Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Prelúdio
Nos últimos vinte anos, nomeadamente desde os finais dos anos oitenta do século
XX, a problemática das autoridades tradicionais africanas e da sua relação com os estados
independentes tomou foros de agenda política e académica de enorme relevo. Na sequên-
cia da crise generalizada dos estados africanos independentes; da consciência, no final da
década de oitenta, da deficiente governabilidade dos aparelhos administrativos estatais e
suas elites políticas nacionais; e do falhanço dos sucessivos modelos de desenvolvimento
e das estratégias de reajustamento estrutural; e correlacionada com a emergência de novas
dinâmicas políticas, endógenas e exógenas, centradas nos processos de transição e conso-
lidação do multipartidarismo; na crença das virtualidades das sociedades civis africanas;
dos processos de descentralização político-administrativa e de uma hipotética democra-
cia participativa regeneradora das assimetrias internas; as autoridades tradicionais ressur-
gem e reassumem papéis e estatutos sociais "adormecidos" desde o final do colonialismo.
As autoridades tradicionais africanas, que desempenharam um papel fundamental
nos sistemas administrativos coloniais, através da sua incorporação pelos estados colo-
niais numa política de indirect rule, mais ou menos matizada consoante os estados e os
períodos históricos, reemergiram assim progressivamente, sobretudo a partir da década
de noventa, ocupando os espaços sociais "abandonados" pelos aparelhos administrativos
e políticos dos estados independentes, com especial incidência nos universos rurais. E
foram sendo progressivamente incorporadas nos processos de reconstrução dos estados,
sobretudo ao nível local, participando directamente e formalmente nos modelos de des-
centralização político-administrativa que foram desenhados na generalidade dos estados
africanos, a partir da década de noventa. Desempenhando tarefas administrativas que lhes
eram familiares desde o período colonial, mas integrando novas funções, e novos modos
de actuação na suas práticas e estratégias, quer administrativas quer sociais, conjugan-
do um novo modelo relacional, quer com os aparelhos estatais, quer com os aparelhos
político-partidários, quer mesmo com outros actores emergentes e com a população em
geral, que se poderia designar de neo-indirect rule.
Em múltiplos aspectos, a actual situação angolana encontra fortes semelhanças com a
generalidade dos países africanos, nomeadamente com a situação moçambicana a seguir
à assinatura do Acordo de Paz de 199254, sobretudo em duas dimensões: uma guerra ci-
vil que induziu uma profunda desestruturação das sociedades rurais e violentos desloca-
mentos populacionais; um Estado central ainda largamente incapaz de exercer autoridade
sobre partes significativas do território nacional e dificuldades de legitimação para uma
parte significativa da população.
Com o final da guerra civil em 200 l, o Estado angolano necessitou de estender a sua
autoridade à totalidade do território, iniciando um processo de formação e consolidação
em wnas onde a sua presença era fraca, ou mesmo inexistente. No caso das populações
Ovimbundu, são quase inexistentes estudos actuais sobre as autoridades tradicionais; so-
54 Sobre a situação das autoridades tradicionais e o Estado moçarrbicano cf.; Florêncio, 2008, 2005, 2003, 2002a, 2002b.
ao 1 s1
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
bre a sua legitimidade faces às populações, dinâmicas e conflitos internos e, por conse-
guinte, sobre o papel que podem desempenhar neste processo de reconstrução do Estado
local. No entanto, tomando como modelo comparativo o que se vem passando na gene-
ralidade dos países africanos, desde os finais da década de oitenta, é de esperar que as
autoridades tradicionais Ovimbundu constituam um grupo de actores políticos locais de
forte legitimidade para as populações, com uma importância relevante na condução dos
processos de desenvolvimento socioeconómico e de formação e consolidação do Estado.
Neste sentido, esta investigação, que se centra sobre reino do M'Balundu, no actual
município do Bailundo, província do Huambo, constitui uma abordagem a esta proble-
mática e pretende colmatar precisamente a ausência de estudos concretos sobre esta insti-
tuição de poder tradicional do reino do M'Balundu, da sua evolução histórica, condições
actuais de existência e de reprodução sociopolítica, e capacidade de influência da vida das
populações, numa zona do país de fulcral importância, quer do ponto de vista histórico,
económico, político e social.
Esta investigação desenvolveu-se e é tributária do projecto "Dinâmicas Sociais na Es-
truturação dos Espaços Políticos em Contextos Rurais Africanos': financiado pela FCT55 •
Nesse âmbito, foram efectuadas duas missões de pesquisa de terreno no município do
Bailundo, entre Junho e Setembro, de 200456, e entre Julho e Agosto de 2007. Deste modo,
a presente investigação não contempla directamente os desenvolvimentos, locais e nacio-
nais, que ocorreram em Angola desde a realização dessa última pesquisa de terreno.
A metodologia empregue assentou sobretudo no método do trabalho de campo, com
recurso a técnicas de recolha directa tais como a observação participante, as entrevis-
tas semi-estruturadas, e as histórias de vida. A escolha das técnicas obedece fundamen-
talmente à natureza e construção do objecto científico, e neste caso o objecto centra-se
sobretudo em processos sociais e nos modos como os actores participam, constroem e
representam, esses mesmo processos. A perspectiva émica é pois então fundamental na
construção do próprio objecto. Os actores sociais locais envolvidos na pesquisa foram as
autoridades tradicionais, dirigentes dos dois principais partidos, elementos do aparelho
administrativo municipal e comunal, membros das confissões religiosas, activistas de or-
ganizações não-governamentais, e elementos da população comum.
A utilização da técnica da observação-participante serviu para potenciar uma convi-
vencialidade quotidiana com os actores sociais locais, e propiciou uma observação e parti-
cipação directa das práticas sociais, uma aprendizagem dos sistemas de significação local,
ou seja dos sistemas culturais, e uma envolvência e empatia com os respectivos actores,
o que facilita uma maior profundidade e valência dos dados recolhidos e das informa-
ções obtidas. Por seu turno, as entrevistas semi-estruturadas, desenvolvidas mais segundo
55 Opresente texto é igualmente tributário da preciosa ajuda da historiadora Conceição Neto. a quem se presla assim um enorme agrade-
cimento.
56 A pesquisa empírica de 2004 esteve igualmente ligada ao projecto de pós-doutoramento denominado 'As Autoridades Tradicionais
Ovill'ilundu do Planalto Central de Angola e sua Participação na Formação do Estado', na FCSH da Universidade Nova de Usboa, e ou
projecto 'Politica, Actores Sociais, e Cidadania em África', do CEA/ISCTE.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
uma espécie de "conversas com um objectivo: quer individuais quer colectivas, permitiu o
acesso privilegiado ao universo émico em questão, abrindo as portas para a compreensão
dos modelos de representação social dos respectivos actores. Por outro lado, sobretudo no
caso das entrevistas colectivas57, foi possível confrontar diferente perspectivas e observar
o posicionamento dos actores em interacção uns com os outros, quer segundo modelos de
relacionamento político, quer hierárquico.
Por último, o recurso a histórias de vida, parcelares, de actores sociais relevantes per-
mitiu ilustrar os modos como os actores experienciam individualmente o social, e como
um percurso biográfico único e singular se cruza, ilustra ou contradiz, dinâmicas sociais
colectivas. Permitiu assim deste modo perceber que os indivíduos produzem diferentes
significados e sentidos à sua experiência histórica e à sua inserção nos processos sociais.
Deste modo, pode desde logo adiantar-se que o presente texto não pretende traçar
um modelo analítico dos processos de relacionamento entre as autoridades tradicionais
do reino do M'Balundu, quer com as autoridades estatais, quer com outros actores locais.
Existem, é verdade, dinâmicas sociais que se pretendem hegemónicas, mas a realidade
municipal é muito mais complexa e fragmentada, e extravasa largamente do âmbito dessas
dinâmicas comuns e modelares. A investigação não conseguiu dar conta da pluralidade
de dinâmicas sociais colectivas e individuais que inter-relacionam todos estes actores do
município, e muito menos pretendeu dar conta das interacções entre o local/municipal, o
provincial e o nacional. Aqui equacionaram-se apenas algumas das linhas processuais que
surgiram como mais relevantes, quer na pesquisa bibliográfica, quer durante as diferentes
fases da pesquisa de terreno.
57 No f11al do artigo surge uma ista das principais entrevista efectuadas durante as duas missões de terreno, fista que não é exaustiva e
nem esgota lodos os informantes contactados e entrevistados.
a2 1 11
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
No Reino do M'balundu
Os reinos Ovimbundu
Segundo José Redinha, as populações que actualmente se designam de Ovimbundu58
constituem o maior grupo etnolinguístico angolano, cerca de um terço do total da popu-
lação, e subdividem-se em IS subgrupos, de entre os quais de destacam os denominados
de Huambos, de Bienos e de Bailundos. Os Ovimbundu ocupam uma faixa territorial
rectangular entre o litoral e o planalto central da zona do Huambo e Bié (Redinha, 1974;
39). As origens dos Ovimbundu não são muito claras, e Gladwyn Childs fala do herói
fundador Feti, e do mito da fundação, primeiro lugar de ocupação dos Ovimbundu, num
local perto da confluência dos rios Kunene e Kunyonãmua (Childs, 1970: 241) 59 •
Os Ovimbundu possuem um imbricado sistema de parentesco, que se expressa num
modelo de dupla-descendência: patrilinear (a oluse) e matrilinear (a oluina60 ). A oluse
define actualmente o modelo de sucessão política e, deste modo, todos os cargos de au-
toridade e poder, do sekulu 61 ao ossoma62, transmitiam-se por via patrilinear. Por sua vez,
o sistema matrilinear, a oluina, definia e os modos de transmissão da propriedade e da
organização da vida económica, incluindo o comércio caravaneiro. Os clãs matrilineares
possuíam os seus próprios chefes, através do tio materno (manji a nyõho), que possuía po-
deres políticos e religiosos sobre os membros do seu ossongo63 • Por seu turno, estes chefes
dos clãs matrilineares também podiam ser macotas do assoma {idem; 58-59). Primordial-
mente, os Ovimbundu traçavam a descendência e as relações sociais predominantemente
através da oluina, ou seja através do sistema matrilinear, contudo, ultimamente é através
da oluse que se dá a descendência e a transmissão de propriedade e do poder político. Al-
guns autores referem que essa mudança está fortemente associada à influência das igrejas,
sobretudo protestantes {ArJaGo, 1999: 44).
Segundo Douglas Wheeler e Diana Christensen, os reinos Ovimbundu, que seriam
cerca de vinte e dois nos primórdios do século XX, começaram a formar-se durante o
século XVII em resultado da integração de grupos de populações Imbangala, ou Jaga,
que se deslocaram do norte e nordeste do planalto e se misturaram com populações que
já residiam na região (Wheeler e Christensen, 1973: 55). De acordo com Conceição Neto,
estas populações Imbangala estavam relacionadas com os Lunda e os Luba, e a fusão
58 Plural de Ocimbundu. A língua designa-se por Umbundu. A língua Umbundu é actualmente falada por povos que não habitam apenas
na região do planalto central, no triângulo Huambo-Ballundo-Bié, e que se estendem quer ao norte. na provlncia do Kwanza Sul. quer
ao sul, na provin<:ia da Huíla (Neto. 1997).
59 Sendo a história deste conjunto de populações obviamente um aspecto hmdamental na compreensão do objecto deste estudo, ela não
é contudo o seu pilar central, de modo que o uso da história será aqui uma ferramenta, que será sempre deficiente. na perspectiva de
um historiador.
60 Vários autores usam uma grafia diferente. trocando por exemplo ou por w. Assim. por exemploArJaGo usa olwina (ArJaGo. 1999), e
Conceição Neto usa Ekv.ikwi em vez de Ekuíkui (Neto, 1994).
61 Chefe pequeno. também dito chefe de aldeia.
62 Chefe, rei.
63 CIA matrilinear. Plural é olossongo.
NO IUINO DA TOUPEII\A. AUTORIDADES TI\ADICIONAIS DO M'BALUNOU E O UTAOO AN(iOLANO
com as populações do planalto resultou nos precursores dos actuais Ovimbundu (Neto,
1997).
Os vinte e dois reinos Ovimbundu apresentavam diferentes tipos de constituição e di-
ferente importância política e social, e na sua maioria eram constituídos somente por uma
ombala64 , unidade sociopolítica que reunia vários conjuntos de pequenas aldeias, liderada
pelo ossoma, o soberano. Cada conjunto de pequenas aldeias denominava-se de etambu,
e era chefiado por um sekulu, ou chefe de aldeia, em geral membro do clã real do ossoma,
por via patrilinear. O ossoma detinha o poder máximo, do ponto de vista político e reli-
gioso, e era coadjuvado por um conjunto de conselheiros, os macotas, constituído pelos
seus sekulu, por anciãos proeminentes do reino e membros da linhagem real do ossoma.
Os reinos mais importantes seriam os do Bié, Bailundo e Huambo65 , que pela sua
dimensão (eram constituídos por numerosos conjuntos de olumbala66 ) e posição geográ-
fica dominavam a quase totalidade do planalto central e do comércio caravaneiro com o
interior do continente. Vários olossoma, menos importantes, eram membros dos olossongo
reais do Bié, Bailundo e Huambo e dependiam, do ponto de vista político e religioso, des-
tes soberanos (Wheeler e Christensen; 58-59).
64 A ombala designa também o centro político e mágico-religioso onde vive o ossoma, ou seja uma espécie de capital.
65 Wheeter e Christensen denominam estes reinos de Bihe, Bailundu e Warmu. Neste texto utiliza-se a ortografia portuguesa dos reinos,
com excepção do caso do Bailundo em que se usa a denominaçêo ortográfica de M'Balundu. tal como foi referido por diversos Infor-
mantes, incluindo o actual rei Ekuikui IV, no trabalho de campo de 2004, de molde a aproximar da denominação original.
66 Plural de ombala.
67 Entendido aqui como o período anterior a 1902.
68 Termo Urmundu que significa território, nação.
69 Monte sagrado situado em pleno coração da actual vila do Bailundo, sede do município.
u I as
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
dem, grosso modo, ao actual município do Bailundo e algumas regiões dos municípios
adjacentes.
Segundo a história oral local, o reino do M'Balundu foi fundado, provavelmente no
século XVI, por um caçador de nome Katiavala, que veio da região de Sumbe, ou Seles, na
actual província do Kwanza Sul. Segundo a história contada por Ekuikui IV, actual soma
inene70 :
"( ... )Antes do inicio do reinado, já existia Umbulu e o Katiavala, e as suas famílias. Foi no
tempo em que nem se conhecia a raça branca. Muito menos a arma, canhangulo. Viviam
apenas como gente, povo.( ... ) Então ele [Katiavala] foi a descendência da famllia do rei,
até o ponto da colonização portuguesa.( ... ) O reinado da Katiavala vem de Seles, donde
saíram estes reis todos. O Socassange era o pai do Katiavala. São provenientes de Seles,
província do Kwanza Sul. O objectivo da sua instalada por cá foi por causa da caça, à
procura de animais. De Seles para cá então se instalaram numa ombala chamada Ngonga.
Entretanto naquela altura devido à muita caça que conseguiam, caçavam e vendiam, con-
seguiram fazer a criação de gado bovino. Os pastores deste gado eram Katiavala e o soba
Ndalo. Naquela altura a alimentação era só na base da carne de boi. ( ... ) Katiavala não
era soba não, era pastor até. Entretanto os pastores tinham aquela necessidade de comer
carne de boi. Então naquelas circunstâncias, os dois pastores chegaram a um método para
se poder abater uma cabeça (de gado). Entretanto os dois pastores aguçaram uma vara e
introduziram no ânus de um animal. Ao tirarem aquele pau as miudezas do ventre tapa
automaticamente o ânus, e impede a evacuação e fez com que fermentasse a barriga do
animal e o boi morre. Naquela altura aqueles que pretendiam comer a carne então ficaram
satisfeitos, mas o dono do animal ficou aborrecido. Este método foi utilizado por duas ve-
zes. O dono dos animais ficou triste por não encontrar a doença que estava a matar o seu
gado. Entretanto havia um espia que foi denunciar ao dono dos bois dizendo que quem
está a criar aquela situação eram os próprios filhos da casa [Katiavala e Ndalo). Então dali
o dono dos bois [Socassange, pai de Katiavala e Ndalo] ficou tão irritado com os pastores,
então a acção do dono dos bois criou a fuga do Katiavala e do soba Ndalo. ( ... ) Nessa
altura, aqui na montanha onde nos encontramos (montanha sagrada de Halavala, onde
se encontram os túmulos de Katiavala e Ekuikui II], já se encontrava Umbulu Tchingala.
Então Katiavala achou que tinha que vir até cá para apresentar-se ao rei.( ... ) Então Katia-
vala ao dirigir-se a esta gente, aqui já existia uma camada jovem nestas gentes, e foi bem
recebido porque era visita, e perguntaram-lhe donde vinha e ele disse que vinha da ombala
Ngonga, e perguntaram-lhe de novo 'o que é que veio fazer?' e ele dizia que era caçador e
que encontrava-se naquela montanha de Sambo, bem recebido, e foi-lhe dito 'então fica lá
onde estás. Nós por cá também temos nosso caçadores e ficamos por di. Naquela altura
de caça o Katiavala sempre que caçava um animal tirava sempre uma coxa então envia-
va ao Umbulu Tchingala. Era uma oferta aos reis que se encontravam aqui. Também os
caçadores de cá quando matassem então recordavam-se da oferta que o Katiavala fazia
e então também levaram uma prenda, então foi oferecido ao Katiavala um dos braços (o
membro posterior de uma peça de caça). O Katiavala ficou pouco satisfeito e recordou-se
que sempre que ele matava um animal levava para aquela famflia uma coxa e então como é
que ao contrário em vez de trazerem a coxa trazem o braço? Para ele significou uma ofen-
sa. Então o Katiavala cria uma oportunidade, à medida que aqui se planeava uma caçada,
tendo ficado aqui apenas mulheres e crianças, Katiavala sobe até esta montanha com a
sua espingarda. As casas eram de capim, ele foi amarrando alguns feixes de capim, então
disparou o canhângulo, como na ocasião a população não conhecia a arma a população
ficaram todos um tanto ou quanto assustados e ele foi incendiando os feixes de capim.
Então daqui alguém foi ao encontro daqueles que estavam em caçada para dizer de como
o Katiavala tinha incendiado a aldeia. Então alguns caçadores suspenderam a caça e vêm
ao encontro do prejufw. O Katiavala ao dar conta de que os residentes estavam a vir ao seu
encontro então fez um segundo disparo e aumentou a chama, meteu mais capim e a chama
foi crescendo. Então os que vinham ao seu encontro já não chegam e meteram-se em fuga.
E dali correu [o Katiavala] com toda a população e fugiram. Foi quando Katiavala sobe até
aqui na montanha [instala-se), saindo do sitio onde estava. Então é dali onde começa o
reinado." (in EBai2004-2)
Nesta região existiam originalmente cinco aldeias, kimbu 71 : Halavala, Tchilapa, Ngo-
la, Ndulu e Viyé. Cada kimbu organizava-se em torno de grupos de parentes e eram poli-
ticamente independentes uns dos outros, não existindo uma organização política central.
Foi Katiavala que, ao dominá-los, deu unidade política a estes kimbu, fundando assim
o reino de M'Balundu, e fazendo-se entronizar com o titulo de Katiavala I. Pelo relato
exposto, Katiavala teria dominado essas populações pelo facto de deter uma vantagem
tecnológico-militar, pois já possuía uma espingarda, um canhângulo72 • Ao criar o reino do
M'Balundu, Katiavala introduz dois princípios fundamentais: centraliza politicamente as
aldeias e introduz um facto cultural novo, e que marca ainda na actualidade a identidade
cultural M'Balundu, o culto dos reis, através de dois cultos diferentes: o culto dos crânios
reais, guardados nos akokotos e dos corpos, guardados nos etambu 73 • Continuando no
relato do soma inene Ekuikui IV:
"Depois de se instalar aqui na montanha Katíavala mandou chamar os chefes dessas cinco
aldeias, que vieram ao encontro de Katiavala. Então Katiavala com a sua espingarda ao
ombro recebeu aquelas visitas e disse-lhes que a partir daquela altura não queria ouvir
nenhuma sentença naquelas aldeias sem que a sentença fosse resolvida apenas nas suas
mãos. Quando pensa fundar o seu próprio reino manda chamar o seu pai. Dali mandou
novamente chamar os soma dessas cinco aldeias. Então todos reunidos aqui é quando o
Katiavala diz 'a partir de hoje eu vou iniciar com o sobado: ( ... ) Katiavala mandou cavar
um buraco e mandou meter lá a cabeça de um galo, cabrito, porco, cão, boi e a cabeça de
uma pessoa. la iniciar o reinado com aquele costume.( ... ) E o Katiavala mandou os seus
homens para que apanhassem um homem, desde que estivesse a andar isolado, e trazer
a cabeça e deixar o corpo abandonado. Por ser uma ordem de Katiavala os seus homens
foram ao terreno e trouxeram uma cabeça e a cabeça foi depositada naquele buraco. Então
mandou tapar aquele buraco e sobre aquela campa plantou uma árvore chamada de Olum-
bi, que cresce rapidamente" (in EBai2004-2).
"( ... ) uma vez que o inicio do reinado já estava a crescer apareceu um ratinho que se
designa por toupeira, em Umbundu onete, aquela toupeira trazia um sinal na testa. O
Katiavala apanha aquela toupeira, pegou nela e com o sinal bate nele na testa, no peito e
no pescoço, dali recordou-se logo de Umbulu Tchingala que viviam aqui, eram eles que
viviam aqui, eram eles que tinham a tradição de um sinal preto que partia da testa até ao
nariz. Aquele sinal é que tinha o nome de M'Balundu. Dali o Katiavala achou que o nome
de Halavala seria designado de M'Balundu. O significado de M'Balundu é o seguinte, 'eu
ainda que estiver coberto por um chapéu, de boas roupas, de sapato, tenho tudo tapado
menos a testa, que é difícil ser escondidà. M'Balundu é uma coisa vista por todos. É assim
que surge o nome de M'Balundu, excluindo de uma vez por todas o nome de Halavala" (in
EBai2004-2)
74 Taf como na generaidade das sociedades sem escrita, as concepções da estrutura de poder variam bastante de região para região,
neste caso de ombala para ombala, e mesmo de informante para informante. Os termos de assoma vila e seku/u tmNo nem sel11l"e
são mencionados. Por contra, alguns olossoma grandes, ou seja ill'90flantes e com vasto território e população, designavam-se a si
próprios como assoma inene, precisamente para demarcarem a diferença com outros olossoma menos importantes.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
OSSOMA INENE
(rei, soma grande)
c) ELENGO
o~ c) ELENGO
_[]_
OSSOMA. VITITO
(soma pequeno)
c) ELENGO
_[]_
SEKULO INENE
(chefe de kimbu, aldeia)
_[]_
SEKULO VITITO
(representante de um bairro ou família)
aa I at
VOZES DO UNIVERSO lt.Uit.AL. lt.EESCII.EVENDO O ESTADO EM Áflt.ICA
77 Oequivalente a uma linhagem. Grupo fundado a partir da 4• geração ascendente. e que respeita a bilateralidade do sistema, pois quer
a inha materna quer a paterna estão representadas (in EBai2004-8).
78 Vide o exei11Jio dos vaNdau, (cf. Florêncio, 2008. 2005, 2003, 2002 a. 2002b).
79 Espécie de curandeifo.adivinh<Hllédium, e a quem os portugueses chamavam quimbandeiro, ou quimbanda, nomes muito correntes na
actuaidade.
80 ln entrevista realzada com o assoma Adolfo Chitoma, da ombala de lunge, na sede da comuna de Lunge, a 0110912004, EBai2004-6.
81 Que pode significar 'lamifia da casa", e que segundo o actual ossoma inene representa o grupo formado por um homem e seus filhos e
fillas (in EBai2004-8).
82 Dados, nomes e ortografia obtidos na primeira visita ao rei Ekuikui N. em 2004, e que foram transcritos tal corno constam da istagem
oficial fornecida pelo actual soberano do Bailundo. Neste sentido. mantêm-se a grafia ofiCial dos nomes, que deve resuttar de algum tipo
de aportuguesamento, corno no caso de Ekuikui. Confrontar com o nome original de Ekwkllooi, segundo Conceição Neto (Neto, 1994).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIOAOES 1"1\AOICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTAOO ANGOLANO
4 - Tchingi I, (1774-1776)
5 - Tchingi II, (Tchiliva Banbangulu, 1778)
6 - Ekuikui I, {1780)
7 - Numa I, {s/d)
8- Hundungulu I, (s/d)
9 - Tchissende I, {s/d)
10- Junjulu, (s/d)
11 - Ngungi, (s/d)
12- Chivukuvuku Chama, (Tchongonga, s/d)
13- Utondosi, (1818-1832)
14- Bungi, {1833-1842)
15- Bongue, (1842-1861)
16- Tchissende II, (1816-1869)
17- Vassovava, (1869-1872)
18- Katiavala II, (1872-1875)
19- Ekongoliohombo, (1875-1876)
20- Ekuikui II, (1876-1890)*
21 -Numa II, (1890-1892)**
22- Morna, (1895-1896)
23- Kangovi, (1897-1898)
24- Hundungulu II, (1898-1900)
25- Kalandula, (1900-1902)
26- Mutu-Ya-Kevela, (1902-1903)***
27- Tchissende III, (1904-1911)
28 - Kandimba Jahulu, (1911-1935)
29- Mussitu, {1935-1938)
30- Tchinendele, (1938-1948)
31- Filipe Kapoko, (1948-1970)
32- Félix Numa, (1970-1982)
33- Tchongolola, (José Maria Pessela, 1982-1985)
34 - Ekuikui III, (Manuel da Costa, 1985-1996)
35- Ekuikui IV, (Augusto Katchitiopololo, 2002 ... )****83
83 Notas: • faleceu em 1893; .. estas datas não parecem estar correctas. ou houve um hiato entre 1892 e 1895; ... n6o foi rei mas sim
vice-rei: .... quando faleceu Ekuikui III. em 1996, o município do Bailundo estava ocupado pela UNITA, foi então nomeado como rei
Utondossi 11. que no entanto segundo algumas informações nllo chegou a ser entronizado. Quando a Unita abandonou o municlplo, em
1999, o rei Utondossi 11 acompanhou a retirada do movimento. Oactual rei, Ekuíkui IV, é rnernbro do CC do UPI.A a chegou eo municlpio
em 2001 tendo sido nomeado como rei pela administraçllo municipal em 2002. e entronizado posteriormente pelo elengo.
84 linda Heyv.ood denonina este conselho de corte e dá-lhe o nome de corte lmpungs (Heyv.ood. 1998:155).
90 I 91
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
, responsável por assessorar e aconselhar os detentores desse cargo. Este grupo é composto
por um vasto conjunto de conselheiros, cada qual com as suas atribuições específicas, de-
veres e responsabilidades. Apesar da composição do elengo variar de ombala para ombala,
em geral é composto pelos seguintes elementos85:
85 Esta ista. que está inscrita num registo do próprio rei Ekuikui IV, constitui assim uma espécie de ista oficial. Informações obtidas na
entrevista com o ossoma ilene Ekuikui W, in EBai2004-2. Em 2007 o elengo de Ekuikui W ainda não estava todo completo e estas
funções ainda não tinham sido todas preenchidas.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO 11'1ALUNOU E O ESTADO ANGOLANO
a rainha. O ossoma inene possui ainda outras esposas, que desempenham tarefas especi-
ficas, mas sem relevância política, tais como a nangandala, cuja função principal é a de
transportar os pertences do ossoma86; a siya, que acompanha o ossoma inene em todas as
suas actividades; a mbaravela e a chiwi-chipembe, cujas funções principais são a prepara-
ção das refeições na ombala e a acomodação das visitas.
Segundo o missionário Daniel Hastings, que esteve no planalto central em missão, e
que escreveu uma tese de doutoramento em 1933, os soberanos Ovimbundu, o ossoma
inene, é coadjuvado na sua entouraje por quatro grupos de actores sociais e políticos com
enorme relevância no reino. O primeiro grupo é constituído pelos príncipes de sangue
real e por alguns olossoma importantes, que ficam na ombala real como conselheiros do
rei. O segundo grupo, o elengo, verdadeiramente dito, é composto por um conjunto de
"mais velhos" conselheiros, e é o grupo mais importante, que controla realmente o poder
do soberano, podendo mesmo destituí-lo. O terceiro grupo, segundo Daniel Hastings, é
composto pelas esposas do ossoma inene, e exerce uma grande influência sobre o rei, e
também assumem papeis de conselheiras, sobretudo em matérias que dizem respeito ao
universo feminino. Finalmente, o quarto grupo, e o menos importante, é constituído por
jovens mensageiros, guardas e servidores do soberano (Hastings, 1933, 54).
Por sua vez, Daniel Hastings fornece uma longa e mais detalhada lista dos membros
e funções de cada um dos elementos dos referidos quatro grupos de poder em torno do
ossoma inene, que importa reter, pois ela resulta da sua observação directa no reino, na dé-
cada de 1930, e permite comparar com as transformações actuais, expressas na lista oficial
de Ekukui IV. Deste modo, este autor começa logo por explicar que o rei tem o título de
Os oma ou Nala Njamba 87 (Hastings, 1933:55). A seguir, Daniel Hastings elabora a seguinte
lista e funções de cada elemento do primeiro grupo, príncipes e olossoma importantes
(Hastings, 1933: 55-60):
92 1 93
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
Henjengo yombala ("guardião da capital"): irmão do rei. Vive na corte para tratar e
guardar o rei.
Chuvali ("o segundo"): conselheiro, que pode vir a vestir o manto do rei, mas sem
aspirações ao trono.
Chinjamba ("do elefante"): filho do rei. Governa uma ombala.
Chitekulu ("o que alimenta"): responsável pela alimentação da corte.
Ukuahamba ("pequeno cesto"): em geral o filho mais velho do rei. Depois de acumu-
lar poder pode ser alcandorado à posição de Chijamba.
Cativa ("o que une"): conselheiro que vive na corte e ajuda o rei a resolver problemas.
Kandona ("pequena dama"): conselheiro que assiste o epalanga.
Nongandu ("mãe do crocodilo"): conselheiro que assiste o epalanga.
Ekulika (" o solitário"): conselheiro do rei, bravo e leal.
Gueyaomanu ("visitantes que chegam"): conselheiro que avisa o rei da chegada de
visitantes na ombala.
Njambakandi ("a perna de elefante"): mensageiro e que faz "recados" ao rei.
Lumbungululu ("estrelas"): conselheiro e guardião do rei.
Chatulika ("o que torna magnifico"): conselheiro e guardião do rei.
Lucamba ("nunca faltá'): previne que a na ombala nunca falta comida e protecção.
Demba ("poderosô'): vela para que o poder do rei num esmoreça.
Chissanga ("o que recebe"): conselheiro que obteve um lugar na corte e que deve gra-
tidão ao rei.
Chikuma : observador das fronteiras do reino.
Chitiva ("coração destroçado"): deve reportar ao soberano qualquer sublevação ou
problemas.
Kanjaya ("o prudente"): chefe de uma ombala, ou região, onde ocorreu uma subleva-
ção.
Katoto ("o calmô'): tem como função manter a calma na corte e que não se causem
desagravos ao rei.
Chikopa ("o magrô'): a sua função é recordar que todas as coisas possuem uma força
interior.
Genda ("aquele que anda"): significa que se um ossoma sente que tem problemas, não
se deve sentar mas sim ir ter com o rei e contar-lhe os problemas.
Kalunga ("o discretô'): nome que pode ser atribuído a alguém que possa vir a ser
nomeado ossoma.
Chitikingi ("o cautelosô'): aquele que usa o nome, e todos os membros da ombala
devem comportar-se de modo a não desagradar ao rei.
Gandu ("crocodilo"): nome que pode ser atribuído a alguém que não tem uma função
específica, mas que deve ficar à espera de ordens do rei.
Chikumbi ("grilhetas"): é um nome atribuído para que todos os que têm cargos de
NO ltEINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TltADICIONAIS DO M'BALUNOU E O ES1'ADO ANGOLANO
poder para que se recordem que devem governar bem, e não ficarem "presos nas
suas próprias grilhetas':
Bonga ("campos incultos"): é um nome para lembrar que não se devem deixar campos
por cultivar.
No que diz respeito ao elengo do ossoma inene, grupo que Daniel Hastings enuncia
como de importância capital, pois são elementos que vivem com o rei na ombala real, e
que, apesar de nunca aspirarem ao lugar de rei, contudo são eles que decidem e elegem o
sucessor, ou que podem destituir um ossoma inene. O autor descreve os seguintes títulos e
funções do elengo (Hastings, 1933: 61-65):
Mwekalia ("o Dono não deve comer"): é primeiro representante e porta-voz da po-
pulação do reino. Todos os problemas, e demandas são-lhe reportados primeira-
mente antes de chegarem ao rei. Sobre estas questões ele deve formular opiniões
e julgamentos, apresentá-los ao rei e velar para que seja feita justiça. A sua im-
portância é tal que deve prevenir o rei de cometer excessos, diz Daniel Hastings
"should the chief be angry and start out revenge, this man willlie in the path so that
the chief dare not pass over is body. That would be like passing over the dead bodies
of all his people, and might lead to revolt and deposition" (Hastings, 1933: 61). A
sucessão ao cargo é efectuada pela linha matrilinear, a oluina, ou seja, só um filho
de uma irmã pode suceder no cargo.
Galamboli ("pedras pequenas"): é o mais "velho dos mais velhos': e que também serve
de assistente do mwekalia.
Essongo ("líder"): é o comandante dos exércitos.
Chinduli ("Protege"): guarda e protege os segredos mais profundos da corte.
De acordo com Daniel Hastings, estes quatro personagens são os quatro mais im-
portantes do elengo, e encarnam o poder e a moral do reino, e as suas origens. Assim, o
mwekalia e o Galamboli representam os primeiros Ovimbundu e donos da terra. O es-
songo é de origem escrava e representa as populações escravizadas pelos Ovimbundu, e o
chinduli, representa um grupo não Umbundu e que se juntou e incorporou pacificamente
neste povo. Segundo o autor, quer o rei quer os outros elementos reais devem governar
de acordo com estes personagens (Hastings, 1933: 62). De notar que na lista oficial do
rei Ekuikui IV destes quatro só surge referenciado o mwekalia, o que pode significar que
as outras personagens foram desaparecendo ao longo dos últimos 70 anos da história do
reino. Por outro lado, essa lista oficial do elengo inclui, na actualidade, elementos do pri-
meiro grupo de Daniel Hastings, como o epalanga, soma kesenje, kasoma, sunsguahanga
e henjengo, por exemplo.
Outros membros deste grupo são:
94 1 9s
VOZES DO UNIVERSO II.UII.AL. II.EESCII.EVENDO O ESTADO EM AFII.ICA
Munene ("Pessoa poderosa"): vive afastado da ombala real, e é ele que é chamado a de-
por o ossoma inene se o grupo constituído pelo mwekalia, o galamboli, o essongo
e o chinduli assim o decidirem.
Kapoko ('~cião''): é um assistente do mwekalia, e o seu nome simboliza "aquele que
sempre foi fiel desde o princípio':
Lusenje ("O chão do tribunal"): vela pela manutenção do espaço onde se realizam as
sessões de tribunal. Durante a sessão é ele quem chama as diversas testemunhas
do caso.
Lumbo ("Vedação"): é o responsável pela manutenção das vedações e das portas da
ombala e o seu nome significa a protecção que o reina oferece ao soberano.
Donbe ("Peixe.gato"): o seu nome significa astúcia, que previne que aconteça alguma
maldade na ombala.
Chambela ('~quele que coloca coberturas de colmo"): é o encarregado das coberturas
de colmo das casas da ombala.
Chimanu ("Muro''): é o encarregado dos muros da ombala.
Mueleuvelo ("Porteiro''): é o encarregado das portas da ombala.
Bumba ("Inspector sanitário''): é assistente do essongo, a sua principal função é velar
para que a ombala esteja sempre limpa e em condições.
Chitungu (""Fardo"): a sua principal função e verificar se os casos que são apresenta-
dos ao soberano estão bem correlacionados.
Chico ("Fogo de salà'): vela para que os fogos da ombala nunca se apaguem.
Muesanjala ("Guardião da aldeià'): é o responsável pela parte da aldeia que fica no
exterior da ombala, e onde vive a população.
Chiliasoko ("Nunca faltà'):responsável pelo abastecimento em comida da ombala.
Chitonga ("Troncos para fogueirà'): responsável pelo abastecimento de lenha para as
fogueiras da ombala.
Kongengele ("Sacerdote"): de origem escrava, este tem como funções organizar a guer-
ra sagrada, chamada de olonunga.
Kangende ("Espantalho"): tem como função manter os "mexericos" fora da ombala.
Muefunda ("A pessoa sensata"): é um dos "advogados" da ombala, e a sua função é
prevenir que não surjam casos que possam trazer algum tipo de vergonha social,
como acusações contra o sogro ou a sogra.
Beu ("Tartaruga"): é o elemento mais de grau mais inferior do elengo. O seu nome
significa que cada um deve ficar onde está até ser promovido a um cargo superior.
Parece que se pode depreender da narrativa de Daniel Hastings, que há época em que
o missionário visitou o reino ainda existiam um conjunto de cargos no elengo que, entre-
tanto, foram deixando de existir, ou de fazer sentido, como por exemplo o de kongengele,
pois já não existe, nem existiam à época, guerras sagradas entre grupos rivais Ovimbundu.
Por outro lado, e comparando com a estrutura actual do elengo, segundo a descrição de
NO JI.EINO DA TOUPEIJI.A. AUTOJI.IDADES TJI.ADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
Ekuikui IV, nota-se que os actuais elengo não somente reduziram a sua constituição, como
mesclam elementos e funções que, segundo Daniel Hastings, no passado eram constituti-
vas de grupos diferenciados.
Outro grupo referenciado pelo missionário é o das esposas oficiais do soberano. Tam-
bém este grupo apresenta uma hierarquia e uma diferenciação de funções. Deste modo, e
segundo Daniel Hastings, pode enunciar-se as seguintes esposas, e suas funções:
Inikulu 88 ("A Mãe dos mais velhos"): é a rainha, apesar de, segundo Daniel Hastings,
poder não ser a primeira esposa do soberano. A rainha tem que ser de origem es-
crava. É ela que pode atender certos casos na ausência do soberano. É a única que
tem um lugar/cadeira de trono, ao lado do rei, e que se pode sentar lá, e quando o
faz todas as pessoas presentes a devem saudar e prestar homenagem, aplaudindo
na forma tradicional.
Chipembe ("Escárnio''): é a segunda esposa na hierarquia, e não pode ser de origem
escrava. Ajuda a entreter e a receber as visitas na ombala.
Bavela ("Seguindo em frente"): é a principal assistente da chipembe e pode suceder-
lhe.
Namakama ("Mãe do leito''): é a amiga e a conselheira das esposas mais jovens. Tam-
bém actua como intermediária entre o soberano e as jovens esposas.
Kapitango ("Líder"): é ela quem providencia pelas refeições. É igualmente ela quem
vigia as andanças das mulheres da ombala, à medida que saem ou entram.
Muesaka Yosoma ("Provedora chefe"): é a cozinheira do soberano. Segundo Daniel
Hastings, "A chief can eat only what is prepared by special persons because of
certain taboos. This woman, who is menseless, is therefore set aside by Elders as
his cook" (Hastings, 1933:67).
Dumbila ("Refugio"): é a esposa que guarda a "pedra do refúgio~ ou seja, a pedra onde
se sentam todos aqueles que se sentem em dificuldades. Toma conta igualmente
das mulheres que se sentam nessa pedra simbólica.
Syia ("Eu não venho"): é a esposa que ajuda na preparação de novos fogos reais sagra-
dos, e que prepara o banho matinal do soberano.
Quanza ("Cão do caçador"): é a esposa que prepara a bebida tradicional dos caçado-
res.
Chupuku Covita ("Divindade da guerra"): esta esposa presta assistência à Quanza
quando se realiza uma caçada. Quando existe uma guerra estes dois papéis in-
vertem-se.
Segundo Daniel Hastings, as figuras de Syia, Quanza e Chupuku Covita, dizem res-
peito a esposas do soberano que estão possuídas por espíritos e, por conseguinte desem-
penham funções cerimoniais mas não devem ter filhos. Ainda segundo o autor, na ombala
88 Segundo as informações recolhidas, a grafia de Daniel Hastings está incorrecta pois o titulo é inakuAJ.
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM AFRICA
habitam muitas outras mulheres, que podem ser esposas do soberano, mas que não têm
funções, nem nomes específicos (Hastings, 1933:68). De notar que, em relação à descrição
feita pelo actual Ekuikui IV, certos nomes e funções de esposas reais não estão na actu-
alidade em uso, pois na lista do actual ossoma inene só surge a inakulu, a nangandala, a
siya, a mbaravela e a chiwi-chipembe. Por sua vez, a nangandala não é referida por Daniel
Hastings.
Na obra deste missionário ainda consta o grupo dos servidores do ossoma. Trata-se
de um grupo numeroso de servidores, mensageiros, e demais, dos quais Daniel Hastings
destaca os seguintes cargos e funções:
89 Daniel Hastings ainda caracleríza mais alguns cargos e funções, contudo neste texto adiantam-se somente os restantes nomes de
cargos: Tone, Cipule, Ukuancla. Ukuavate, Ukuelonga, Ukuasapi, Ukuekopo. Soke, Cliye, Kapitemolo. Lutucufll, Ukuakukula, Kassongo
Ye~mba, Kaleikailslcu/u, Ukuetambo, Dumba Kepila, Citue ca Huvi, Buta, Kapila e Chandala (Hastlngs, 1933:71-73).
90 Foi no reinado de Elwikui 11 que as nissões protestante e cat6llca se instalaram no BaiiJndo. Oreinado de Ekuikui 11 é ainda actualmente
memorizado corno de prosperidade e abastança, e de diplomacia faca à chegada dos nissionários estrangeiros. Contudo, como de-
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
monstra Conceição Neto, não se pode esquecer as rivaHdades mantidas neste periodo com outros reinos Ovimbundu, nomeadamente
com o Bié, e a aiança de Ekuikui 11 com os portugueses (Neto, 1994).
91 A autora fala da existência de (31ibaismo ritual entre o Ovimbundu, no processo de entronização de um novo rei e de que este devia
'comer o seu antecessor", diz mesmo que estes rituais simbólicos continuaram depois da conquista portuguesa, em 1902, e referindo-se
a Wilfred Hambly, este refere que o saorificio de animais veio então substituir o sacrifício humano (Hey\\OO(l. 1998: 154).
NO II.EINO DA TOUPEIRA. AUTOII.IDAOES TII.ADICIONAIS 00 M'BALUNOU E O ESTADO ANGOLANO
100 1 101
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
101 1 1o3
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
pucas, dedicavam-se sobretudo ao comércio de escravos, cera e marfim. Nas últimas déca-
das do século XIX o comércio de marfim estava em franco declínio e a escravatura formal-
mente abolida. As caravanas Ovimbundu passaram então a transaccionar essencialmente
borracha, que adquiriam junto das populações Ngangela do interior (Neto, 1997}.
O sistema das caravanas provocou profundas alterações no modelo produtivo Ovim-
bundu, com os homens a dedicarem-se quase exclusivamente a este sistema, sobretudo
como carregadores, e a crescente introdução do modelo de acumulação capitalista cons-
tituiu um factor de desigualdade social. No campo político, este modelo provocou uma
maior hierarquização das estruturas de poder e consolidação do estatuto económico e
político dos olossoma e dos chefes dos clãs matrilineares, os ossongo, que na generalidade
dominavam o comércio caravaneiro (Possinger, 1973; 37). O comércio das caravanas tam-
bém esteve na origem do crescimento de vários reinos, que se consolidaram em torno de
certos olossoma proeminentes nesta actividade comercial.
Por volta de 1912, devido à queda abrupta do comércio da borracha o sistema carava-
neiro ruiu completamente e, segundo Hermano Possinger, "this event determined the end
of the selfsustained and autonomous development of the Ovimbundu. 1heir social structure,
based on commerce and maintained by a politicai powerfounded on commerce, disintegrated
rapidly" (Possinger, 1973; 38}. No novo ciclo que se seguiu, a economia Ovimbundu ficou
completamente dependente de dois factores exógenos: a ocupação do planalto central por
colonos portugueses e a crescente implantação da administração colonial, após a pacifi-
cação do planalto central. Segundo Conceição Neto, a ocupação europeia do planalto, no
caso a ocupação colona portuguesa, a partir dos finais da década de 1940 e sobretudo na
década de 1950, foi muito rápida e em grande escala, tornando particularmente sensível
o problema da procura de terras férteis, e da densidade populacional nativa, com menos
terras disponíveis e uma maior mão-de-obra "nativà' (Neto, 1997).
Por outro lado, este novo ciclo encontra-se também fortemente ligado à introdução
da agricultura comercial intensiva, quer através de colonos portugueses, quer no próprio
sistema produtivo Ovimbundu, sobretudo da cultura do milho e do café (este último em
menor escala}, na qual se ocupam predominantemente os homens, enquanto as mulheres
continuavam responsáveis pela produção para a auto-subsistência dos agregados familiares.
Esta nova mudança produziu profundas alterações nas estruturas políticas, económi-
cas e sociais. A introdução da agricultura comercial provocou desde logo a necessidade de
alterar o modelo de gestão fundiária tradicional. No período pré-colonial a propriedade
da terra era comunitária, em geral propriedade do ossongo, e cada família tinha direito a
usufruir de parcelas que cultivava durante cinco ou seis anos, findo os quais a terra voltava
para a comunidade, ficando em pousio durante uma geração, cerca de trinta anos.
O novo modelo de ocupação colonial obrigou a uma maior procura de terras dispo-
níveis, por parte das populações Ovimbundu; a uma maior privatização da propriedade;
e um menor período de pousio das terras, que era de cerca de trinta anos (uma geração),
e que neste novo sistema passou a ser de apenas quatro a seis anos, o que provocou uma
NO ~EINO DA TOUPEIRA. AUTO~IDAO&S TRADICIONAIS 00 M'IALUNOU E O ESTAOO ANGOLANO
rápida degradação na fertilidade dos solos. Nurn período inicial, a pr()priedade da terra
continuou a processar-se dentro do grupo familiar alargado, o ossongo, segundo o modelo
de sucessão matrilinear, mas aos poucos foi-se modificando, houve uma crescente indi-
vidualização da propriedade e a estrutura familiar ficou cada vez mais centrada na epata,
conjunto de núdeos familiares, em geral de irmãos, e o sistema patrilinear foi-se impondo
progressivamente (Possinger, 1973; 39). No entanto, no final da década de 1960 até já a
estrutura da epata se encontrava muito fragilizada, com os mais novos a rejeitarem-na
(Possinger, 1986, 105).
A necessidade de expansão dos grupos domésticos por todo o planalto central; a in-
tensificação da produção comercial do milho e as transformações do sistema produtivo,
nomeadamente a necessidade de alterar o sistema de pousios que, recorde-se, Este pro-
cesso foi mais rápido e acentuado sobretudo nas regiões onde predominava a cultura do
café. A incessante necessidade de procura de novas terras e de aumento da quantidade de
terra utilizável conduziu a uma progressiva desestruturação dos kimbu Ovimbundu, com
uma rápida passagem para o habitat disperso, que predominava já em meados da década
de 1960 (Possinger, 1973; 46).
Mais tarde, a partir de 1968, a administração colonial exerceria enorme pressão para
eliminar este tipo de habitat disperso, através da imposição de uma política de aldea-
mentos, enquanto mecanismos de controlo da população, devido ao intensificar da guer-
ra colonial93 • Este reassentamento compulsivo das populações rurais, que no entanto foi
abandonado em 1970, provocou um decréscimo significativo na produção agrícola e uma
enorme reacção dos camponeses. Por contra, contou com a cumplicidade e anuência de
uma parte significativa das autoridades tradicionais, que encontraram neste processo um
modo de renovar o seu poder sobre as populações.
A diminuição da produtividade dos solos; a enorme densidade populacional, sobre-
tudo na região central do planalto, em especial do Bailundo, Bié e Huambo (Neto, 1997};
a competição com os colonos portugueses, mais favorecidos no processo de aquisição de
terras; tudo isto constitui factores que conduziram a uma progressiva proletarização de
uma parte significativa das populações Ovimbundu. No que respeita à distribuição de
terras aos colonos, Gerald Bender salienta que "entre 1968 e 1970 a quantidade de terras
entregues aos europeus, no distrito do Huambo, foi além do dobro [... ], enquanto a área
cultivada por africanos foi reduzida em mais de um terço[ ... )" (Bender, 2004: 221).
Neste processo, grandes vagas de mão-de-obra masculina Ovimbundu foram utili-
zadas sazonalmente, até ao final do período colonial, nas plantações de café do norte de
Angola, nas províncias de Kwanza Norte e Uíge. Hermano Possinger calcula que nos dez
anos últimos antes da independência cerca de 80 a 100.000 indivíduos, sob o regime de
contracto, iam anualmente para as plantações do norte do pais. Simultaneamente, cerca
de 20.000 procurava trabalhos nas indústrias de Luanda, Lobito e Nova Usboa (Possinger,
93 A adrrinistração colonial portuguesa usou este processo nas províncias ullramarinas que foram palco da guerra anti-colonial, tal como
em Moçambique e na Guiné-Bissau. enquanto forma de enquadrar e controlar a população indígena.
10-4 I lOS
VOZES DO UNIVERSO RURAL REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
1973; 48). Segundo David Birmingham a maioria desses trabalhadores provinha da parte
central do planalto, sobretudo da região do antigo reino do M'Balundu, razão pela qual os
portugueses denominavam de "Bailundos" a todos os trabalhadores Ovimbundu (Birmin-
gham, 2002, 139; Neto, 1997).
O contracto, apesar do seu enquadrado legal e baseado numa relação livre entre tra-
balhador e contratante, acaba na prática por expressar uma forma encapuçada de escra-
vidão, conforme descreve Fola Soremekun, reportando-se ao relato de um jornalista in-
glês que visitou Angola entre 1904-05. Henry Navinson, o referido jornalista, relata que a
mão-de-obra era angariada através dos chefes locais, muitas das vezes de forma abusiva e
forçada, e o contracto, que deveria ter um período de cinco anos, acabava por se prolon-
gar quase indefinidamente e o contratado quase nunca regressava à sua terra de origem
(Soremekun, 1965: 140-142).
O contracto não era a única forma de assalariamento da mão-de-obra do planalto,
pois como adianta Conceição Neto, também os caminhos-de-ferro, a CFB, constituiu um
pólo de atracão da mão-de-obra Ovimbundu ( Neto, 1997). Esta autora realça a enor-
me importância desta companhia nas transformações sociais que ocorreram no planal-
to central, pelo menos nas primeiras décadas do século XX. Não só porque permitiu o
desenvolvimento da cidade de Nova Lisboa, porque criou vilas ao longo do seu trajecto,
e possibilitou o assentamento de colonos e comerciantes portugueses, e porque engajou
quantidades significativas de mão-de-obra africana, de forma muitas vezes compulsiva,
como no início do século XX, chegando a recorrer ao trabalho compulsivo feminino e
infantil (Neto, 2000).
Um outro factor importante no processo de colonização, e que teve um enorme im-
pacto no processo de transformação social das populações do planalto, e em geral nas res-
tantes populações, foi o imposto anual indígena. O imposto foi introduzido em Angola em
1907, denominado inicialmente de imposto de "cubata" até 1920, e depois dessa época era
pago por "cabeça" (Neto, 2000). O imposto foi idealizado como um incentivo ao aumento
da produtividade agrícola indígena e ao assalariamento, contudo, na verdade o que aca-
bou por acontecer era que, de forma perversa, potenciou o endividamento das populações
rurais e a sua dependência face aos chamados "comerciantes do mato': pois estes avança-
vam o dinheiro do imposto anual "sob a garantia da colheita seguinte" (Neto, 2000). No
caso do planalto central, a região do Bailundo detinha uma posição de grande evidência
face ao elevado número de população indígena, e por conseguinte de imposto recolhido.
Além de provocar o empobrecimento da população rural africana, e sua dependência, a
questão do imposto provocou várias revoltas da população.
As igrejas tiveram também um enorme impacto, quer nas transformações sociais
ocorridas entre os Ovimbundu, quer nas relações e na estrutura política tradicional. No
caso do Bailundo, os primeiros missionários que se instalaram na região foram os mis-
sionários protestantes, da American Board of Commissioners for Foreign Missions e da
Canadian Congregational Foreign Missionary Society (que estão na origem da actual
NO II.EINO DA TOUPEIII.A. AUTOII.IDADES TII.ADICIONAIS DO M'BAlUNOU E O ESTADO ANGOLANO
"o Ekuikui é que recebeu os brancos. Foi quem recebeu o capitão Teixeira da Silva. O capi-
tão Teixeira da Silva de Benguela passou pelo Bié e do Bié para o Bailundo. No Bailundo o
Teixeira da Silva deixou um irmão. Deixou outro irmão na vila de Seles e então veio para o
Bailundo. Quem o recebeu foi o rei Ekuikui. Também foi ele que recebeu os primeiros mis-
sionários mandatados pelos colonos de Benguela. Mandaram os pastores para ensinarem
a ler, a escrever e a evangelizar. De Benguela de inicio era para se instalarem no Bié, serio
o ponto de inicio da civilização dos indígenas. Agora no respeito humano, todo aquele que
estiver a passar no território alheio tem que se apresentar às autoridades. Eles vinham em
cima de alguns burros e naquela coisa de se apresentarem às autoridades instalaram -se na-
quela localidade. É dali que saíram as pessoas que se apresentaram ao rei Ekuikui, de como
vinham de Benguela para o Bié para fazerem os seus trabalhos.( ... ) Eram os americanos.
E o rei Ekuikui preocupou-se de saber que tipo de trabalho iam fazer no Bié. Ekuikui disse
se ensinar a ler e a escrever não vai contra a cultura, e estes missionários diziam que não
pelo contrário havia de facilitar quando chegassem os brancos.( ... ) Então Ekuikui achou
que não avançassem para o Bié mas indicou uma aldeia chamada Chilume para iniciarem
ali a actividade e foi aí que ficaram." (in EBai2004-2)
Só mais tarde, mas ainda no reinado de Ekuikui II é que se instalou a primeira missão
católica. Ainda segundo Augusto Katchiopololo:
94 Segundo o reverendo Afonso Júnior Díngu, a 4 de Julio de 1884, por influência de um comerciante português. de nome Braga, o rei
Ekuikuí 11 encerrou a missão de Chílume e os missionários regressaram a Benguela. A missão do Chilume viria a ser definitivamente
reaberta a 23 de Outubro de 1884, depois de sanados os problemas com o rei {in EBai2004-12).
10, 1 101
VOZES 00 UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
95 Os Adventistas do Sétimo Dia constituem muito provavelmente o terceiro maior grupo religioso no município do Bailundo.
96 Classificação colonial que englobava a esmagadora maioria da população africana. As outras duas categorias eram as de civilizado e a
de assimilado.
97 Oferecendo às rrulheres e jovens Ovimbundu um projecto de formação cunural que as preparava essencialmente para serem 'boas
mães e esposas• cristãs.
98 Sobre a ímportancia do trabalho como uma ética e uma moral nos grupos protestantes cf. Max Wf!J>ar e a sua Ética Protestantes e o
Espírito do Capita~smo.
NO II.EINO DA TOUI'EIII.A. AUTOII.IDADES TII.ADICIONAIS DO H'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
A autora Fola Soremekun defende que as igrejas protestantes, desde muito cedo, ini-
ciaram um combate contra alguns dos pilares fundamentais da organização tradicional,
tal como a poligamia; as crenças religiosas tradicionais, nomeadamente os cultos dos
antepassados, a feitiçaria, e as cerimónias de iniciação, masculina e feminina (Soremekun,
1965:69,97, 206). A autora conclui mesmo, talvez de modo abusivo que"[ ... ) by 1936 the
average Ocimbundu had forgotten his traditions. 1he society had been broken up to such a
degree that the past had become Jar way indeed" (Soremekun, 1965: 253).
No geral pode assim avançar-se com a ideia de que a influência transformadora das
igrejas protestantes, sobretudo da IECA, foi mais efectiva e mesmo eficaz do que a sua
congénere católica. E esta influência não residia apenas nas transformações sociais e ide-
ológicas das populações do planalto. A influência das confissões protestantes alargava-se
significativamente também ao modo de relacionamento das populações para com a domi-
nação colonial. Nesse sentido, sempre foi clara a posição da igreja protestante quer contra
os abusos individuais que os colonos perpetuavam sobre as populações, nomeadamente
contra o comércio do álcool e contra o trabalho forçado, mas igualmente contra o sistema
colonial em si mesmo. Deste modo, a IECA viria a sofrer fortes perseguições por parte do
Estado colonial, pelo seu suposto apoio e identificação à UNITA. Como sublinha Cândido
Uquélonga:
"Na altura dos portugueses desconfiava muito dos professores e das missões protestantes.
Por exemplo no Chilume saiam muitos com a PIDE. Em 1970, 1971, a PIDE tirou muitos
professores e até enfermeiros. ( ... ) Ao contrário da igreja católica. Poucos da igreja católica
foram sofrer. A igreja católica não perseguia o poder. Os catequistas católicos não pagavam
imposto, e os professores recebiam do Estado o dinheiro." (in EBai2007-09)
1oa I 10,
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
"Os sobas cumpria, como estamos hoje a trabalhar coma Administração, e tinha que cum-
prir mesmo naquele tempo. O soba na ombala, tudo o que ele fazia aqui na ombala era
entregue ao chefe de posto, que era informado de tudo o que se passava aqui. Tinha que ser
isso mesmo. Pessoas que erravam, ou talvez violava, ou talvez roubava, ou talvez essa coisa
de feitiço, tudo entrava no soba. Então o soba informava o chefe de posto, assim, e assim.
Se não cumprir bem, então o indivíduo que foi criminoso então vai pagar. E se o crime for
maior então vai seguir para aí para o contracto, ou vai para São Tomé:' (in EBai2004-6)
99 Não se trata efectivamente de uma correspondência integral, pois, como se demonstrará, a ofeka do M'Balundu abrange regiões de
concelhos adjacentes.
100 A administração colonial usava um processo semelhante em Moçambique com os régulos. Sobre este assunto cf. Florêncio 2003, 2005.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
" Antigamente o soba mandava capinar as estradas, controlar os impostos, fazer selecção
dos indivíduos da mesma ombala para alguns ritos nos akokotos. Aqui havia também o
trabalho forçado sim. A partir dos sékulus da aldeia até ao soba. A selecção dos contratados
era a partir do sékulu da aldeia. [a ordem] Era a partir da Administração para os sobas e
dos sobas para os sékulus, então arranjavam homens que eram encaminhados. O soba não
recebia nada por esse trabalho, mas apanhava porrada [palmatória], [do chefe de posto]
se houvesse incumprimento. Nos sékulus batiam os cipaios101 • Chamava-se umgamba. 102
(... )Também havia o imposto, elicimo. Era de 380 escudos. 103 Era pago uma vez por ano.
Todos os homens da aldeia pagava. Só os homens, casado, solteiro, a partir dos 18, 19 anos.
Quem recolhia era o sékulu da aldeia que entregava no soba. ( ... )Sim, [o soba] depois
entregava na Administração. Anteriormente não davam nada, mas a partir de 1961 então
tinha uma percentagem, dependia do número de aldeias que controlava. O objectivo desse
salário era só para quando chegava na ombala, ou o sékulu no bairro, então conviviam:'
(in EBai2004-4).
"Os sobas são eles mesmo que fazia essa actividade. Os sobas dão aviso no quimbo que é
preciso pagar imposto, de pessoas, depois imposto daqueles que são apanhados a fabricar
caxi104, e depois imposto daquelas danças catita e dança caiombe105• Aquilo tudo era pagar
imposto, para se fazer aquilo. Nessa altura eles davam aviso, as pessoas dão esse dinheiro e
depois eles levam junto do posto administrativo." (in EBai2007-08)
Quem não conseguia pagar o elicimo era compelido ao trabalho forçado, o contracto,
como adianta Cândido Uquélonga,
110 I III
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
" o contracto era assim: quem não pagar imposto, quem não consegue pagar o imposto
vai para o contracto. Para lá vai ganhar e quando regressar paga o imposto atrasado e o
deste ano.( .. . ) Em 1957 ou 58 ganhava 1800 escudos no contracto [num ano] e quando
regressava ia directamente no posto e pagava dois impostos, que era de 300 escudos cada:'
(in EBai2007-09).
O contracto foi um factor de enorme disrupção social nas famílias do planalto cen-
tral, sobretudo no Bailundo, e as autoridades tradicionais acabariam por ficar com o ónus
dessa imposição colonial, pois a elas cabia a parte de recrutamento, como refere Adolfo
Chitoma:
"O chefe recebe a ordem do chefe de posto, então distribuir a ordem nos sekulus, cada
aldeia uma pessoa, cada aldeia uma pessoa, até quando completar esse grupo que seja
rendido na Administração, que é o chefe que pode dizer:'há-de me trazer x homens'. Então
o soba recebe a ordem, dá ao sékulu, que vai nomear, cada aldeia uma pessoa, uma pessoa,
uma pessoa, .. até fazer as suas contas. Então traz no soba que leva ao chefe que faz o envio
desses homens. ( .. .) Contratados. Cada mês há um grupo que vai, cada mês vai um. Cada
grupo ia 50 pessoas. la para o norte. Ia para as fazendas de Benguela." (in EBai2004-6)
O imposto anual e o contrato, com base no trabalho forçado estavam assim intima-
mente relacionados, e constituíam a base dos recursos e proventos da administração colo-
nial, como relata Ekuikui IV,
"No tempo quando o português chegou no Bailundo, porque a habilitação dos sobas era
assim pouca, não tinha muita habilitação, então ele começou a dominar os sobas pouco
a pouco, a pagar os impostos, até porque o próprio imposto que os sobas iniciaram a pa-
gar eram ovos de galinha, porque ainda não conheciam o dinheiro. Então começaram a
pagar ovos de galinha. Mais tarde o português trouxe o dinheiro dele. Iniciou-se a pagar
o imposto a 10 escudos, depois 20, até 50, 100. Ultimou-se nos 380 escudos, mas naquela
época quem não tinha dinheiro era maltratado, era carregado à cadeia, até por fim ia para
as lavras de café, de cultivo. Era castigado por causa de não ter dado o imposto. E ia ao Mo-
çamedes para apanhar peixe. ( .. . ) As lavras de café eram no norte sim. Aqui havia serviço
muito forte também, serviço muito forte para com os angolanos. Era de reabilitar estradas.
Eram forçados para reabilitar estradas e não tinham instrumentos para tal. O instrumento
eram as enxadas, levar terra na cabeça para as estradas. No Bailundo o castigo mais pe-
sado foi de construir uma ponte que cai na área da missão do Janjo. A ponte sobre o rio
Keve. A ponte foi construída de um modo sofisticado para os angolanos que carregavam
os sacos de cimento daqui do Bailundo até naquela área, pela cabeça [numa distância que
deve rondar os 90 km], até que aquela ponte acabou. Hoje em dia é um símbolo aquela
ponte que durante toda a guerra não se destruiu.( ... ) O trabalho forçado era a umgamba.
O português exigia ao soba e um dos sékulus é que ia escolher os homens que são capa-
citados. Depois com o andamento do tempo o português resolveu que não se pode mais
levar o homem ao contrato, ao umgamba, sem lhe pagar nada, nesse momento tem que
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
haver um contrato que tem que lhe pagar. Ele vai um ano, depois ganha alguma coisa para
vir na aldeia, na sua família. ( ... ) Isso foi nos anos 60, 61, 62, 65 até 70. ( ... ) Antes também
havia pagamento. Iam ao contrato semear o café, semear eucaliptos, mas então, quando
você vai lá já aqui te cobraram o imposto, então assim trabalhaste e o que ganhaste já não
chega com a família, então assim trabalhas mais um ano só para ver se há uma parte que
vai sobrar para a família. Quando lá tem que vir directamente ao posto [administrativo]
pagar o imposto de 2 anos. E disso só sobra um bocadinho para a ajudar a família, já não
chega, nem pano para a mulher nem camisa para o filho." (in EBai2004-8).
Para além destas importantes tarefas, as autoridades tradicionais ainda eram respon-
sabilizadas pela recolhas de outros impostos, como salienta o actual soma inene Ekuikui
IV,
"naquela época dos portugueses era trabalho de cobrar impostos, de pagar as licenças de
cães, os cães pagavam licença naquela época, era o trabalho de apanhar os jovens para a
tropa colonial. ( ... ) O trabalho do soba era muito, o trabalho nas estradas era dividido
pelo rei e pelos sobas pequenos nas suas áreas, de reconstruir pontes e estradas. ( ... ) Havia
também o imposto de bicicleta, quem não paga era apanhado e ele e a sua bicicleta e ia na
cadeia:' (in EBai2004-8)
"os sékulus nas aldeias também tinham tribunais, mas quando não conseguiam solucionar
o caso então era encaminhado ao soba. O soba tendo conclusão tudo bem, se não o caso
era transferido à Administração.( ... ) Não ia ao rei. No tempo colonial ficava mesmo no
106 Sobre a importâlcia do papel jurídico das autoridades tradicionais para a Administração colonial portuguesa, e sobre a sua concepção
de uma espécie de pluraismo jurídico, bem patente na imposição do Estatuto do lndigena, ver a obra de Adriano Moreira (1955), ou cf.
Florêncio (2003:241-243).
112 1 113
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
soba. O rei também tinha o seu tribunal. ( ... ) Podia resolver casos de ferimentos, viola-
ções, insultos, adultérios. Conflitos de terras também." (in EBai2004-4)
é que apanhava. Quando não cumprir, quando vir vai apanhar palmatóriá' (in EBai2004-
6). Quem fazia cumprir estes castigos físicos nos olossekulo não era directamente o chefe
de posto, mas sim o cabo de posto, que era um cipaio.
Aliás, o relacionamento das autoridades tradicionais com a administração colonial
processava-se de uma forma profundamente hierarquizada e indirecta, pois estas só oca-
sionalmente é que se relacionavam directamente com o chefe de posto, uma vez que no
geral dependiam do cabo de posto, que era um cipaio ao serviço do chefe de posto, e que
funcionava como elo de ligação às "autoridades gêntilicas~ como sublinha Ekuikui lV,
"O trabalho dele [cabo de posto) é acompanhar o soba para saber se o trabalho que está a
ser distribuído pela administração está a ser acompanhado ou não. Esses controlava tam-
bém o dinheiro dos impostos. Ele é que controlava se o soba estava a cumprir os manda-
mentos que vinham do posto, ele é que controlava os homens que saiam de uma área para
irem ao contrato de cultivo. Ele é que controlava se o trabalho de reabilitação das estradas
está a andar ou não.( ... ) O soba se tinha alguma actividade de ir ao administrador ele ti-
nha direito de ir ao administrador. Naquele tempo reunia com o administrador, duas vezes
por mês, de 15 em 15 dias, para receber orientação do administrador, que o soba depois vai
incentivar no sobado." (in EBai2004-8).
Estas funções contribuíam para uma progressiva perda de legitimidade das autori-
dades tradicionais face às suas populações, caso que foi comum em todo o continente
africano sob as administrações coloniais.
Pode-se adiantar como exemplo significativo deste processo para o caso angolano
um relatório de 1948 da Companhia de Diamantes de Angola (Diamang, 1948}, sobre
as relações entre os sobas da província da Lunda, sob a jurisdição da Diamang, e as suas
populações. Nele pode ler-se:
"( ... )Quando o tempo o permite conversamos com eles [sobas] ouvindo pacientemente
as suas queixas e aspirações. É frequente consultarem-nos na resolução das suas questões
mais difíceis ( ... ). Acrescentam os chefes indígenas que a sua gente vai desaparecendo, uns
fogem para o Congo, outros para as sanzalas de sobas de tribos diferentes, outros ainda
formam pequenos núcleos abandonando o soba ( ... ).Os poucos que ainda restam, não
me têm respeito, não pagam os tributos devidos, nem me consultam na resolução das suas
questões; só servem para me arranjar sarilhos junto da autoridade ... ( ... ):' (in Diamang,
1948)
E mais adiante:
"Os sobas estão de facto em difícil situação mantidos somente para haver um responsável
perante a autoridade; eles são mal tratados pelos "cipaios" que muitas vezes indispõem
os administrativos contra os chefes indígenas em proveito próprio. É vulgar encontrar os
sobas pelos caminhos andrajosos e por vezes famintos em busca de mão-de-obra, vadios,
,,,. 1 11s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
Donde se depreende que as populações, pelo menos estas da Lunda sob o controlo
da Companhia, optavam por estratégias de escape ao trabalho e ao pagamento de im-
postos, fugindo para o vizinho Congo belga, aproveitando a sua localização de fronteira.
A posição de charneira das autoridades tradicionais, encravadas entre a autoridade da
Diamang, e as demandas e aspirações das suas populações, concorria para que perdessem
rapidamente influência e prestígio junto de uma parte dos seus súbditos, e até mesmo das
autoridades administrativas da Companhia 107• Contudo, e apesar disto, o relatório não
deixa de reconhecer:
"(. .. )A justiça que eles temem é a dos seus sobas, que falam a sua língua, que vivem entre
eles, comungando do mesmo credo religioso, cujos preceitos se repercutem constante-
mente nas leis civis e que é o único apto a compreender o seu espírito, as suas tendências,
e todo o lado íntimo da sua existência.» (in Diamang, 1948).
O que demonstra que essa perda de legitimidade não é completa, e que as populações,
ao se afrontarem e confrontarem com dois sistemas antagónicos de poder e controlo, não
deixam completamente de reconhecer no seu modelo de poder e de reprodução social,
e nos actores chaves desse modelo, as autoridades tradicionais, uma maior legitimidade,
porque constituiu a principal fonte de significados simbólicos.
Neste relatório aborda-se ainda um outro assunto importante, e característico das es-
truturas de poder tradicional em zona fronteiriça, que é a sua relação, de dependência ou
não, entre estruturas de poder de ambos os lados das fronteiras, coloniais ou até actuais 108 •
No relatório salienta-se ainda que os principais sobas da Lunda situam-se na parte do
Congo belga (os sobas Muatianvua, Kasongo Nhembo, Mukenge Kalamba, Mai-Munene,
Kabongo, Lupumgo, Lukuengo uá Babuka, entre outros). Por outro lado, adianta que:
"( ... )Como se sabe entre os negros não existem fronteiras e aquelas figuras [os sobas do
Congo belga] têm ainda hoje um enorme prestígio em toda a antiga LUNDA. Não têm
sido poucos os sobas da Lunda-Angola, que o Muatianvua tem mandado castigar e substi-
tuir, e há a notar que grande parte dos kiokos são governados e orientados por lundas. ( ... )
O soba Ditenda do Chitato está a organizar uma comitiva para levar o "milando» (tributo)
ao seu senhor Muatianvuam que reside no Congo belga. Em breve seguirá outra comitiva
107 Deve saienlar-se que a Diamang, enquanto empresa privada e operando numa espécie de "Estado dentro do Estado", pode constituir
um caso e~cepcialal, e diferente da "normaidade" da adllinistraçiio púbtica colonial, devido às capacidades e potencialidades efectivas
de controlo do tenil6rio e das populações sob a sua área de jurisdiçio, ao contráo:io da administração pública que, em muitas regiões
de Angola, e noutras ex1Jr0VIndas ullrantélinas nAo detinha os recursos, humanos e maleriais, para exerce um efectivo controlo das
populações e das autoridades tradicionais. Sobre esse assunto para Moçambique cf. Flocêncio 2003, 2005.
108 Sobre este assunto, e para o caso Ndau de Moçambique, nomeadamente do distrito de Mossurize, ver Florêncio, 2003, 2005.
NO II.EINO DA TOUPEIII.A. AUTOII.IDADES TII.ADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
do sob Iunda do Posto do Cambulo, Sakazamba "piri-píri~ com o mesmo destino." (in
Diamang, 1948)
Por seu turno, no que respeita ao caso Umbundu, Hermann Possinger defende que
as autoridades tradicionais foram perdendo relevância e poder ao longo do periodo co-
lonial, pelas transformações na sociedade Umbundu e pela subordinação da instituição à
administração colonial. No entanto, tomando como referência comparativa outros exem-
plos empíricos já estudados, pode adiantar-se que as transformações sociais e políticas
ocorridas nas instituições de poder tradicional, por via dos impactos das administrações
coloniais ou das transformações internas das próprias sociedades, nem sempre foram sufi-
cientes para destituir estas instituições da sua legitimidade política e religiosa, pelo menos
para partes significativas das populações rurais africanas.
Mesmo porque as autoridades jogavam por vezes um papel profundamente ambíguo
entre a defesa dos interesses do Estado colonial e das suas próprias populações, e não ra-
ras vezes assumiam mesmo um papel de liderança na resistência ou revolta das próprias
populações. Conceição Neto argumenta que a recolha do imposto e a pauperização que
provocava nas populações rurais obrigava mesmo as autoridades tradicionais a actuarem,
até para não perderem o respeito das suas populações, e por vezes revoltavam-se contra
a administração colonial, como no caso da revolta liderada pelo soma do Balombo, em
1930, que, segundo a autora, chegou a concentrar na sua ombala cerca de oitocentos ho-
mens armados (Neto, 2000).
No entanto, é inegável que os processos de transformação social ocorridos no planalto
central durante o século XX provocaram uma forte ruptura na relação de politicai ac-
countability entre súbditos e chefes, e que o surgimento de novas aldeias, a influência dos
missionários, as rupturas geracionais, e o modelo de organização social do trabalho, pro-
vocaram e permitiram o aparecimento de novos actores sociais, missionários, catequistas,
professores, enfermeiros, que concorriam directamente com as autoridades tradicionais,
em termos de liderança social e de prestígio (Possinger, 1986: 110).
A procura de novas terras conduziu à dispersão das populações dos seus kimbu
originais e essa emigração esteve na origem da criação de novas olovemba ( plural de
olumbala)i09 • Este processo produziu igualmente alterações no modelo da estrutura de
poder tradicional. A criação de novas olovemba conduziu ao surgimento de novas chefias,
novos olossékulu e chefes de clã, sem ligação ao modelo tradicional, mas que acabariam
por ser reconhecidos pela administração colonial em pé de igualdade com as legítimas
autoridades tradicionais.
A emigração acarretou também a perda de importância de vários olossoma, sekulu, e
chefes de clã, que viram diminuídos o seu poder face ao decréscimo populacional. Mesmo
os poderosos olossoma, tais como os soberanos dos grandes reinos, foram perdendo gra-
109 Segundo Hermann Possinger, este processo expansionista Ovimbundu conduziu à ocupação de todas as terras dispon lveis do planalto
central e à inCOIJlO!iiÇão de pequenos grupos não Ovimbundu. Para este autor o processo terminou apenas em 1957, altura em que foi
edificada a úhima aldeia por emigrantes Ovimbundu (Possinger, 1973; 43).
11, 1 111
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
dualmente o seu poder face aos seus olossékulu e outros olossoma subordinados, uma vez
que estes estavam agora mais dependentes da Administração colonial do que do próprio
rei (Possinger, 1973; 43).
Nesse sentido, pode afirmar-se que no Bailundo, e em geral em todo o planalto cen-
tral, as autoridades tradicionais Ovimbundu foram igualmente perdendo poder nas zonas
de forte influência missionária, sobretudo protestante. Novas aldeias foram florescendo ao
redor das missões e das escolas, nas quais a organização social já não assentava na lideran-
ça dos sekulu e dos chefes de clã, mas sim nos catequistas e nos missionários.
Por outro lado, a própria administração colonial também influiu bastante neste pro-
cesso de transformação do habitat, nomeadamente ao criar aldeamentos, ou concen-
trações, em especial durante a guerra de libertação colonial. No caso do Bailundo esses
aldeamentos forçados foram bastante escassos, pois tratava-se de uma região não abran-
gida pela acção dos movimentos guerrilheiro (MPLA, UNITA, FNLA), contudo sempre
existiram alguns, como salienta o ossoma de Chijamba, "[os portugueses] na região de
Luvemba só fizeram um [aldeamento], que era governado por um sékulu. Os que estavam
ali concentrados vinham de vários kímbos. Quem indicou o sékulu foi mesmo o soba
daquela área onde se construía a concentração" (in EBai2004-4).
110 Por uma questão de 'econooia de exposição' toma-se impraticável no âni>ito deste texto anaisar a guerra em Angola nas suas múHi-
plas e complexas vertentes.
NO 1\EINO DA TOUI'EIU. AUTOI\IDAOES TI\AOICIONAIS DO 11'1ALUNDU E O &STAOO ANGOLANO
Da leitura deste estudo sobressai uma primeira ideia, a da enorme fragmentação so-
cial que estes estudos de caso apresentam e que derivam da complexidade das dinâmicas
da própria guerra na região. Houve zonas que foram sendo sucessivamente ocupadas pe-
los dois beligerantes, provocando constantes flutuações populacionais e sucessivas recom-
posições sociais, e zonas mais estáveis onde o controlo político esteve mais tempo sob
a alçada de um ou do outro movimento. Nesse sentido é quase impossível adiantar um
padrão de transformação social para a região.
A guerra teve obviamente um enorme impacto nestas comunidades do planalto
central, provocando uma desestruturação do tecido produtivo familiar, quer ao nível da
produção agrícola quer das enormes perdas de gado; deslocações de população, quer em
movimentos voluntários quer forçados 111 ; ruptura no sistema de trocas comerciais, com o
desaparecimento de comerciantes e respectivas redes; e mesmo na fuga de missionários,
clérigos e catequistas. Segundo o autor, " ... rural communities were even more left to their
own devices, in a context of complete improvisation and uncertainty" (Pacheco, 2001: 68).
Por exemplo, no caso de Pedreira, que esteve quase sempre sob o controlo das forças
governamentais, no ano de 1983, face ao avanço das forças da UNITA, a população foi
forçada pelo governo a mudar-se para um lugar mais seguro, em Calima, e passado dois
anos teve novamente que se mudar para Tchipipa, regressando a Pedreira em 1986. A par-
tir de 1989 a população dispersou-se ainda mais, partindo para destinos como Benguela,
Luanda, e mesmo a Namíbia, à medida que a guerra se intensificava. Uma parte dessa
população não regressaria, nem mesmo durante o período de paz proporcionada pelos
acordos de Bicesse.
Segundo Fernando Pacheco, esta área foi profundamente desestabilizada durante a
guerra. Assim, depois da assinatura do Protocolo de Lusaka, em Novembro de 1994, as
forças em fuga da UNITA roubaram todo o gado da população, o mesmo fazendo as for-
ças governamentais que entretanto reocuparam a área. A população dedica-se sobretudo
a produção de subsistência. Contudo, a proximidade da cidade do Huambo permite, pelo
menos no período após a conquista da cidade pelas forças governamentais, uma certa
continuidade de trocas e de abastecimento (Pacheco, 2001:70-75).
A aldeia de Tchitwe 112 dista cerca de seis quilómetros da vila-sede do distrito de Eku-
nha. Neste caso a população manteve-se sempre nestas aldeias, que eram controladas pe-
las forças governamentais, à excepção do período entre 1993 e 1994, em que a UNITA
controlou a região. Aliás o pior período sucedeu após a retirada da UNITA, quando as
forças governamentais pilharam a aldeia. Nesta área, a população conseguiu, em geral,
manter o seu sistema produtivo, as suas terras de cultivo e o seu gado. Contudo, como
sublinha o autor, nesta região nos agregados familiares predominam as mulheres, o que
111 Estes movimentos forçados relacionam-se com as deslocações forçadas das populações rurais pa"a centros de pi'!Xecção, por parte
das forças governamentais, situados em geral nas vilas IT1Jniclpais, ou nas sedes comunais.
112 O au1or diz que a aldeia de Tchitwe não ebem uma aldeia, mas sim um agregado de várias aldeias, doninadas pela aldeia de Tchi1we-
Orri!ala. que é o núcleo onde habila o ossoma inene da região.
11a 1 119
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
implicou algumas mudanças na divisão sexual do trabalho familiar, e "women have taken
on responsability for marketing products, a role they did not have in the past" (Pacheco,
2001: 82).
Por sua vez, o caso de Mbenda é diferente dos casos anteriores, pois a aldeia princi-
pal, onde se situa a ombala, é habitada maioritariamente por populações pertencentes ao
grupo etnolinguístico Ngangela. Mbenda foi uma região dominada e ocupada predomi-
nantemente pela UNITA. Em 1987 foi atacada pelas forças governamentais, e a população
teve que fugir para aldeias vizinhas e só regressaria após os acordos de Bicesse. Nesse
processo de fuga, a população de origem Ngangela haveria de se misturar com populações
Ovimbundu, que se refugiaram na região. A aldeia de Mbenda fica afastada das principais
redes comerciais, o que significa que existe aí, segundo Fernando Pacheco, uma enorme
falta de bens de consumo que não sejam directamente produzidos pela agricultura local.
A população dedica-se assim sobretudo à produção alimentar de subsistência.
Tchivembe, também no distrito de Tchicala Tcholohanga, é uma ombala que resulta
de movimentos forçados da população, desde o período colonial, quando aí foi criado
um dos muitos aldeamentos que a administração portuguesa criou no planalto central,
como forma de controlar a população rural, e de a subtrair à influência dos movimentos
independentistas. Durante a guerra Tchivembe sofreu pressões de ambos as partes em
conflito, ora obrigando ao êxodo da população, ora sofrendo represálias e recrutamentos
forçados de ambos os lados. Em 1980 as forças governamentais atacaram a aldeia, e obri-
garam a população a refugiar-se na aldeia de Sambo, que é a sede da comuna. Contudo,
alguns camponeses preferiram refugiarem-se na zona controlada pela UNITA (Pacheco,
2001: 94). Em 1984, a UNITA ocupou a aldeia de Sambo, mas a população foi forçada
pelas forças governamentais a abandonar o lugar e a refugiar-se em Cuando. Ainda nesse
ano o governo atacou e ocupou novamente Sambo, e a população voltou a essa aldeia. Em
1990 a UNITA voltou a atacar Sambo, e a população, uma vez mais, foi forçada a evacuar
para Cuando, tendo regressado novamente a Sambo, em 1991, após os acordos de Bicesse.
Em 1993 a região, agora sob o controlo da UNITA desde 1992, foi atacada pelas forças
governamentais, e a população acabou por se dispersar, refugiando-se nas "matas·: Em
1995, após a assinatura do Protocolo de Lusaka, é que a população se voltou a juntar em
Tchivembe.
A história destes quatro exemplos demonstra bem, por um lado a pluralidade e a
fragmentação empírica com que se deparou a pesquisa enunciada, devido à diversidade
das dinâmicas locais e, sobretudo, devido às diferentes estratégias e interesses político-mi-
litares dos dois beligerantes, arrastando as populações locais nessas dinâmicas, exógenas e
desestruturantes, mas de dimensões e geometrias sócias, económicas e políticas diferentes
de local para local.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO H'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
120 1 121
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
mas das proposta teóricas já avançadas pela literatura, fala do papel de intermediários das
autoridades tradicionais115, ou como estando "half way points between the 'local' and the
'centrar (Guedes, ibidem: idem).
Neste trabalho, e a partir de quatro exemplos recolhidos na província do Huambo, ou
o autor analisa algumas dimensões das relações entre as autoridades angolanas e o Estado.
No primeiro caso, ocorrido em Novembro de 2002, na comuna de Sambo, um homem,
acusado de prática de feitiçaria, foi seviciado pela população local, facto que não resultou
em homicídio devido à intervenção do soma local. Foi caso foi depois apresentado ao
administrador da comuna, sob a acusação de feitiçaria. O administrador decidiu não dar
provimento ao caso. A população e o soma decidiram levar o acusado ao soma inene do
Sambo, Cipriano Kaningi. Este finalmente decidiu "exilar" o acusado para uma comuna
distante, em Chipeio, no município de Ecunha. Analisando o caso numa perspectiva legal,
Marques Guedes avança com a ideia de que o administrador mostrou uma ambivalência
sobre o caso, não o recusando nem o resolvendo, e o que o soma inene mostrou igualmen-
te estar "on the path to internalizing legal hybridism ( ... )"(Guedes, ibidem: 43). No final, a
actuação do administrador resultou "in a curtailing of the rights of circulaHon of the man
accused of witchcraft." (Guedes, ibidem: idem).
O segundo caso apresentado, ocorreu em 1999, na comuna do Mungo, que à época
estava ocupada pela UNITA. O soma, simpatizante do MPLA, fugiu para Luanda, e a
UNITA elegeu três mulheres para ocuparem o lugar vazio do soma. Com o fim da ocupa-
ção pela UNITA, e quando o Estado-MPLA assumiu o controlo do município, o anterior
soma regressou e com a ajuda do governador reassumiu a chefia da ombala e as mulheres
foram destituídas. Segundo Marques Guedes, este caso constituí uma "narrative about
pragmatic power politics in a situation of exceptional need" (Guedes, ibidem: 45), e uma
"desvalorização positivà' "( ... )as a normative fact, by the destitution carried out by the
returning soma" (Guedes, ibidem: idem).
Já no terceiro caso, o autor apresenta-nos uma situação que ocorria no campo de
refugiados de Casseque, perto da cidade do Huambo, na qual o líder do campo era o Co-
ordenador para a Cultura, António Pinho, um elemento do MPLA. Este elemento levava
a cabo as suas funções políticas e jurídicas num modelo híbrido entre tradicionalismo e
"participação popular~ combinando duas modalidades de regulação da ordem jurídica
local, assumindo o papel de soma e, por conseguinte de chefe do tribunal costumeiro, mas
sujeitando a sua decisão final à participação da assembleia, ou seja, imiscuindo um prin-
cípio da participação popular no sistema tradicional de julgamentos. Segundo Marques
Guedes, este modus operandi do coordenador da Cultura, resulta num "jurai and judicial
hybridity" (Guedes, ibidem: idem).
O quarto caso desenrola-se no ano de 2002, na província de Cuando-Cubango. Um
conjunto de sobas, liderados pelo rei Bingo-Bingo apresenta ao governador provincial oito
115 Sobre o papel de intennediários ver por exemplo Rouveroy van Nieuwaal (1996, 1999) e Rouveroy van Nieuwaal and Rijk van Dijk
(1999).
122 I 1n
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM AFRICA
sobas acusados de feitiçaria, pedindo a sua detenção. O governador, alegando que o caso
não se consignava com a lei, recusou a sua detenção. Contudo, o governador decretou
a criação de uma comissão para "julgar" o caso. A comissão julgou e condenou os oito
acusados à pena de morte por pelotão de fuzilamento militar. A execução, que ocorreu
uns meses depois foi pública. Quando o facto se soube no governo central, os membros
da comissão e do pelotão, assim como o governador foram igualmente julgados e detidos.
Segundo Marques Guedes, este caso demonstra bem a ambivalência com que as au-
toridades angolanas lidam com as autoridades tradicionais e com as leis costumeiras. Se-
gundo o autor," From the States angle, the recognition-integration of local power figures ful-
fills two main functions: it allows for an extention of its implantation, even if only in indirect
terms; and generates and gives off dreamy images of a return to national forms of organiza-
tion(... )", por sua vez, para as autoridades tradicionais "such a recognition-integration also
fills various functions, by widening its territory and implantation, augmenting its means for
the exercise of power (... )"(Guedes, ibidem:47).
Nesta abordagem do autor ressaltam talvez dois dos assuntos mais problemáticos da
integração das autoridades tradicionais nos processos de formação do estado em Afri-
ca: o papel ambivalente das autoridades tradicionais e a integração de ordens jurídicas
controversas. No primeiro caso, o sistema de indirect rule, que durante muito tempo era
encarado como uma relação de dominação-subordinação dos estados sobre as autorida-
des tradicionais 116, começa agora a ser encarado como uma relação muito mais complexa
e ambivalente, em que ambos os actores usam as suas capacidades e legitimidades, ora
reforçando-se mútua e estrategicamente, quer em termos de legitimidade quer de fontes
de dominação, ora degladiando-se, pela dominação da relação. Aliás, este ponto é bem su-
blinhado por Marques Guedes ao sublinhar precisamente que "Indirect rule does increase
State capabilities, also at the levei of local recognition (... ). Likewise, mechanisms of indirect
rule do indeed also offer local chiefs a supplement both offorce and legitimacy (... )':e ainda
para consubstanciar a complexidade da relação, "Both State and local social actors have
what are often fairly clear-cut agendas( .. .)"(Guedes, ibidem:57).
O segundo aspecto conduz à temática do pluralismo legal, e das suas consequências,
sobretudo no caso dos estados fracos 117 • Para o caso de Angola, é bastante interessante a
análise que N'Gunu Tiny produz na obra de Marques Guedes e Maria José Lopes.
N'Gunu Tiny neste artigo interessa-se por saber em que medida a actual, e a futura,
Constituição angolana íntegra as autoridades tradicionais no seio do sistema legal ango-
lano. Nesse sentido começa por adiantar que a actual Constituição não faz nenhuma refe-
rência explícita às autoridades tradicionais, e o que o projecto em discussão para a futura
Constituição menciona o direito tradicional, ou costumeiro, como sendo parte integrante
116 Um dos expoentes desta leitura é sem dúvida Trutz voo Tráha que no artigo de 1996, 'From Administrativa to Civil Chieftaincy. Some
Problems 111d Prospec1s of African Chíeftaincy", argumenta precisamente que os estados coloniais esvaziaram as autoridades tradicio-
nais ao ponto de as encapsularem em tarefas rreramente administrativas. Uma possivel crítica a esta postura pode-se encontrar em
Florêncio, 2005 e 2008.
117 Tomando de e!l1ll'éstimo o conceito de weak state de John Migdal.
NO ~EINO DA TOUPEI~A. AUTO~IDAOES T~ADICIONAIS DO M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
do sistema legal angolano (Tiny, 2007: 69). Por outro lado, o projecto da futura Consti-
tuição pretende incorporar as autoridades tradicionais africanas, enquanto elementos que
constituem o denominado "poder local" (Tiny, ibidem: 70}.
Numa discussão mais teórica, e de certo modo legalista mas que se torna relevante no
contexto deste trabalho, este autor defende que existem dois modelos de acomodação 118
das autoridades tradicionais e dos sistemas costumeiros no sistema legal nacional: o mo-
nista, ou de integração; e o dualista, ou de reconhecimento. No primeiro caso, as autori-
dades tradicionais são integradas como parte da administração pública, numa espécie de
sistema de indirect rule 119• No segundo modelo, as autoridades tradicionais são encaradas
enquanto representantes e líderes das suas próprias comunidades. Contudo, em qualquer
dos modelos a relação entre o Estado e as autoridades tradicionais é sempre encarada de
um prisma hierárquico de subordinação dos segundos aos primeiros, isto é, nenhum dos
dois modelos expressa uma verdadeira visão pluralista da relação (Tiny, ibidem: 74}. No
caso angolano, e seguindo a ideia do autor, a relação é hierárquica e vertical e, por conse-
guinte, não se trata de um sistema pluralista, no sentido nem prático nem normativo. Na
verdade o modelo da relação começou por ser do tipo dualista, ainda nos anos de 1980,
e na actualidade é mais do tipo monista (Tiny, ibidem: 77), tentando com isso o Estado
angolano exercer um controlo sobre as autoridades tradicionais e sobre as próprias comu-
nidades120.
Contudo, e como já foi demonstrado por vários autores 121 , esta relação nem sempre
pende a favor do Estado, e a capacidade das autoridades tradicionais manipularem a rela-
ção em seu favor é bastante significativa, variando logicamente de contexto para contexto,
e dependendo também do carisma e da fonte de legitimidade das próprias autoridades
tradicionais, tomadas no sentido singular. Deste modo, e ce-pegando a questão do plura-
lismo jurídico, em muitas situações a autoridade jurídica das autoridades tradicionais, não
só não constitui um complemento de democraticidade ao sistema legal nacional, como
ainda coloca em risco, ou constitui uma ameaça, a esse mesmo sistema nacional, nome-
adamente em todos os assuntos que envolvem feitiçaria, mais concretamente no que diz
respeito aos sistemas punitivos costumeiros.
Esta questão da "supostâ' democraticidade do modelo de pluralismo jurídico encon-
tra-se fortemente relacionada com os actuais processos de formação dos estados africa-
nos, do mesmo modo e em concomitância com o relevo dado às autoridades tradicionais.
Após o indiscutível falhanço do Estado em África, nas décadas de 1970 e 1980122 , a mira-
culosa solução surgiu nos anos 1990 com a introdução das agendas sobre a democracia, a
t24 1 12s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
"the traditional authorities are also themselves suffering (... )a legitimacy crisis. (. . .) Due
to enormous demographic changes associated with the war refugees and urbanization, tra-
ditional authorities's power is waning. Many are also afraid of the consequences of raising
their heads as traditional authorities, dueto previous alliances with UNITA during the war
"(Orre, ibidem: 191).
123 Apesar das profundas a~erações constitucionais de 1992, no caso angolano ainda é perfeitamente plausivel a apicação em termos
pragmaticos e de agenciaidade da noção de Partido-Estado.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
"O caso da contenda, em alguns pontos do País, entre os coordenadores dos Comités de
Bairro e os sobas é clarividente nos nossos dias de pós-independência. Reconhece-se que,
durante a luta contra a ocupação colonial, as Autoridades Tradicionais desempenharam
um papel activo e positivo, colaborando com as forças nacionalistas. Mas proclamada a
independência e projectada a reconstrução nacional as chefias tradicionais não foram re-
conhecidas e tidas em conta para a administração local, sendo substituídas pelos Coorde-
nadores dos Comités de Bairro, muitas vezes desconhecidos ou estranhos da colectivida-
de, que a ninguém representavam, mas a quem, por medo deviam obedecer" (Dialamikua,
1996: 3)
12, 1 121
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
Por este relatório pode depreender-se que para os autores as autoridades tradicio-
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDAOU TRADICIONAIS 00 M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
nais, assim como as autarquias, fariam parte desse poder local, a ser institucionalizado ao
nível das comunas e das povoações. No entanto, o plano estratégico é bastante ambíguo,
ou pelo menos bastante impreciso, na definição do que seria o "poder local autárquico
e tradicional': Muito mais preciso é o texto de Carlos Feijó, produzido ainda em 2000.
Nesse texto o autor precisa o que entende por poder local, diferenciando as relações entre
o Estado, as autarquias e as autoridades tradicionais.
Essencialmente centrado sobre as questões da descentralização, neste texto de Carlos
Feijó interessa preferencialmente retirar a noção de poder local, pois ela virá a influenciar
alguma da produção legislativa consequente, até pelo papel do autor nessa mesma pro-
dução. Desde logo, o autor refere que o poder local se encontra relacionado com a auto-
determinação, e que ele deve ser constituído por órgãos representativos das populações, e
que o poder local se diferencia da descentralização administrativa, por exemplo,
"( ... ) o poder local não é operacionalizado por qualquer descentralização territorial. ~
necessário que a descentralização administrativa seja encarada no plano jurídico e pollti-
co, isto é, não é, pelo facto de, por exemplo, existirem autarquias locais, no plano jurídico,
que se deve aferir a existência de um verdadeiro poder local. E. necessário, ainda, apurar
se no plano político, os órgões das autarquias locais são, livremente, eleitos pela população
locais" (Feijó, 2000: 3).
"deve ser definido como aquele poder político originário ou derivado exercido, nos termos
da lei, a nível das comunidades locais através de órgãos descentralizados, de instituições
organizatórias tradicionais e de outras formas de participação democrática das população
visando a satisfação dos seus interesses próprios" (Feijó, 2000: 3).
Carlos Feijó apresenta assim uma visão autonómica do poder local, englobando nele
as autarquias, as autoridades tradicionais e outras organizações de base, como as comis-
sões de moradores, por exemplo (Feijó, 2000: 4). Neste contexto, a visão do autor poderia
definir-se mais no sentido de uma integração dualista das autoridades tradicionais, pois
o próprio autor define este tipo de poder local como "anterior do Estado ou até mesmo
desenvolver-se fora dele': e ainda de que esta instituição deveria ter um reconhecimento
constitucional, mas, segundo o autor, " trata-se de apenas de reconhecimento de uma
realidade pré e extra-estadual( ... )"(Feijó, 2000: 4).
Ainda com a guerra a decorrer, a FONGA' 26 realiza em 2001 duas importantes inicia-
tivas, o Workshop de Reflexão sobre o Papel das Autoridades Tradicionais na Construção
da Paz em Angola, entre o dia 8 e lO de Agosto; e o Encontro "A Autoridade Tradicional
em Angola: Estudo Analítico e Avaliativo da Crise em Angola", entre os dias lO e l3 de
Setembro. No primeiro caso, o workshop tinha como objectivos:
121 1 12,
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
"( ... ) criar um espaço apropriado para o verdadeiro exercício do poder tradicional, na
busca definitiva em Angola, a) informando os participantes em particular e a sociedade
em geral, sobre o estado actual do exercício do poder tradicional( .. . ) b) Buscando conhe-
cimentos e experiências dos mais velhos em termo de mecanismos apropriados para facili-
tar a busca de paz em Angola com contributo do poder tradicional- c) Criando condições
para a elaboração de uma proposta lei de base sobre o poder tradicional em Angola - d)
Formulando um plano/agenda para a paz em Angola:' (FONGA, 2001: 1-2).
"1 o Criação de um espaço jurídico das autoridades tradicionais angolanas para a defesa
dos interesses
1.1 A criação de uma comissão das autoridades tradicionais para a mediação do con-
flito angolano;
1.2 A realização de encontros das autoridades tradicionais angolanas com sua Exce-
lência presidente da república, o Eng. o José Eduardo dos Santos e com o líder da
UNITA, o DR Jonas Malheiro Savimbi;
1.3 A promoção de uma agenda de encontros entre as autoridades tradicionais ango-
lanas com as autoridades tradicionais de outros países para troca de experiência.
2° Recomendações
2.1 Ao governo angolano a criação de duas câmaras parlamentares a dos deputados
eleitos e as do poder das autoridades tradicionais;
2.2 Ao governo angolano de promover o diálogo entre as partes em conflitos, o cessar-
fogo imediato e a participação das autoridades tradicionais angolanas na resolu-
ção do conflito;
2.3 Que o poder tradicional abrange no orçamento de estado;
2.4 Ao governo angolano não vender as terras para outros fins que sejam;
2.5 Ao governo angolano criar um quadro legislativo para as autoridades tradicionais;
2.6 Que sejam envolvidas ou/e consultadas as autoridades tradicionais locais na ex-
ploração dos recursos naturais;
2.7 O governo angolano garante a justiça social em Angolana e sobretudo a restrição
da dignidade humana através do reassentamento populacional nas áreas de ori-
gem." (FONGA, 2001: 2).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO H'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
"necessidade de criar mecanismos que permitam que a Autoridade Tradicional tenha uma
acção complementar ao Estado Democrático e de Direito, com um único objectivo, um
melhor enquadramento das populações para uma harmonia sã e permitir a consolidação
da unidade nacional. Neste contexto, a Autoridade Tradicional pode e deve ajudar a ac-
ção governativa do Estado pelo que necessita do apoio moral das autoridades modernasn
(MAT, 2002).
13o 1 131
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
Apesar do clima de aliança que pareceu marcar este encontro, contudo a leitura deste
documento revela que o MATe as autoridades tradicionais não parecem partilhar o mes-
mo modelo relacional, pois o primeiro aponta para um modelo de integração essencial-
mente monista, como se esclareceu anteriormente, e as autoridades tradicionais parecem
reclamar um modelo de integração mais dualista.
O processo iniciado, ainda em 2001, de preparação deste encontro nacional, permitiu
ao MAT recensear uma vastidão de autoridades tradicionais em todo o território. Por
exemplo só na província do Huambo o MAT recenseou 85 sobas grandes, 333 sobas e
2.452 sékulus. No total nacional foram recenseados 15 reis e rainhas, 1.973 sobas grandes,
11.574 sobas, 18.653 sékulos 128,
Em 2003, e ainda da iniciativa do MAT, elaborou-se um relatório sobre a desconcen-
tração e descentralização (MAT, 2003). Neste documento, defende-se logo no inicio que
o processo originado pela implementação do Decreto-lei 17/99 fomentou a criação e con-
solidação das administrações provinciais mas que não foi mais além, e, há época da ela-
boração do documento, ainda não se tinham consolidado as administrações municipais,
128 MAT, 'Mapa de Controlo Estatístico do Poder Tradicionar. de 30.06.2004. De referir que no caso da provincia do Huambo não é referido
neste documento nenhum rei, deste modo parece que, pelo menos em 2004 o Estado ainda não reconhecia o actual rei do Bailundo,
Ekuikui IV, nessa categoria.
NO "EINO DA 'I'OUI"EikA. AUTOIUDADES TII.ADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
e muito menos ainda as comunais (MAT, 2003: ii). Neste domínio, o documento salienta
que as comunas, que estavam inscritas na Lei Constitucional de 1975, foram abolidas em
1989, Decreto-Lei 21/88, e reintegradas em 1999, pelo Decreto-Lei 17/99. E que os bairros
e povoações, ou seja, as categorias administrativas inferiores às comunas nunca foram
objecto de enquadramento institucional (MAT, 2003: 9). Nalgumas províncias criou-se a
figura do administrador de sector ou de bairro, precisamente para preencher essa lacuna
da organização administrativa territorial.
Nesse mesmo relatório reforça-se a ideia, já anteriormente exposta, de que o poder
local é o conjunto integrado pelas autarquias locais, instituições do poder tradicional e a
sociedade civil (MAT, 2003: iv), e que o poder tradicional, "é um poder político anterior
ao poder de Estado, com suporte na religião, na organização social e no parentesco, não
reconhecido no plano jurídico e constitucional" (MAT, 2003: v). Ao nível das funções,
defende-se que as funções das autoridades tradicionais devem ser :
"( ... ) nos domínios de gestão de terras comunitárias e participação na definição dos direi-
tos de posse ou ocupação, uso e fruição sobre os terrenos rurais comunitários; abertura e
manutenção de vias de acesso aos terrenos vicinais; recenseamento da população; registo
de nascimento e falecimento; educação para a saúde e cuidados primários de saúde; alfa-
betização; ordenamento do território ( ... );construção e manutenção de infra-estruturas
sociais; execução de programas de auto-construção; preservação de floresta e fauna bravia;
conservação do património físico e cultural; organização de produção agro-pecuária; ex-
ploração de recursos naturais; lenha; reassentamento da população; cobrança de taxas e
impostos; organização dos mercados locais" (MAT, 2003: v)
Realce-se que estas funções já estavam quase todas elas consignadas na RAU e nas
atribuições das autoridades tradicionais para o Estado colonial. Também se deve salientar
que o relatório não defende nenhum papel das autoridades tradicionais no capítulo jurídi-
co. Além disso, o documento reconhece que em muitas partes do território, precisamente
pela ausência de escalões administrativos inferiores às comunas, e pela ausência de ad-
ministradores de sector ou bairro, do ponto de vista informal as autoridades tradicionais
já asseguravam a actividade administrativa, exercendo mesmo algumas destas funções
(MAT, 2003: 9).
Num outro sentido, o relatório adianta que o "poder tradicional" foi homogeneizado
ao nível nacional, existindo actualmente três escalões, o de soba grande, soba e sekulu,
divisão essa que, no entanto, já prevalecia no período colonial, e que estava enquadrada
pela RAU, em 1933. E que o actual Estado paga subsídios a cerca de 37.930 autoridades
tradicionais (MAT, 2003:9). Neste aspecto este relatório parece algo contraditório, pelo
menos se tomarmos como referência outros documentos produzidos pelo próprio MAT,
pois este relatório contém um quadro (Quadro 8.1., pp.46) com o número e distribuição
por província das autoridades tradicionais que recebem subsídio do Estado, e no caso
da província do Huambo são referenciados 5 reis, ou seja 5 soma inene. Contudo, num
132 1 133
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
relatório de 2004, também elaborado pela MAT, não surge referenciado nenhum rei para
a província do Huambo. 129
Este modo de captação das autoridades tradicionais e sua integração no processo de
formação do Estado local angolano provocou contudo algumas reacções nos círculos ex-
ternos ao próprio MAT. Por exemplo, uma das vozes críticas do processo foi a de Concei-
ção Neto, que em várias comunicações, incluindo no próprio 1o Encontro, chamou a aten-
ção para várias questões importantes (Neto, 2002a e 200b). Sobretudo para a pluralidade
de situações e de contextos histórico-sociológicos angolanos, facto esse que obriga a um
relativizar constante, segundo a autora, do próprio conceito de autoridades tradicionais.
Essa história diferente e diferenciada coloca hoje problemas de legitimidade e inserção
local, como de resto já se tinha sublinhado anteriormente. Por outro lado, a influência do
regime colonial nestas instituições, e em certos casos de outros actores sociais, como as
igrejas, e que conduziram a mudanças significativas nas estruturas, fontes de legitimidade
e de poder, e de funções, leva a que a autora se insurja contra a perspectiva do "regresso':
ou do "restauro" das autoridades tradicionais': e interrogue sobre "que regresso?" e que
"autoridades tradicionais?" e que "funções?" (Neto, 2002a:8).
-0-
SECTORES
-0-
OMBALAS
-0-
KIMBUS/ALDEIAS
130 Em 2004, quando estes dados foram recollidos no governo municipal, segundo a informação da adrrinistradora municipal, Dona Bea·
triz, as povoações estavam todas desb'u idas ou ainda desabitadas (in entrevista EBai2004-1, de 19/0812004).
131 Entrevista com o administrador da comuna. sr. Joaquim Jarma, na aldeia de Lunge, sede da comuna, em 01/0912004.
132 Segundo dados recolhidos na entrevista com a administradora do municipio, Dona Beatriz, em 19108/2004; EBai2004-1.
11.o~ 1 11s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFIUCA
1331dem.
NO 1\EINO DA TOUPEII\A. AUTOI\IDADES TI\AOICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
134 Entrevista com o IJice.Administrador da comuna de luvemba, sr. Craveiro Lopes. Sede da comuna, vila de São Miguel, em 31/0812004.
136 1 137
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
"bem, nas aldeias há sekulu pequeno porque há ajudante que ajudam o sekulu grande da-
quela aldeia, e esse ajudante é o sekulu pequeno. Sekulu grande é sekulu inene, o tal que
manda na aldeia, e sekulo pequeno é sekulu vitito. O tal ajudante só na ausência do sekulu
inene é que pode resolver problema. As aldeias agora estão divididas em zonas, bairros,
por causa do trabalho do partido [MPLA) e do governo. Nessas zonas está o sekulu e o
ajudante, e o catequista, da igreja católica, protestante, qualquer catequista. Este catequista
também está no conselho da aldeia" (in EBai2004-6)
Deste modo, afigura-se que na organização das aldeias, pelo menos a este nível, con-
correm diferente actores sociais locais, desde autoridades tradicionais (sekulu), autorida-
des partidárias (secretário do comité de acção), e religiosas (catequista), cada qual com
a sua estrutura de legitimidade e de poder político, e que em grande medida concorrem
para o controlo da população. Mesmo não existindo conflitos abertos, existe uma enor-
me sobreposição de funções entre estes actores sociais locais, nomeadamente entre os
secretários e os o/assoma e olossékulu, assim como divisões de tratamento, sobretudo ao
nível remunerativo, pois as autoridades tradicionais do M'Balundu recebem um subsidio
mensal, que foi definido ao nível nacional pelo MAT, enquanto os secretários de sector e
de aldeia não recebem qualquer tipo de remuneração nem subsídio.
Um outro tipo de confusão conceptual, que não é recente mas que advém já desde
o período colonial e que se perpétua, é a dos títulos. Por exemplo, o título de inene, que
como já se referiu em Umbumdu significa "grande~ pelo menos na actualidade acaba mui-
tas vezes por ser entendido num ponto de vista relativo e não num sentido substantivo.
Deste modo, o rei, que é considerado o ossoma o/assoma, literalmente "o soma dos somas~
é o ossoma inene para o conjunto da ofeka, reino, assim como os olossoma que se encon-
tram no escalão inferior ao rei são assoma inene para os seus subordinados, como salienta
o senhor Jino Kaiangula, actual assoma da ombala de Chijamba, na comuna de Luvemba,
"soma inene é soba grande, constitui o soba que é coordenador de todas as ombalas que
constituem a comuna. A comuna tem dezassete ombalas, mas essas dezassete ombalas que
representa como chefe de todas as ombalas. (... )esta ombala [Chijamba] é a ombala co-
ordenadora de todas as ombalas que constituem a comuna. (.. .) Soba é o regedor das
ombalas" (in EBai2004-4).
De igual modo, se diz que o sékulo do kimbu, da aldeia, é sékulo inene para todos os
membros do kimbu, como se pode constatar do depoimento anterior de Adolfo Chitoma.
Esta confusão semântica, prende-se com o facto de a Administração colonial ter in-
troduzido outras designações, que equivalem e substituem, ainda hoje, a de assoma, tais
como as de soba, ou mesmo a de regedor, como se constata do depoimento anterior. No
entanto, de modo algum se pode afirmar que a confusão semântica expresse alguma for-
ma de ambiguidade das práticas, uma vez que o reino contínua, apesar de tudo, a ter uma
estrutura de poder fortemente centralizada na figura do soberano, do assoma inene, do
NO 1\EINO DA TOUPEIIIA. AUTOIIIDAóE5 TIIADICIONAI$ 00 M'IALUNDU li O ESTADO ANGOLANO
"Nós cumprimos todos a lei do Katchiopololo, que é a nossa. Eu sou menor dele. Sou
grande aqui na comuna mas quanto ao munidpio quem manda é o mais velho. Nós, todos
problemas que passa aqui na comuna temos que ir cumprir ou buscar ao rei. Ele é que nos
manda, todos os sobas do munidpio, as quatro comunas, cumprimos ao rei. Então temos
que deixar tudo o que nos falta. Então temos que ir a ele puxar o que devemos trabalhar
aqui nas comunas"(in EBai2004-6).
"quando morrer, a própria população, nesse dia mesmo, reúne e escolhe esse que vai traba-
lhar com a população. Pode ser membro da famflia [do falecido), pode, depende do juizo.
Aquele que está a trabalhar já está também de olho naquele que servir naquele trabalho.
Não importa se é um filho ou quê, o que interessa mais à população é aquele tratar bem
ao povo. Também quem escolhe o sekulu vitito é a população. A partir de mesmo nós
[olossoma], sem povo, sem ser escolhido pela população não pode servir pessoas. Não. O
soba sozinho não pode destituir o sekulu, só o povo é que pede para o sekulu vir no soba
e queixar-se, só assim. O soba não pode escolher um sekulu, só a população. Quando for
escolhido o sekulu o soba tem que estar de acordo, porque quando o povo decidir o soba já
não pode negar, ele tem que cumprir o que fez o povo. O soba só pode educar como é que
ele [sékulu] vai trabalhar com a população. Mesmo no tempo dos portugueses era assim.
Mesmo quando morre um soba é logo escolhido outro soba antes do enterro dele, o outro
soba tem que estar já presente, e quem escolhe é a população" (in EBai2004-6)
Num certo sentido, este discurso é bem elucidativo e pode perfeitamente integrar-se
no debate, quer angolano quer africano, sobre a natureza do poder tradicional e da sua
incompatibilidade com a modernidade e a democracia. Na aparência este discurso já in-
tegra os discursos sobre a democracia e a "vontade popular~ contudo, uma análise mais
profunda sobre o poder tradicional, entendido numa perspectiva histórica, detecta per-
feitamente que não se trata apenas de uma abusiva introdução de elementos discursivas
novos. Na verdade, o poder tradicional, e o caso do reino do M'Balundu é exemplificativo,
apesar da sua centralização e hierarquização, e da sucessão hereditária, sempre inscreveu
no seu sistema de politicai accountability uma componente fundamental de participação
dos súbditos, que aprovam ou rejeitam, em última instância os detentores dos diversos
cargos políticos da estrutura, incluindo mesmo o cargo de ossoma inene. Obviamente, se-
13a 1 139
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
ria profundamente romântico e abusivo defender que se trata de uma democracia, mesmo
utilizando conceitos anacrónicos como "democracia primitivà', por exemplo. Mas, não
deixa de ser verdade que não se trata de uma autocracia "pura e durà: como muitos au-
tores defendem. Não é um poder democrático, mas contém aspectos de, e por isso não é
nem adverso nem incompatível.
Depois deste quase parêntesis, retomando a questão da relação entre a estrutura orga-
nizacional municipal e a tradicional, pode dizer-se que, por outro lado, a consignação das
autoridades tradicionais à divisão administrativa, e sobretudo ao nível comunal, prática
também introduzida pela Administração comunal, e a designação de um olossoma mais
importante na comuna, reproduz um desequilíbrio fictício entre os diversos o/assomam.
Por exemplo a ombala de Chijamba é considerada a mais importante da comuna
de Luvemba, e o assoma Jino Kaiangula considera-se assoma inene da comuna, contu-
do, como se depreende pelo depoimento do próprio vice-administrador comunal (in
EBai2004-3), a comuna tem três olossoma grandes, Chijamba, Janjo e Chiculupungu, sem
que, aparentemente e formalmente exista qualquer hierarquia entre eles, como em parte
também reconhece o próprio assoma de Chijamba, quando refere que "( ... ) sim, sim, o
caso da ombala Janjo e da ombala Chiculupungu, são ombalas com o mesmo número de
aldeias. Sim sim, são olossoma inene, são sobas grandes, são coordenadores de algumas
ombalas, mas dependem daqui [ombala Chijamba]:' (in EBai2004-4).
Esta concepção hierárquica entre os olossoma da mesma comuna é igualmente parti-
lhada pelos membros da ombala de Janjo, uma vez que o ossoma Manuel Savilinga se con-
sidera dependente do ossoma Jino Kaiangula. No entanto, e contrariamente ao referido
anteriormente, em 2004 o próprio assoma de }anjo não se considerava um assoma inene,
pois não tinha mais nenhum assoma sob as suas ordens. Tinha várias aldeias, mas nenhu-
ma ombala subordinada. Como refere um elemento do seu elengoB6,
"ele [o assoma de Janjo) agora não tem ombalas, não tem. Tem aldeias. E presta contas ao
soma Kaiangula. São assuntos que ele leva lá. Os assuntos que acontecem nas aldeias ele
vai expor lá no soba maior. O soba grande dá-lhe instruções para ele poder cumprir aqui
na região. ( ...) E o sobamaior pode até destituí-lo, sim, lá no Kaiangula vão ver as virtudes
dele. Se a chuva chove, muito bem, se há comida, muito bem. Se não chove, se não há co-
mida, então vão ver porquê. Se o reinado dele não estiver bem, a própria população vai ao
soba grande, este depois faz reunião e ele pode ser substituído" (in EBai2004-7).
Este facto devia-se à própria dinâmica da guerra civil, pois a região de }anjo foi muito
desestruturada pelo conflito, e houve uma grande dispersão das populações. Em 2004 as
populações ainda estavam a reconstruir aldeias, e, por isso mesmo, a estrutura tradicional
135 Era bastante comum a administração colonial eleger o assoma cuja omba/a estava mais perto da sede da comma como uma espécie
de ossoma dos obssoma da COITllna, para assim melhor implementar o sistema de indirect rule, prática essa que as actuais adminis-
lrações l1llfliciplis vêm seguindo igualmente (cf. Pacheco. 2001). Sobre esta prática em !AoçarOOique cf. Florêncio. 2005, 2003.
136 Esta entrevista que decorreu na ombala de Janjo. e na presença do assoma, foi no entanto conduzida com elementos do elengo, que
também estavam presentes, pois o sr. Manuel Saviinga não apresentava condiçOes psicológicas para responder.
NO II.EINO DA TOUPEIII.A. AUTOII.IDADES TII.ADICIONAIS DO M'BALUNDU E 0 ESTADO ANGOLANO
"O trabalho dos sobas não diminuiu, ainda aumentou. Neste momento o que está di-
minuindo para os sobas era o peso de serem castigados. E o trabalho do imposto e dos
contratos. Hoje não paga imposto, nem tem contratos. Mas o trabalho aumentou-se por
causa da guerra no nosso país. Havia refugiados nas zonas e o trabalho aumentou por-
que assim estão a regressar [em 2004), quem tem o poder de receber esta gente, para
onde ele vai construir, para onde vai abrir a sua lavra, tem que ser os sobas e os sekulos."
(in EBai2004-8}
De entre as funções que na actualidade mais impacto têm na vida das populações
destaca-se, desde logo, a função jurídica e de manutenção da ordem, uma vez que o mu-
nicípio ainda não tem a estrutura judiciária e judicial a funcionar na plenitude, como
14o 1 141
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
sublinha o Procurador municipal, Gabriel Caála (in EBai2007-5). Neste caso, existe um
juiz municipal mas o tribunal ainda não funciona, por falta de mais juízes. Também a PIC
(Polícia de Investigação Criminal) só existe na sede do município, na vila do Bailundo,
sendo que nas comunas só existe mesmo o corpo regular de Polícia. Ao nível comunal
também só existe a Procuradoria na sede, tendo o Procurador que se deslocar às sedes de
comuna sempre que é solicitado. Uma vez que existem mesmo municípios que não têm
Procurador, como no caso do Mungo e Cunduimbai, é o Procurador do Bailundo que
tem que se deslocar a estes sítios. Contudo, e ainda segundo o Procurador do Bailundo, a
Procuradoria tem imensas dificuldades e problemas com transportes, e por essa razão é a
polícia desses municípios quem traz os casos ao Bailundo para aí serem julgados.
Deste modo, e tomando como exemplo o caso da comuna de Luvemba, as autoridades
tradicionais acabam por desempenhar um papel jurídico fundamental, sobretudo ao nível
comunal, estando, tal como no passado colonial, autorizadas a resolver pequenos casos
nos seus tribunais de ecanga, tais como adultérios, pequenos furtos, feitiçaria, etc. Outro
tipo de crimes, como violações, crimes de sangue, como agressões violentas e homicídios,
devem ser encaminhados para a administração comunal, que, por sua vez reencaminha
para a polícia comunal. Como ao nível comunal não existe Procuradoria, a polícia comu-
nal reenvia o caso para o Procurador municipal. (EBai2004-3).
Esta separação de competências juridicas entre a Procuradoria e as autoridades tradi-
cionais não é muito clara, e o próprio procurador assume que muitas vezes as autoridades
tradicionais exacerbam as suas competências, julgando crimes de homicídio, ou outras
ofensas de sangue, sem sequer participarem à polícia comunal. Estes casos de homicídio
não-participados em geral estão relacionados com acusações de feitiçaria, como sublinha
o epalanga da ombala de Chilumbe, " Agora matar pessoa vai na polícia, matar assim de
facada, se for de feitiçaria fica mesmo no soba" (in Ebai2007-06). Uma vez tomado conhe-
cimento destas situações, a Procuradoria intervêm e pode processar o ossoma responsável.
Mas esta medida correctiva é mais formal que real, pois na prática isso ainda não sucedeu
com nenhuma autoridade tradicional do Bailundo.
No entanto, e na generalidade dos casos, os olossoma respeitam as suas competências
e limites, e enviam para a polícia comunal os casos mais graves, que por sua vez os enca-
minha para a PIC e para a Procuradoria. Também existem situações inversas, em que a
própria Procuradoria municipal encaminha determinados casos para as autoridades tra-
dicionais (in EBai2007-5).
Os casos de feitiçaria continuam a constituir a grande maioria das acusações apresen-
tadas nos tribunais das autoridades tradicionais, e só podem mesmo ser resolvidos com
recurso ao processo de julgamento tradicional, que envolve uma complexa teia de proces-
sos, desde a adivinhação e consulta a oráculos, à utilização de ordálios.
Sobre a feitiçaria, ou mais concretamente sobre o oculto em África, existe é claro todo
um conjunto de concepções, e de narrativas, que não fazem parte do âmbito deste traba-
lho, contudo importa aqui sobretudo falar na relação entre as autoridades tradicionais e
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TilADICIONAIS DO M'IALUNDU E O &STADO ANGOLANO
as poderosas forças do oculto 137 • O soberano é sempre entendido como um poderoso re-
gulador da ordem, daí as suas funções jurídicas e legislativas, mas também urn regulador
do universo mágico-religioso e um intermediário com os espíritos dos seus antecessores,
nomeadamente do falecidos soberanos. Acredita-se, assim, que o soberano é possuidor,
por essa intermediação, de capacidades específicas de usar as forças do oculto, quer em
seu proveito próprio quer da própria sociedade. Nesse sentido, a sua ambiguidade joga
igualmente nessa espécie de liminariedade entre ser um fazedor de ordem e um fazedor
de desordem. Pode ser mesmo um poderoso onganga, feiticeiro, ou de tal ser acusado e
temido, como diz o ossoma Jino Kaiangula.
"o soma nunca pode ser um quimbandeiro 138, ( ••• )Antigamente os sobas tinham os seus
quimbandeiros fixos nas ombalas, mas agora isso já não se verifica. Os quimbandeiros
existem, estão nas aldeias e ainda praticam, mas nas ombalas já não. Mas agora o soba
pode ser acusado de feitiçaria, se for acusado pela população era encaminhado ao soba
grande para ser julgado. [... ] se for acusado ele é julgado pelos seus componentes que
constitui a ombala [elengoJ. O mwekalia convoca os outros e esses é que são de direito
de julgar o soba. Se a acusação é concreta então é substituído. Isso nunca aconteceu aqui.
Se alguém quiser enfeitiçar o soba isso não acusa [não resulta]. O ser soba mesmo é que
impede que chegue o feitiço" (in EBai2004-4)
Ou, como defende o ossoma Adolfo Chitoma, no passado os olossoma tinham poderes
mágicos, pois "os sobas podem ter feitiço, sim. Nos tempos passados acontecia isso, o soba
dizia mesmo 'você sai dai, senão acontecia mesmo qualquer coisa': Esse poder mágico
era uma imanência dos espíritos dos antepassados, como diz o próprio ossoma, "antiga-
mente acontecia isso, sim, vinha dos antepassados': Mas, na actualidade as autoridades
tradicionais foram perdendo essa capacidade mágica, e "hoje não, hoje não. Hoje o soba
é enfeitiçado também. Antigamente metia medo quando via o sobà' (in EBai2004-6) 139 •
No caso de uma acusação de feitiçaria sobre uma "pessoa comum~ o processo de-
corre segundo um modelo que mantêm muitos dos traços do passado, e que se mante-
ve quer na época colonial quer actualmente. Em primeiro lugar, a pessoa que se julga
"enfeitiçadà: ou um familiar desta, apresenta o caso na sua autoridade tradicional. Esta
designa um quimbandeiro que irá proceder à adivinhação do infortúnio. Os processos
de adivinhação são múltiplos, como relata o quimbandeiro Fernando Adonho Mbonga,
segundo o qual "Uns adivinham pelo espelho, mete o espelho e adivinha pelo espelho,
no espelho pode surgir a pessoa que está a enfeitiçar, o feiticeiro. Outros é pela caneca,
137 Nao se pretende aqui inlroduzir nenhuma discussão. nem sobre a diferença entre feitiçaria (son:ery) e bruxaia (l!oitchcrall). nem sobre a
própria noção de oculto. Usa-se aqui o termo oculto para designar todas as brças espirituais, em geral espirilcs, farrilia'es ou nAo, e sua
capacidade de inteMr na vida dos humanos, seja uma intervançlo protectora ou nAo. (sobre esse tema existe uma vasta bibWografia,
desde o clássico de Evélls-Pritchard, aos mais recentes trabalhos de Peter Geshlere, Harry West, Alcinda Honwana, etc.,)
138 O mesmo que ocimbanda.
139 No passado, ou na actuaWdade, as autoridades tradicionais, nomeadamente o ossoma Íllfll'lfl e os oloGsoma, rodeiam-se de poderosos
quimbandeiros, que os protegem contra as forças maléficas, e 'ajudam' nos processos de adivinhaçio em tribunal.
1-42 1 1-43
VOUS DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
na água que está dentro da caneca vê a doença, ou quem está a provocar a doença" 140
(in EBai2004-10).
"tem métodos tradicionais para resolver esses casos. Utilizávamos galinhas, tem os seus
métodos. Caso o acusado seja utente do que é acusado [seja feiticeiro] então o indicado
animal sofreria algo. Esses casos eram resolvidos a partir dos quimbandeiros. Quem man-
da ir no quimbandeiro é o soba. [antigamente] utilizava-se um medicamento tradicional,
o umbulungu. A pessoa que fosse acusada tomando aquele medicamento se fosse mesmo
feiticeiro morria. Hoje não, onde se faz é mais na ombala grande, na ombala M'Balundu.
[... ]os portugueses não proibiram isso, porque eram práticas tradicionais nossas que en-
contraram. [... ] Quando há um caso, o acusado vai ao soba, depois é que vai ao quimban-
da que pratica esses actos" (in EBai2004-4}
"no caso de feitiço, aquela pessoa [o acusador] não tem provas concretas porque é uma
coisa invisível, não dá para acusar assim directamente, não se pode indicar que fulano tem
tal feitiço. Então é preciso chamar o quimbanda, é ele que conhece a matéria de feitiço, ele
sabe muito bem quem tem. Aquele que enfeitiçou também sabe muito bem que aquela
pessoa que está doente tem feitiço. Esse que enfeitiçou tem que arranjar medicamento que
é para curar o outro.( ...) Sim, aqui existe umbulungu, quem faz é o quimbanda. Quando
a pessoa morrer é porque é feiticeiro sim~ (in EBai2004-7).
Sobre o uso do umbulungu, que como se disse é um ordálio de veneno, existe uma
profunda ambiguidade. Muitos defende que o umbulungu que se usava no período pré-
colonial já não é usado directamente nos seres humanos, mas sim em animais, como por
exemplo nas galinhas, numa espécie de processo de transferência ou da utilização de um
"bode expiatório" que expie as penas humanas, como defende o assoma de Chilume, se-
gundo o qual "Antigamente havia [de matar], mas agora viraram e já não há mais esse um-
bulungu de tomar [veneno]. Do tempo colonial para cá já não. Tem mais outro umbulungu
que não é de tomar" (in EBai2007 -06). O mesmo afirma o assoma de Chilala,
140 Estes métodos servem vérios propósitos, quer para adivinhar o tipo de infortúnio, ou de doença, quer para adivinhar o causador, se
pessoa, feiOOeiro, ou se algum espirita.
141 O umbu~ngu é um veneno feito a partir da casca de uma álvore, e o processo é conhecido apenas por certos experts, tais como alguns
os quimbandeiros locais de renome.
NO REINO DA TOUP'EIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
"Hoje no umbulungu eles apanham galinha, ou então um salalé, aqueles mesmo da mata.
Então fazem a experiência aí, fazem isso em nome de um [acusado], depois esperam o
resultado, depois fazem em nome do outro, esperam resultado. Lá onde houver problemas
e fizerem na minha vez e houver sinais então significa que eu sou culpado. Mas se não hou-
verem sinais significa que está ileso. A experiência faz-se assim. No passado era mesmo
de beber e humanamente vitimava pessoas. Mesmo se ele era feiticeiro, mas depois disso
ele morre. Mas agoram viram que não e é só experimentar numa coisa e depois os sinais
aparecem, em vez de dar numa pessoa para depois morrer. Pode dar-se numa galinha, ou
numa outra coisa, depois os sinais vêm e vê-se que o fulano é feiticeiro, e não dá no próprio
indivíduo porque depois morre." (in EBai2007-08}
No entanto, um pouco mais adiante o senhor Mário Jorge Calesse não deixa de su-
blinhar que,
"( ... ) no tempo dos portugueses era mesmo de fazer experiências nas galinhas e outras
coisas, mas nesse tempo de guerra de agora, como normalmente é que havia mais intensi-
dade de feitiçaria é que se aplicava directamente nas pessoas. Agora regressou-se ao pas-
sado, já não se pode aplicar nas, tem que ser nas galinhas. Nesse tempo de guerra na havia
uma acalmia que as pessoas pudessem trabalhar num único sitio, então era lá mesmo onde
houvera esse problema de feitiçaria, então aplicava lá mesmo" (in EBai2007-08}
Outros informantes apontam para a sua realização, secreta, sobretudo na ombala real
do M'Balundu. Contudo, por estes dois depoimentos pode perceber-se que a prática do
umbulungu em seres humanos acusados de feitiçaria, apesar de muito rara e esporádica,
ainda pode acontecer em certos casos. A ser inteiramente verdade, tal constituí uma óbvia
inconstitucionalidade, pois na prática a administração de um veneno num ser humano
corresponde a uma quase sentença de morte, ou semi-sentença, e a prova de que adis-
cussão sobre as virtualidades do pluralismo jurídico afigura-se, nas práticas, muito mais
complexa e difícil, do que na teorização.
Deste modo, pode dizer-se que é no que respeita à tipologia de penas que estes tri-
bunais podem aplicar, que a situação é ainda bastante confusa, e mesmo controversa, até
porque as autoridades tradicionais alegam e reclamam da "tradição" para aplicarem essas
penas, ou até, como se viu anteriormente, dos ordálios de feitiçaria, o umbulungu. Como
por exemplo, defende o ossoma de Lunge.
"Quem matar, é matar também. Ou então, se ele tiver famflia forte entrega pessoa vivo e
uns tantos cabeças de gado para pagar a vida do outro. E essa pessoa que vai ser entregue é
logo cravado aíH2. Feiticeiro é diferente, depende. Os velhos fazem prova própria. Depois,
se a pessoa for mesmo verdade feiticeiro era queimado ou botado na água. Afogado, é. Essa
prova é o umbulungu. Quem sabe mesmo fazer é o quimbandeiro. O quimbandeiro é que
faz a prova própria, e todo o mundo está aí a ver se é mesmo o próprio. Se ele ficar aí e per-
142 No período anterior à dominação colonial os castigos por homicídio em geral resultavam na empalação do culpado.
144 1 14s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
der a razão então ele é amarrado e metido na água. Ou arranjar lenha, ele fica ali sentado
e queimá-lo. Mas é problema, se ele não é e saltar nesse fogo para fora, aquela família que
o acusou esses também são presos no soba. Esses dão boi, e dá uma pessoa que vai render
o próprio [o que foi falsamente acusado]. Porque se ele é o próprio feiticeiro morre com
o fogo, mas se não for quando vai rebentar, salta daí do fogo. Se ele for na verdade, fica aí
assim" (in EBai2004-6)
Contudo, e como se afirmou anteriormente, estas afirmações não são pacíficas, e são
desmentidas por muitos, incluindo o próprio rei Ekuikui IV, que afirma,
" O umbulungu até hoje está a fazer-se. Só se faz na ombala do rei. Não se pode fazer fora.
O umbulungu de matar pessoa já não se faz mais. Agora o umbulungu é só de mostrar um
sinal de que este aqui tem culpa. Nos tempos anteriores, esse que morre [de umbulungu] é
porque tem culpa, foi julgado pelo rei, foi julgado pelos sobas, e essa culpa será mesmo de
que esse homem não merece viver, tem que morrer. Então o rei é que dá a admissão. Mas
isso passou já nos tempos. O português quando veio proibiu que se matassem pessoas, mas
com o andar dos tempos fomos vendo que os portugueses levavam pessoas, castigavam e
morriam, e isso na mente dos sobas fez-nos confusão, 'como é que ele nos proíbe de matar
e arrasta pessoas para a morte?"' (in EBai2004-8)
"Depende quando calhar o caso, então é que vamos sentar. Não, não, não há dias para isso.
Há coisas graves que não pode esperar amanhã ou depois. É logo resolvido porque às vezes
há-de sair alguém que vai preso. O que pode esperar, que pode dar mais cinco dias ou quê
é quando dá coisa de feitiçaria, mas quando dá porrada isso não pode esperar, na mesma
altura é chamar o indivíduo que deu porrada e é logo julgado, se o caso não der [se não se
puder resolver na ombala, caso haja um homiddio por exemplo) é logo levado ao Estado
[à polícia ou à Procuradoria municipal]" (in EBai2004-6).
Num certo sentido, a existência deste pluralismo legal é visto como bastante positiva
pela população, que realça o respeito pela sua "cultura" e o facto do Estado e do direi-
to constitucional não conseguirem resolver problemas fundamentais do seu quotidiano,
como por exemplo os casos relacionados com o oculto, como a bruxaria e a feitiçaria. No
143 O Olldjango é uma cabana redonda com duas entradas, uma para os membros da omba/a e o outra para as visitas, e é um dos lugares
mais sagrados e míticos de todo o espaço da omba/a, exceptuando os ako/cotos, pois tral&-se de um lugar de reuniAo, de assentlleia,
de produção da palavra, de consensos e de decisões colectivas.
144 cf. Florêncio, 2003, 2005.
1-" I 147
VOZES DO UNIVERSO RURAL REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
"Nos tribunais tradicionais existem processos e penas que são inconstitucionais, como por
exemplo os que são usados para os casos de feitiçaria, como o umbulungu e o lomanjo 145,
no caso do umbulungu as pessoas que o tomam morrem na maior parte das vezes.( ... ) Por
vezes são as próprias famflias que denunciam estas provas tradicionais junto da polícia. A
policia depois vai investigar. Por exemplo no Mungo, numa das ombalas da comuna de
Cabuengo o soba autorizou o umbulungu, a pessoa morreu, ele [o ossoma) foi julgado e
preso no Huambo." (in EBai2007-5)
"têm mais medo da policia, porque prende, e os sobas e os sékulus não, aí basta pagar
qualquer coisa e a pessoa vem embora.( ... ) Nos químbos os jovens seguem os mais velhos,
aí não há polícia, não há Estado, e os jovens estão mais oprimidos pela familia, pelos mais
velhos. Então aprendem desde novos a respeitar e a obedecer aos mais velhos, e aos sobas
e sekulus" (in EBai2007-04).
145 O lomanjo é um pequeno bastão que serve para apertar os tornozelos e o crânio dos acusados de actos de feitiçaria. e que acabam por
ficar nessa situação vários dias de castigo.
1
NO kEINO DA TOUPEIRA. AUTOklbADES 'rkADICIONAI$ 00 11 1ALUNDU E O EStADO ANGOLANO
"Ainda não fizemos esse acto porque até aqui encontra-se o povo na miséria. Não possu-
íam ainda umas boas casas deles, ainda vivem nas tendas, não conseguiram umas boas
casas, e não têm comida. Também ainda não houve eleições para haver um dos presidentes
que a gente fica mesmo com o coração bom de que não vai haver mais a guerra. Por isso
mesmo ainda não fizemos isso, mas temos boa noção de fazer quando houver essa via, com
o povo e com os governos:' (in EBai2004-8).
146/v:J contrário do que sucedeu noutros países. como por exemplo em Moçambique em que mesmo durante a guerra civil as populações
chegavam a exigir aos régulos e às adminlstraç6es que efectuassem esses cerimónias, e assim que terminou o conflto reloma'em
imediatamente essa prática (Fiorên<:io, 2003. 2005).
,.... 1 '"'
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTAOO EM ÁFRICA
" antigamente, depois das colheitas o soba imperava nas suas aldeias, então faziam cerimó-
nias. Cada um contribuía um bocado, então chegavam na casa do soba e faziam cerimó-
nias, festa da colheita. Em Setembro/Outubro, antes da população iniciar as suas lavras, as
suas culturas, primeiro iam à lavra do soba e a partir daí iam para as suas lavras. Depois
dos conflitos armados [guerra civil] ainda não foi realizado. Agora depois dos conflitos ar-
mados a população ganhou aquele incumprimento, considera aquilo actos ultrapassados.
Mesmo depois das colheitas, agora já não se faz mais~ (in EBai2004-4)
147 A região de Janjo esteve ocupada mii tarmente pela UNITA entre 1975 e 1992, mas a população fugiu da área, que ficou inteiramente
despovoada nesse período. ~ as eleições de 1992 e até 2000, a UNITA continuou a controlar a ãrea, e a urna parte da população
regressou, ficando sob o controle desse movimento.
148 Relembre-se que o epalanga é urna figura central na estrutura do e/engo e que em geral pode mesmo suceder no cargo de ossoma.
NO REINO DA TOUPEikA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO H'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
etambus, aqui é mais a igreja. Essa missão está ai desde 1881, então já não liga mais no
passado." (in EBai2007 -06).
Por outro lado, assoma Jino Kaiangula reconhece que em certas olumbala essas ceri-
mónias das sementeiras, que se denominam de ulengo, já se realizam, ou sempre se reali-
zaram, dependendo da área, da dinâmica da guerra e da população, e mesmo do próprio
assoma local. Por exemplo, na comuna de Lunge as cerimónias de ulengo sempre se rea-
lizaram, mesmo durante o conflito armado. Estas cerimónias de ulengo realizam-se nos
akokotos, como sublinha Adolfo Chitoma,
"tem que fazer trabalho nos akokotos, não pode falhar, ano e ano, não pode falhar. Mesmo
o soba, eu, tenho que pagar galinha, tenho que pagar fuba 149, e o resto, e o mwekalia e eu,
e o resto [do elengo] todos da ombala, e então vamos aos akokotos. (... ) Sim, uma vez por
ano, esse mês mesmo de Setembro.( ... ) Os sobas pequenos também fazem nas suas om-
balas, os sekulus não fazem, os sekulus não têm akokotos" (in EBai2004-6)
A população da ofeka contribuí para a realização das festividades, mas não pode as-
sistir à abertura dos akokotos, facto que fica reservado apenas aos elementos do elengo do
assoma. A cerimónia de ulengo tem como finalidade pedir aos espíritos que chova com
regularidade e que o ano agrícola seja profícuo.
Por sua vez, na comuna de Bimbe também já se efectuam as cerimónias de ulen-
go, assim como os rituais de iniciação dos rapazes, com especial relevância para o ritu-
al de circuncisão, que marcam a passagem do estatuto de adolescente para adultos (in
EBai2007 -07).
Além destas tarefas exercidas na actualidade, e que marcam uma certa continuidade
com o passado colonial, as autoridades tradicionais do M'Balundu são chamadas a exer-
cer actualmente outro tipo de tarefas para a Administração municipal, e que contribuem
igualmente para o processo de construção do Estado, quer ao nível local, quer até nacio-
nal. Entre elas destacam-se as tarefas de mobilização das populações para as campanhas
relacionadas com a Saúde, nomeadamente as diversas campanhas de vacinação, de escla-
recimento da população para respeitar e introduzir hábitos de higiene, e a intermediação
entre as populações e os centros de saúde 150• Por outro lado, em 2007, as autoridades
tradicionais também participavam activamente no processo de recenseamento eleitoral
das populações rurais (in EBai2007-01).
Pode então afirmar-se que na actualidade perpetua-se um conjunto de continuida-
des, bastante significativas, e significantes, na relação entre as autoridades e o Estado.
Essas continuidades expressam-se não apenas nas funções que actualmente as autoridades
ISO I 151
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
tradicionais exercem para o Estado angolano, e que são quase as mesmas que desempe-
nhavam no passado para o Estado colonial, mas igualmente noutros aspectos, como por
exemplo no capítulo das regalias. Por exemplo, e à semelhança do que sucedia no período
colonial, na actualidade as autoridades tradicionais também recebem um subsídio estatal,
ao nível nacional, e que é estipulado e controlado pelo MAT. No caso do município do
Bailundo, até Junho de 2004, os olossekulu recebiam um subsídio trimestral de 150 Kwan-
zas, os olossoma de 300 e o assoma inene de 400 Kwanzas. Contudo, a partir de Junho desse
ano este subsídio foi aumentado, passando a ser de 8.000 Kwanzas para os olossoma, e de
4.000 para os olossékulu 151 • No entanto, a atribuição deste subsídio a todos os olossoma e
olossekulu do município só se concretizou em 2007.
As autoridades tradicionais usam igualmente, e à semelhança do período colonial, um
uniforme que as identifica como tal e que, apesar de ligeiramente diferente, pois contém
agora as insígnias da República de Angola, no entanto mantêm as mesmas características
do período colonial, e é até semelhante ao que usam, por exemplo, as autoridades tradi-
cionais de Moçambique. Como refere Jino Kaiangula, "[o uniforme] é um pouco diferente
do tempo colonial. Mas no tempo colonial os sekulus também tinham farda e agora o
governo só disponibiliza aos sobas" (in EBai2004-4). No período colonial, o uniforme
usado pelas autoridades tradicionais continha insígnias (divisas) que distinguia o tipo de
autoridade tradicional, no entanto, na actualidade, como refere Jino Kaiangula, "agora só
usa divisas, só o rei" (in EBai2004-4), deste modo, os olossoma também reclamam are-
posição das divisas no uniforme, pois "como no tempo colonial os sobas usavam divisas,
agora também seria melhor", como adianta o assoma de Chijamba (in EBai2004-4).
Por contra, outras prebendas que as autoridades tradicionais recebiam do Estado co-
lonial, em 2004 ainda não tinham sido repostas pelo Estado angolano, apesar das reclama-
ções, como por exemplo a distribuição de meios de transporte, tais como bicicletas, e casas
de alvenaria, "no tempo colonial tínhamos meio de transporte bem como vivenda. Agora
ainda não" (ín EBai2004-4). No entanto, esta situação viria a ser colmatada no período
entre 2004 e 2007, e neste último ano muitos dos osso ma já tinham recebido motorizadas,
e usufruído de alguns inputs agrícolas, tais como sementes e charruas (in EBai2007-0l).
No entanto, em 2007 esta situação ainda não tinha sido generalizada à totalidade dos aios-
soma do município, o que provocava algumas desigualdades, como salienta o assoma de
Chilala, na comuna de Bimbe, que se queixava de não ter sido contemplado com nenhum
meio de transporte, nem motorizada nem mesmo bicicleta (in EBai2007-08).
151 Não foi possível obter informação sobre o actual subsídio atribu ido ao rei Ekuíkui IV. Por outro lado o montante de subsídio parece gerar
uma certa confusão, pois as diferentes informaçôes obtidas apontam sempre para montantes diferentes do enunciado. Por exe11111o. o
ossoma do Chilume af1m111 que recebe 13.000 Kwoozas por mês e os seus olossékuli cerca de 11.000 kwoozas Qn EBai2007-06).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
152 A UNITA teve que abandonar a sede do município do Bailundo a 24 de Setembro de 1999.
153 Entrevista na sede do partido UNITA na vila Bailundo, a 7/09/2004, EBai2004-11.
152 1 153
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
D
ADMINISTRAÇÃO COMUNAL
SETORES/OMBALAS
D
CORRESPONDENTES/ALDEIAS
j} j} j}
KIMBUS/ALDEIAS CORRESPONDENTE SÉKULU
em 1996, sendo entronizado como sucessor o senhor Jeremias Lussáti, com o título de
Utondossi 11154•
Sobre as relações entre as autoridades tradicionais e a UNITA, pode referir-se, como
exemplo, o que destacam a esse propósito os elementos do elengo do ossoma de Janjo,
"Aqui, no tempo da UNITA os soma tinham ido, mas havia restos [do elengo) que
tinham ficado 155• Esses é que faziam os trabalhos, as cerimónias, e tudo. Também faziam
os julgamentos, mesmo sem a presença do soma. Depois o soma veio e continuou os
trabalhos. De 92 a 2000 estava cá e trabalhou com a UNITA. Fazia julgamentos e cerimó-
nias. O soma trabalhava também para ajudar a alimentar as bases da UNITA sim. Havia
uma simpatia com o soba 156, então o soba avisava a população que era preciso organizar
comida. Os sobas trabalhavam directamente com a UNITA sim. Mas os sobas não usa-
vam fardamento como agora, isso não. Nem recebiam nada da UNITA, como agora." (in
EBai2004-7).
Este trecho da entrevista na ombala de Janjo, revela algumas informações corrobora-
das posteriormente noutros locais e entrevistas, sobre a relação de aliança entre o movi-
mento da UNITA e algumas das autoridades tradicionais do M'Balundu, e mesmo inclu-
sivamente com partes significativas da população do munidpio 157•
Em termos das tarefas exercidas pelas autoridades tradicionais para a administração
da UNITA, Nataniel Ecolelo destaca que,
''As tarefas das autoridades tradicionais eram praticamente as mesmas tarefas que fazem
para o governo. No tempo da UNITA os sobas não tinham nenhuma milícia para defender
o território, isso era do exército [da UNITA). As autoridades tradicionais também podiam
participar no recrutamento de jovens para o exército.( ... ) Existia um imposto, que eram
contribuições. Podia ser em comida, para o exército e para a administração, mas neste caso
quem recolhia da população nos kimbos, não era as autoridades tradicionais mas sim os
correspondentes do partido:' (in EBai2004-ll ).
Posição semelhante assume o ossoma de Chilume, que estando no cargo desde 1975,
trabalhou também com a UNITA, e que defende que:
154 Como se pode constatar. não surge o nome de Utondossi 11 na lista oficial do reino. tal deve-se a um enorme conflito entre o Utondossi
11 e o actual Ekuikui IV, que, como se verá, é sobretudo um conflito político-partidário. Utondossi 11 abandonaria o Bailundo, em 1999,
aCDfl1lanhando a retirada da UNITA.
155 Neste caso, os oJossoma da omba/a de Janjo estiveram ausentes da região, enlnl 1975 e 1992, mas nesse ano o ossoma Manuel
Savilinga regressou do seu refúgio na cidade do Huambo, e passou a residir na embala.
156 Nesta afirmação, em que um elemento do elengo aponta claramente a filação entre o ossoma e o movimento rebelde, notou-se um
sorriso aberlo enlrelodos aqueles que assistiam à entrevista, incluindo o secretário da aldeia, do partido MPLA.
157 Este trabatlo não se centra sobre a questão da identificação politica des autoridades tradicionais do M'Balundu, e muito menos da
população do llllllicípio, de modo que esta asserção só se toma i~te porque pemite sublinhar que a actuai blpolarizaçio polftica
do municlpio intersecta o p!Óprio universo das autoridades tradicionais do M'Balundu, de um lado com a figura do ossoma i r - Ekuikui
IV, membro do Cooité Central do MPLA, e de seus seguidores, e do outros alguns olossoma e olossélwlu, e membros dos divinOS
elengo. enquanto si~tes. ou mesmo merrtros do partido UNITA.
154 I 155
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
"Sim, a UNITA controlava isto. ( ... ) Tinha que viver. Qualquer que viesse, qualquer go-
verno que viesse o soba tem que obedecer. Tem que ser neutro, não pertence a partido ne-
nhum. Para a UNITA fazia também certas campanhas. Aquilo que eles quisessem mandar
a gente fazia. Mas não recebia nada." (in EBai2007-06)
158 O conceito de arena surge neste texto seguindo a definição dada por Thomas Bierschenk e Oivier de Saldan. de que se trata de
'un lieu de confrontitíoos conaé111s d'acteurs socíaux 1111 interBCtion autours d'enjeux oommuns. Un projed de dévllloppemen/ f!SI une
an!ne. Le pcuvair Wlageois est une aténe. Une coopéflllive est une trine' (Bierschenk and Oivier de Sardan, 1998: 262). Por sua
vez. Sheldon Krimsky e Dominlc Goldíng definem uma arena politica como ' a metaphor lo describe /tJe symbolic lccation of politicai
BCtions ltlst ilfAience collllctive decisions or policies' (Krimsky end Golding, 1992: 181 ). Na verdade, este conceito de arena apresenta
bastantes semellanças com o conceito de caqx~ politico, definido este como '1m espace social 61 ferrilorisl à rinterieur duque/ sont
reliés les uns aux adras les scfeurs impliqués dsns un processus politique' (Bierschenk and Oivíer de Serdan, 1998: 261), noção que,
e
de resto bastante próxima da delinlção de C8qlO político de Pierre Bourdieu, que diz que 'Le ch8mp pollíque est Ullfl 'ar611e' qui se
don11e comme te/1 et dsns lequelle i y B des oombsts, des sll'rontements déclarés. Comme dens kxA les champs, Ry a sccumulation de
force, de Cllplsl pollique, c'às+dre de rílpcifltion' (Bourdieu citado em Lourenço, 2006:47).
159 E recorde-se que no período de 1994 a 1999 o município esteve inteiramente dominado e conlrolado por este movimento.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
te controladas e enquadradas quer pelo Estado, pela administração municipal, quer pelo
partido MPLA. Daí uma espécie de "duplo enquadramento social e político das autorida-
des tradicionais': Resulta então, quer ao nível das práticas quer dos discursos, uma enorme
ambiguidade sobre o seu actual papel social das autoridades tradicionais do M'Balundu.
Por exemplo, o ossoma Adolfo Chitoma, quando questionado sobre qual a instituição que
dá instruções às autoridades tradicionais, responde:" Do governo [administração munici-
palj, e do Partido [MPLA I. O partido pode querer alguma coisa da população, ele tem que
dizer ao soba e o soba é que vai dizer como fazer e mobilizar:' (in EBai2004-6).
Em boa verdade, este enquadramento resulta em grande medida do facto de que o
Estado e o partido MPLA desenvolvem um projecto de controlo hegemónico do território
e das populações, assim como tentam controlar hegemonicamente as arenas políticas e
económicas nacionais e locais. Nesse aspecto, é ainda pertinente o uso do conceito de
Estado-Partido (MPLA), para contextualizar a situação, quer ao nível nacional, quer ao
nível local. Disso mesmo se dá conta quando, retomando a questão inicial do ponto an-
terior, se percebe a manifesta simbiose que a administração municipal pretende traçar
entre os organigramas da administração municipal, do partido MPLA, e da estrutura das
autoridades tradicionais.
Esta leitura é igualmente partilhada pelo próprio partido MPLA. Segundo o 1o se-
cretário municipal, Manuel André 160, em muitos municípios no país não existia ainda em
2004 uma diferenciação nítida entre as estruturas do partido e da administração muni-
cipal, o que levava a que em muitos casos os dois cargos, de 1o secretário municipal e de
administrador municipal, fossem ocupados pelo mesmo indivíduo. Caso que, como se
pode ver, não sucede no Bailundo, quer ao nível do próprio município, quer ao nível das
comunas, nas quais existe um separação funcional entre o administrador comunal e o I o
secretário comunal (in EBai2007 -07).
No que respeita à relação com as autoridades tradicionais, o partido, apesar de defen-
der a independência e autonomia desta instituição 161 , nas práticas concebe a relação como
de controlo e subordinação, uma vez que, no seu entender, as estruturas partidárias locais,
nomeadamente os secretários e os comités de sector, devem controlar as autoridades tra-
dicionais. Nesse sentido, já em 2004 o MPLA estava a tentar implementar em um modelo
de articulação e controlo entre as duas estruturas, pois, segundo o I o secretário municipal,
" O secretário de sector controla várias ombalas. E em certas ombalas já existe um secretá-
rio do partido no elengo da ombala. Em geral um mais jovem, que sabe ler e escrever, e que
tem como função registar tudo o que se passa, mesmo nos julgamentos" (in EBai2004-10).
Este secretário do MPLA nas olumbala é designado com o nome de ossonei.
No fundo, esta estratégia do Estado-MPLA de controlar e enquadrar as autoridades
160 Enlre'lista reaizada na sede mmicipal do partido t.f'I.A, na vila do Bailundo, a 710912004, EBai2Q04.10.
161 lliJ nível diSQJrsivo esta é a posição veiculada pelo Estado central, nomeadamente pelo MAT, e por certos analistas polltk:os, conforme
se saientou anteriormente.
156 1 t57
VOZES 00 UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTACO EM ÁFRICA
tradicionais do M'Balundu 162 , parte de duas constatações imediatas, por um lado da as-
sunção da própria incapacidade do Estado-Partido em controlar todo o território nacio-
nal, pois como adiantava o próprio 1o secretário municipal, " o Governo e o Partido só a
partir de 2002 é que conseguiram atingir certas áreas, pois algumas estavam sob a tutela
da UNITA desde 1993, ou ainda antes:' (in EBai2004-10). E, em segundo, também do
reconhecimento da legitimidade das autoridades tradicionais junto das populações, pois
o próprio afirmava que,
" O MPLA está consciente que as autoridades tradicionais são os 'donos do povo', e que
têm maior aceitação. Nesse sentido, o partido acha que deve utilizar essa capacidade de
integração das autoridades tradicionais na população. ( .. .) Na visão do partido, as au-
toridades tradicionais interpretam a tarefa do governo junto das populações. São orien-
tadas para essa função. ( ... ) São os representantes do governo junto das populações"
(in EBai2004-IO).
Deste modo, pode dizer-se que, a estratégia nacional e local do Estado-MPLA face às
autoridades tradicionais angolanas, assenta em dois propósitos: o de controlar e enqua-
drar as populações, sobretudo nos meios rurais, precisamente pelo controlo das próprias
autoridades tradicionais; e de legitimar-se, ao nível local e nacional, face a populações que,
devido às dinâmicas do conflito militar, dificilmente se identificam com o Estado e com
o partido MPLA.
No sentido estratégico de precisamente de enquadrar e controlar as autoridades tradi-
cionais ao nível nacional, o Governo MPLA criou em 2004, por iniciativa do MAT, a Asso-
ciação Angolana das Autoridades Tradicionais (AAAT), com representações/delegações
ao nível provincial e municipal. Nas palavras do seu vice-presidente ao nível municipal,
Joaquim Calado:
"Esta associação não é só ao nível do Bailundo, esta associação vem através da nossa
capital Luanda. Nós vimos para reinforçar as autoridades tradicionais. Pertencemos no
Governo. Temos trabalhadores da função pública, que também pertencem no Governo. A
iniciativa partiu mesmo do Governo. Lá mesmo na capital" (in EBai2007-02)
No município do Bailundo a AAAT foi criada em 2005 e, para além de responder às
emanações e directivas do governo provincial, a associação ainda assume um carácter mu-
tualista, pois as intenções são as de receber um subsidio do Governo e contribuições dos
seus membros 163 que possam posteriormente ser redistribuídas aos membros em casos de
doença, ou falecimento, como adianta o próprio Joaquim Calado:
"No nosso caso de autoridades tradicionais quando falece, quando nos tira do serviço ...
eheh, não tem mais subsidio. No mesmo dia que é tirado não tem mais subsidio. Por isso
162 De notar~ não se trata obviamente de uma estratégia local, mas sim nacional. e que se estende a lodo o pais.
163 Em 2007 a AMT/Ballundo recolhia 200 kWillzas por mês de cada membro, que eram depositadas numa conta bancária no rrunicipio
(in EBai2007-{)2).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TltADICIONAIS DO M'8ALUNOU E O ESTADO ANGOLANO
é que vamos criar a Associação das Autoridades Tradicionais. E então quando eu fale-
ce ainda há conserva que é para ajudar na minha morte. E quando eu adoece também
há conserva para ajudar na minha doença.( ... ) Nós normalmente vamos fazer um sub-
sídio em kwanzas para onde este em nome, um sékulu ou um soba. Aí, se o soba está
doente nós também vamos tirar para o soba ser tratado no hospital. ~ da Associação, é
mesmo assim. Os sobas então têm assim um banco para quando está doente, ou faleceu;"
(in EBai2007-02).
164 Ver EBai2007-01, e que também esteve presente nesta entrevista colectiva.
165 De acordo com este informante, o rei Ekuikui IV não recebe subsidio do MAT porque como membro do Corrité Central do MPLA tem
direito a um sa15io, e optou antes por esta regatia ao invés do subsídio.
166 Que é membro do corrité centrei do MPLA e, actualmente, deputado por este partido na Assembleia Nacional.
J5s 1 159
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
porque os que estavam na UNITA não eram 'verdadeiros' 167" (in EBai2004-lO).
Claro que esta afirmação não é corroborada pela UNITA, que salienta precisamen-
te que o partido MPLA, a administração e o próprio rei Ekuikui IV têm uma estratégia
comum de substituir as autoridades tradicionais que não se identificam com o partido
dominante168, como realça o 1° secretário da UNITA, sr. Nataniel Ecolelo,
" As autoridades tradicionais que estavam no tempo da UNITA estão a ser substituídas
ou preteridas. É o próprio rei Ekuikui quem tem liderado o processo de substituição. Te-
mos muitos exemplos: o rei Utondossi; o soma Chijamba, o Bartolomeu Mbila; o soma
de Bimbe, Lucas Sambundo; alguns mesmo do elengo do rei, o mwekalia Mateus Jaulu, o
tchicucula Bento Ossi, o komandanti, o tchitonga, que foi batido pelo próprio rei agora a
13 de Agosto; o soma de Kavindi, Alexandre Mete, e mais outros. O rei Ekuikui que é do
comité central do MPLA, quer problemas com a UNITA e orienta os outros sobas para
não receber nem pessoas nem os próprios desmobilizados da UNITA:' (in EBai2004-ll).
E realça precisamente o entendimento que existiu, e segundo ele, ainda existe, entre
o partido da UNITA e as autoridades tradicionais do M'Balundu, "muitos sobas e sekulos
são da UNITA, simpatizantes ou membros, e frequentam as casa da UNITA, ou a sede,
mas a medo de serem descobertos e castigados. Por isso em geral não dizem nada, a estra-
tégia é não se manifestam:' (in EBai2004-ll ). 169
Alguns sectores da população local, sobretudo afectos à UNITA, também defendem
que as autoridades tradicionais e o Partido-Estado MPLA estão numa relação de aliança
com o propósito de implantar esse modelo hegemónico de controlo da população e da
vida política local. Numa conversa havida com um grupo de mulheres, afectas ao partido
UNITA, foi salientado que:
" certos sobas e certos sekulus são importantes porque resolvem problemas nos bairros.
Mas certos sobas e sekulus não resolvem problemas dos da UNITA. Quando tem pro-
blemas apresenta nos sekulus, mas não dá razão se for da UNITA, então o sekulu vai dar
razão àqueles que não têm razão. Por exemplo em Luvemba houve atritos com os homens
da UNITA, foram batidos, roupas queimadas, casas queimadas, e os homens que tinham
razão é que foram para a cadeia porque eram da UNITA." (in EBai2007-03)
167 Pelo que se constatou no trabalho de call1Xl de 2004. nomeadamente pelas informações recolhidas, os critérios para apurar a 'legiti-
midade' deste ditos 'sobas nêo verdadeiros", nêo se pautava por critérios históricos ou dinásticos, mas sim politicos.
168 Amalaia dos actuais obssoma do M'Balundu mm todos entronizados a partir de 2004, pelo rei Ekuikui fV e pela actual administração
municipal.
169 Em 2004 existiam ainda mu~os problemas e coni"ontos violentos entre partidários dos dois pal1idos poiHicos. O 1• secretário municipal
da UNITA fomeoeu uma lsta de incidentes, segundo a "'eitura' deste partido Qlle se transcreve aqui. apenas para ilustrar esse cima
conflituoso que se vivia na época do trabaho de campo de 2004. Segundo a ista fornecida pelo sr. Nataniel Ecolelo. 'foram incendiadas
as sedes da UNITA na coi!Uia de Bimbe (2003). de Hengue por ruas vezes (2004): em LuventJa mm Qlleimadas as casas de 7
membros da UNITA (23/0712004, a UNITA acusou os cheles dos Antigos Combatentas. do MPLA. Maleus Cameísa e Adriano Chiaiu);
comma de LuventJa, queimada uma casa comercial de um l'!lelltto da UNITA, na zona de Lupire; na mesma comma, na aldeia de
Assonjo foi queimada uma casa por ordem do soba Assonjo, Apoinirlo Samakunha (18/07/2004); na vila do Lunge. foi queimada uma
casa duas vezes; na CO!l'llna do Lunge, sector Monte Belo, foi Qlleimada a bandeira da UNITA por duas vezes." (in EBai2004-11 ).
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TllADICIONAIS DO M'BALUNOU E O ESTADO ANGOLANO
E as lamentações atingem mesmo o próprio rei Ekuikui IV que, segundo estes sim-
patizantes da UNITA, está a promover a perseguição das autoridades tradicionais que são
afectas à UNITA, e mesmo a restante população, "o actual rei Ekukui não resolve as coisas,
o verdadeiro rei é o Utondossi, que no passado mês de Agosto levou dois tiros e está hos-
pitalizado no Huambo. Katchiopololo não gosta das gentes da UNITA, e os que gostam da
UNITA não gostam dele, mas sim do Utondossi." (in EBai2007-03).
Não é possível postular com clareza e independência se existe efectivamente uma es-
tratégia comungada entre o assoma inene Ekuikui IY, o partido MPLA e o governo muni-
cipal, quanto à substituição de olossoma afectos à UNITA, ou mesmo a sua não nomeação.
São conhecidos casos em que o rei não aceitou certas nomeações de futuros olossoma,
como por exemplo no caso da ombala de Dende, que depende da ombala de Chilala, na
comuna de Bimbe, e em que o assoma nomeado pelo elengo da ombala e confirmado pelo
assoma de Chilala seria posteriormente rejeitado pelo rei Ekuikui IY, obrigando o elengo
de Dende a nomear outro sucessor a assoma (in EBai2007-08). Contudo não existem da-
dos que permitam afirmar que se trata de uma estratégia política do rei, e sucede mesmo
amiúde que um candidato a assoma seja depois rejeitado pelo ossoma superior, e até mes-
mo pelo rei.
O que se pode afirmar é que a posição de charneira, e de independência, que o Estado
e o Partido MPLA pretendem, na aparência, conceder à instituição, conduz a que as pró-
prias autoridades tradicionais fiquem "encravadas" nessa confrontação político-partidária
local170• Essa aparência de independência da instituição, -que, como se viu anteriormen-
te, se joga ambiguamente no modelo de descentralização que, ao nível nacional, o MAT
e certos analistas da descentralização defendem, colocando as autoridades tradicionais
como independentes do Estado, e dos partidos, e como instituição autónoma de poder
local, - produz nas práticas situações ambíguas, pois as autoridades tradicionais "têm que
atender a todos': como salienta Adolfo Chitoma, e adianta que, "A UNITA também vem
aqui. Tem acontecido. Se ali tiver visita tenho que ir lá, não posso dizer que não:' (in
EBai2004-6).
170 Obviamenle que neste ponto não existe nenhuma inocência da parte das autoridades tradicionais, pois estao bem conscienles daste
lugar social e político, 'encravado' entre a administração local e os plridos MPLA e UNITA, e tentam igualmente manipular e orientar
esta posição social em seu beneficio pessoal.
160 I 161
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
II, o que, de certo modo, tem criado uma situação muito ambígua.
Utondossi II foi entronizado soma inene do M'Balundu em 1996. Até então reinava
na ombala real o senhor Manuel da Costa, com o título de Ekuikui III, e que tinha sido
entronizado em 1985. Quando o Ekuikui III faleceu, em 1996, o município do Bailundo
estava já ocupado pelas forças da UNITA. Nessa altura colocou-se então a questão da
substituição do ossoma inene, e foi então escolhido um seu sobrinho, filho de uma irmã,
seguindo-se o princípio da sucessão por via da oluina. Foi entronizado com o título de
Utondossi II 171 • Este reinou até 1999, período em que a área estava ocupada pela UNITA.
No entanto, nesse ano o movimento rebelde teve que abandonar a região devido à ofensiva
militar governamental. Utondossi II, bem assim como uma parte do seu elengo, e mesmo
população comum, abandonaram igualmente o município.
Entretanto, a região foi ocupada pelas forças governamentais e em 2001, com o fim
da guerra civil, o senhor Augusto Katchiopololo regressou ao município. Augusto Ka-
tchiopololo, era o ossoma da ombala de Chijamba, na comuna de Luvemba, até 1994,
mas abandonou o município quando este foi ocupado pela UNITA, tendo-se refugiado
primeiro em Benguela e posteriormente em Luanda, onde permaneceu até ao final da
guerra civil. No seu refúgio de Luanda, Augusto Katchiopololo teve uma actividade políti-
ca proeminente e, em 1998, durante a realização do 4° Congresso do MPLA foi nomeado
para membro do Comité Central deste partido. Ao regressar ao município do Bailundo,
Augusto Katchiopololo viria a ser nomeado ossoma inene do M'Balundu, em 2002, e en-
tronizado em 2004, com o título de Ekuikui IV.
Esta situação levanta uma certa celeuma, surda pode dizer-se 172 , entre uma parte da
população do município e uma parte da estrutura de poder tradicional, olossoma e olos-
sékulus, afectos ao partido UNITA, e entre os activistas desta mesma força política, que
não atribuem legitimidade ao actual ossoma inene Ekuikui IV, e que defendem que se trata
de uma imposição do Estado-MPLA, quer por ele ser membro do Comité Central do par-
tido no poder, quer para reforçar o controlo do partido sobre as autoridades tradicionais
do reino. Por exemplo, o ossoma de Chilume defende que Utondossi II "é que é o verda-
deiro descendente dos antigos sobas, dos primeiros sobas': Contudo, este ossoma assume
uma posição de extrema cautela e pragmatismo 173 , adiantando que,
"O Utondossi é que foi nomeado mas através da guerra ele teve que sair, foi quando veio
este ai.( ... ) Não se pode comparar o Utondossi ou o Katchiopololo. De momento quem
está aqui é o Katchiopololo, e então tem que respeitar o Katchiopololo, mas o Utondossi é
que nasceu na ombala inene, na ombala grande. Ele é respeitado. Ele é mais poderoso. Ele
está na história dos reis, dos antepassados" (in EBai2007-06)
171 Segundo alguns depoimentos recollidos dLKante o trabalho de C8111l0 de 2004. e sobretudo junto de indivíduos simpatizantes do
MPLA, Utondossi 11 não teria mesmo chegado a ser entronizado segundo os procedimentos rituais tradicionais, mas sim nomeado pela
UNITA.
172 Devido à presença e hegemonia actual do MPLA no município a contestação não é manifesta. nem aberta.
173 Esta postura pragmática, e defensiva, é usada por quase todos os olossoma que estiveram no poder sob o controlo da UNITA, sendo
ou não afectos a este partido. e revela o medo que têm do actual controlo hegemónico do Estad<>-MPLA.
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS DO M'BALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
174 A data do regresso de Utondossi ao Bailundo é um pouco contraditória. Mlitos dos informantes referem que ele regressou um 2005,
contudo o sr. Cândido Uquélonga refere o ano de 2003, adiantando que o Utondossi viveu desde essa altura sempra na sua casa, pois
são cunhados (in EBai200Hl9). Uma hipótese possível de expNcaçlo é a de que as notícias públcas do regrasso de utondossi só
tenham começado a ciraJiar em 2005. Outra hipótese será a de uma certa confusão de datas dos informantes.
175 Esse conflito chega a tomar proporções bastante violentas, pois utondossi 11, chegou a ser vítima de uma tentativa de homcidio, em
Abril de 2007.
t62 1 163
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
Pretendo, com este artigo, apresentar alguns factos mais recentes sobre a história do que
foi, em tempos, um dos mais poderosos reinos dos estados do planalto, ou seja, o Reino do
Bailundo, sem qualquer desprimor para outros estados, importantes que foram e são, quer
para as lutas contra a ocupação colonial, quer para o processo da construção da Nação-
Estado, em curso, e incluso no grande projecto de edificação da sociedade angolana.
Os estados Ovimbundu, embora os dados de que dispomos apontem para o facto de os
mesmos terem sido constituídos muito antes do século XIX, são mais fáceis de descrever
a partir dos anos de 1800, sobretudo no que diz respeito aos Estados da Cingolo, Cyaka,
Gumba, Kalengue, Kaluquembe, Bailundo, Ndu1u; Ngalangui; Sambu, Viye, Wambu, para
além dos reinos não menos importantes como o de Caconda (Cilombo Coiioma), Ekeke-
te, Chitata e outros. [... ]
Falando, concretamente, do reino do Bailundo, que nos interessa neste artigo, é de referir
que o mesmo perdeu a sua independência em 1896, logo após a morte de Ekuikui II, e du-
rante o reinado de Numa II que o sucedera. Recorde-se que este fora vencido pelo capitão
Justino Teixeira da Silva, que, vindo do Bié, o atacou sem dó nem piedade.
A Numa II (assassinado por ordens do jovem capitão Teixeira da Silva) sucederam outros
reis, com pouca expressão, como foi o caso de Kalakata e Kalandu1a. Estes, transidos pelas
derrotas, nada fizeram para contrapor com retaliações a impunidade com que os portu-
gueses agiam no reino recém-conquistado. De facto, os comerciantes portugueses agiam
com uma impunidade total, sobretudo no que dizia respeito à procura de milho, cera,
16-4 I 16s
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM AFRICA
facto de Manuel da Costa (Ekuikui III) ter retomado o trono, diante da fuga de um outro
rei que lhe tinha tomado o lugar durante a sua ausência, ou seja, Augusto Kachytiopololo,
um homem comum, não pertencente a qualquer linhagem dos reis do Bailundo, que foi
elevado à categoria de rei por questões essencialmente políticas, com o patrocínio do Co-
missário Provincial Arão Chiteculo.
Augusto Kachytiopololo, entronizado aquando da estadia de Ekuikui III na Jamba, refu-
giou-se na cidade do Huambo logo que a Unita fixou a sua direcção nas vilas de Andulo
e Bailundo. No entanto, Ekuikui III viria falecer nos finais dos anos 90, mergulhando, de
novo, o reino numa crise. Dada a vacatura e, sob a influência do líder da Unita, foi decidi-
do preenche-la com candidatos de sangue azul e da linhagem dos reis de Etunda, Lunge.
Recorde-se que fora daí de onde saíra, em 1820, o rei Utondossi que reinara no Bailundo
até 1842. Definidas assim as coisas, a escolha recaiu para duas individualidades de sangue
azul e da linhagem real dos Utondosi: Alice Ngueve Simões (mãe do embaixador e ex-
presidente da bancada da Unita, Alcides Sakala Simões), e Jeremias Lussati, a quem se
decidiu entregar o trono, com o epíteto de Utondossi II.
Com a morte do líder da Unita, o fim da guerra e are-proclamação de Augusto Kachytio-
pololo para rei, com o epíteto de Ekuikui IV, O "reino" do Bailundo entrou na sua fase
mais crítica, cuja nota predominante é a vassalagem total ao Mpla e JES. Daí que o passo
a seguir, conforme foi orquestrado por essa força política, com o beneplácito de Augusto
Kachytiopololo, foi a eliminação fisica de Utondossi II, o que se conseguiu, em 2008, como
consequência de um atentado sofrido em 2007 na localidade de Lunge, onde vivia.
Estes factos apenas atestam quão contraproducente é a intromissão abusiva da política e
do poder instituído no poder tradicional. Mas, apesar disso, nos "akokoto" mentais das
populações do Bailundo apenas têm lugar os reis de sangue azul. Quantos aos outros, serão
esquecidos logo que deixarem o mundo dos vivos" m
1n ln h!lp:llwMv.ovintundu.org/Os=OyjntunduMs!oria-dgs-OvinDmdu/A-Hj!!IDó!HnajHOCI!!!!t«HeiJoklndo hbnl .
178 cf. Cap. O Reino da Toupeira.
179 Cisma que leve o seu epilogo em 2008 com a morte de Ulondossi 11.
NO itEINO DA TOUP'EIIt.A. AUTOit.IDADES Tlt.ADICIONAIS DO H'IALUNDU E O ESTADO ANGOLANO
Cândido Uquélonga, " A população quase toda é do Katchiopololo. Mas aqueles que vie-
ram das matas esses são do Utondossi" (in EBai2007-09}.
As autoridades tradicionais do M'Balundu encontram-se obviamente submergidas e
submetidas por esta luta política nacional, mas, ao contrário de serem actores locais pas-
sivos dessa luta, elas reapropriam-se e reutilizam o discurso político partidário nacional,
transformando-o num discurso sobre legitimidades tradicionais locais. A actualidade no
entanto não deixa de assinalar que essa luta anuncia um vencedor, o MPLA, e o seu pro-
jecto hegemónico de controlo e domínio do Estado, do território e das populações, projec-
to esse no qual as autoridades tradicionais intervêm enquanto "força de enquadramento
e mobilizaçãô das populações e, simultaneamente, enquanto força legitimadora local do
próprio Estado-MPLA. Mas este processo, em grande medida de top-down, não deixa de
reflectir entre as autoridades tradicionais do M'Balundu as contradições e as dinâmicas
nacionais, mas ao mesmo tempo expressa uma pluralidade de estratégias políticas indivi-
duais e colectivas, e uma capacidade de sobrevivência da instituição e de manipulação de
dinãmicas exógenas, quer no período de dominação colonial, quer na actualidade.
Conclusio
O reino do M'Balundu é o maior e um dos mais importantes entre os reinos Ovimbun-
du do planalto central angolano. Ao longo da sua história, o reino do M'Balundu sofreu
um conjunto de profundas influências e transformações, sobretudo a partir da dominação
colonial portuguesa, e mais concretamente a partir de 1902, data da última sublevação dos
Bailundos contra o domínio colonial. A partir dessa época, o reino perdeu a sua indepen-
dência e foi progressivamente submetido à lógica político-administrativa colonial.
Apesar das alterações produzidas durante o período colonial, a estrutura de poder
tradicional do reino M'Balundu têm-se mantido relativamente estabilizada, quanto à sua
forma, desde o período pré-colonial. Nesse ãmbito, ela engloba um número significativo
de escalões e de figuras de poder que, na sua totalidade enquadram o que se denomina
de autoridades tradicionais, e que se organizam de forma hierarquizada e centralizada a
partir da figura superior do rei, o ossoma inene.
Durante o período de dominação colonial, as autoridades tradicionais do M'Balundu
foram integradas no processo administrativo, à semelhança do que sucedeu na maioria
das colónias africanas, e sofreram um processo de cerceamento da sua autonomia e das
suas prerrogativas de poder e foram chamadas a desempenhares papeis e tarefas para as
respectivas administrações coloniais, segundo um modelo do estilo do indirect rule britâ-
nico, com múltiplas nuances locais e temporais. No que respeita às funções que desempe-
nhavam para a administração colonial, as próprias autoridades tradicionais do M'Balundu
salientam como mais importante: a recolha do imposto anual de cubata; o controlo da
mão-de-obra e do trabalho obrigatório, o "contracto''; o controlo da ordem social, através
dos julgamentos tradicionais; o controlo das produções comerciais obrigatórias, como o
166 1 167
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
16a 1 1"
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
zação de novos actores políticos, que concorrem igualmente pelo controlo, social, político,
económico e simbólico, das populações. Fruto da própria história nacional, o universo
rural sofreu um conjunto de profundas transformações sociais, políticas e económicas,
nomeadamente a guerra civil, a partidarização e bipolarização das arenas políticas locais,
o surgimento de novos actores locais, ligados à politização desses espaços políticos, ou aos
novos cenários ligados ao desenvolvimento, entre outros.
No caso do município do Bailundo, as autoridades tradicionais do M'Balundu con-
frontam-se e concorrem com uma pluralidade de actores locais nacionais, tais como os
partidos políticos (MPLA e UNITA), os empresários locais, as ONGs nacionais e inter-
nacionais, os diversos tipos de associações, e diferentes igrejas e confissões religiosas. Por
outro lado, e devido à situação de guerra vivida no município durante muitos anos, a are-
na política está muito bipolarizada, do ponto de vista político, entre a UNITA e o Estado-
MPLA.
Na actual conjuntura do pós-guerra, as autoridades tradicionais "jogam" um papel
ainda mais ambíguo do que durante o período colonial, pois elas são simultaneamente
controladas e enquadradas quer pelo Estado, pela administração municipal, quer pelo
partido MPLA. Daí uma espécie de "duplo enquadramento social e político das autorida-
des tradicionais': , simultaneamente, são objecto de disputa política entre os dois princi-
pais partidos políticos.
A bipolarização político-partidária do município do Bailundo, enquanto arena políti-
ca, entre o MPLA e a UNITA, contamina igualmente a estrutura de poder tradicional do
M'Balundo, que acaba igualmente por incorporar essa bipolarização, com a existência de
um enorme conflito entre dois ossoma inene, Utondossi II, foi entronizado soma inene do
M'Balundu em 1996, durante o período de domínio da UNITA e Ekuikui IV, nomeado
ossoma inene do M'Balundu, em 2002, e entronizado em 2004.
Formalmente, o legitimo detentor do trono é o rei Ekuikui IV, e é ele quem governa a
estrutura de poder tradicional. Mas, por outro lado, e aparentemente, não só a população,
como as próprias autoridades tradicionais estão divididas, quanto à legitimidade dos dois
indivíduos. Deste modo, no Bailundo viveu-se, até ao ano de 2008, aquando do faleci-
mento de Utondossi II, uma situação de forte ambiguidade, e mesmo de grande conflito e
antagonismo no seio da estrutura de poder tradicional.
Em conclusão, defende-se que actualmente as autoridades tradicionais do M'Balundu
encontram-se submergidas e submetidas nesta luta político-partidária nacional, mas que
nem por isso são actores locais passivos, pois que reapropriam-se e reutilizam o discurso
político partidário nacional, transformando-o num discurso sobre legitimidades tradi-
cionais locais. A actualidade, no entanto, não deixa de assinalar que essa luta anuncia um
vencedor, o MPLA, e o seu projecto hegemónico de controlo e domínio do Estado. Mas
este processo, em grande medida de top-down, não deixa de reflectir entre as autoridades
tradicionais do M'Balundu as contradições e as dinâmicas nacionais, ao mesmo tempo
que expressa uma pluralidade de estratégias políticas individuais e colectivas, e uma capa-
NO REINO DA TOUPEIRA. AUTORIDADES TRADICIONAIS 00 M'BALUNOU E O ESTADO ANGOLANO
Bibliografia
Arjago, A. G. (2002). Os Sobas. Apontamentos 11tno- nial policy near the Kwanza: Kabuku Kambilo and
hist6ricos Sobre os Ovimbundu de Benguela. Edição the Portuguese, 1873-1896. ]ournal of African His-
do autor. tory, XVll (2).
Arjago, A. G. (1999). Epàtá L'Usómá. Apontamentos Edwards, A. (1962). 1he Ovimbundu under two sov-
étno-históricos Ovimbundu. Lobito: Edição do au- ereignties. London.
tor. Estatuto Polltico, Civil e Criminal dos Indlgenas da
Balandier, G. (1987). Antropologia polftica. Lisboa: Guiné, Angola e Moçambique. 1939 (1929), apro-
Editorial Presença. (Original work published vado pelo Decreto Lei n•16473, de 6 de Fevereiro
1967). de 1929. Luanda: Imprensa Nacional.
Bender, G. J. (2004). Angola sob o dom{nio portugrds. Feijó, C. (2000). O Poder Local em Angola. Recu-
Mito e realidade. Luanda: Editorial Nzila. perado em 20 de Janeiro de 2010 de http://www.
Bierschenk. T., & Olivier de Sardan, j.-P. (1998). Les oaana,oratpoderlo.htm.
pouvoirs au vil/age. Paris: Karthala. Ferreira, M. E. (1995). La reconversion économique
Birmingham, D. (2002). Angola. ln Chabal, P., at ai. de la nomenk/atura pétroliere. Politique Africaine,
A history ofpostco/ania/ lusophone Africa. London: 57, 11-26.
Hurst and Company. Florêncio, F. (2008). Autoridades tradicionais vaN-
Buur, L., & Keyd, H. M. (Eds.). (2007). State recogni- dau de Moçambique: o regresso do indirect rule ou
tion and democratization in su-saharan Africa. A uma espécie de neo-indirect rule?. Análise Social,
new dawn for traditional authorilies?. New York.: XLlll (2).
Palgrave Macmillan. Florêncio, F. (2005). A Procura dos mambo vaNdau.
Childs, G. M. (1970). The chronology of the Ovim- Estado e autoridades tradicionais em Moçambique.
bundu kingdoms. 1he ]ournal of African History, Lisboa: ICS.
I 1(2), 241-248. Fonga, (2001). Fonga na Promoção do Poder Tradi-
Childs, G. M. (1964). The kingdom of Wambu cional. Recuperado em 10 de Novembro de 2003
(Huambo): A tentative chronology. 7he ]ournal of de http:llwww.novavisao.oratno'iidades/tradicio-
African History, 5 (3), 367-379. na1Lhtro.
Clarence-Smith, G. (1989). Le probleme ethnique en Grupo Técnico para as questões Jurídico-Legais,
Angola. Chrétien, J-P, & Prunier, G. Les ethnies ont (2001). Plano estratégico da desconcentração e des-
une histoire. Paris: Karthala. centralização administrativas: o Poder Local Autár-
DIAMANG, Companhia de Diamantes de Angola. quico e o poder tradicional em Angola. Conselho de
Direcção Geral do Dundo. Museu do Dundo. Re- Ministros da Républica de Angola.
latório Mensal n• 5, 10/07/ 1948. Guedes, A. M. (2007). The state and traditional au-
Dialamikua, A. S. (Coord.). (1996). Relatório de In- thorities in Angola: Mapping issues. ln Guedes, A.
quérito Sobre o Enquadramento Institucional das M., & Lopes, M. J., (Eds.). State and traditionallaw
Autoridades Tradicionais na Administração Local. in Angola and Mozambique. Coimbra: Almedina.
Luanda: MAT. Guedes, A. M., & Lopes, M. J., (Eds.). State and tra-
Dias, J. (1989). Relações económicas e de poder no ditional /aw in Angola and Mozambique. Coimbra:
interior de Luanda ca. 1850-1875. Actas da I Reu- Almedina.
nião Internacional de História de Ajrica. Relação Guimarães, F. A. (1998). 1he origins of the Angolan
Europa-Africa no 3• quartel do Séc. XIX. Lisboa: civil war: Foreign intervention and domestic politi-
IICf/ Centro de Estudos de História e Cartografia cai conflit. Basingstoke: Macmillan.
Antiga. Hastings, D. A. (1933). lhe Official of a Tribe. Chap-
Dias, J, (1985). Changing patterns of power in the Lu- ter IV. Ovimbundu Customs and Practices as Cen-
anda hinterland. The impact oftrade and colonisa- tered Around the Principies of Kingship and Psy-
tion on the Mbundu ca. 1845-1920. Paideuma, 32. chic Power. Unpublished doctoral dissertation,
Dias, J. (1976). Black chiefs, white traders and colo- Kennedy School of Missions, Hartford Seminary
110 1 111
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
Perrot, C.· H. & Fauvelle-Aymar, F.-X. (Dirs.) (2003). Tiny, N'G. N. (2007). lhe politics of accommodation:
Le retour des rois. Les autorités traditionnel/es et Legal and constitutional issues. ln Guedes, A. M.,
l'Etat en Afrique contemporaine. Paris: Karthala. & Lopes, M. J., (Eds.), State and traditionallaw in
Possinger, H. (1986). A transformação da sociedade Angola and Mozambtque. Coimbra: Almedina.
Umbundu desde o colapso do Comércio das cara- Trolha, T. Von., (1996). From administrative to ci-
vanas': Revista Internacional de Estudos Africanos, vil chieftaincy. Some problems and prospects of
4·5, 75-158. African chieftalncy. Journal oj Legal Pluralism and
Possinger, H . ( 1973). Interrelations between econom- Unofficial Law, 37/38.
ic and social change in rural Africa: The case of Tuca, M. (2004). A Terra, a Tradição e o Poder. (Con-
lhe Ovimbundu of Angola. ln Heimer, F.-W. (Ed.). tribuição ao estudo Etno-histórica da Ganda). Lo-
Social Change in Angola. Munchen: Weltforum bito: Kat.
Verlag. Weber, M. (1944). Economia y Sociedad. Cuidad de
Power, M. (2001). Patrimonialism and petro-dia- México: Fondo de Cultura Económica. (Original
mond capitalism: Peace, geopolitics and lhe eco- work published 1922).
nomics of war in Angola. African Review of Politi- West, H. G. (1998). 'This neighbor is not my Uncle!':
cai Economy, 28(90), 489-502. Changing relations of power and authority on the
Orre, A. (2007). Integration of traditional authorities Mueda plateau. journal of Southern African Stu-
in local governance in Mozambique and Angola - dies,24.
lhe context of decentralization and democratiza- West, H. G. (2005). Kupilikula. Governance and the
tion. ln Guedes, A. M., & Lopes, M. J. (Eds.). State invisible realm in Mozambique. Chicago and Lon-
and traditional law in Angola and Mozambique. don: the University of Chicago Press.
Coimbra: Almedina. Wheeler, D. C., & Christensen, D. (1973). lhe rise
Redinha, J. (1974). Etnias e culturas de Angola. Luan- wilh one mind: lhe Bailundo war of 1902. ln
da: Instituto de Investigação Cientifica de Angola. Heimer, F.-W. (Ed.). Social change in Angola.
Reforma Administrativa Ultramarina, Decreto Lei n• Munchen: Weltforum Verlag.
23:229 de 15 de Novembro de 1933, Imprensa Na- Viegas, F. & Katyavala, J. M. (2004). Relatório Final
cional de Moçambique, Lourenço Marques, 1933. - Estudo sobre o poder residual das autoridades
Richards, A. (Ed.). (1960). East African Chiefs. A tradicionais: o caso da provinda do Huambo.
study of politicai development in some Uganda and MONUA and Development Workshop.
Tanganyika tribes. London: Faber and Faber. Vieira da Silva, J. & Morais, J. A. (1973). Ecological
Robson, P., & Roque, S. (2001). 'Here in the city, conditions of social change in lhe central high-
everything has to be paid for': Locating the com- lands of Angola. ln Heimer, F.-W. (Ed.). Social
munity in peri-urban Angola. African Review of change in Angola. Munchen: Weltforum Verlag.
Politicai Economy, 28(90). Vines, A. (1995). La troisieme guerre angolaise. Poli-
Robson, P. (Ed.). (2001). Communities and recon- tique Africaine, 57.
structíon in Angola: the prospects for reconstruction
ín Angola Jrom community perspective. Guelph:
Development Workshop - Occasional paper n• I.
Simon, D. (2001). lhe bitter harvest ofwar: Continu- Notícias de Imprensa
ing social and humanitarian dislocation in Angola.
African Review of Politicai Economy, 28(90).
ANGOP. (2003). Poder tradicional deve merecer dig-
Soremekun, F. ( 1965). A history of the American Bo-
nidade constitucional. Recuperado em 25 de Feve-
ard Mission in Angola, 1880-1940. Unpublished
reiro de hup·//wwwanaola.org/news/NewsDetail.
doctoral dissertation. Northwestern University,
cfm?NID= 11957.
Illinois.
m I 173
VOZES DO UNIVERSO RURAL. REESCREVENDO O ESTADO EM ÁFRICA
Anexo I
11.. 1 11s