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COMO SERÁ O PASSADO OU QUEM

DECIDE O QUE SERÁ LEMBRADO OU


ESQUECIDO?

CAROLINE SILVEIRA BAUER | 10.11.2017

Em determinado senso comum, costuma-se opor memória e esquecimento,


porém alguns profissionais afirmam que são fenômenos complementares:
há muita lembrança no olvido, e vice-versa.

Os acontecimentos do século XX e a vivência de uma nova experiência de


tempo, marcada por uma percepção de uma constante aceleração, fez com
que memória e esquecimento adquirissem outros significados,
marcadamente sociais e políticos. A construção de memoriais, a
museificação da vida cotidiana e a preocupação com os diversos
patrimônios, as modas retrô, etc; tratam-se de indícios de uma nova relação
com o tempo histórico e uma nova articulação entre presente, passado e
futuro. O que será lembrado ou esquecido? E por quê? E quem tomará essa
decisão?

Essas reflexões, que me coloco enquanto historiadora, tornaram-se ainda


mais atuais com a inauguração do Memorial Luiz Carlos Prestes em Porto
Alegre, no dia 27 de outubro de 2017. E se reatualizam com as tentativas de
impedir que a cerimônia ocorresse.
Antes de alertar sobre à interdição ao passado, são necessárias algumas
palavras sobre o memorial. A obra foi concebida por Oscar Niemeyer como
uma homenagem ao amigo, ao longo de 18 anos. Em 2008, o projeto foi
entregue à família e, passada quase uma década, ele será inaugurado no
centenário da Revolução de Outubro de 1917 e dos 93 anos da Coluna Prestes.
O terreno que a construção ocupa foi cedido pela prefeitura de Porto Alegre
em 1990, através de um projeto de lei do então vereador Vieira da Cunha
(PDT), aprovado na câmara municipal. O prefeito à época, Olívio Dutra,
sancionou a lei e cedeu uma área na esquina das avenidas Ipiranga e Edvaldo
Pereira Paiva em Porto Alegre. No entanto, as obras somente foram
iniciadas em 2012 por meio do financiamento privado de uma instituição
que, como contrapartida, alugou parte do terreno para sua sede. As obras se
encerraram em 2014, mas a abertura do memorial foi adiada inúmeras
vezes.

Uma delas ocorreu naquele mesmo ano, no dia 8 de novembro, quando


manifestantes fixaram cartazes nas grades de proteção do memorial com os
seguintes dizeres: “Srs. vereadores: gastar milhões – memoria do comunismo
não – queremos saúde e educação” e “Fora Foro de São Paulo”. Além disto,
foram deixadas cruzes e coroas de flores em um ato que se intitulou
“Aniversário da Queda do Muro de Berlim e Homenagem às Vítimas do
Comunismo”

Mais recentemente, em março de 2017, o vereador Wambert Di Lorenzo


(PROS) propôs que o memorial fosse extinto e, em seu lugar, fosse criado o
Museu da História e da Cultura do Povo Negro. Sua justificativa é que
“Prestes foi um traidor da pátria brasileira, é um absurdo ele ser retratado como
um herói”, enquanto “a história e a cultura do povo negro são de uma riqueza
inestimável […] são tesouros que precisam ser sempre lembrados, como a
epopeia vivenciada pelos heroicos Lanceiros Negros.” O discurso do deputado
coloca em disputa as memórias de duas experiências diferentes, que não
necessariamente são antagônicas, ou seja, para lembrar uma coisa não seria
necessário esquecer outra.

Porto Alegre é uma cidade que homenageia muitas personalidades. Nos


últimos anos, pelas iniciativas da chamada justiça de transição, as
homenagens a ditadores, torturadores e outras pessoas vinculadas à
ditadura civil-militar têm sido questionadas. No caso, tratam-se de
instituições e obras públicas, como avenidas e escolas, ou placas
comemorativas, estátuas, memoriais. O Memorial Luiz Carlos Prestes é uma
iniciativa particular, com recursos provenientes de pessoas físicas e
jurídicas, sem verbas públicas. Não entrarei no mérito de sua trajetória
como ex-militar que comandou a Coluna Prestes, vinculou-se ao Partido
Comunista e participou da sublevação de 1935, foi preso durante a ditadura
do Estado Novo, tornou-se deputado constituinte após a redemocratização,
teve seus direitos políticos cassados pela ditadura civil-militar de 1964,
exilou-se na União Soviética, e, após a anistia, retornou ao Brasil, foi eleito
presidente de honra do PDT, partido no qual permaneceu até sua morte, em
1990. Minha inquietação continua sendo o que se pode lembrar e o que se
deve esquecer…

Em uma época de censura e autocensura, é preciso estar atento às


motivações morais e políticas.

Como será o passado ou quem decide o que será lembrado ou esquecido? - Dissenso

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