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COSMOVISÕES X MODA:

QUAL A SUA TENDÊNCIA?


CONTRIBUIÇÕES E PROPOSIÇÕES PARA UMA MODA ÉTNICA E ÉTICA
ÍNDICE

Apresentação e Introdução 5
por Associação Raízes da Tradição
Imersão 15
O que é ser indígena? 15
por Dilmar Puri
Como a Moda pode se relacionar com as culturas indígenas? 25
por Julia Vidal
O que é e o que representam os Grafismos Indígenas? 27

Quando a moda brasileira se apresenta, ela homenageia 31


aos povos indígenas ou faz uma Apropriação Cultural?
Encontro 37
O mundo indígena: Cosmovisões, perspectivas e 38
oportunidades
O mundo da moda: contribuições designadas à cadeia 39
de produção e empresas de moda
O encontro: construções e direcionamentos entre a cadeia 41
de produção da Moda e as Culturas Indígenas
CAMINHOs 45
As carências em legislação e atuação dos órgãos federais 46
de apoio a população indígena
Como segue este trabalho 48

Sobre os autores 50
Bibliografia que nos inspirou 52
Saiba mais 53
Copyright 2020
Todos os direitos reservados aos autores, e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência dos autores.
Este livreto foi revisado segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Direção e Produção editorial


Julia Vidal: Etnias Culturais

Revisão
Rosilene Miliotti

Projeto gráfico e diagramação


Eliza Rizo | www.elizarizo.com

Fotos
Rosilene Miliotti
Alebê Produções

Transcrição de falas
Letícia Tosta; Mônica Lima Manau; Letycia Mattos; Renato Martins

Apoio institucional e financeiro


Lab Moda Sustentável

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Vidal, Julia et alíus

Cosmovisões x moda: qual a sua tendência? Contribuições e proposições


para uma moda étnica e ética / Vidal, Julia et alíus – Rio de Janeiro

ISBN:
1. Cultura Indígena 2. Moda 3. Conflito Cultural 4. Moda sustentável
Apresentação

A elaboração do livreto intitulado “Cosmovisões X Moda: Qual a sua


Tendência? – Contribuições e Proposições Para uma Moda Étnica
e Ética”, de natureza crítica e sintética, reúne informações etnográ-
ficas e referências teóricas indispensáveis para a compreensão do
papel e da riqueza cultural dos povos indígenas no mundo contem-
porâneo, permitindo subsidiar melhor e aprofundar aspectos do
diálogo entre a cadeia de produção da moda e os povos indígenas.

A publicação busca apontar os desafios de explorar novos refe-


renciais, novos paradigmas e novos conceitos para que profissio-
nais do mercado da moda possam interagir e construir caminhos
para o desenvolvimento de projetos com os referenciados “povos
indígenas do Brasil”, apontando para alguns pontos de partida.

A proposta nasce do projeto semente apresentado ao Lab Moda


Sustentável, pelo grupo de trabalho conduzido por Julia Vidal da
empresa Julia Vidal: etnias culturais, junto as integrantes Nina Braga
e Andrea Monteiro do Instituto E, Taciana Abreu da empresa Farm,
Flávia Aranha da empresa Flavia Aranha e desemboca em uma sé-
rie de debates realizados no Seminário Moda, Arte e Culturas Indí-
genas conduzidos no Programa de Pós Graduação de Relações Ét-
nico Racias (PPRER/CEFET-RJ), em parceria entre o Observatório
de Histórias, Culturas e Literaturas Indígenas (OHCLI/NEAB - Nú-
cleo de Estudos Afro Brasileiros/CEFET-RJ), o Grupo de Trabalho:
Laboratório de vivências e trocas de saberes originários: experiên-
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| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

cias de saber na américa indígena e a Universidade Indígena Pluri-


étnica Aldeia Marakanã (UIPAM). Os encontros e consultorias re-
alizadas pela Associação Raízes da Tradição (ART) à iniciativa, nos
permitiram refletir sobre os “lugares privilegiados da memória e
do conhecimento” (como Universidades e museus) e datas emble-
máticas (como o Dia do Índio) na divulgação de informações e na
formação de uma nova imagem sobre os indígenas do Brasil.

Outros eventos acompanharam a construção coletiva do conte-


údo do projeto e Livreto, como o Seminário Moda, Arte e Culturas
Indígenas; entrevistas às diversas empresas de moda que apresen-
taram seus estudos de casos de coleções e/ou produtos de moda de-
senvolvidos em parcerias com indígenas; exposição de artesanato
indígena; performances culturais; consultorias; palestras; etc.

A organização desta publicação é constituída por Julia Vidal:


Etnias Culturais em parceria com a Editora Universidade Indíge-
na, que nasce para publicar conteúdos sobre o protagonismo in-
dígena. A obra recebeu o apoio institucional e financeiro do Lab
Moda Sustentável e o seminário contou com o apoio cultural ao
do Instituto E e Coco legal.

O Grupo de trabalho Laboratório de Vivências e Trocas de Sa-


beres Originários é formado por Mônica Lima, Julia Vidal, Dilmar
Puri, Márcia Ribeiro Ramos e conduzido por Nadson de Souza
diretor do OHCLI/NEAB-CEFET-RJ. Agradecemos à CAPES pelo
apoio aos bolsistas desta pesquisa científica.

Os consultores convidados são Ana Paula Jones e Wilson Costa


da Associação Raízes da Tradição. Os Voluntários que contribuíram
para a produção do Seminário são Letícia Tosta e Leandro Ribeiro.

Nossos agradecimentos vão ao povos que compõem a Univer-


sidade Pluriétnica Indígena Aldeia Marakanà sem os quais não se-
ria possível elaborar o conteúdo desta publicação.
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Introdução

Longe de serem reapresentados como depositários de relíquias de


uma cultura do passado, temos que compreender os povos indíge-
nas atuais como construtores de uma cultura viva e eficiente (sim-
bólica, moral e política), como atores situados em um contexto
preciso de elaboração e reelaboração de formas múltiplas de uma
cultura regional e brasileira.
É nessa vertente de pensar o Brasil, sua estética e representa-
ções identitárias e culturais, como um entrecruzamento de povos
e culturas distintas, cuja singularidade e originalidade temos por
função investigar e esclarecer, que nos interessa situar a discussão
a partir do protagonismo indígena.
“Cosmovisões X Moda: Qual a sua Tendência? – Contribuições
e Proposições Para uma Moda Étnica e Ética” está conceituada em
três espaços distintos: Imersão (Mergulho), Construção (Encontro)
e Caminhos (Diretrizes).
Ao final, pretende-se capacitar o viajante /leitor a “exercer pe-
rante aos povos indígenas uma visão compreensiva de natureza
histórica e social, bem como favorecer um processo de reavalia-
ção afetiva entre o “nós” e do “eles” , baseada na admiração esté-
tica e no despertar de emoções e sentimentos propiciando uma
nova identificação positiva com as nossas coletividades”, como
afirma João Pacheco de Oliveira na exposição temporária de 2007
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| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

“Índios: Os Primeiros Brasileiros”, nosso trabalho se baseia nessas


premissas e desafios.

O Livreto visa contribuir para que possamos desenvolver uma


moda mais ética, étnica, indígena e com princípios de trabalho
que promovam a cultura e respeitem os costumes, os modos de
ser e fazer dos povos originários. Buscaremos apontar e comparti-
lhar boas práticas para o relacionamento profissional e pessoal, de
forma a contribuir para com uma conduta mais diversa, inclusiva,
sustentável e ética.

Eixos Temáticos e Temas Correspondentes:


1. Cultura e Arte Indígena:
» Como trabalhar a Moda com os Povos Originários?
» Como trabalhar com comunidades indígenas de forma ética?
» Premissas de uma Moda étnica e ética
» Qual a Moda com Identidades Indígenas do Brasil?
» Espaço e Território: Lugares de encontros e trocas entre po-
vos originários e destes povos com as populações urbanas.
2. Diversidade Cultural:
» Quais são as formas de apropriação cultural?
» Quais são as Políticas Culturais relacionadas aos povos in-
dígenas desenvolvidas no Brasil?
» Quais Direitos e Liberdades Culturais estão sob ameaça?
3. Propriedade Intelectual:
» Preservação de patrimônio material e imaterial;
» Saberes e fazeres tradicionais (Inventários e Tombamentos).
4. Cosmovisões, Cultura e Mercado:
» Consumo e Desenvolvimento;
» Mercado e Indústrias Criativas.
» Economia Criativa: Moda.
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TEMAS CONTEÚDOS E PALESTRANTES

Dia 1 O que é ser índio? » Abertura: Alejandro Navas.


– Cosmovisão, - Ser indígena: Dilmar Puri.
21 Cultura e Arte - Arte indígena: Julia Xavante.
janeiro Indígena. - Processo de criação e representação indígena:
2020 Júlia Vidal.
» Convidados para Roda de Conversa:
Local: - Tapixi Guajajara, Wendell Braulio
Auditório V (IFSULDEMINAS), Patrícia Nogueira e Associação
CEFET-RJ Raízes da Tradição.

Dia 2 Indústria Criativa, » Abertura e encerramento: Tapixi Guajajara e


Sustentabilidade Marmiry Guajajara.
27 e Consumo - Primeira marca de moda criada por uma indígena:
janeiro – Os Desafios da We´e´na Tikuna.
2020 Identidade Cultural - Estudo de caso: Coleção Ashaninka (Osklen) e
Indígena nas Relações pesquisas de inovação do Instituto E - Nina Braga.
Local: com Mercado da - Estudo de caso: coleções afro indígenas Julia Vidal:
Auditório V Moda. Etnias Culturais.
CEFET-RJ » Convidados para a roda de conversa:
- Tapixi Guajajara, Julia Xavante, Dilmar Puri,
Aline Monçores (UVA), Lab Moda Sustentável
e Associação Raízes da Tradição.

Dia 3 Como preservar o » Abertura e encerramento: Tapixi Guajajara e


patrimônio cultural, Marmiry Guajajara.
03 propriedades e - Direito e moda: Comissão dos Direitos da Moda
fevereiro direitos indígenas da Associação Nacional Brasileira de Advogados -
2020 em políticas culturais? Renata Cassini.
– Preservação - Coletivos da Nova Era: Ana Paula Jones da
Local: patrimonial Associação Raízes da Tradição.
Auditório V material e imaterial - Culturas híbridas e apropriação cultural: Julia Vidal
CEFET-RJ e propriedade - Educação com povos Huni kuin: Vanessa Rosa
intelectual » Roda de Conversa: Tapixi Guajajara, Sandra Benites
Guarani, Dilmar Puri e Lylian Berlim (ESPM).

Dia 4 Podemos construir » Abertura e encerramento: Tapixi Guajajara e


uma moda étnica Marmiry Guajajara.
10 e ética, preservando - Imersão: Viver em uma aldeia Pluriétnica com
fevereiro a estética? Cacique José Urutau Guajajara, Mônica Lima
2020 – Imersão, Caminho, Manau, Dilmar Puri, Júlia Xavante, Tapixi
Construção e Direção. Guajajara, Anibal Guajajara, Ash Ashaninka,
Local: Alejandro Navas, Julia Vidal, Vanessa Rosa, Ana
Aldeia Paula Jones, Wilson Costa e indígenas residentes
Marakanà na Aldeia Marakanà.

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REGISTROS
IMERSÃO
(Mergulho)

O que é ser indÍgena?


Dilmar Puri1

É quase impossível definir indígena em poucos parágrafos, porém


tentaremos falar resumidamente sobre o assunto, já que qualquer
obra que pretenda falar sobre a questão, precisa explicar como
está sendo usado esse conceito.

O tema é complexo porque, essencialmente falando, o indíge-


na não existe. Na realidade isso também já informa sobre o nosso
próprio modo de ver o mundo, que é antiessencialista. Quem in-
ventou que as coisas tinham nelas uma essência imutável foram os
europeus, particularmente um branco chamado Platão que viveu
na Grécia antiga, uma sociedade escravagista. Para ele essa essên-
cia seria subjetiva e só poderia ser alcançada pelos melhores estu-
diosos, os filósofos. Mas esse não é nosso ponto de vista, o método

1 Dilmar Puri é bacharel em filosofia pela UERJ, mestrando em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET-RJ e
integrante da Universidade Pluriétnica Indígena Aldeia Maracanã. O povo Puri é originário do que hoje se
conhece como Estado do Rio de Janeiro, sul do Espírito Santos, Norte de São Paulo e uma parte considerável
de Minas Gerais.

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| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

empregado por nós para definir indígena é o histórico e sócio-po-


lítico, com alguns “toques” de filosofia da diferença.

Sabemos que os invasores quando chegaram aqui nos nomea-


ram de índios e que isso remetia à Índia, o lugar que dizem que eles
buscavam atracar quando pararam nessas terras. Ultimamente nós
do movimento indígena lutamos para que deixem de nos chamar
assim, não só por acharmos pejorativo, mas também porque não é
correto fixarem esse nome em todos nós, uma vez que não somos
uma coisa só, somos hoje mais de trezentas nações convivendo
nessa terra que chamam de Brasil (antes da invasão e das matanças
deveriam ser até mais povos)2.

Mesmo dentro de cada povo, de cada nação, temos diferenças e


subdivisões, então teríamos que multiplicar essas mais de trezentas
nações e povos, se quiséssemos chegar a um número. Mas o branco,
com sua preguiça, resolveu colocar tudo no mesmo balaio afim de
facilitar o seu trabalho de colonização e roubo de tudo que temos:

“É índio, pode matar!”

Como inventaram essa nomenclatura e por que


a partir de um momento chamaram um certo
tipo de pessoas de índios?
Já vimos que quem inventou este nome foram os brancos, mas
para entendermos como foi temos que retroceder rapidamente e
ver como eles inventaram outro conceito, o de homem.

2 Segundo o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado
em 2010, 274 línguas indígenas eram faladas por indivíduos pertencentes a 305 etnias diferentes e estudos do
linguista brasileiro Ayron Rodrigues, estima que em 1500, haviam pelo menos 1.175 línguas indígenas. Portanto,
nesses 500 anos quase mil idiomas foram extintos no Brasil, uma consequência do extermínio da população
indígena e da perseguição a essas línguas, presente por séculos na história brasileira. https://escolaeducacao.
com.br/quantas-linguas-indigenas-existem-no-brasil/

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Foi o filósofo grego Aristóteles que criou primeiramente o
conceito de “homem”. Ele disse o seguinte: “O homem é o animal
racional”. O que ele queria dizer, na verdade, era que o homem
era superior aos outros animais por poder pensar de acordo com
certos métodos. Mas não se animem, pois na sua concepção, nós
não éramos homens. A nomenclatura homem era destinada ao ci-
dadão ateniense, isto é, aos oligarcas do Estado grego da época.
Estavam excluídos os gregos pobres, todas as mulheres e os es-
trangeiros (chamados de bárbaros). Podem imaginar então como
esse conceito serviu muito bem para os interesses do Estado grego
de então, um Estado escravagista, como já dito anteriormente. A
Grécia antiga é louvada aos quatro ventos como a primeira demo-
cracia do mundo, mas o que eles chamavam de democracia era só
a forma de governo do Estado e só funcionava para uma ínfima
parte da população da época.

Posteriormente com a filosofia moderna, Kant (que foi um filó-


sofo alemão) alterou o conceito de “humano” e a sociedade utiliza
essa nova forma até hoje. Ele abandonou o conceito exclusivista
de Aristóteles e afirmou que todas as pessoas eram humanas, in-
dependentemente de onde tivessem nascido, do seu gênero ou sua
classe social. Portanto ele generalizou e universalizou o concei-
to. Mas é preciso termos cuidado novamente, pois, com essa mu-
dança, ele criou um vínculo automático e aprisionou todo mundo
nesse conceito europeu que, antes de conferir direitos, impõe uma
série de obrigações, valores e costumes aos povos. É a chamada ci-
vilização que ele impôs aos povos. E o modelo de civilização é eu-
ropeu, então com essa mudança os europeus se colocaram como
detentores dos valores superiores no mundo inteiro. Este conceito
novo caiu como uma luva nas mãos dos colonialistas europeus.
Assim como o conceito de homem aristotélico havia se ajustado
perfeitamente ao Estado grego.
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| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

Assim, por exemplo, a pessoa que nasce lá na Nova Zelândia, ela


não pode escolher. Não a perguntam se ela quer ou não fazer parte
disso que chamam de “homem”, desse conceito que foi criado na
Europa. Não perguntam a ela sobre o povo dela, os costumes, no
que ela acredita. Ela passa automaticamente a ser “homem”. Ou o
cara que nasce lá na África do Sul, ele é “homem”. A mulher que
nasceu lá no Maranhão, numa Aldeia Guajajara, ela é “humana”. A
sociedade não quer saber da cosmovisão Guajajara, se combina ou
não com o conceito europeu, ela já nasce “humana” e ponto.

Sendo assim, junto a esse conceito universalizante de “huma-


no” os brancos criaram o conceito de “índio”, que na visão deles é
o atrasado, o primata; aqueles que ainda não chegaram ao estágio
“superior” da civilização. E também criaram o conceito de “negro”,
como raça inferior. O termo negro vem de “necro”, que significa
morte ou corpo morto, de forma a justificar o assassinato e escravi-
zação em muitas partes do mundo ao longo da história. Neste con-
texto, a luta dos indígenas tem sido para provar que não são atra-
sados, que suas sociedades são tão ou mais sofisticadas que a dos
brancos; e a luta dos negros têm sido para provar que não são uma
raça inferior, que têm a mesma ou mais capacidade que os brancos.

Ao longo da história, a sociedade tem trabalhado com esses


três conceitos: o homem, o índio e o negro, eles funcionam como
etiquetas que a sociedade fixa para hierarquizar: “Aquele ali é in-
dígena, aquele outro é o negro”. Essa ideologia é tão arraigada, tão
impregnada em nossos inconscientes, que operamos sem nem
mesmo perceber que ela existe.

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O que fazer então com o termo indígena,
que quer dizer nativo, jogamos fora?
Pensamos que não, porque mesmo que sejamos centenas de po-
vos diferentes, compartilhamos de muitos costumes e temos um
inimigo em comum: o colonialismo. Deste modo, indígena se re-
fere àquilo que nos une culturalmente e politicamente, enquanto
o nosso povo é aquilo que nos diferencia enquanto indígenas. Por
exemplo: eu sou indígena e Puri (ou indígena do povo Puri, como
também é dito) não posso ainda me intitular somente como Puri,
porque muita gente desconhece que se trata de um povo nativo
brasileiro e porque não posso deixar de me engajar na luta dos
demais parentes, que estão tendo que resistir a duros ataques. Do
mesmo modo, não posso deixar de assinalar a particularidade do
meu povo, a diferenciação que ele opera dentro do cenário geral
do movimento indígena.

Existe ainda outro importante acento no nosso conceito de in-


dígena: ele não se refere só aos povos nativos das Américas, como
geralmente ocorre. Estendemos essa condição aos povos de todas
as partes do mundo que tenham, ou mesmo reivindiquem, deter-
minadas características culturais. Assim sendo, a pessoa pode ser
indígena de alguma região da África, Oceania, Ásia ou até mesmo
da Europa.

No Brasil, temos que fazer um parêntese no que diz respeito ao


racismo e sua forma de operar socialmente. Mesmo que a pessoa
seja indígena, de qualquer povo brasileiro, ou de qualquer outra
parte do mundo, estando aqui, quanto mais clara for a sua pele
menos ela sofrerá racismo e, provavelmente, terá acesso a mais
privilégios. Essa condição é estrutural, independe da pessoa que-
rer que seja assim ou não. Mesmo antes de nascer, o fato dos pais

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| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

serem mais ou menos pretos define o tipo de tratamento ou vio-


lência a que estarão sujeitos, e não importando se a pessoa se re-
conhece como negra, indígena ou mesmo branca. Nesse sentido, a
cor da pele e traços fenotípicos no Brasil contam muito.

Uma pergunta que cabe agora é a seguinte: o que torna uma


pessoa indígena e o que serve para respaldar seu pertencimento?
Há algumas décadas era o próprio Estado brasileiro, que nos mas-
sacra e persegue, a quem cabia respaldar formalmente essa con-
dição de pertencimento através do Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) e depois pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que o
sucedeu; o que por razões óbvias era por demais absurdo. O que
“justificava” essa situação eram basicamente duas noções: (1) a de
que nós indígenas éramos incapazes e por isso tínhamos que ser
tutelados; e (2) a noção de que os selvagens viviam numa cultura
ultrapassada que estava fadada a desaparecer inevitavelmente, por
isso nós indígenas tínhamos que ser integrados à sociedade nacio-
nal superior por qualquer meio (em uma sociedade colonial, esta
noção “justificava” sermos colonizados). E estas eram ideologias de
Estado às quais todos os partidos, de esquerda ou direita, comun-
gavam, alguns mais truculentamente, outros aparentando alguma
“suavidade” em discurso.

Essa situação só começou a mudar por aqui com a constitui-


ção de 1988 – devido à luta de nossas lideranças na época, destaco
duas: Aílton Krenak e Davi Kopenawa. Atualmente a situação legal
que informa quem é indígena ou não, se dá através da autoafirma-
ção de pertencimento e o reconhecimento do povo que se afirma
pertencer. A situação legal evoluiu pelo fato de não dependermos
mais do Estado e de seus antropólogos para definirem quem nós
mesmos somos. Porém as leis, por mais que sejam importantes
na luta pela garantia de direitos, não alteram automaticamente as

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mentalidades e por isso ainda temos muito trabalho de esclare-
cimento para fazer até que a maioria da sociedade compreenda
que nós, com nossas culturas, não somos inferiores por sermos
indígenas. Somente assim os povos indígenas do Brasil alcançarão
suas independências e autonomias verdadeiras, sendo este um tra-
balho que vai durar muitas gerações ainda.

Desta forma, apontamos que as empresas de moda que qui-


serem se aliar aos povos originários, podem nos ajudar muito se
tiverem paciência e quiserem que o Brasil se torne cada vez mais o
que ele realmente é, um país indígena. É uma questão de tomada
de consciência da população brasileira a respeito da sua própria
condição no mundo.

Existe um outro aspecto muito importante


para que se comece a entender o que é ser indígena
É preciso entender que em 1500, quando os invasores aqui chega-
ram, nós vivíamos naquilo que alguns estudiosos europeus chama-
ram de comunismo primitivo, tendo em vista que não eram ad-
mitidas classes e nem propriedade privada nas culturas dos nossos
povos (ou, se existia, era tolerado só em um nível insignificante). Pois
então os invasores começaram a nos impor o seu próprio modo de
vida, o que foram conseguindo aqui e ali pela cruz e pela espada.

E qual era o modo de vida, a organização social que os invaso-


res traziam? Sabemos que eles viviam na Europa nessa época no
declínio das sociedades feudais e começo da ascensão burguesa.
As ditas “grandes navegações” e depois o tráfico transatlântico de
pessoas escravizadas são tidos como os primeiros grandes empre-
endimentos capitalistas da história, antes mesmo da Revolução
Industrial. E é esse tipo de relação capitalista, que eles achavam

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| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

mais modernas e desenvolvidas, que começaram a impor aqui. E


continuam impondo até hoje, como bem salienta Aílton Krenak.

Então se entendemos isso, se entendemos a enorme distância


existente entre a sede de lucros que move o empreendimento co-
lonial capitalista de um lado e o modo de ser, de bem-viver, total-
mente livre e simples do indígena do outro lado, conseguiremos
entender que a luta indígena é uma luta anticapitalista. Porque
nossa meta é se envolver e se apegar cada vez mais à natureza,
enquanto que a meta do capitalista, ao contrário, é se desenvol-
ver da natureza, é se desapegar da natureza. Isso é assim porque o
capitalismo, via de regra, não admite diferenças, não admite nada
que esteja fora do seu arcabouço, por isso precisa precificar tudo e
colonizar a todos, até nos mais distantes rincões da Terra. Por essa
razão, não pôde deixar de criar o sistema-mundo em que vive-
mos. O capitalismo, como filho legítimo do racionalismo europeu,
é também uma filosofia exclusivista que não admite que outros
mundos possam existir em paralelo ao seu.

Para que a parceria entre empresas de moda e povos indígenas


possa se desenvolver da melhor maneira possível, é importante
que os dois lados em questão tenham plena consciência dos riscos
e das concessões que estarão fazendo: as empresas devem estar
cientes que terão que se envolver com a natureza e as causas dos
povos indígenas e portanto estarem preparadas para percorrer um
caminho diferente do que estão acostumadas que é o do desen-
volvimento; já os povos tem que estar plenamente conscientes do
risco que representa a tara do capitalismo por destruir tudo e a
incapacidade dele de conviver e respeitar a diferença e o sagra-
do das outras culturas. Não é uma tarefa fácil para nenhuma das
duas partes, por isso uma das nossas contribuições é para que as
relações se deem aos poucos e ao longo do tempo, que sejam apro-

22
fundadas devagar, conforme os frutos amadureçam e cheguem ao
ponto da colheita.

Para finalizar, gostaria de contribuir


com mais alguns assuntos, mesmo que brevemente
» O acordo escrito para indígenas não tem o mesmo peso que
tem para a cultura dos brancos. Nós indígenas não nos curva-
mos ao sistema representacional, porque não é oriundo das
nossas tradições. Podemos até trabalhar através dele por al-
guma necessidade, mas qualquer acordo feito nesse sistema
não-indígena pode ser desfeito a qualquer hora e por qual-
quer motivo. Para entender melhor basta compreender que
a representação, assim que estabelecida, começa a funcionar
como uma espécie de Estado em embrião e que a luta dos
povos indígenas é, por natureza, uma luta contra o Estado.
Uma pessoa que entendeu muito bem isso foi o antropólogo
europeu Pierre Clastres;

» A principal luta dos povos indígenas é pela terra. Então,


quem quiser se aliar aos povos indígenas é bom que ajude no
processo de autodemarcação e na manutenção dos parentes
na terra;

» É importante romper o preconceito do indígena enquanto


coitado. Na realidade, na nossa visão, coitado é quem vive
na cidade, no meio da fumaça de epidemia, bebendo água
suja e cheia de química, comendo comida estragada e in-
dustrializada;

» Nas nossas cosmovisões as coisas são amalgamadas e não


tudo separadinho em caixinhas como se ensina nas escolas
dos brancos. Isso é muito importante de saber, porque um di-

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| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

álogo sobre uma coisa que pode parecer desimportante e que


esteja acontecendo num clima até descontraído, pode evoluir
rapidamente para um assunto complicado ou sagrado e para
um clima tenso. Então se você está conversando sobre moda,
sobre uma roupa ou uma vestimenta, sobre um grafismo,
saiba que você está lidando ao mesmo tempo com tudo que
envolve a vida daquele povo, coisas que o não-indígena não
é capaz de fazer a mínima noção do que seja, e que está tudo
sendo considerado ao mesmo tempo ali junto. Por isso é tão
importante que estas relações sejam construídas devagar;

» E por último, minha contribuição mais importante: é im-


possível aprender as culturas indígenas de maneira indireta
como aprendemos a cultura dos brancos, através de livros e
meios afins. O livro foi criado e difundido por não-indígenas
e é um meio adequado para a cultura deles. O universo indí-
gena não cabe no papel, só se aprende através de vivências.
O pajé Ianomâmi Davi Kopenawa escreveu um livro de 700
páginas, mas você pode lê-lo 100 vezes e não aprender abso-
lutamente nada, porque é preciso vivência para acessar aque-
la riqueza, é necessário uma espécie de intuição indígena pra
poder entrar na frequência do que ele está querendo ensinar.
Até para nós que somos indígenas de um determinado povo
é difícil de entender indiretamente o que passa um outro
povo diferente do nosso, imagina quanto deve ser impossível
essa tarefa para o não-indígena. Portanto se quiser entender
sobre um determinado povo, não adianta ler “milhões” de
livros sobre o assunto, tem é que ir lá viver o dia-a-dia com
aquele povo, exercendo a humildade da escuta e comparti-
lhando a experiência do trabalho braçal lado-a-lado. Nesta
viagem só tome cuidado para não acabar se apaixonando e se
tornando mais um indígena nesse processo.
24
Como a Moda pode se relacionar
com as culturas indígenas?
Julia Vidal3

Para uma questão de entendimento da relação entre a moda e a di-


versidade cultural indígena, se faz necessário compreender o sig-
nificado do termo moda. Desta forma, divido as diferentes abor-
dagens em três perspectivas amplas:

» Na perspectiva cultural, a moda se apresenta nos modos de


agir, sentir e nos costumes sociais. Ela se relaciona com um
conjunto de códigos culturais que fazem sentido para uma
determinada sociedade.

» Na perspectiva estatística, a moda é um termo que representa


o maior número de incidência de um determinado costume.
Seu significado não se restringe somente ao vestuário, mas a
uma amostragem de grande representatividade em definido
contexto. Neste sentido, tratamos da moda que se relaciona
com uma grande parte da população através do uso massi-
ficado de um produto, cor, estilo, etc. Esta esfera da moda
se relaciona intimamente com o consumo de massa, com a
produção em série da era industrial e com o capitalismo.

» Na perspectiva sociológica, o termo “moda” – que vem do


latim “Modus” – se refere a um estilo de vestir-se de uma de-
terminada sociedade, restrito a um tempo específico.

3 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do CEFET/RJ, designer


de moda, gestora da empresa Julia Vidal: Etnias Culturais, ministra cursos sobre culturas africanas e indígenas
na moda no IED (RJ e SP). É autora dos livros “O africano que existe em nós, brasileiros: Moda e Design afro
brasileiros” e “Quintal Étnico”.

25
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

Quando pensamos na possível relação entre a diversidade cul-


tural dos povos indígenas brasileiros e a moda, estamos tratando
da sua perspectiva cultural. Afirmo isso porque o conjunto de pro-
duções de uma sociedade indígena, faz parte de uma rede com-
plexa de simbolismos estéticos, culturais e espirituais que nunca
se descolam um do outro, como nos apontou Ash Ashaninka nem
nosso seminário: “O que tem que acontecer é um olhar quântico”.

As estéticas que cobrem o corpo indígena, sejam elas pinturas,


adornos ou vestuários, estão diretamente relacionadas a existência
destes povos, não só pela função de proteção, mas também porque
elas nunca se descolam da identidade coletiva e da espiritualidade
deles. Neste sentido, a “moda indígena”4 se perpetua ao longo de
milênios, passando de geração em geração de um determinado
grupo étnico, ao longo de toda sua reexistência.

Desta maneira, como algumas vezes foi ressaltado nos debates


indígenas, as representações estéticas que vestem seus corpos, não
se relacionam com uma tendência, nem mesmo com princípios
capitalistas, que geram tendências enquanto estratégia de consu-
mo, mesmo que sua amostra estatística seja altamente representa-
tiva entre um determinado grupo étnico.

A “moda indígena” irá se relacionar com as tendências dos ci-


clos da natureza (sazonalidade), com a diversidade do seu ecossis-
tema (territorialidade), com suas cores, formas, materiais disponí-
veis, dentre outros elementos. Esta moda também busca caminhos
diferenciados para dialogar com a sociedade brasileira, e foi apon-
tada por We´e´na Tikuna como uma ferramenta estratégica para

4 Uso do termo “moda indígena” entre aspas, porque de fato ele é inexistente. Aqui será designado para
abordar as formas de representação espirituais que cobrem os corpos dos povos indígenas brasileiros e que se
relacionam com a perspectiva cultural da palavra moda.

26
se fazer política. A criadora da primeira marca de moda brasileira
dirigida por uma indígena, nos contou sua relação com a moda ao
longo do Seminário:

“a primeira moda indígena sendo eu a própria protagonis-


ta, da minha própria história. Porque por muitos séculos,
por muito tempo, nós indígenas sempre somos ´tutela-
dos`, sempre era a segunda ou terceira pessoa falando por
nós, nunca o indígena sendo o seu próprio representante.
E hoje, através da moda, eu posso representar a minha
cultura sendo a minha própria voz da minha resistência.
Então, isso que a moda representa para mim, nos dias atu-
ais, é a minha resistência”.5

Neste sentido, indígenas vêm se relacionando com a moda de


forma política, na busca por protagonismo, autonomia e visibili-
dade para o seu povo.

O que é e o que representa o grafismo indígena?

“Eu fico com os dois pés atrás com a moda, porque


a moda é moda porque é descartável. O que hoje
é moda amanhã não é e será outra coisa. Esses
grafismos que eu trouxe para vocês são milenares,
centenários, e não é moda.”
Julia Xavante

5 Transcrição da entrevista remota durante o Seminário 27 jan de 2020.

27
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

Ao longo dos debates com membros de 7 povos indígenas brasi-


leiros, foi enfatizada a distância entre os grafismos indígenas e a
tendência de moda. Segundo a professora de artes, Julia Xavan-
te, grafismos são de dimensão social coletiva, sagrada e de caráter
permanente para os povos indígenas.

Quando os primeiros europeus chegaram ao Brasil, os povos


originários brasileiros não estavam nus, eles usavam coberturas es-
téticas que apresentavam um conjunto complexo de códigos cul-
turais e sociais, que mesmo passados mais 500 anos das invasões a
estas etnias, a cultura brasileira ainda não está apta a decodificá-las.

Julia Xavante nos chama a atenção aos grafismos, enquanto


“uma forma de grafia, uma forma de escrever” que nos fornece sig-
nificados, saberes, tradições, enfim códigos sócio culturais. Ela faz
uma comparação destes com uma sinalização presente no unifor-
mes militares, que demonstram sua patente, assim como os de-
senhos das placas de trânsito, que nos levam a compreender uma
série de convenções sociais em uma via pública. Quando você não
foi alfabetizado naquela cultura, língua, códigos, você é incapaz de
ler e decodificar as mensagens. Esta é a situação do não indígena
quando se depara com um grafismo: ele não consegue ler os códi-
gos e as mensagens que estão ali escritas. Esta decodificação se difi-
culta, ainda mais, devido a estrutura racista de nossa sociedade que
ao apresentar grafismos indígenas ressaltando apenas sua estética,
contribuem para a dissociação da sua complexidade, esvaziando
seus significados e as propriedades intelectuais e espirituais, pre-
sentes nos magníficos grafismos dos povos originários brasileiros.

Lux Vidal (2000, p.13) define grafismo como “manifestações


simbólicas e estéticas centrais para a compreensão da vida em so-
ciedade”, que nos possibilita um entendimento social. O grafismo
se compõe de significante e significado. Seu significado vai além da
28
leitura de sua forma concreta, para alcançar a dimensão simbólica
precisamos compartilhar dos valores culturais e sociais do grupo
étnico. Como exemplo, mesmo que um grafismo se componha por
“simples” “tracinhos”, ou “bolinhas”, suas formas apresentam uma
rede ampla de significados, que estão sintetizados em uma unida-
de mínima significante, este foi um conceito debatido por autores
indigenistas, a partir da década de 80, que buscaram explicar que a
unidade mínima é uma concepção essencial do referente.

Os grafismos indígenas não estão restritos a um determinado


momento, são uma codificação espiritual e social permanente,
usados pelos que nasceram naquela ancestralidade. Sua relação
não se compara a um estilo ou tendência que se restringe a um
período histórico ou a um território geográfico, tampouco a um
único povo. As diversas cosmovisões indígenas não reconhecem
as fronteiras do mundo ocidental eurocentrado. Sua relação com
a natureza se amplia, de forma que sua identidade e suas represen-
tações se fundem com a própria fauna e flora constituintes do seu
ser. O território e o ser indígena estão em simbiose, de forma que
o corpo traz em unidades mínimas significantes todo seu entorno,
como forma de fortalecimento de sua própria existência e espiri-
tualidade. Ao longo dos debates surgiu o conceito de “corpo ter-
ritório” dado pelo filósofo Dilmar Puri, acredito que o termo nos
ajuda a compreender esta conexão profunda dos povos indígenas
com o território ao qual eles pertencem e interagem. Estendemos
esta visão à conceituação de Raul Lody (2015, p.27), que apresenta
a indumentária como “um território de identidade experimenta-
da no corpo”.

Ao longo do Seminário de produção desta publicação, a pro-


fessora e historiadora de moda Aline Monçores ressaltou a dife-
rença entre indumentária e moda, sendo a primeira relacionada à

29
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

dimensão cultural e às culturas tradicionais e a segunda relaciona-


da à dimensão política e econômica:

“Quando a gente está falando do século XIV e quando a


gente posiciona isso na Europa, estamos falando de um
contexto não só cultural, mas político e econômico. Então,
a moda como uma ferramenta política e econômica, que
a partir do século XVIII, com a consolidação de uma con-
figuração de grupo, de um extrato social burguês e uma
ascensão, do que a gente chama de sistema econômico ca-
pitalista, a moda é utilizada como meio de troca e poder
(...) estratégias de comercialização são usadas como meio
de alavancar esse pertencimento, mas com uma finalida-
de muitas vezes política e econômica. Não só no político,
no sentido político governamental, mas no político den-
tro da minha estratégia, do meu grupo, entende?”6

Ressalto neste momento de imersão na história da moda, o


impasse da moda que valoriza e se ancora na dimensão cultu-
ral sendo capturada pelas estratégias econômicas e políticas, que
buscam conquistar um mercado consumidor cada vez maior, in-
centivando o consumo desenfreado, ampliando sua ação e sua
influência política, para além de suas fronteiras geográficas. Nos
anseios de transformar bens culturais em bens de consumo, nos
deparamos com a apropriação cultural e as estratégias que confi-
guram este cenário.

6 Transcrição da fala durante o Seminário 27 jan de 2020.

30
Quando a moda brasileira se apresenta, ela homenageia
aos povos indígenas ou faz uma apropriação cultural?

“A Moda é uma palavra inventada para poder


subjugar a cultura do outro, para discriminar
a pluri diversidade. Moda é isso. Os grandes
prêmios que o sistema cria para proporcionar o
protagonismo, na realidade ele comete um etnocídio
ao se declarar como um conceito unânime, no
conceito que os outros têm que enxergar, somente
pode ver isso, porque a publicidade irá fazer isso,
ela irá publicizar aquilo que a moda rege. Então,
nós entendemos que quem criou e inventou a moda
entende de magia, de espiritualidade, de cores, de
um enxergar na percepção do olhar do outro, como
que o outro vai enxergar e vai induzir o outro.
Então eu chamo isso de hipnotismo, um hipnotismo
estético, que subjuga o outro...”
Ash Ashaninka7

No Brasil tivemos um processo de formação cultural híbrida, onde


nossa identidade cultural se faz a partir das matrizes culturais dos
diversos povos indígenas, que habitam o território brasileiro, as
etnias européias que invadiram os territórios indígenas e etnias
africanas que foram trazidas enquanto escravizados para o traba-
lho na terra brasileira.

7 Transcrição da fala durante o Seminário 10 fev de 2020.

31
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

Quando pensamos em moda brasileira, traz-se o conceito em-


butido de uma moda que se alimenta deste repertório multicultu-
ral, porém devemos compreender as estratégias envolvidas neste
jogo de poder, que irão promover a diferença entre a moda brasi-
leira e moda étnica, por exemplo.

À moda étnica se reservou o lugar do “outro” sob ponto de vista


eurocentrado. Desta forma, a esta moda, atribui-se o estereótipo da
estética exótica às vestimentas africanas e indígenas. Porém, quan-
do a moda brasileira se impõe enquanto moda nacional, hegemô-
nica e multicultural, sua estética e discurso irão estabelecer padrões
de consumo e de beleza centrados nas culturas europeias e norte
americanas, reforçando uma marginalização e um reducionismo
mediante a diversidade e intelectualidade das demais estéticas.

Podemos compreender mais sobre a formação do Brasil, en-


quanto nação, no âmbito da cultura, quando analisamos a sua
constituição enquanto Estado-nação, que buscou representar co-
letivamente saberes e formas de expressão em torno de uma iden-
tidade cultural coletiva e nacional. Uma nação é uma comunidade
simbólica e, segundo Schwarz (1986), é isso que explica seu poder
de gerar o sentimento de identidade e de lealdade. Sendo assim,
quando se trata de cultura, podemos construir um imaginário
que tende a uniformizar e aniquilar as diversas identidades que as
compõem. Nas palavras de Munanga (2008, p. 94) “a ideia de uma
nova etnia nacional traduz a de uma unidade que restou de um
processo continuado e violento de unificação política por meio de
supressão das identidades étnicas”.

Nos processos de fusões e hibridização encontramos o concei-


to de multiculturalidade, que nos sugere uma existência de múlti-
plas culturas em coexistência harmônica. Na análise desta formu-
lação, ressalto os questionamentos de Dussel (2016) que apontam
32
a assimetria do termo, onde uma cultura se sobrepõe as outras
culturas, criticando a possibilidade de uma construção simétrica
no diálogo cultural e nos apresentando a hierarquização da lógica
colonial que vai alocar as demais culturas como inferiores à cultu-
ra do grupo hegemônico, favorecendo incorporações de diferen-
tes culturas em uma única.

No contexto internacional, na busca pela moda de identidade


nacional veremos sempre uma negociação entre o global e o lo-
cal, que irá incorporar elementos simbólicos do banco de dados
global/local a fim de conquistar novos mercados consumidores e
ao mesmo tempo buscar se diferenciar evidenciando os simbo-
lismos regionais para construir sentidos de pertencimento e (re)
valorização de diferenças. No contato diante os deslocamentos de
identidade, desde a era moderna, que se inicia nas expansões ma-
rítimas até as contemporâneas expansões tecnológicas na globali-
zação, acontecem os intercâmbios, assimilações8, aculturações9 e
apropriações culturais.

A apropriação cultural irá se dar quando na disputa capitalis-


ta, símbolos de uma cultura historicamente marginalizada sofrem
esvaziamento de seus significados dirigidos a um apagamento cul-
tural. No contexto da moda, que encontra nas formas de expres-
são das espiritualidades indígenas um rico repertório estético e
cultural, ao buscar produtizá-las, pode “impossibilitar os diálogos
na diversidade e construir discursos universais, condenando gru-
pos marginalizados a um extermínio disfarçado de integração”,
não se fazendo enquanto “homenagem, mas enquanto uma ferra-

8 “...fusão de subculturas ou contato entre culturas rurais e urbanas.” (William, Rodney, p.33, 2019).

9 Culturas que se fundem e dão origem a uma nova cultura. Fusão cultural completa de grupos totalmente
diferentes, gerando algo novo. Uma estratégia de reexistência.

33
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

menta de violência simbólica, exercida de forma sutil ou explicita”.


(William, Rodney, 2019, p.37/40).

A fala de Ash Ashaninka que inicia este tópico, explicita a moda


e a publicidade enquanto pilares do sistema capitalista usados para
gerar um “hipnotismo estético” que se contrapõe a diversidade
humana com o objetivo de gerar necessidades e representações
unanimes destinadas a evocar o consumo de algo que não neces-
sitamos. A apropriação cultural é uma das ferramentas do capita-
lismo que se choca com a pluri diversidade das cosmovisões e a
espiritualidade indígena.

Por exemplo, quando fazemos uma coleção que utiliza estética


de uma determinada cultura indígena e na passarela elencamos
um casting de modelos brancas, atribuímos toda a riqueza esté-
tica indígena ao branco, de forma a reforçar uma necessidade de
legitimação desta cultura ou beleza pelo grupo dominante, aqui
representado enquanto brancos, para que possa ser aceito e atra-
ente ao consumo. O psiquiatra Franz Fanon (2008, p.95) falava so-
bre a estratégia que negros usaram para sobreviver em sociedades
racistas, “branquear ou desaparecer”. O branqueamento estético
e cultural é uma estratégia de genocídio, e o grande mercado da
moda, precisa compreender que suas campanhas publicitárias e
passarelas, criam um padrão estético e a veiculação de uma co-
municação e imagem publicitária que poderá reforçar racismos e
estereótipos em uma sociedade estruturada no preconceito racial,
como a brasileira.

As discussões entorno da apropriação cultural acontecem no


contexto estrutural e não individual. Desta forma, mesmo que
uma marca tenha as ditas “boas intenções” e se ela como resultado
final de sua coleção reforçar valores estéticos, culturais e econômi-
cos de um grupo dominante, ela está fazendo uma apropriação,
34
à medida que ela se alimenta de aspectos de uma cultura, e não a
beneficia, não “veste a camisa” de suas causas, não compartilha dos
seus valores sociais e não colabora para uma mudança na estrutura
da sociedade. Escamotear, ou mesmo anular traços indígenas ou
negros, é uma forma de roubo de sua cultura, de genocídio e et-
nocídio, como nos adverte Abdias Nascimento (1978) “quando se
mata uma cultura, mata-se um povo”.

Para se distanciar da prática da apropriação cultural, não se tra-


ta de condenar um indivíduo branco ou uma marca eurocentrada,
mas de criar caminhos que evitem consolidação de práticas mile-
nares de opressão e exclusão.

O trabalho em coletivo com povos indígenas deve ser imbu-


ído de valores e cosmovisões indígenas, compartilhando e cons-
cientizando sobre suas causas, gerando renda e empatia, em co-
letividade com uma equipe diversa e sob protagonismo indígena.
Como nos afirma Rodney William (2019) quando há troca, não há
apropriação cultural. As bases destas trocas devem ser amplamen-
te estabelecidas e elaboradas em imersões coletivas com aldeias,
associações e sobre o protagonismo indígena.

35
Construção
(Encontro)

Neste espaço evidenciaremos as possibilidades de encontros entre


dois mundos distintos e por diversas vezes divergentes: o mundo
indígena e o mundo da moda. Desta forma apresentaremos aqui ce-
nários que possibilitam ao viajante/leitor uma melhor compreen-
são da perspectiva de cada mundo, desde às cosmovisões indígenas
até os posicionamentos necessários às empresas de moda, median-
te a criação de um bem de consumo a partir de um bem cultural.

Os encontros apontados neste capítulo, são frutos dos debates


e da dinâmica final do Seminário Moda, Arte e Culturas Indígenas,
além do cruzamento das experiências e metodologias aplicadas
por empresas para o desenvolvimento de produtos de moda com
povos indígenas brasileiros. Compreendendo que cada lado da
margem de um rio, se encontra e se mistura no próprio rio que os
une, evidenciaremos abaixo, as construções e os encontros possí-
veis nos diálogos entre mercado da moda e as culturas indígenas
no item O Encontro, assim como apontaremos as advertências e
perspectivas de cada um destes mundos separadamente nos itens:
O mundo Indígena e O mundo da Moda, apresentando suas reali-
dades e diferenças para o caminho da intersecção que será percor-
rido e atravessado por cada viajante/leitor.
37
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

O mundo indígena:
Cosmovisões, perspectivas e oportunidades
» Os grafismos são propriedades coletivas de povos indígenas
e não uma propriedade individual de um membro de um
determinado povo;

» Reverter a apropriação cultural dos códigos indígenas para a


preservação da sua cultura ancestral e proteção da sua origi-
nalidade;

» A moda enquanto ferramenta estratégica para os povos indí-


genas na visibilização de sua identidade cultural e suas lutas;

» As cosmovisões indígenas não são capitalistas;

» O corpo do indígena reexiste como manifestação artística e


sagrada;

» A estética indígena é um símbolo de resistência, que pode ser


potencializado na sua relação com a moda.”

» Reconstituição do ser indígena: A moda como ferramenta


para reverter o atual projeto de país, ressaltando identidade
do brasileiro enquanto indígena;

» Conhecer e fortalecer o conceito de diversidade entre os po-


vos indígenas.

» Compreensão da pintura indígena como uma proteção es-


piritual.

38
O mundo da moda:
contribuições designadas à cadeia de produção
e empresas de moda
» Promover educação corporativa para a realização de traba-
lho em moda com etnias indígenas;

» Respeito às diferentes tradições culturais;

» Buscar o equilíbrio com a natureza e respeito aos seus ciclos,


ao longo da cadeia de produção;

» Respeitar o que não pode ser comercializado e desenvolver


acordos sobre o que é possível comercializar;

» Considerar que o grafismo de um grupo étnico pode ser si-


milar ao de outro grupo, gerando ambiguidade na proprie-
dade intelectual;

» Validar uma coleção de moda e sistemas de produção de


acordo com princípios éticos e ecológicos da própria aldeia;

» Educar a cadeia produtiva da moda sobre como não se apro-


priar dos bens culturais indígenas indevidamente;

» Mensurar benefícios socioambientais dos produtos e ações


com indígenas através de impacto ambiental e metrificação,
rastreamento da cadeia produtiva, dentre outros;

» Ampliar os ciclos de vida produzindo produtos mais durá-


veis;

» Empresas que fazem moda brasileira deveriam desenvolver


com periodicidade temáticas e coleções com povos indíge-
nas brasileiros;

» Educação corporativa antirracista para evitar reprodução


de racismos nas relações comerciais e acordos com povos
indígenas;
39
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

» Ter ciência dos altos custos do investimento de iniciativas


junto aos povos indígenas: deslocamento até as aldeias, ver-
bas de compras, infraestrutura, dentre outras;

» Não criar tendência universalista nas temáticas e comunica-


ções, tendo em vista a diversidade cultural dos povos;

» Ter o conhecimento do poder da moda enquanto instrumen-


to de manipulação, subjugação, marginalização e reforço de
estereótipo sobre a cultura indígena;

» Reverter renda para causas coletivas indígenas;

» Buscar envolver todas as aldeias dos grupos étnicos com os


quais as empresas estiverem trabalhando;

» Aprovar as peças piloto com grupo étnico selecionado para


o trabalho;

» Entender que a ideologia capitalista é oposta ao modo de ser


indígena;

» Entender que o significado de contrato para os povos indíge-


nas não é o mesmo que para os não-indígenas.

» Estar disposto a conectar a moda brasileira com culturas pe-


riféricas e regionais, étnicas e tradicionais;

» Incentivar o equilíbrio da cadeia produtiva da moda, com os


ciclos da natureza e o pensamento das culturas indígenas.

40
O encontro:
construções e direcionamentos entre a cadeia de
produção da Moda e as Culturas Indígenas
» Difundir, dar visibilidade e protagonismo às culturas, causas
e cosmovisões indígenas, através de produtos e comunicação
das coleções de moda;

» Respeitar o sagrado;

» Sustentabilidade dos recursos naturais e da cultura indígena,


respeitando os ciclos da natureza ao longo da cadeia de pro-
dução;

» Legitimar os indígenas como guardiões da natureza;

» Produzir moda, campanhas em veículos de mídia diversos e


passarelas com protagonismo indígena em todas as etapas;

» Geração de renda e recursos para os bens coletivos como,


por exemplo, infraestrutura local das aldeias indígenas;

» Não legitimar o sistema capitalista, hegemonicamente;

» Intermediação entre indígenas e mercado através de organi-


zações não governamentais (ONGs), lideranças, associações e
conselhos dos anciãos, e outras instituições;

» Reivindicar e contribuir para aprimorar legislações e regis-


tros de direitos autorais coletivos;

» Realização de acordos baseados em premissas das aldeias que


levam em consideração a ancestralidade e a espiritualidade;

» Moda consciente;

» Acordos para que o tempo capitalista se adeque ao tempo


indígena;

41
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

» Conversas, reuniões, acordos para entender a realidade dos


povos indígenas que estamos trabalhando, realizando imer-
sões e vivências;

» Criar coleções de moda indígenas com linhas de produtos


limitados – os ciclos de extração continuada não se relacio-
nam com as perspectivas indígenas;

» Comercialização do artesanato indígena;

» Realização de uma moda diversa com equipes integradas no


processo de criação da coleção;

» Valorização do trabalho do artesão indígena;

» Promover uma educação na diversidade e antirracista, atra-


vés da educação de toda cadeia desde a imersão com vivên-
cias nas aldeias indígenas até a venda do artesanato e comu-
nicação junto aos produtos da coleção;

» Fazer comunicação de forma a agregar valor aos produtos


indígenas da coleção;

» Geração de renda através da própria cultura indígena, con-


siderando as vocações do(s) povo(s) indígena(s) envolvido(s);

» Respeito às diferentes tradições culturais de cosmovisões e


tecnologias indígenas.

42
43
CAMINHOS
(Diretrizes)

Este trabalho é um investimento para criação de um documen-


to que gere contribuições aos desafios impostos pelos 500 anos
de colonização do Brasil. A discussão alcançou 7 povos indígenas
brasileiros, como amostra para a imersão e caminhos apontados.
Sabíamos de antemão que presente material não alcançaria toda
a diversidade dos povos indígenas e a complexidade existente na
grande extensão do território nacional, dos povos aldeados e não
aldeados brasileiros. Compreendemos que estamos no começo
dessa caminhada e buscamos estimular através desta contribuição
um valoroso objeto de conteúdos que apontam caminhos e en-
contros possíveis com as diferentes nações indígenas, e os desafios
dos povos indígenas e não indígenas no mundo globalizado, dis-
postos ao diálogo a fim de gerar práticas e consciências na constru-
ção de novas relações possíveis.

Ao longo dos debates ocorridos no seminário, destacamos os


conteúdos de importância e valor sobre política, cosmovisão, ra-
cismo, apropriação cultural, sobrevivência e diversidade cultural.

Dentre estes assuntos, no que tange às instituições governa-


mentais que representam e “protegem” legalmente os indígenas,
se apresentou o baixo impacto das suas ações e eficiência median-
45
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

te os problemas do racismo estrutural, da defesa dos territórios


onde habitam e da expansão de mercado para comercialização de
seus produtos.

As carências em legislação e atuação dos órgãos


federais de apoio a população indígena
Ao longo do desenvolvimento do presente documento, foram co-
lhidos inúmeros depoimentos a respeito das dificuldades de apoio
dos órgãos federais, estaduais e municipais, e das poucas alterna-
tivas para auxiliar nas relações e diálogos entre os indígenas e a
cadeia produtiva da moda. Assim, destacamos algumas contribui-
ções dos especialistas convidados ao Seminário que podem au-
xiliar em futuras jornadas, tanto a nível de precaução como em
situações que recomendem futuros investimentos e pesquisas.

No terceiro dia do seminário, trabalhando sobre o tema Indús-


tria criativa, sustentabilidade e consumo – Os desafios da identi-
dade cultural indígena nas relações com mercado da moda, Re-
nata Cassini, que advoga no departamento fashion law, esclarece
como age nos projetos em parcerias:

“Hoje eu trabalho na Osklen tentando entender como fa-


zer moda sem ultrapassar os limites do que é sagrado, do
que é importante e do que para aquele povo não deve sair
dali, daquela comunidade. E eu acho que esse é um grande
desafio da indústria, porque a gente fica no limiar do in-
dustrializar, do tornar aquilo monetário tanto para ajudar
as aldeias a ter uma forma de renda, como para populari-
zar. E a questão do que deve ser popularizado? E de que
forma? E de que maneira?”10

10 Transcrição da fala durante o Seminário 03 fev de 2020.

46
Prosseguindo, esclarece sobre as limitações impostas pela
FUNAI:

“Segundo a legislação, o órgão que responde pelos índios


é a FUNAI. Então por exemplo, se eu quiser um contra-
to que não seja discutível aqui e depois juridicamente, eu
obrigatoriamente teria que envolver a etnia, a minha em-
presa e a FUNAI. Entendeu? Se eu não envolvo a FUNAI,
como polo nesse contrato, eu corro o risco desse contrato
ser invalidado, por mais que toda a aldeia concorde que
tem que fazer aquela contratação. Então isso é uma difi-
culdade para as empresas. Porque eu tenho todo um povo
que concorda, e de repente eu usar um desenho que já foi
criado anteriormente”.11

Na busca por alternativas independentes a estes órgãos, Ana


Paula Jones, Diretora Presidente da Associação Raízes da Tradição,
acrescentou ao debate:

“...tem a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste,


Minas Gerais e Espírito Santo a APOINME, a COIAB - O
Conselho das Organizações Indígenas da Amazônia Bra-
sileira. Existe o movimento indígena organizado, eles são
seríssimos, aprendi muito sobre Política com eles desde
2004, são advogados, agrônomos, cientistas, tem Mestra-
do e Doutorado, e mais do que isso, são legítimos e reco-
nhecidos como lideranças pelos próprios indígenas. Existe
o filme do Bruno Pacheco de Oliveira, que trabalhou no
Raízes da Tradição desde a sua fundação em 2000, o “Pisa
Ligeiro”, ele conta a História da criação dessas Articula-
ções, Conselhos e Movimentos da Luta Contemporânea

11 Transcrição da fala durante o Seminário 03 fev de 2020.

47
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

Indígena. Desde 2005, essas 10 a 15 Articulações e organi-


zações indígenas locais, se juntaram, e formaram a APIB
- Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que é a jun-
ção de vários movimentos que representam o movimen-
to indígena organizado no Brasil. Então assim, é possível
fazer com eles? Eu não só digo que é possível como eu
aconselho... Enfim. Eu trabalhei na Exposição “Indios: Os
Primeiros Brasileiros (2007)”, na Conferência Nacional de
Juventude (2008), na Comissão Nacional de Desenvolvi-
mento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais,
no Conselho Nacional de Juventude, no Seminário “Pre-
sença Indígena no Fórum Cultural Mundial”, “Povos Indí-
genas e Seus Desafios Contemporâneos” na FUNDAJ/PE,
entre outro, continuo e continuarei trabalhando com a ar-
ticulação dos próprios índios...”12

Como segue este trabalho


Durante e após o período de realização do Seminário lançaremos
e divulgaremos um conjunto de trabalhos de grande interesse
para a consolidação e ampliação de conhecimentos sobre os povos
indígenas do Brasil e suas relações com a economia criativa. Para
construir conosco os direcionamentos do Encontro entre a cadeia
de produção da Moda e as Culturas Indígenas, oferecemos:

» Oficinas e cursos: desenvolvimento de imersões, oficinas e


cursos sobre os temas abordados, entre outros com objetivo
de formar, capacitar, instruir e sensibilizar a sociedade, estu-
dantes, profissionais, empresas, universidades, corpo docen-

12 Transcrição da fala durante o Seminário 03 fev de 2020.

48
te e empreendedores a trabalhar as questões étnico-raciais,
indígenas e afro descendentes, identidades e diversidades
culturais.

» Educação corporativa e consultorias: desenvolvimento de


conteúdo direcionado para empresas e funcionários sobre di-
versidade cultural brasileira e metodologias de trabalho para
a realização de projetos com povos indígenas brasileiros.

» Palestras e mesas de debate: aproximação de empresas, uni-


versidades, escolas ou outras instituições das cosmovisões
indígenas através de ciclos de palestras e mesas de debate.
Principalmente no que diz respeito ao cumprimento da lei
federal 11.645/2008, que obriga o ensino geral das línguas e
culturas indígenas.

» Publicações: como contribuição à sociedade brasileira e à


construção de uma nova realidade de país, atuamos no de-
senvolvimento de conteúdos sobre o protagonismo indígena
em diferentes áreas do conhecimento no contexto da Uni-
versidade Indígena Pluriétnica Aldeia Marakanà.

» Vivências na Aldeia Marakanà: Universidade Indígena Plu-


riétnica Aldeia Marakanà oferece um cronograma contínuo
de atividades. Entre em contato para fazer parte.

49
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

Sobre os autores
DILMAR PURI é formado em filosofia pela Universidade do Esta-
do do Rio de Janeiro (UERJ) com ênfase em estética e história
da arte, é mestrando em relações étnico-raciais pelo CEFET-
-RJ, membro da Universidade Pluriétnica Indígena Aldeia Ma-
racanã (UIPAM) e integrante do povo Puri. O povo Puri habita
tradicionalmente as regiões do sul do Espírito Santo, Norte de
São Paulo e diversas regiões do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Dilmar trabalha atualmente como pesquisador/bolsista da
CAPES, investigando as experiências internacionais de uni-
versidades indígenas, e as iniciativas nacionais nesse sentido.
Atua ministrando palestras em escolas, universidades e outras
instituições sobre o tema quando convidado, e também sobre
as culturas indígenas de modo geral. Tem experiência como
curador de exposição de arte indígena e na produção de semi-
nários acadêmicos, assim como na edição de obras literárias do
universo indígena.

JULIA VIDAL é designer gráfico e de moda, educadora e pesqui-


sadora/bolsista da CAPES, especializada nas etnias culturais
brasileiras. É filha de baiana e carioca, neta de avó marajoara.
Teve contato com a cultura indígena quando sua avó se en-
ferma com o Mal de Alzheimer e passa a revisitar as histórias
de sua infância e adolescência, neste momento ela se descobre
descendente do povo marajoara, que habita a Ilha de Marajó
no Estado do Pará. Atualmente é gestora da marca que leva seu
próprio nome, Julia Vidal: Etnias Culturais que tem como pro-
pósito construir marcas e produtos que valorizam a diversida-
de cultural brasileira. Há 14 anos vem contando histórias atra-
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vés de coleções temáticas apresentadas em desfiles no Rio de
Janeiro, Bogotá e Londres, assinou mais de 45 figurinos para TV
e Palcos, como o de João Donato, no Rock In Rio, é designer de
superfícies criando estampas em diferentes suportes expostos
em espaços de arte como a Casa França Brasil, escreveu e ilus-
trou duas publicações, “O africano que existe em nós, brasilei-
ros: Moda e Design afro-brasileiros” e “Quintal Étnico: Cores e
Vibrações afro-brasileiras”, é consultora de empresas de moda
que criam produtos com identidade brasileira e é idealizado-
ra de cursos de extensão e oficinas em instituições como IED
Rio e SP, PUC Rio, Museu de Arte do RJ (MAR), Centro Sebrae
de Referência do Artesanato Brasileiro (CRAB), entre outros.
É premiada pelo prêmio de Economia Criativa do MINC e re-
conhecida internacionalmente como “Empresa inspiradora ao
redor do mundo” pela Shell Live Wire.

ASSOCIAÇÃO RAÍZES DA TRADIÇÃO. Colaboraram com este


projeto a diretora-presidente Ana Paula Jones e o Consultor
Wilson Costa. A associação é um coletivo e movimento da so-
ciedade civil brasileira que trabalha em prol do fortalecimen-
to da diversidade, dos Povos e Comunidades Tradicionais, das
expressões vivas das Culturas Populares e suas expressões con-
temporâneas. Oferece serviços de gestão, elaboração, acompa-
nhamento, curadoria, execução de projetos culturais, consulto-
ria na área de políticas de cultura, economia criativa, juventude,
sustentabilidade, modelos de intervenção social, diagnósticos
participativos e comunitários, metodologias participativas e de
desenvolvimento humano.
51
| Cosmovisões x Moda: qual a sua tendência?

Bibliografia que nos inspirou


ALBERT, B.; KOPENAWA, D. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.
ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BRASIL. Lei 11.645 de 10 de março de 2008. Brasília: Diário Oficial da União, 2008.
CASTRO, E. V. No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. São Paulo: Revista
Povos Indígenas do Brasil, 2006.
CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado (investigações de antropologia política).
Tradução de Bernardo Frey. Porto: Afrontamento, 1979.
DE OLIVEIRA, João Pacheco. A Presença Indígena no Nordeste. Rio de Janeiro: Laced/
Museu Nacional, Rio de Janeiro, 2007.
DE OLIVEIRA, João Pacheco. A Viagem da Volta: Etnicidade, Política e Reelaboração
Cultural no Nordeste Indígena. Rio de Janeiro: Laced/ Museu Nacional, 2007.
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gonismo indígena. Rio de Janeiro: E-Papers – 2015.
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de Scarlett Marton. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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Global Editora, 1986.
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ra UFMG, 2003.
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WILLIAM, Rodney. Apropriação Cultural. São Paulo; Feminismos plurais, 2019.

Saiba mais
Lei de direitos autorais indígenas - FUNAI - Portaria nº 177/PRES:
http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/ouvidoria/pdf/acesso-a-infor-
macao/002-PORTARIA-177-2006-DireitoAutoral.pdf

Política setorial para cultura indígenas:


http://pnc.cultura.gov.br/wp-content/uploads/sites/16/2012/10/plano_seto-
rial_culturas_indigenas-versao-impressa.pdf

Planalto (OIT) sobre povos indígenas - decreto n° 5.051, de 19 de


abril de 2004:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/
d5051.htm

53
Realização Apoio Institucional Apoio institucional e financeiro

Colaboração

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