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Resumo:
Berço da efervescência artística no centro da cidade de Teresina, capital do Piauí, a
praça Pedro II abriga inúmeros ícones da arquitetura do século XX. Entre eles está a
Central de Artesanato Mestre Dezinho, edifício eclético que hoje abriga cerca de 34
lojas de artes e ofícios oriundos do estado. Adquirido para abrigar o Quartel da Polícia
do Estado em 1851, foi a atuação dessa mesma polícia na Ditadura Civil-Militar que
marcou um trauma não só na memória daqueles que sofreram, mas também no prédio
cuja função se alterou para um complexo turístico-educacional a partir de 1983. A
configuração atual do espaço, ainda que de uso alterado, é bastante semelhante à antiga,
tornando esse edifício o único no estado que conservou o lugar de memória da ditadura
para além da oralidade, de maneira material. Mas sem placas de identificação, visitas
guiadas ou processo de reconhecimento institucional, hoje a memória da ditadura civil-
militar ali existente se encontra em processo gradativo de apagamento. Apesar de ser
um marco mnemônico da época da ditadura civil-militar e estar localizado em um
perímetro onde diversas outras edificações contemporâneas a ele são frequentadas,
estudadas e até mesmo tombadas, esse espaço permanece um mistério não só à luz do
patrimônio histórico, mas também dos transeuntes e visitantes que rotineiramente estão
ali e desconhecem a trajetória e as conexões do edifício com esse período violento da
nossa história. O apagamento desses locais de memória da ditadura civil-militar
brasileira tem muitos agentes e formas, não sendo - de maneira alguma - algo
exclusivamente vinculado ao objeto em questão. Pretende-se, ao longo desse trabalho
acadêmico, analisar o memoricídio, através dos seus agentes gerais e, por conseguinte,
compreender as dinâmicas de estabelecimento do patrimônio, sua transformação em
bem de consumo e o privilégio institucional atrelado a ele na valorização das memórias
felizes, não só a fim de suscitar uma discussão sobre a memória, o patrimônio, a
verdade e a justiça, mas de dar uma resposta social para a ausência de mais 50 anos de
políticas reparadoras para esse local que estiquem suas soluções para além da
compensação e alcancem a consciência.
Palavras-chave:
Patrimônio; Teresina; Ditadura Civil-Militar.
O DEVER DE LEMBRAR E O DIREITO DE ESQUECER: ANÁLISE DOS
AGENTES DO MEMORICÍDIO DA DITADURA BRASILEIRA NA CENTRAL
DE ARTESANATO MESTRE DEZINHO EM TERESINA - PIAUÍ.
Introdução
As Origens do Patrimônio
Essa destruição conhecida como ‘negativa’ é praticada desde os tempos mais antigos
por todos os povos, posto que a derrota de uma cultura é bem mais efetiva se executada
através da aniquilação dos seus monumentos do que pelo assassinato dos seus guerreiros
(CHOAY, 2001). O viés etimológico de monumento, ligado essencialmente ao
substantivo latino “monumentum” que, por sua vez, é uma flexão do verbo “monere”,
significa “advertir a memória” (CHOAY, 2011). Atravessando o limite simbólico e
adquirindo um viés de materialidade, o monumento relaciona o artefato, o corpus, a
uma memória que, por sua vez, parece comum a todas as pessoas. Sendo a conservação
um conceito também indissociável a noção de monumento, a lei reclamada por Victor
Hugo em 1825 e, posteriormente, redigida por François Guizot em 1830, tinha por
objetivo: oferecer não apenas uma lição de história da própria civilização através da
proteção dos monumentos, mas propagar a consciência da necessidade de que o governo
se mantenha vigilante em relação aos interesses da arte e da história. A figura do
ministro, muitas vezes descredibilizada pela ausência em sua personalidade do franco-
patriotismo considerado necessário para ocupar o cargo (POULOT, 2009), foi essencial
para a instituição de uma inspetoria geral dos monumentos históricos na França, bem
como para o estabelecimento do que deve ser protegido e do que deve ser esquecido no
que tange a discussão do patrimônio reverberada muito tempo depois até hoje.
Já o monumento histórico não é intencional, ou seja, não é uma criação social para um
fim memorial, mas sim a escolha dos edifícios pré-existentes em face do seu valor para
a história ou de seu valor estético. Portanto, é uma construção intelectual, arraigada
principalmente ao período que ocupa, carregando ainda a abstração do saber reconhecer:
no século XIX, por exemplo, eram raros os historiadores que sabiam olhar de fato para
os monumentos históricos e entendê-los como tais. Guizot, em Relatório ao Rei, frisa
desde o início que o solo da França é simbolizado pelos seus monumentos, além de
destacar a importância da arte e do valor desses para os especialistas, os historiadores da
arte – que tem em sua conduta mais arte do que história (CHOAY, 2001). É Riegl que
não só diferencia os conceitos de ‘monumento’ e ‘monumento histórico’, mas também
dissocia radicalmente os valores de arte e os valores de saber: quando não se tinha
conhecimento acerca de outros tipos de monumentos senão os intencionais, eram pelos
valores históricos e artísticos que se valorizavam as obras das antiguidades e não apenas
por uma representação memorial relevante. É válido ressaltar ainda que, para Riegl, não
há um valor artístico absoluto, ou cânone, que possa classificar qualquer bem apenas
baseado em seus critérios, tendo em vista que para os monumentos serem valorados
deve-se levar em consideração a ‘vontade artística’ da época (RIEGL, 2019).
Os ‘locais de memória’ (NORA, 1993), conceito criado por Pierre Nora, historiador
francês, entende esses espaços como: locais físicos onde a memória social é ancorada e
pode ser apreendida pelos sentidos; locais que detém função porque sempre tiveram ou
adquiriram a função de fundação das memórias coletivas, além, é claro, dos locais
simbólicos onde a memória coletiva e, por conseguinte, a identidade, é apresentada, ou
seja, locais imbuídos de uma vontade de memória (NEVES, 2014). Um exemplo claro
da instituição de patrimônio nos locais onde as memórias aconteceram são os bens
relacionados a memória traumática: diferente do esforço nacionalista para criar um
ícone patriótico, relembrando momentos de glória, os sítios chamados sensíveis
resguardam para a posterioridade o horror e o medo que o próprio ser humano é capaz
de infligir às coletividades principalmente minoritárias. O campo de concentração de
Auschwitz-Birkenau – hoje musealizado – foi tombado pela Unesco como patrimônio
da humanidade em 1979 (MENEGUELLO, 2018) trazendo para a discussão do campo
patrimonial uma nova concepção que coloca os lugares de memória como protagonistas
já que evocam acontecimentos históricos reais ao invés de criar símbolos/mitos
distantes e inalcançáveis para representar uma tradição inventada.
A antiga Vila Rica deve esse ‘título’ á uma figura importante para compreendermos
qual razão avulta nesse processo de institucionalização: Gustavo Barroso, um advogado,
folclorista e contista cearense que, embora tenha dirigido o Museu Histórico Nacional
entre 1920 e 1930, já lutava para o reconhecimento de Ouro Preto como a autêntica
continuidade dos costumes europeus muito antes. Inúmeros políticos e intelectuais
apontavam a cidade como herança artística e histórica desde 1900, principalmente pelo
estado de conservação se comparada a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, que foi
alterada esteticamente com as reformas anteriormente mencionadas (MAGALHÃES,
2017). Embora a avaliação do estado das edificações relacionadas a Inconfidência
Mineira tenha demonstrado uma quantidade irreparável de danos na maior parte dos
imóveis relevantes, chama a atenção que ao final do parecer é citada a necessidade de
recuperação dos monumentos justificada pelo seu valor artístico, o que reitera a
crescente valorização do barroco (MAGALHÃES, 2017).
Os planos de expansão foram adiados, pois em 1936, no Rio de Janeiro, já era criado o
primeiro órgão nacional de preservação do patrimônio conhecido como Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) – no âmbito do Ministério da
Educação e Saúde - na gestão de Gustavo Capanema. A experiência de Mário de
Andrade no DMC/SP motivou a encomenda de um programa de proteção do patrimônio
histórico e artístico brasileiro: o escritor elaborou um inventário que descrevia os
exemplares do patrimônio cultural paulista observados durante suas viagens enquanto
responsável pelo DMC. A regulamentação do órgão foi executada pelo Decreto-lei
25/37, promulgado sem coincidência ás vésperas do golpe de 1937: um documento
inspirado no anteprojeto de Mário de Andrade, mas com mudanças significativas
realizadas pelo então diretor do SPHAN Rodrigo Melo Franco de Andrade. No texto
original é possível perceber alguns aspectos próprios da preocupação de Mário ao
conceituar patrimônio, fugindo do essencialmente estético, físico e suntuoso, e
abarcando expressões da cultura popular (PINHEIRO, 2006).
Mesmo que reconhecesse o acerto político feito para a plena execução das atividades do
SPHAN (FONSECA, 2005), Mário de Andrade também sabia que o conteúdo aprovado
não correspondia a sua proposta de serviço de patrimônio ideal que, segundo Micelli
(2001, p. 01), “revelou-se descompassada das circunstâncias daquele momento, ao
passo que a entronização do barroco firmou-se como a pedra de toque da política
preservacionista”. O conteúdo redigido pelo diretor do DMC interessava preservar na
categoria obras de arte históricas aquelas que, independente do seu valor artístico,
valessem como documentos para a história: ao exemplificar o caso de bens que
condessassem um autêntico valor artístico, Mário, assim como Alois Riegl, afirmava
que o valor histórico deveria prevalecer e seria esse que atrairia as massas para apreciar
os monumentos, interpretando eles como testemunho oficial da vivência dos
antepassados (FONSECA, 2005).
Como a história dos objetos é, por consequência, a história dos agentes, é fundamental a
reflexão sobre quem antes balizava a ideia de patrimônio nacional estabelecida na
predileção pelo barroco, cujo os ecos se mantém até hoje. A equipe técnica do SPHAN
teve suas nomeações a partir daqueles que faziam parte ou frequentavam o mesmo
círculo social no qual estava circunscrito o movimento modernista. Embora nem todos
fossem mineiros, o estado de Minas Gerais se apresentava como locus amoenus para
muitos integrantes do Serviço do Patrimônio e assumia um papel relevante na política
brasileira ao catalisar e irradiar ideias e convenções: em uma viagem a Minas que
Rodrigo Melo Franco de Andrade “descobriu” o Barroco e se convenceu da necessidade
de proteger os monumentos históricos; em uma viagem a Minas que Lúcio Costa,
patrocinado pela SBBA, despertou a sua inspiração na arquitetura colonial brasileira; ou
seja, muitos nomes relevantes e sobre os quais estavam os holofotes discursivos daquele
tempo identificaram em Minas a manjedoura de uma civilização que, para eles, era a
autêntica brasileira, associando a proteção dos monumentos históricos e artísticos
mineiros – ou, no resto do país, os que se assemelhassem a eles – a construção do
tradicional nacional (FONSECA, 2005).
Considerações finais
O patrimônio é, acima de tudo, a presentificação de questões do passado. Através de
bens que reconstituem, tangível ou intangivelmente, as memórias vividas é possível
compreender os passos que se dão no presente e qual o destino desse caminho sinuoso
no futuro. Ao construir uma linha do tempo do macro para o micro, abordando minúcias
na trajetória do estabelecimento do conceito de patrimônio mundial e nacional, são
feitos recortes, muitas vezes rudes, para conduzir o raciocínio em uma espécie de funil
onde a gota derradeira é a constatação que se objetificava. Analisar no presente as
narrativas que constituem o patrimônio como conhecemos é, ao mesmo tempo, entender
a situação de outra perspectiva, com conceitos mais atuais e discussões furtivas, mas
também observar como o comportamento das instituições de chancela é a
presentificação de uma herança passada.