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Professor Tiago de Araujo Camillo

História I

Vitória

2021
Sumário

Capítulo I - Memória e História: “os perigos de uma história única” 4

Capítulo II - Introdução à história política, econômica e cultural dos

Reinos e Impérios Africanos 13

Capítulo III - Homens e mulheres africanas no Brasil escravista 18

Capítulo IV - Histórias de negros e negras no Brasil: perseguições,

resistências e superação 25

Referências bibliográficas 29

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Apresentação
Olá! É um prazer poder retomar o contato com você, após tantos meses.

Espero encontrá-los bem. Este material foi escrito para ser nosso guia de estudos,

durante este período de aprendizagem à distância. Ele não esgota os temas

tratados, mas abrirá as portas para que você possa dar outros passos na

caminhada da sua formação no ensino médio.

Aproveite bem. Não deixe de participar das aulas online. Anote suas dúvidas

e faça as atividades propostas.

Bons estudos! Cuide-se bem!

Professor Tiago de Araujo Camillo (tiagoraujo@ifes.edu.br,

tacamillo@gmail.com).

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1- História e Memória: “os perigos de uma história única”

Olá! Hoje, nossa tarefa é a de estudar dois conceitos importantes para lidar

com o passado: memória e História. Antes de prosseguir nessa tarefa, vamos

compreender algumas relações possíveis entre o tempo presente e o passado.

Em nossas aulas, sempre partiremos da ideia de que os acontecimentos

vividos na atualidade são resultado de um processo histórico. Isso significa que, se

chegamos até aqui, é porque temos uma herança deixada pelo dia de ontem, pelo

ano passado, pelos séculos e milênios passados. Uma herança material,

tecnológica, científica e linguística, por exemplo. Nossa história começou muito

antes de nascermos e não podemos esquecer os fatos que ocorreram e que

estabeleceram nossa experiência coletiva.

Imagem I - A Herança colonial e escravocrata

Além disso, a ligação entre o presente e o passado se dá porque nós

buscamos o conhecimento histórico em função das coisas que vivenciamos em

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nosso dia a dia. Recorrendo a mais um exemplo: certamente uma das suas

preocupações com o passado não é ler o texto do tratado feito entre a rainha da

Inglaterra e o rei da França, ao fim da Guerra dos Sete Anos. Mas se eu lhe disser

alguma coisa sobre as armas usadas nessa guerra, talvez você rapidamente se

interesse. Isso ocorre porque vivemos em uma sociedade que discute o porte ou a

posse de armas. Desarmamento ou armamento, não importa, é um assunto que

está nos telejornais, revistas e rodas de conversa. Em alguns casos, infelizmente

está bem presente no cotidiano das comunidades.

Vejamos um exemplo vindo dos Estados Unidos. Em 25 de maio de 2020, o

policial branco do estado norte-americano de Minessota, Derek Chauvin,

ajoelhou-se sobre o pescoço de um afro-americano de 46 anos chamado George

Floyd. Chauvin assassinou Floyd a sangue frio sob os olhares e câmeras de quem

passava pela rua. Nos dias que se seguiram, várias manifestações tomaram as ruas

dos Estados Unidos sob o lema #blacklivesmatter. Em meio às manifestações, um

fato chamou atenção: estátuas de pessoas associadas à dominação do colonialismo

e ao tráfico de escravos, foram derrubadas nos Estados Unidos e na Inglaterra.

Imagem II - Assassinato de George Floyd

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Em Bristol, sul da Inglaterra, no dia 7 de junho de 2020, uma multidão

amarrou uma corda na estátua em homenagem ao traficante de escravos Edward

Colston, derrubando-a e lançando-a no rio da cidade. Colston foi responsável pelo

tráfico de aproximadamente 84 mil africanos, entre homens, mulheres e crianças.

Um dos manifestantes ajoelhou-se sobre o pescoço da estátua, relembrando o que

o policial Derek Chauvin fizera a George Floyd.

Imagem III - Derrubada da estátua de Edward Colston

Na cidade de Baltimore, costa leste dos Estados Unidos, no dia 4 de julho de

2020, manifestantes fizeram o mesmo com a estátua em homenagem a Cristóvão

Colombo, mesmo sob críticas do presidente Donald Trump, que argumentava não

ser possível apagar a história.

As críticas não vieram apenas de Donald Trump. Pessoas de diferentes

formações acadêmicas, políticos e a parte da população se posicionou

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contrariamente a tais atos.

Atos desse tipo são uma novidade na história mundial? O que eles nos

ensinam sobre memória e História?

Em anos recentes, ativistas dos movimentos negros e de outros movimentos

de luta por direitos humanos começaram a se organizar para reinvindicar a

destruição de estátuas, mudança de nomes de ruas, abandono de bandeiras e

outros símbolos e homenagens que façam referência a pessoas e fatos ligados à

opressão de classe, gênero e raça. Isso faz parte das disputas em torno da memória

social, daquilo que a sociedade deseja lembrar ou esquecer. É a sociedade se

voltando para o passado em função das preocupações do tempo presente.

Antes de falarmos disso que chamamos de memória social, vamos buscar no

dicionário a definição da palavra memória.

Memória:
1- capacidade que se tem de adquirir informações, retê-las e, então, ser capaz de
evocá-las;
2- Lembrança, reminiscência, recordação;
3- Celebridade, fama, nome;
4- Monumento comemorativo;
5- Vestígio, lembrança, sinal;
6- Aquilo que serve de lembrança.

As Ciências Sociais, como a História, a Antropologia e a Sociologia, se

dedicam a fazer investigações sobre a memória, indo muito além da definição do

dicionário. Em nosso caso, a definição do dicionário é suficiente. Ela nos ajuda a

fazer uma confrontação entre alguns fatos históricos e a derrubada de estátuas nos

Estados Unidos e na Inglaterra.

Devemos lembrar que existe um plano individual da memória que armazena

o que é mais importante para cada indivíduo. Porém os estudos históricos

consideram a memória como um fenômeno coletivo. Assim, a sociedade

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compartilha informações, guarda, lembra e constrói monumentos comemorativos

que servirão para lembrar fatos ocorridos no passado. São as experiências e,

portanto, a memória coletiva que nos interessa.

A estátua de um traficante de escravos; uma bandeira; um documento escrito

por alguém que foi escravizado. Tudo compõe a memória coletiva da escravidão nos

Estados Unidos ou em qualquer outro lugar que tenha passado por essa experiência

desumana e trágica.

Imagem IV - Memória social

Mas a pergunta mais insistente que você deve estar fazendo neste momento

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é: por que alguns cidadãos foram levados a derrubar estátuas?

Aqui entra a segunda parte da definição. A palavra memória também é usada

para se referir à boa ou má fama dos mortos. Isso é sinal de que o passado não se

esgota em si mesmo, pois é sempre visitado, reelaborado e revisado, por meio

daquilo que restou como memória dos acontecimentos. Por isso, a memória é um

campo de disputas, onde se define o que deve ser esquecido e o que deve ser

lembrado.

As memórias preservadas pelos governos quase sempre não coincidem com

o que os proletários, os camponeses, os negros, as mulheres e a comunidade

LGBTQIA+ considera como importantes de serem lembrados. Seja em 2020 ou em

qualquer outra época, sempre houve o que chamamos de uma disputa simbólica

sobre o passado.

Na Revolução Francesa, o alvo foi a Bastilha, uma antiga prisão situada na

cidade de Paris, que foi posta abaixo pela multidão revolucionária. Em 1890, o

ministro da Fazenda Rui Barbosa mandou queimar os livros de matrículas de

escravos. Na época, muitos antigos donos de pessoas escravizadas pensavam em

entrar na justiça para receber indenização pelos impostos pagos ao governo, no

comércio de cativos e usariam esses livros como prova documental. Estátuas de

Lênin, líder comunista russo, foram derrubadas na Rússia, nos Estados Unidos e

recentemente, em 2014, na Ucrânia. Em abril de 2003, após a invasão de Bagdá,

capital do Iraque, militares norte-americanos derrubaram a estátua de Saddam

Hussein erguida na Praça Firdos, um ano antes.

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Imagem V - Derrubada da estátua de Lênin

Podemos perceber que a derrubada de estátuas não é um ato que se

resumiu ao ano de 2020. Muito menos que foi conduzido por pessoas incivilizadas.

Na verdade ele é um fato histórico de grande importância para compreendermos a

memória social do nosso tempo e que tem paralelos com outras épocas da história.

Os movimentos negros nos EUA e os defensores dos direitos civis não concordam

com a preservação de homenagens a pessoas que oprimiram os africanos e seus

descendentes. Para eles, a escravidão deve ser lembrada para apontar a

desumanização da qual os africanos foram alvo e para reivindicar e afirmar direitos

que corrijam as injustiças históricas.

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Agora podemos reescrever a definição de memória:

Memória: lembranças e objetos diversos que possam ser associadas à


experiência coletiva de países, grupos étnicos, classes sociais e
instituições. A memória é importante para as disputas políticas do presente,
por isso há conflitos em torno do que deve ser esquecido ou lembrado. A
memória também é a fonte a que os historiadores recorrem para produzir
seus artigos e livros. Sem a referência da memória coletiva a escrita da
História é impossibilitada.

Surgiu uma informação nova nessa definição. Você percebeu? Pois é, a

memória é a fonte para construção da narrativa histórica. Daí, nós tiramos uma

compreensão essencial: a História estabelece um diálogo com a memória, mas não

se confunde com ela. Por meio da memória as sociedades vão dizendo o que deve

ou não ser lembrado. Essa pode ser uma decisão arbitrária, que depende de quem

manda na política, na economia e na religião. Já o historiador busca lembrar o que

as outras pessoas fazem questão de esquecer. Ele não está imune às influências

políticas, econômicas e culturais, mas propõe um conhecimento rigoroso do

passado, apoiando-se no cruzamento de registros, sem ficar refém de um único

testemunho, ou seja, de uma única fonte histórica.

Como falamos no início, o passado não é apenas coisa velha que deve ser

deixada para trás. Muitas vezes, quando contamos uma história de forma única,

sem usar mais de um testemunho, criamos estereótipos, imagens distorcidas sobre

povos e nações, inclusive sobre nós mesmos. A África é um exemplo de história

contada de forma incompleta. Muitos brasileiros pensam que a África apenas

forneceu força de trabalho para o Brasil. Os africanos não teriam contribuído com

mais nada, além de braços para o trabalho pesado. Alguns historiadores já

demonstraram que essa é uma visão única e incompleta da história das relações

entre o Brasil e a África.

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Na próxima aula, veremos um pouco mais sobre isso com auxílio desses

historiadores.

Atividade I

Leia este provérbio da filosofia iorubá:

“Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”

Agora, leia este trecho retirado do nosso material didático:

“[...] a memória é um campo de disputas, onde se define o que deve ser

esquecido e o que deve ser lembrado”.

Com base nessas leituras, escreva um texto de 15 linhas comentando a

relação entre esses dois trechos.

Pedra (presente) - Pássaro (passado)

Memória (presente) - Fatos históricos (passado)

Nunca há uma opinião única sobre o passado, sempre existem múltiplas

interpretações

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2- Histórias de Reinos e Impérios Africanos

Vamos conhecer algumas histórias de Reinos e Impérios africanos? Esse é o

nosso objetivo nesta aula.

É muito comum a visão única sobre a história da África. Muitas pessoas não

pensam na diversidade existente no continente africano, nem se esforçam para

ampliar o seu olhar.

O documentário “DNA África”, que você deve assistir como tarefa desta aula,

identifica a região de origem de diversos brasileiros, por meio da análise de material

genético. Ele é uma boa referência para entendermos a diversidade de histórias

africanas.

O continente africano tem uma história tão rica quanto a história da Ásia,

América, África e Oceania. Muitas vezes, a memória social silenciou e apagou essa

riqueza. Cabe a nós identificá-la e compreendê-la.

Na África, sempre coexistiram povos tribais, reinos e impérios. Lá também

surgiram os seres humanos, conforme diversos estudos arqueológicos e genéticos

já demonstraram. No quadro a seguir, você pode ver uma relação de impérios e

reinos africanos antigos.

Império Gana
- O Antigo Império Gana teve seu apogeu entre os anos 700 e 1200 D.C;
- O antigo nome desse império era Uagadu, que ocupava uma área tão vasta
quanto à da moderna Nigéria e incluía os territórios que hoje constituem o Mali
ocidental e o sudeste da Mauritânia;
- Era rico em ouro e praticavam, com os árabes, um comércio por meio do
Deserto do Saara, no qual trocavam ouro por artigos de luxo, especiarias e jóias;
- Declinou devido a conflitos internos e invasão de outros povos;
- Usava a bateia para a mineração aurífera, instrumento que também seria usado
no Brasil Colonial.
Império Mali
- Possuía importantes centros urbanos como Tombuctu, que contava com cerca
de 100 mil habitantes;

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- Possuía uma economia baseada na produção de tecidos, mineração de ouro e
comércio de sal;
- Possuía um grande centro de estudos onde os sábios reuniam-se para debater o
conhecimento e ensinar;
- Antes mesmo das universidades medievais, Mali já possuía um centro
acadêmico semelhante ao que os europeus criaram décadas depois;
- Fizeram importantes observações astronômicas.
Império Songai
- Também foi um importante centro comercial;
- Desenvolveu um funcionalismo público profissional e nomeava governadores
para cada província;
- Possuía avançado conhecimento agrícola, que seria utilizado no Brasil, durante
a colonização.
Reino Congo
- Especialistas em metalurgia do ferro e do cobre criaram machados, arados e
enxadas, instrumentos que seriam usados nas terras do Brasil.

Aqui, certamente você percebeu a relação de contribuições tecnológicas que

os povos africanos deram à humanidade, em especial ao Brasil. O Congo deixou

uma tradição metalúrgica, assim como o Império Gana. Um historiador brasileiro

chamado Eduardo França Paiva, demonstrou que a compra de africanos

escravizados por donos de datas minerais nas regiões de produção do ouro ocorria

de forma bem organizada. Eles compravam pessoas vindas da Costa da Mina, em

especial mulheres, que tinham um conhecimento diferenciado sobre a lavra e o

tratamento a ser dado ao ouro. Você consegue perceber? A mineração foi

viabilizada pela força de trabalho africana, que foi explorada no sentido intelectual e

físico. A mineração dependia de uma mão de obra altamente especializada que era

encontrada apenas na África.

Alguns detalhes dessa contribuição dos africanos para a mineração e

metalurgia no Brasil são bem interessantes. Por exemplo: alguns viajantes

estrangeiros registraram como se dava o trabalho em uma lavra de ouro em Minas

Gerais. Um deles, John Mawe, disse o seguinte:

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Alguns dos grãos de ouro são tão pequenos que flutuam na superfície, podendo, por

conseguinte, ser arrastados nas repetidas mudanças da água que se fazem. Para prevenir

esse inconveniente, os negros esmagamalgumas ervas em uma pedra e misturam um pouco

do seu suco à água de suas gamelas. Não afirmarei que este líquido contribuisse realmente

para precipitar o ouro, mas é certo que os negros o empregavam com grande confiança.

Ele mostra que não estava completamente convencido sobre o método,

quando diz “não afirmarei que este líquido contribuisse realmente para precipitar o

ouro”, mas reconhece a confiança com que os cativos aplicavam a técnica.

Outro viajante, o Barão de Eschwege, fez observações sobre as técnicas de

lavra:

Somente mais tarde, aprendendo com a prática, principalmente depois da introdução dos

primeiros escravos africanos, que já na sua pátria se tinham ocupado com lavagem de ouro,

e de cuja experiência o natural espírito inventivo e esclarecido dos portugueses e brasileiros

logo tirou proveito, foi que os mineiros aperfeiçoaram esses processos de extração. Deve-se

principalmente aos negros a adoção das bateias de madeira , redondas e de pouco fundo, de

dois a três palmos de diâmetro, que permite a separação rápida do ouro da terra, quando o

cascalho é bastante rico. A eles se devem, também, as chamadas canoas, nas quais se

estende um couro peludo de boi, ou uma flanela, cuja função é reter o ouro, que se apura

depois em bateias.

Já Rugendas registrou em uma litografia de 1835 o trabalho coletivo em uma

lavra.

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Imagem VI - Johann Moritz Rugendas (“Lavagem de ouro na montanha

do Itacolomi”, 1835)

Essa litografia de Rugendas é rica em informações. Podemos observar o uso

do couro de animais e folhas de plantas, no canto inferior direito e também no curso

de água canalizada. Ao fundo, duas negras carregam o que poderiam ser bateias

com cascalho transportado da parte alta da cachoeira. Várias pequenas cenas se

multiplicam, mostrando açoites, técnicas e alimentação.

Textos e imagens se multiplicam, conforme vasculhamos livros e arquivos. O

mais importante desta nossa aula é identificar que os documentos históricos nos

dão base para afirmar que a cultura e os saberes africanos chegaram ao Brasil em

forma de técnicas apuradas e úteis e que essa presença não representou um

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atraso.

Atividade II

Assista ao documentário “DNA África”. Identifique o nome de um dos povos

africanos citados no documentário, pesquise na internet sobre esse povo e escreva

um texto de 10 a 15 linhas.

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3- Homens e mulheres africanas no Brasil Colonial e Imperial

Até aqui, vimos os perigos de estudar ou falar do passado de maneira

incompleta, por meio de uma história única. Também estudamos um pouco sobre

como os africanos foram responsáveis por introduzir técnicas de mineração no

Brasil, constituindo-se como uma força de trabalho altamente especializada. Esses

homens e mulheres tinham histórias e experiências, suas vidas não começaram

com a escravidão. Por isso é importante perguntar: qual a quantidade de homens e

mulheres que vieram para o Brasil e para outros lugares do mundo? Você sabe de

que regiões da África eles foram retirados? Qual era o fluxo dessa dispersão dos

povos africanos, também conhecida como diáspora negra? Convido você a

compreender isso junto comigo nesta aula.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que as estatísticas sobre a entrada de

africanos escravizados no Brasil não são perfeitas. Elas foram construídas por

historiadores que se baseiam em registros fiscais, de portos ou de cartórios, por

exemplo. Além do contrabando, forma usada para não pagar os impostos com a

compra e venda, muitos homens e mulheres morreram na travessia do Oceano

Atlântico e muitos documentos foram perdidos. Também é comum que os

documentos mencionem o porto de saída e não os locais exatos de onde as

pessoas foram capturadas. Mesmo assim, conseguimos ter uma visão geral da

quantidade de seres humanos envolvidos nessa diáspora e compreender o tamanho

da violência ocorrida.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil foi o

país que importou mais escravos africanos. Entre os séculos XVI e meados do XIX,

vieram cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças”. Um projeto recente

que envolveu a Universidade de Havard (EUA) e a Universidade Federal do Rio de

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Janeiro, construiu o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos. Esse

foi o trabalho mais amplo e completo já realizado para medir o tamanho do tráfico de

africanos. Seu resultado confirma o que o IBGE já havia afirmado e demonstra que,

na verdade, o número de homens e mulheres que chegaram era de quase 5

milhões.

Imagem VII - Quantidade e destino dos africanos que vieram ao Brasil

Fonte:https://apublica.org/2018/08/truco-brasil-foi-o-local-que-mais-recebeu-escravos-nas-a
mericas/ (Acesso em 26-01-2021).

Essa imagem nos ajuda a explicar por que o Brasil é o segundo maior país

negro do mundo, com 79 milhões de afrodescendentes, sendo superado apenas

pela Nigéria. O banco de dados não contabiliza o número que chegou ao Brasil e

depois foi vendido para outros lugares da América. Além disso, os africanos

vendidos na própria África, mais de 155 mil, certamente foram transferidos

posteriormente para outros lugares do mundo. Muitas pessoas minimizam a

escravidão africana, argumentando que ela foi semelhante a de outros lugares e

momentos da história. Também dizem que “era normal”, pois a escravidão existia

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dentro da própria África. Porém é preciso fazer algumas ponderações que

desconstroem esse argumento. Por exemplo, comparando a escravização de

africanos e a escravização no império romano, percebemos que em Roma, durante

o império, viveram cerca de 5 milhões de escravizados, enquanto na América

viveram mais de 10 milhões originários do continente africano. Além disso, a

escravidão em Roma não estava baseada em critérios raciais e religiosos e sim na

lógica, até então bem comum, da escravização por dívida ou por guerra.

Na África, os europeus usaram justificativas raciais e religiosas, criando um

sistema muito bem organizado e violento, que tinha um alvo específico e não

alguém visto como inimigo de guerra. Para entendermos a origem da população

africana que veio ao Brasil, precisamos fazer uma separação entre o porto de

embarque e a origem étnica. Quando pensamos nas regiões dos portos para onde

as pessoas foram levadas, após a captura, temos a configuração apresentada no

mapa a seguir:

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Imagem VII - Portos de origem dos africanos escravizados

Predominam os portos de localizados na África ocidental, com 32,1%, com

destaque para o Golfo do Benin, localizado no território da atual Nigéria, e os da

África centro-ocidental, com 58,5%, destacando-se o porto de Luanda, em Angola.

Além desses, havia o porto de Moçambique, que ficava muito atrás dos outros dois,

com 5,7%.

Uma coisa bem diferente é a tentativa de identificar as etnias dos africanos. A

África possui diversas etnias e idiomas. Na época da escravidão, essas etnias eram

misturadas nos portos, muitos nomes que aparecem nos documentos para

identificar a população, se referem ao porto de embarque. Os portugueses

traficantes de escravos também aproveitavam aspectos da cultura africana e

repetiam ou criavam novos nomes. Apesar de não ser exata, essa identificação nos

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ajuda a compreender como a escravidão se configurou no território brasileiro.

Vejamos um exemplo. Em Minas Gerais, foi muito comum a presença de

homens e mulheres identificados como minas, congos, angolas e benguelas. Os

minas representavam 40% da população escravizada das regiões mineradoras,

enquanto congos, angolas e benguelas, juntos, representavam 52% nas regiões de

agricultura e pecuária. Como vimos em aulas anteriores, os minas vinham das terras

do Império Gana, onde a mineração do ouro era muito comum. Os outros africanos

vinham de importantes regiões agrícolas e acabavam tendo seu conhecimento

aproveitado na lavoura e no comércio. Tomamos Minas Gerais como exemplo, mas

alertamos que essa distribuição pode ser diferente em outras partes do Brasil.

Daí já temos algumas pistas para identificar que atividades os africanos

desempenhavam.

Muitos, conhecidos como “escravos do eito”, trabalhavam nas lavouras de

cana, café, algodão e fumo. Normalmente, esses africanos não se comunicavam na

língua portuguesa com facilidade, por isso recebiam a denominação de “boçais”.

Outros eram “técnicos” especializados na mineração, metalurgia, ferraria, dentre

outras coisas. As formas de trabalho do negro, seja ele africano ou nascido no

Brasil, variavam muito, conforme o desenvolvimento econômico acontecia. Existiam

os “escravos de ganho”, que eram usados pelos senhores para o pequeno comércio

e atividades de prestação de serviços diversos.

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Imagem VIII - Jean Baptiste Debret (“Barbeiros Ambulantes”, 1826)

A atividade de barbeiro-sangrador exigia habilidades específicas.

Repare na diferença física entre os negros que estão sendo cuidados e os que

estão cuidando. Certamente ela representava uma origem étnica distinta. O

africano, à nossa esquerda, traz pendurado em seu pescoço o que provavelmente é

um patuá, o que identifica um povo que ficou conhecido como mandinga. Os

menores trabalhavam em atividades de serviços, os maiores possivelmente na

lavoura ou como carregadores no porto do Rio de Janeiro, que se vê ao fundo.

O desempenho de uma atividade de ganho garantia uma possibilidade maior

de obtenção da alforria, a compra da liberdade, pois uma parte dos ganhos ficava

para os escravizados. Normalmente, esse dinheiro era poupado, até que a liberdade

pudesse ser comprada. Porém a condição de escravo de ganho não anulava a

violência imposta pela escravização. Os cativos eram submetidos igualmente a

castigos físicos. Veja, na imagem, que tanto os barbeiros, quanto seus clientes e os

negros ao fundo da imagem, estão descalços, uma vez que a lei em vigor não lhes

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permitia andar calçados, apenas homens livres.

A presença africana foi fundamental para o desenvolvimento da sociedade

brasileira. Várias foram as contribuições tecnológicas, que podem ser somadas às

contribuições artísticas e linguísticas. Por exemplo, na língua portuguesa falada no

Brasil, há uma presença marcante de palavras de origem africana.

Imagem IX - Palavras de origem africana

Certamente você usa essas e muitas outras palavras no dia a dia. Isso deve

ser compreendido como uma contribuição cultural, que se deu por causa da

sociabilidade entre africanos e as várias outras etnias. Como aprendemos juntos, a

importância da História é a de lembrar o que os outros esquecem e essa lembrança

nos assegura que os povos vindos da África foram muito mais do que mão de obra

pesada.

Atividade III - Pesquise o significado da palavra patuá e depois responda: os

africanos eram adeptos de um único tipo de religião? Explique, indicando

quais religiões eram comuns entre os africanos.

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4- Histórias de negros e negras no Brasil: perseguições, resistências e

superação

O Atlas da Violência no Brasil, pesquisa publicada pelo Instituto de Pesquisas

Econômicas e Aplicadas (IPEA), apresenta os números da violência contra a

população negra no Brasil. Em síntese, ele considera que “a chance de um negro

ser assassinado é muito superior quando comparada à de um não negro”, pois, em

2018, por exemplo, para cada 100 mil habitantes, a taxa de homicídios de negros

era de 37,8, enquanto que a de não-negros era de 13,9. Precisamos perguntar: por

que existe essa diferença? Essa violência é nova? Que exemplos podemos buscar

na história do Brasil?

A religiosidade foi um dos pontos mais atacados na cultura dos africanos no

Brasil. Se durante o período colonial e imperial, as manifestações de matriz africana

sobreviveram dentro das senzalas, quilombos e outros locais, no período

republicano passaram a ser perseguidas oficialmente pela polícia.

O Código Penal de 1890 estipulava penas para quem usasse o

“curandeirismo, magias e sortilégios''. O mesmo código que garantia plena liberdade

de culto para as religiões cristãs, impedia a população afrodescendente de se reunir

para o culto aos orixás. Muitas vezes, a perseguição aos cultos de matriz africana

significou a apreensão de objetos guardados em terreiros e interrupção de cultos.

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Imagem X - Capa do jornal A Noite de 31 de março de 1941

Com a Constituição de 1988, a liberdade religiosa foi garantida no Brasil.

Perceba que no jornal de 1941, o termo “macumbeiro” ainda era utilizado para se

referir à religiosidade de matriz africana de modo pejorativo. Hoje, com a proteção

gerada pela Constituição, algumas medidas têm sido tomadas para proteger e

reparar os danos causados. Recentemente, vários objetos de cultos afro-brasileiros

foram devolvidos pela polícia a praticantes dessas religiões, no Rio de Janeiro. Isso

é resultado de lutas feitas por homens e mulheres.

Devemos compreender que o estudo da história também deve servir à tarefa

de pensar sobre a sociedade presente e orientar as chamadas políticas de

reparação, assim como aconteceu com as cotas raciais e demais políticas de

afirmação da população preta em nossa sociedade.

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A história da população afrodescendente brasileira nos dá exemplos que

demonstram ter havido muita resistência e superação. Quais teriam sido as outras

formas de resistência, além da reivindicação da retomada dos objetos religiosos?

Uma das práticas mais comuns era a fuga e formação de quilombos. O

quilombo mais conhecido foi o do Quilombo dos Palmares, que foi organizado em

Alagoas, liderado por Zumbi dos Palmares e organizado até 1694. As revoltas

ocorreram em diversas partes do nosso território. Três bons exemplos são as

revoltas de Carrancas, em Minas Gerais, em 1833; a dos Malês, na Bahia, em 1835

e a de Queimados no Espírito Santo, em 1849. Cada uma tem o seu contexto e

suas características, mas todas mostram que os africanos jamais aceitaram a

escravização passivamente. Havia luta, negociação e revolta. Por isso, também era

comum que pessoas libertas se reunissem para juntar dinheiro e comprar um

escravizado que depois seria liberto. Essa sociedade política ficou conhecida como

Clube Abolicionista.

Mesmo diante das dificuldades impostas pela escravização e pelas

perseguições, muitas pessoas negras conseguiram se destacar, ficando famosas

por suas habilidades jurídicas, literárias e de engenharia, dentre outras. Luís Gama

(1830-1882), Lima Barreto (1881-1922), Carolina de Jesus (1914-1977) e Djamila

Ribeiro (1980) são alguns dos inúmeros exemplos do passado e do presente.

Atividade IV:1) Faça uma pesquisa sobre a Revolta de Queimados de 1849 e

depois responda: por que os escravizados se revoltaram e como a revolta

terminou?

2) Pesquise sobre a vida de um destes personagens: Luís Gama (1830-1882),

Lima Barreto (1881-1922), Carolina de Jesus (1914-1977) ou Djamila Ribeiro

(1980). Escreva um texto de 10 a 15 linhas e mostre o que mais chamou a sua

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atenção na vida um desses personagens.

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Referências Bibliográficas

CASTILHO, Celso & COWLING Camillia. Bancando a liberdade,

popularizando a política: abolicionismo e fundos locais de emancipação na

década de 1880 no Brasil. Afro-Ásia, nº 47, Salvador, 2013.

ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. Belo Horizonte/São

Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1979. Volume 1.

LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo

Negro, 2011.

MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo:

Itatiaia/EDUSP, 1978.

PAIVA, Eduardo França. Bateias, Carumbés, Tabuleiros: mineração

africana e mestiçagem no Novo Mundo. In: O Trabalho Mestiço: maneiras de

pensar e formas de viver - séculos XVI a XIX. São Paulo: Anna Blume,

PPGH/UFMG, 2002.

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