentos de acusações de feitiçaria.
Por outro lado, as autoridades tradicionais não desempenham apenas tarefas admi-
nistrativas. Elas desempenham ainda um papel fundamental no sistema de reprodução
social e no modelo de articulação entre a ordem "terrena" e a "ordem cosmológicâ: pre-
cisamente pelo lugar de intermediários com os espíritos dos antepassados, mormente dos
falecidos olossoma. Algumas manifestações sociais são fundamentais para a manutenção
e o equilíbrio dessa relação com os espíritos, de entre as quais se destacam as cerimónias
colectivas de propiciação aos espíritos dos antepassados.
Na actualidade, as autoridades tradicionais do M'Balundu são ainda chamadas a exer-
cerem outras tarefas para a Administração municipal, que contribuem igualmente para
o processo de construção do Estado, quer ao nível local, quer até nacional. Entre elas
destacam-se as tarefas de mobilização das populações para as campanhas relacionadas
com a Saúde, nomeadamente as diversas campanhas de vacinação, de esclarecimento da
população para respeitar e introduzir hábitos de higiene. Por outro lado, em 2007, as au-
toridades tradicionais também participavam activamente no processo de recenseamento
eleitoral das populações rurais.
Pode então afirmar-se que, se perpetuam um conjunto de continuidades com o pas-
sado colonial, bastante significativas, e significantes, na relação entre as autoridades e o
Estado. Essas continuidades expressam-se não apenas nas funções que actualmente as au-
toridades tradicionais exercem para o Estado angolano, mas igualmente noutros aspectos,
como por exemplo no capítulo das regalias.
Este modelo de enquadramento das autoridades tradicionais do M'Balundu foi igual-
mente usado pela UNITA, uma vez que o município do Bailundo durante a maior parte do
tempo da guerra civil, foi maioritariamente ocupado pela UNITA, sobretudo no período
entre 1993 e 1999. A UNITA, em face da necessidade de gerir e controlar as populações
civis e os recursos da região, acabaria por utilizar um modelo de enquadramento e de
governação indirecta do território e das populações, através das autoridades tradicionais.
Nesse caso, as autoridades tradicionais, ou na sua ausência individuas que eram aponta-
dos como tal pelo movimento, eram chamados a exercerem funções de controlo e de regu-
lação da vid~ das populações, de modo muito similar de resto ao que sucedia no período
colonial e, em grande medida, mesmo na actualidade.
Pode dizer-se que nesta fase do pós-guerra civil um dos factos mais marcantes da di-
nâmica social local, prende-se com a fragmentação das arenas políticas locais e a pulveri-

16a 1 1"
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

zação de novos actores políticos, que concorrem igualmente pelo controlo, social, político,
económico e simbólico, das populações. Fruto da própria história nacional, o universo
rural sofreu um conjunto de profundas transformações sociais, políticas e económicas,
nomeadamente a guerra civil, a partidarização e bipolarização das arenas políticas locais,
o surgimento de novos actores locais, ligados à politização desses espaços políticos, ou aos
novos cenários ligados ao desenvolvimento, entre outros.
No caso do município do Bailundo, as autoridades tradicionais do M'Balundu con-
frontam-se e concorrem com uma pluralidade de actores locais nacionais, tais como os
partidos políticos (MPLA e UNITA), os empresários locais, as ONGs nacionais e inter-
nacionais, os diversos tipos de associações, e diferentes igrejas e confissões religiosas. Por
outro lado, e devido à situação de guerra vivida no município durante muitos anos, a are-
na política está muito bipolarizada, do ponto de vista político, entre a UNITA e o Estado-
MPLA.
Na actual conjuntura do pós-guerra, as autoridades tradicionais "jogam" um papel
ainda mais ambíguo do que durante o período colonial, pois elas são simultaneamente
controladas e enquadradas quer pelo Estado, pela administração municipal, quer pelo
partido MPLA. Daí uma espécie de "duplo enquadramento social e político das autorida-
des tradicionais': , simultaneamente, são objecto de disputa política entre os dois princi-
pais partidos políticos.
A bipolarização político-partidária do município do Bailundo, enquanto arena políti-
ca, entre o MPLA e a UNITA, contamina igualmente a estrutura de poder tradicional do
M'Balundo, que acaba igualmente por incorporar essa bipolarização, com a existência de
um enorme conflito entre dois ossoma inene, Utondossi II, foi entronizado soma inene do
M'Balundu em 1996, durante o período de domínio da UNITA e Ekuikui IV, nomeado
ossoma inene do M'Balundu, em 2002, e entronizado em 2004.
Formalmente, o legitimo detentor do trono é o rei Ekuikui IV, e é ele quem governa a
estrutura de poder tradicional. Mas, por outro lado, e aparentemente, não só a população,
como as próprias autoridades tradicionais estão divididas, quanto à legitimidade dos dois
indivíduos. Deste modo, no Bailundo viveu-se, até ao ano de 2008, aquando do faleci-
mento de Utondossi II, uma situação de forte ambiguidade, e mesmo de grande conflito e
antagonismo no seio da estrutura de poder tradicional.
Em conclusão, defende-se que actualmente as autoridades tradicionais do M'Balundu
encontram-se submergidas e submetidas nesta luta político-partidária nacional, mas que
nem por isso são actores locais passivos, pois que reapropriam-se e reutilizam o discurso
político partidário nacional, transformando-o num discurso sobre legitimidades tradi-
cionais locais. A actualidade, no entanto, não deixa de assinalar que essa luta anuncia um
vencedor, o MPLA, e o seu projecto hegemónico de controlo e domínio do Estado. Mas
este processo, em grande medida de top-down, não deixa de reflectir entre as autoridades
tradicionais do M'Balundu as contradições e as dinâmicas nacionais, ao mesmo tempo
que expressa uma pluralidade de estratégias políticas individuais e colectivas, e uma capa-
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS 00 M'BALUNOU E O ESTADO ANGOLANO

cidade de sobrevivência da instituição e de manipulação de dinâmicas exógenas, quer no


período de dominação colonial, quer na actualidade.

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VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA

Anexo I

Lista das entrevistas realizadas bailundo e utilizadas como referência


no texto

Trabalho de Campo de 2004


EBai2004-l: Administradora do município do Bailundo, Dona Beatriz. Sede da Adminis-
tração Municipal. Vila-sede do Bailundo. Entrevista não-gravada. 19/08/2004.
EBai2004-2: Rei Ekuikui IV, soma inene do Bailundo, sr Augusto Katchiopololo, de 90
anos de idade. Vila-sede do Bailundo, montanha sagrada de Halavala. Entrevista gra-
vada. 20/08/2004.
EBai2004-3:Vice-administrador da comuna de Luvemba, sr. Craveiro Lopes. Sede da co-
muna de Luvemba, aldeia de São Miguel. Entrevista não-gravada. 31/08/2004.
EBai2004-4: Ossoma }ino Kaiangula, de 48 anos, ombala Chijamba. Comuna de Luvem-
ba, na ombala. Entrevista gravada. 31/08/2004.
EBai2004-5:Administrador da comuna de Lunge, sr. Joaquim Jamba. Sede da comuna de
Lunge. Entrevista não-gravada. 01/09/2004.
EBai2004-6: Ossoma Adolfo Chitoma, ombala de Lunge. Sede da comuna de Lunge. As-
sistiram também os srs. Gregório Cunhajo, Simão Bemba e Raul Nambelo, membros
do elengo. Entrevista gravada. Ol/09/2004.
EBai2004-7: Ossoma Manuel Savilinga da ombala de }anjo, 79 anos de idade. Comuna
de Luvemba, aldeia de Janjo. Entevista gravada. Devido às "condições" psicológicas
do sr. Manuel Savilinga, a entrevista acabou por ser conduzida com um elemento do
elengo. 03/09/2004.
EBai2004-8: Rei Ekuikui IV, soma inene do Bailundo, sr Augusto Katchiopololo, de 90
anos de idade. 2• entrevista. Vila-sede do Bailundo. Entrevista gravada. 06/09/2004.
E8ai2004-9: Entrevista colectiva com quimbandeiros. Isaka Fumela, José Ferreira, Mar-
tinho Kangila, Horácio Manuel, António Chamada, Paulino Domingo, Fernando
Adonho Mbonga, Lourenço Adão, Débora Ngueve (santa), Craciana Samba, Mário
Fernando. Vila-sede do Bailundo. Entrevista gravada. 06/09/2004.
EBai2004-l 0: 1o Secretário Municipal do MPLA, sr. Manuel André. Presentes o 2° Secre-
tário, sr. Emiliano Rafael Chingende; Secretário das Finanças, sr. Agostinho Saquala;
Coordenadora da Comissão de Disciplina e Auditoria, sr• Bernardete Schogovia. Sede
do MPLA, vila-sede Bailundo. Entrevista não-gravada. 07/09/2004.
EBai2004-ll: 1° Secretário Municipal da UNITA, sr. Nataniel Ecolelo. Sede da UNITA,
vila-sede do Bailundo. Entrevista não-gravada. 07/09/2004.
EBai2004-12: Reverendo Afonso Júnior Dingu, pastor da IECA (Igreja Congregacional
de Angola), director do Sínodo do Bailundo. Sede do Sínodo, vila-sede do Bailundo.
Entrevista gravada. 09/09/2004.
NO II.EINO DA TOUPEIII.A. AUTOII.IDADES TI\ADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO

Trabalho de Campo de 2007

EBai2007-0l:Celestino Ambrósio, Chefe de Gabinete do vice-Administrador Municipal.


Vila-sede do Bailundo. Entrevista não gravada. 06/08/2007.
EBai2007-02: Entrevista colectiva com membros da AAAT, sr. Andulosse Samemba, pre-
sidente municipal da Associação Angolana das Autoridades Tradicionais, e sékulu da
ombala Canjabão; Joaquim Calado, vice-presidente, sékulu da ombala Bonga; Afonso
Cajinje, secretário, sékulu da ombala Kandimba. Vila-sede do Bailundo. Entrevista
gravada. 07/08/2007.
EBai2007-03: Entrevista colectiva com mulheres apoiantes da UNITA. Vila-sede doBai-
lundo. Entrevista não-gravada. 09/08/2007.
EBai2007-04: Entrevista colectiva com grupo de jovens do 2o Ciclo, com idades entre os
17 e os 19 anos. Vila-sede do Bailundo. Entrevista não-gravada. 15/08/2007.
EBai2007-05: Gabriel Caála, Procurador do município do Bailundo. Vila-sede do Bailun-
do. Entrevista não gravada. 24/08/2007.
EBai2007-06: Abel Ngunje, de 71 anos de idade, ossoma da ombala Chilumbe. Vila-sede
do Bailundo. Entrevista gravada. 25/08/2007.
EBai2007-07: Paulo José Cuianga Romeu, administrador da comuna de Bimbe. Aldeia de
Bimbe. Entrevista não-gravada. 01/09/2007.
EBai2007-08: Mário Jorge Calesse, de 67 anos de idade, ossoma da ombala de Chilala.
Aldeia de Bimbe. Entrevista gravada. 01/09/2007.
EBai2007-09: Cândido Uquélonga, de 81 anos de idade. Vila-sede do Bailundo. Entrevista
gravada.06/09/2007.

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