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O DEVER DE LEMBRAR E O DIREITO DE ESQUECER: ANÁLISE DOS

AGENTES DO MEMORICÍDIO DA DITADURA BRASILEIRA NA CENTRAL


DE ARTESANATO MESTRE DEZINHO EM TERESINA - PIAUÍ.

MARIA CLARA DOS SANTOS LIMA


Mestranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo
(Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP)
eucajuina@usp.br

Resumo:
Berço da efervescência artística no centro da cidade de Teresina, capital do Piauí, a
praça Pedro II abriga inúmeros ícones da arquitetura do século XX. Entre eles está a
Central de Artesanato Mestre Dezinho, edifício eclético que hoje abriga cerca de 34
lojas de artes e ofícios oriundos do estado. Adquirido para abrigar o Quartel da Polícia
do Estado em 1851, foi a atuação dessa mesma polícia na Ditadura Civil-Militar que
marcou um trauma não só na memória daqueles que sofreram, mas também no prédio
cuja função se alterou para um complexo turístico-educacional a partir de 1983. A
configuração atual do espaço, ainda que de uso alterado, é bastante semelhante à antiga,
tornando esse edifício o único no estado que conservou o lugar de memória da ditadura
para além da oralidade, de maneira material. Mas sem placas de identificação, visitas
guiadas ou processo de reconhecimento institucional, hoje a memória da ditadura civil-
militar ali existente se encontra em processo gradativo de apagamento. Apesar de ser
um marco mnemônico da época da ditadura civil-militar e estar localizado em um
perímetro onde diversas outras edificações contemporâneas a ele são frequentadas,
estudadas e até mesmo tombadas, esse espaço permanece um mistério não só à luz do
patrimônio histórico, mas também dos transeuntes e visitantes que rotineiramente estão
ali e desconhecem a trajetória e as conexões do edifício com esse período violento da
nossa história. O apagamento desses locais de memória da ditadura civil-militar
brasileira tem muitos agentes e formas, não sendo - de maneira alguma - algo
exclusivamente vinculado ao objeto em questão. Pretende-se, ao longo desse trabalho
acadêmico, analisar o memoricídio, através dos seus agentes gerais e, por conseguinte,
compreender as dinâmicas de estabelecimento do patrimônio, sua transformação em
bem de consumo e o privilégio institucional atrelado a ele na valorização das memórias
felizes, não só a fim de suscitar uma discussão sobre a memória, o patrimônio, a
verdade e a justiça, mas de dar uma resposta social para a ausência de mais 50 anos de
políticas reparadoras para esse local que estiquem suas soluções para além da
compensação e alcancem a consciência.
Palavras-chave:
Patrimônio; Teresina; Ditadura Civil-Militar.
O DEVER DE LEMBRAR E O DIREITO DE ESQUECER: ANÁLISE DOS
AGENTES DO MEMORICÍDIO DA DITADURA BRASILEIRA NA CENTRAL
DE ARTESANATO MESTRE DEZINHO EM TERESINA - PIAUÍ.

MARIA CLARA DOS SANTOS LIMA


Mestranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo
(Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP)
eucajuina@usp.br

Introdução

Berço da efervescência cultural e artística no centro da cidade de Teresina, capital do


Piauí, a praça Pedro II abriga inúmeros ícones da arquitetura do século XX: desde o
Cine Rex, um dos primeiros cinemas de rua com características Art Déco, até o Theatro
4 de Setembro, referência em espetáculos teatrais, este perímetro se destaca não só pelo
abundante conjunto arquitetônico, em sua maioria tombado em instância estadual
(CAU, 2014), mas também pelo papel de protagonista desempenhado nas inúmeras
memórias vividas por gerações e gerações de piauienses. Em posição privilegiada nesse
contexto urbano está a Central de Artesanato Mestre Dezinho (CAMD): edifício de
fachada principal eclética voltada para a praça supracitada e objeto central desta
pesquisa. Com o processo de transferência da capital do estado de Oeiras para Teresina,
o Governo Provincial do Piauí adquire o prédio para ser o Quartel da Polícia do Estado
em 1851, no entanto, o espaço só assume esse fim anos mais tarde, abrigando àquela
época a Casa de Educandos Artíficies (FERNANDES, 2018). Em 1873, findado o
projeto de civilidade no local, tem início a ocupação pela Polícia Militar do Estado do
Piauí que ali ficou por mais de um século (LOPES, 2009) e cuja atuação no período da
Ditadura Civil-Militar ficou marcada não só na memória traumática daqueles que
sofreram nas dependências do quartel, mas também no prédio cuja função se alterou
para um complexo turístico-educacional a partir de 1983.

A configuração atual do espaço, ainda que de uso alterado, é bastante semelhante à


antiga tornando esse edifício o único no estado que conservou a memória da ditadura
para além da oralidade, de maneira material. O que hoje se convenciona em um
complexo cultural, com 34 lojas de artesanato piauiense, uma escola de música e uma
escola de dança, já fez parte do aparato repressivo que exercia a injustiça cometida com
estudantes e militantes no Brasil, em um regime que se capilarizou por todos os estados.
Sem placas de identificação, visitas guiadas ou processo de reconhecimento
institucional, hoje a memória da ditadura civil-militar ali existente encontra projeção
apenas em um local: um porão úmido, embaixo da loja de número 43, cedida ao artesão
Carlos Antônio de Oliveira que, durante as visitas, frisa a impossibilidade do local ter
abrigado outra função se não de ambiente de tortura durante os anos de chumbo, uma
história nebulosa e difícil, cuja confirmação não existe por parte dos encarcerados ali
que se tem notícia. Atuando como um agente de preservação dúbio, a situação do porão
em perspectiva acadêmica é difícil: embora não existam evidências históricas de que
esse compartimento em específico foi um local de grave violação de direitos no regime
militar - diferente do edifício como um todo onde existem relatos de cárcere - o porão é
o único ‘elo’ de conexão entre a memória da ditadura civil-militar brasileira e a Central
de Artesanato Mestre Dezinho.

Outro reflexo dessa negligência e, consequentemente, apagamento, são algumas


matérias de jornais, geralmente veiculadas apenas durante os aniversários do golpe e da
Lei da Anistia, que abordam o papel do porão e do seu guardião, mas sem uma pesquisa
mais profunda acerca dos acontecimentos relatados. Ainda que atualmente seja possível
visitar o andar inferior do box 43 por uma módica quantia em dinheiro e assim conhecer
o único nó que conecta o edifício da CAMD a uma memória tão sensível, o evidente e
gradativo processo de apagamento historiográfico e social dessa memória é preocupante
e abre margem para a instabilidade dos acontecimentos históricos relatados: apesar de
ser um marco mnemônico da época da Ditadura Civil-Militar e estar localizado em um
perímetro onde diversas outras edificações contemporâneas a ele são frequentadas,
estudadas e até mesmo tombadas, esse espaço permanece um mistério não só à luz do
patrimônio histórico, mas também dos transeuntes e visitantes que rotineiramente estão
ali e desconhecem o histórico do edifício.

Evidência de acontecimentos atrelados à memória da ditadura em locais nem sempre


reconhecidos pelos órgãos responsáveis é a ausência da Central de Artesanato Mestre
Dezinho no Volume I do relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) onde são
apontados três lugares de graves violações de Direitos Humanos, de 1964 a 1985, em
Teresina. São eles: o 25° Batalhão de Caçadores (25° BC), o Departamento de Ordem e
Política Social (DOPS) e a Penitenciária Estadual do Piauí. É importante citar que em
nenhum desses lugares há qualquer artifício de identificação ou mesmo menção da
participação deles nesse capítulo tão nebuloso vivido na capital do Piauí: o 25° BC
permanece no mesmo local, mas teve o seu uso e estrutura alterados ao longo dos anos;
o Departamento de Ordem e Política Social (DOPS) hoje abriga a Delegacia Geral de
Polícia Civil; já a Penitenciária Estadual foi demolida e, no lugar, foi construído o
Ginásio Verdão.

O memoricídio gradativo da Central de Artesanato é causado não só por aspectos


contidos nos limites desse edifício em específico, mas também inúmeros outros que
fazem parte da intersecção que o patrimônio cultural brasileiro abrange: a origem das
políticas de patrimônio, a transformação de edifícios preservados em bem de consumo,
o privilégio das memórias felizes em detrimento do apagamento das tristes e como isso
vem sendo tratado pelas principais instituições responsáveis pela preservação são
algumas das reflexões relevantes para entender que o fenômeno do apagamento desses
espaços tem muitos agentes e formas, não sendo - de maneira alguma - algo
exclusivamente vinculado ao objeto em questão. Pretende-se, ao longo desse trabalho
acadêmico, analisar o fenômeno do apagamento e os seus agentes gerais e, por
conseguinte, compreender quais critérios que delineiam o patrimônio brasileiro e
mundial contribuem ou não para o reconhecimento de locais de memória difícil como
bens culturais relevantes. Entender esse lugar do patrimônio no Brasil, como é escolhido
e estabelecido, é uma das pontas que conecta essa pesquisa aos debates recentes em
torno dos sítios de consciência e do estabelecimento de memoriais da ditadura civil-
militar nos mesmos locais onde existiram graves violações de direitos, bem como
reforça a necessidade latente de mudança dos critérios utilizados para
institucionalização de locais de memória pela sua trajetória alinhada aos interesses de
regimes opressores.
Os agentes gerais do apagamento

As Origens do Patrimônio

A compreensão das motivações para o apagamento da pegada mnemônica da ditadura


civil-militar no espaço da Central de Artesanato Mestre Dezinho perpassa a instituição
do patrimônio cultural como conceito: o que o define, de onde surgiu e para onde
estamos caminhando são questionamentos indispensáveis para construir a narrativa
desse memoricídio, cujo processo gradativo não é – de maneira alguma – particular ao
objeto dessa pesquisa em específico. As origens do patrimônio cultural no mundo e no
Brasil, o privilégio institucional dos valores artísticos em detrimento dos históricos, a
transformação de edifícios patrimoniais em bens de consumo e como isso está atrelado
ao privilégio institucional das memórias felizes em detrimento das tristes, além da
preservação seletiva exercida em regimes ditatoriais são alguns dos operadores que,
apesar de atingirem o objeto de estudo de maneira particular, fazem parte de um
fenômeno maior que contribui para apagamentos semelhantes em vários outros locais
do Brasil. Muitos dos critérios nacionais de instituição de patrimônios tem influência
direta não só da origem histórica do registro e da hierarquia dos valores para
catalogação nesse campo, mas também da herança dos regimes ditatoriais que ao
instituir políticas de proteção ao patrimônio também queriam reverberar os ideais
nacionalistas que defendiam.

O registro como esforço institucional para a proteção de bens patrimoniais e reforço de


uma imagem coletiva de nação tem suas primeiras manifestações na Europa, por volta
do século XIX, em um momento de transição e mudanças sociais, políticas e
econômicas pós-Revolução Francesa, onde se fazia necessário proteger o que restou
para que a França encontrasse o seu papel como civilização através do próprio passado.
A compreensão da figura do “cidadão nacional” nesse momento era uma extensão desse
período de rupturas onde o país passava por mudanças na tentativa de retornar ao seu
status quo: estava entre monarquias e buscava dessacralizar um passado substituindo o
que era considerado estático. O aumento do vandalismo como um resultado dos
confiscos e realocação de propriedades, após a queda de Napoleão e reestabelecimento
do antigo regime, é um reflexo do pensamento comum à época: a destruição o
patrimônio era uma questão ideológica na luta entre a tradição e o progresso (POULOT,
2011).

Essa destruição conhecida como ‘negativa’ é praticada desde os tempos mais antigos
por todos os povos, posto que a derrota de uma cultura é bem mais efetiva se executada
através da aniquilação dos seus monumentos do que pelo assassinato dos seus guerreiros
(CHOAY, 2001). O viés etimológico de monumento, ligado essencialmente ao
substantivo latino “monumentum” que, por sua vez, é uma flexão do verbo “monere”,
significa “advertir a memória” (CHOAY, 2011). Atravessando o limite simbólico e
adquirindo um viés de materialidade, o monumento relaciona o artefato, o corpus, a
uma memória que, por sua vez, parece comum a todas as pessoas. Sendo a conservação
um conceito também indissociável a noção de monumento, a lei reclamada por Victor
Hugo em 1825 e, posteriormente, redigida por François Guizot em 1830, tinha por
objetivo: oferecer não apenas uma lição de história da própria civilização através da
proteção dos monumentos, mas propagar a consciência da necessidade de que o governo
se mantenha vigilante em relação aos interesses da arte e da história. A figura do
ministro, muitas vezes descredibilizada pela ausência em sua personalidade do franco-
patriotismo considerado necessário para ocupar o cargo (POULOT, 2009), foi essencial
para a instituição de uma inspetoria geral dos monumentos históricos na França, bem
como para o estabelecimento do que deve ser protegido e do que deve ser esquecido no
que tange a discussão do patrimônio reverberada muito tempo depois até hoje.

Já o monumento histórico não é intencional, ou seja, não é uma criação social para um
fim memorial, mas sim a escolha dos edifícios pré-existentes em face do seu valor para
a história ou de seu valor estético. Portanto, é uma construção intelectual, arraigada
principalmente ao período que ocupa, carregando ainda a abstração do saber reconhecer:
no século XIX, por exemplo, eram raros os historiadores que sabiam olhar de fato para
os monumentos históricos e entendê-los como tais. Guizot, em Relatório ao Rei, frisa
desde o início que o solo da França é simbolizado pelos seus monumentos, além de
destacar a importância da arte e do valor desses para os especialistas, os historiadores da
arte – que tem em sua conduta mais arte do que história (CHOAY, 2001). É Riegl que
não só diferencia os conceitos de ‘monumento’ e ‘monumento histórico’, mas também
dissocia radicalmente os valores de arte e os valores de saber: quando não se tinha
conhecimento acerca de outros tipos de monumentos senão os intencionais, eram pelos
valores históricos e artísticos que se valorizavam as obras das antiguidades e não apenas
por uma representação memorial relevante. É válido ressaltar ainda que, para Riegl, não
há um valor artístico absoluto, ou cânone, que possa classificar qualquer bem apenas
baseado em seus critérios, tendo em vista que para os monumentos serem valorados
deve-se levar em consideração a ‘vontade artística’ da época (RIEGL, 2019).

Ou seja, o culto aos monumentos e a própria ideia de patrimônio surgia como a


materialização, a prova, circunscrita em critérios de qualidade estética e substância
histórica, de um “passado comum” entre pessoas de uma mesma sociedade, em uma
antítese clara ao esquecimento que reafirmava a existência de uma “cultura oficial”
(MICELI, 1987). As categorizações e subdivisões – histórico, cultural, material,
imaterial – se desdobraram depois, mas mantendo a mesma relação simbiótica: o que
deve ser protegido é a representação da identidade de um povo que, com a estabilização
do conceito de Nação, deixou de ser agregado pelos ideais nacionais, mas sim pelas
características sociais comuns chamadas de “identidades sociais” (NEVES, 2014). Com
a Revolução Industrial e o período pós-guerras mundiais, as noções relacionadas aos
monumentos também mudaram, principalmente por que aos edifícios cultuados que
mantém o seu uso original e aos bustos/estátuas dos mortos nas guerras foi relegado
apenas o lugar da sobrevivência. Françoise Choay (2001) afirma que os monumentos
reconhecidos como ‘comemorativos’ prosseguem conduzidos apenas pelo “hábito, uma
carreira formal e irrisória”: os únicos bens verdadeiros que a nossa época se encarregou
de construir não se identificam e se dissimulam sob formas insólitas, minimais e não-
metafóricas. A recordação de um passado cuja memória traz também peso emocional e
medo confere a esses monumentos recentes autênticos a impossibilidade de permanecer
apenas na reminiscência histórica, convertendo-se em materialidade.

Os ‘locais de memória’ (NORA, 1993), conceito criado por Pierre Nora, historiador
francês, entende esses espaços como: locais físicos onde a memória social é ancorada e
pode ser apreendida pelos sentidos; locais que detém função porque sempre tiveram ou
adquiriram a função de fundação das memórias coletivas, além, é claro, dos locais
simbólicos onde a memória coletiva e, por conseguinte, a identidade, é apresentada, ou
seja, locais imbuídos de uma vontade de memória (NEVES, 2014). Um exemplo claro
da instituição de patrimônio nos locais onde as memórias aconteceram são os bens
relacionados a memória traumática: diferente do esforço nacionalista para criar um
ícone patriótico, relembrando momentos de glória, os sítios chamados sensíveis
resguardam para a posterioridade o horror e o medo que o próprio ser humano é capaz
de infligir às coletividades principalmente minoritárias. O campo de concentração de
Auschwitz-Birkenau – hoje musealizado – foi tombado pela Unesco como patrimônio
da humanidade em 1979 (MENEGUELLO, 2018) trazendo para a discussão do campo
patrimonial uma nova concepção que coloca os lugares de memória como protagonistas
já que evocam acontecimentos históricos reais ao invés de criar símbolos/mitos
distantes e inalcançáveis para representar uma tradição inventada.

Espaço físico carregado de sentidos e sentimentos daqueles que vivenciaram memórias


e, portanto, lugar de memória, é a Central de Artesanato Mestre Dezinho cuja proteção
legal é descrita como “desprovida” no Inventário de Proteção Cultural do Piauí –
IPAC/PI realizado em 1998 pelo órgão responsável pelo patrimônio na instância
estadual (imagem 01). Ainda que o inventário seja uma forma de proteção ao
patrimônio, a memória atrelada a ditadura civil-militar não é mencionada no
documento. Uma ausência transposta para o espaço físico, hoje um centro cultural, mas
que por muito tempo se constituía em uma ferramenta de encarceramento do período
mais repressivo do país. A institucionalização do patrimônio brasileiro carrega muitos
resquícios do estabelecimento das políticas de registro europeias e, talvez por isso, o
apagamento de lugares de memória como esse seja apenas mais um eco, já que as
práticas de preservação patrimonial francesas foram uma fonte de inspiração para a
implementação de estratégias semelhantes no Brasil.

O patrimônio no Brasil e o que é patrimônio para o Brasil

Enquanto as discussões no âmbito do patrimônio francês visavam reunir em um


inventário, imaginado em 1834, monumentos que recapitulassem o passado nacional e
estabelecessem o sentido da civilização (POULOT, 2009), no Brasil o momento era
outro: o passado retrógrado, colonial e ancestral dava lugar a uma relação indissociável,
que partiu das elites, entre modernidade e Europa. Ou seja, tanto as artes, quanto os
costumes e principalmente a arquitetura, única capaz de emular integralmente um
cenário metropolitano europeu, buscavam renegar as características próprias que
remetiam a então ‘brasilidade’ conhecida em detrimento do aparente progresso
(PINHEIRO, 2006). As reformas urbanas que aconteceram nos primeiros anos do
século XX, como as promovidas pelo prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro,
reafirmam a capacidade de a arquitetura assumir um papel de usurpadora de fatos,
sentimentos e histórias que, em efeito dominó, se transformam em realidade e, nesse
caso, em uma identidade cultural compartilhada.

Em um contexto social onde se encorajava o esquecimento de qualquer manifestação ou


bem nativo, surge, na contramão, a figura do erudito e engenheiro português, radicado
no Brasil, Ricardo Severo. Rapidamente inserido nos ciclos sociais, empresariais e
culturais da elite do café paulistana, tanto pelo seu casamento com Francisca Santos
Dumont, quanto pela sua sociedade e parceria com Ramos de Azevedo no Escritório
Técnico F. P. Ramos de Azevedo, Severo acirrou um discurso nacionalista próprio de
sua personalidade: um português que ao se mudar e viver no Brasil, de 1908 a 1940, se
dedicou a valorização do legado luso no país e, principalmente, a “causa tradicionalista”
cuja disseminação, no início do século XX, também ocorria na Latinoamérica, Caribe,
Estados Unidos e Europa através de intelectuais e respectivos movimentos nacionalistas
(MELLO, 2006). Á figura de Severo, na historiografia, é creditada o mérito da abertura
de caminhos para o estudo e preservação de uma arquitetura do passado com valores e
características bem definidos, posto que o viés nacionalista espertado pelo neocolonial
inspirou muitos dos intelectuais modernistas ligados à Semana de 22, e posteriormente,
ao Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Esses ecos são
sentidos até hoje no privilégio institucional dentro do IPHAN, antigo SPHAN, na
proteção de bens que remetem não apenas a estilística da colonialidade e ao triunfo da
nação, mas ao que fomos ensinados ser sinônimo de belo, bonito e, por assim dizer, a
projeção de uma memória autêntica e, por conseguinte, gloriosa e feliz.

A efervescência nos debates promovidos por Ricardo Severo e a empolgação


em torno do neocolonial fomentaram a pesquisa e o estudo quanto ás características do
estilo colonial original durante a década de 1920: o próprio engenheiro estimulou a
realização de inventários da arquitetura colonial patrocinando viagens, como as do
pintor José Wasth Rodrigues, á inúmeras regiões brasileiras cujo resultado se encontra
no livro Documentário Arquitetônico que, até hoje, figura no repertório de muitos
estudantes de arquitetura (PINHEIRO, 2006). Outras experiências foram significativas
para estabelecer as origens que influenciaram o atual patrimônio institucionalizado
brasileiro: a Sociedade Brasileira de Belas Artes (SBBA) patrocinou viagens ás cidades
mineiras para jovens, privilegiados e, por isso, promissores no ano de 1924. Entre eles
estava Lúcio Costa, arquiteto brasileiro pioneiro da arquitetura modernista no país e
íntimo de José Mariano Filho, outro grande entusiasta do movimento neocolonial e
presidente da SBBA. Em entrevista ao jornal ‘A Noite’, publicada em 19/03/1924,
Lúcio Costa manifestou a sua convicção de que o reconhecimento do neocolonial era o
ponto de partida para a construção de outros estilos:

Não vou ao extremo de achar que já devíamos ter uma


arquitetura nacional. [...] Deveríamos, porém, ter tornado, e isso há
muito tempo, uma diretriz, e iniciado a jornada aceitando como ponto
de partida o passado que, seja ele qual for, bom ou mau existe, existirá
sempre, e nunca poderá ser apagado. Para que tenhamos uma
arquitetura logicamente nossa, é mister procurar descobrir o fio da
meada, isto é, recorrer ao passado, ao Brasil-colônia. Todo esforço
nesse sentido deve ser recebido com aplausos. (COSTA, 1924 apud
PINHEIRO, 2011, p. 183).

No contexto da década de 1920, ainda não era popularmente disseminada a preocupação


com o estabelecimento de políticas ou mesmo estratégias de preservação da arte ou
arquitetura brasileira, exceto pela crítica da mídia á recorrente evasão de obras de arte
locais que acontecia tanto dentro das fronteiras do país: No entanto, a preocupação
parecia se resignar a exportação dessas obras e apenas ás obras: ao tomar conhecimento
dos processos de arruinamento de edifícios históricos, partes conhecidas da elite
brasileira vistos como grandes colecionadores se apropriavam dos objetos artísticos e
condenavam as construções á completa destruição (PINHEIRO, 2011). A partir de
1930, tem início no campo da preservação a conquista de alguns frutos no que diz
respeito a salvaguarda. Em 1933, Ouro Preto é declarada monumento nacional em
decorrência do seu rico passado histórico – em memória da luta nacionalista que foi a
Inconfidência Mineira – e, principalmente, do seu exuberante patrimônio edificado
(PINHEIRO, 2006).

A antiga Vila Rica deve esse ‘título’ á uma figura importante para compreendermos
qual razão avulta nesse processo de institucionalização: Gustavo Barroso, um advogado,
folclorista e contista cearense que, embora tenha dirigido o Museu Histórico Nacional
entre 1920 e 1930, já lutava para o reconhecimento de Ouro Preto como a autêntica
continuidade dos costumes europeus muito antes. Inúmeros políticos e intelectuais
apontavam a cidade como herança artística e histórica desde 1900, principalmente pelo
estado de conservação se comparada a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, que foi
alterada esteticamente com as reformas anteriormente mencionadas (MAGALHÃES,
2017). Embora a avaliação do estado das edificações relacionadas a Inconfidência
Mineira tenha demonstrado uma quantidade irreparável de danos na maior parte dos
imóveis relevantes, chama a atenção que ao final do parecer é citada a necessidade de
recuperação dos monumentos justificada pelo seu valor artístico, o que reitera a
crescente valorização do barroco (MAGALHÃES, 2017).

Em 1934, o governo cria a Inspetoria dos Monumentos Nacionais, no âmbito do Museu


Histórico Nacional e, no mesmo ano, promulga uma nova Constituição Federal que
incluiu entre os deveres do Estado a proteção dos bens de interesse histórico e artístico
do Brasil. No ano seguinte, é criado o Departamento Municipal de Cultura (DMC) da
cidade de São Paulo cujo primeiro diretor foi o escritor e integrante do movimento
moderno brasileiro Mário de Andrade que buscava, futuramente, ampliar a atuação do
órgão criando o Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico (PINHEIRO, 2006).

Os planos de expansão foram adiados, pois em 1936, no Rio de Janeiro, já era criado o
primeiro órgão nacional de preservação do patrimônio conhecido como Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) – no âmbito do Ministério da
Educação e Saúde - na gestão de Gustavo Capanema. A experiência de Mário de
Andrade no DMC/SP motivou a encomenda de um programa de proteção do patrimônio
histórico e artístico brasileiro: o escritor elaborou um inventário que descrevia os
exemplares do patrimônio cultural paulista observados durante suas viagens enquanto
responsável pelo DMC. A regulamentação do órgão foi executada pelo Decreto-lei
25/37, promulgado sem coincidência ás vésperas do golpe de 1937: um documento
inspirado no anteprojeto de Mário de Andrade, mas com mudanças significativas
realizadas pelo então diretor do SPHAN Rodrigo Melo Franco de Andrade. No texto
original é possível perceber alguns aspectos próprios da preocupação de Mário ao
conceituar patrimônio, fugindo do essencialmente estético, físico e suntuoso, e
abarcando expressões da cultura popular (PINHEIRO, 2006).

Mesmo que reconhecesse o acerto político feito para a plena execução das atividades do
SPHAN (FONSECA, 2005), Mário de Andrade também sabia que o conteúdo aprovado
não correspondia a sua proposta de serviço de patrimônio ideal que, segundo Micelli
(2001, p. 01), “revelou-se descompassada das circunstâncias daquele momento, ao
passo que a entronização do barroco firmou-se como a pedra de toque da política
preservacionista”. O conteúdo redigido pelo diretor do DMC interessava preservar na
categoria obras de arte históricas aquelas que, independente do seu valor artístico,
valessem como documentos para a história: ao exemplificar o caso de bens que
condessassem um autêntico valor artístico, Mário, assim como Alois Riegl, afirmava
que o valor histórico deveria prevalecer e seria esse que atrairia as massas para apreciar
os monumentos, interpretando eles como testemunho oficial da vivência dos
antepassados (FONSECA, 2005).

Já o decreto que norteou a ação do SPHAN pontuava com veemência as implicações


jurídicas, os efeitos legais do instrumento do tombo e a questão relacionada ao direito
de propriedade. No entanto, o foco a partir daqui é entender como o Serviço do
Patrimônio, futuro IPHAN, usou e usa dos seus critérios de proteção institucionais para
privilegiar uma ideia nacionalista e monumental de patrimônio e renegar outras. Muito
dessa configuração foi diretamente influenciada pelas características da onda
neocolonial já pontuadas, mas principalmente pela contemporaneidade da criação do
órgão ao movimento modernista brasileiro e o Estado Novo: ao estar submetido a
hierarquia de um governo extremamente autoritário e centralizador, o SPHAN absorveu
e replicou questões ideológicas pertencentes ao que pregava o varguismo, tais como o
sentimento ultranacionalista e o compartilhamento de uma identidade cultural balizada
pelo o que era permitido interpretar como brasilidade (PINHEIRO, 2006).

A hierarquia dos valores

Como a história dos objetos é, por consequência, a história dos agentes, é fundamental a
reflexão sobre quem antes balizava a ideia de patrimônio nacional estabelecida na
predileção pelo barroco, cujo os ecos se mantém até hoje. A equipe técnica do SPHAN
teve suas nomeações a partir daqueles que faziam parte ou frequentavam o mesmo
círculo social no qual estava circunscrito o movimento modernista. Embora nem todos
fossem mineiros, o estado de Minas Gerais se apresentava como locus amoenus para
muitos integrantes do Serviço do Patrimônio e assumia um papel relevante na política
brasileira ao catalisar e irradiar ideias e convenções: em uma viagem a Minas que
Rodrigo Melo Franco de Andrade “descobriu” o Barroco e se convenceu da necessidade
de proteger os monumentos históricos; em uma viagem a Minas que Lúcio Costa,
patrocinado pela SBBA, despertou a sua inspiração na arquitetura colonial brasileira; ou
seja, muitos nomes relevantes e sobre os quais estavam os holofotes discursivos daquele
tempo identificaram em Minas a manjedoura de uma civilização que, para eles, era a
autêntica brasileira, associando a proteção dos monumentos históricos e artísticos
mineiros – ou, no resto do país, os que se assemelhassem a eles – a construção do
tradicional nacional (FONSECA, 2005).

A “descoberta” do Barroco pelos modernistas significava a marca da colonialidade da


construção da nossa sociedade: era possível ler os bens e conjuntos tombados a partir do
processo histórico de colonização das regiões do país. A presença portuguesa, segundo
Afonso Arinos de Melo Franco (1944 apud FONSECA, 2005, p. 118), predominava
sobre as influências negra e indígena cuja historiografia da época não explicava o
predomínio pela escravização e genocídio desses povos. Como o ‘valor histórico’
utilizado pelo SPHAN era baseado na interpretação da história feita no momento, o
heroísmo e a erudição portuguesa admirados na época se avultavam no papel que os
grupos étnicos exerceram na construção do patrimônio e da sociedade. Rodrigo Melo
Franco de Andrade creditava convicto a autoria da civilização, em primeiro lugar, aos
portugueses que se radicaram em Minas e, em segundo lugar, aos escravos Angolas e
Banguelas trazidos por eles (FONSECA, 2005).

O excepcional, valor cultivado e polinizado dentro do SPHAN e atual IPHAN, justifica


a seleção de apenas alguns bens representativos entre vários de um mesmo tempo ou
classe. Na praça Pedro II, onde está localizada a Central de Artesanato Mestre Dezinho,
uma construção eclética, são tombados outros prédios de características semelhantes,
mas não o edifício objeto em si. O caráter arbitrário do tombamento elencado na
legislação brasileira é resultado da atribuição de valor caso a caso de competência do
órgão federal. R.M.F, inclusive, afirma que nos livros do tombo não deve ser inscrito
nenhum bem senão aqueles considerados de valor excepcional, posto que a avaliação
deve ser feita em comparação ás obras produzidas no Brasil, pois só assim seriam
qualificadas como condizentes à identidade nacional, já que este era um valor
inegociável na atribuição do que era patrimônio brasileiro (FONSECA, 2005).

O estudo, a pesquisa e os conhecimentos reservados a autoridade dos agentes do Serviço


do Patrimônio impediam o acesso da opinião pública aos processos institucionais
desenvolvidos pelo SPHAN. Com o objetivo de defender a capacidade intelectual e
moral de sua equipe técnica, Rodrigo Melo Franco divulgava em sua “menina dos
olhos” – as publicações do SPHAN – inventários balizados por um pensamento
institucional cuidadosamente articulado que passaria a ser o principal norteador dos
debates em torno da temática patrimonial no Brasil, ou seja: ao criar um pioneiro e
próprio espaço de discussão, o SPHAN divulgava as suas ações e a competência dos
seus agentes ao tempo que se legitimava como referência obrigatória no que tangem as
discussões de patrimônio (CHUVA, 2009). Talvez, essa “retroalimentação” do órgão
diante dos seus próprios feitos e divulgação limitada a nichos sociais intelectuais e
diminutos, garantiram a Rodrigo Melo Franco de Andrade permanência até a sua
aposentadoria no SPHAN.

A herança de preservação da ditadura e a transformação do patrimônio em bem


de consumo

As transformações políticas, econômicas e sociais pós-Estado Novo obrigaram o agora


Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a mudar a sua
abordagem quanto ás políticas de preservação, principalmente no que concerne a escala
urbana de cidades consideradas históricas. O crescimento acelerado nesses locais, que
passavam de uma realidade de estagnação econômica para outra de ascensão muito
rapidamente, acarretava em muitos problemas relacionados a infraestrutura urbana e
logística. Em 1967, três anos após o golpe militar, o IPHAN mudou de gestão e o
arquiteto Renato Soeiro assumiu o maior cargo chefia. Em 1968, após as
recomendações do inspetor convidado Michel Parent, foram realizadas as pesquisas
para nortear a elaboração dos planos diretores das cidades de Paraty, Ouro Preto e
Salvador. Sendo essa última de caráter urgente e prioritário, não só pelo processo de
arruinamento físico e social do centro histórico, mas também pela capacidade da capital
da Bahia virar a maior atração urbana na América do Sul, segundo o inspetor.

Cinco anos depois, no período conhecido como “milagre econômico”, durante a


ditadura civil-militar, o turismo começou a se apresentar como uma atividade
econômica frutífera para países subdesenvolvidos. O chamado “valor econômico do
patrimônio” não era só agradável ao governo ditatorial pela arrecadação, mas também
por que o campo cultural se apresentava como importante componente para a
manipulação ideológica, posição governamental essa extremamente controversa pois ao
tempo que era agente repressivo da cultura também era incentivador das políticas de
preservação cultural (CHUVA, 2009). Um dos programas que causou mais impacto até
hoje no que diz respeito a investimento e preservação do patrimônio brasileiro foi o
PCH. Criado em 1973, ainda durante o regime militar, o programa se implantou com o
objetivo de reconstruir cidades históricas do Nordeste e promover o desenvolvimento
econômico delas através do turismo.

Os principais critérios para seleção de cidades integrantes e obras prioritárias era a


possibilidade de integração imediata à atividade turística, o potencial para turismo e o
risco de arruinamento próximo. Em Salvador, por exemplo, as fachadas das casas do
Largo do Pelourinho tiveram sua decoração eclética retirada, abraçando uma estética
construtiva setecentista e colonial. No entanto, o desprezo dos arquitetos pelas adições
ecléticas na estrutura e a valorização exacerbada do valor artístico original levava a
intervenções não só agressivas quanto não-científicas. O restauro estilístico pautado no
image-making (LEITE, 2004) do um cenário idealizado de uma época era um problema
recorrente que acarretava em resultados bizarros como o da “nova” Igreja Matriz de São
Salvador ou a Sé de Olinda ou as cores das edificações do Largo do Pelourinho
(CHUVA, 2009).

A vontade de atingir um estado de pureza estilística que beirava a doutrina de Le-Duc é


adicionada a outro aspecto que contribuirá bastante para nos aprofundarmos na
discussão central desse artigo. Françoise Choay em ‘Alegoria do Patrimônio’ (2001)
nos mostra que tanto o monumento e a cidade histórica, quanto o patrimônio cultural e
urbano nos oferecem um esclarecimento único sobre como as sociedades ocidentais
assumiram a sua relação com o tempo e construíram sua identidade: a representação
icônica e o benefício da visão através da arquitetura trouxeram uma nova camada para
nossa percepção cultural e histórica, tornando o testemunho e a palavra suportes
desvalorizados. O monumento ao ser institucionalizado assume uma nova conduta
temporal, pois está ao mesmo tempo imóvel, protegido, resguardado no presente
concreto, e instalado no passado definitivo e irrevogável através da ação da história e da
consciência.

A nossa inserção em uma sociedade de consumo desenfreado e o nível de importância


que a chancela garante para esses monumentos, entre outros fatores, contribuem para a
mercantilização da cultura que perde seu caráter de realização individual e torna-se uma
empresa e tão mais indústria. O culto aos monumentos e ao patrimônio histórico se
torna o culto a cultura onde os bens são única e exclusivamente produtos culturais para
fins de consumo. A mudança do valor de utilização para valor econômico é realizada
pela engenharia cultural e sua principal tarefa é multiplicar indefinidamente o número
de visitantes ao patrimônio. A suposta “valorização” desses locais ocorre através das
mais variadas operações: pela conservação e o restauro provocados pela
institucionalização; através de reconstituições fantasiosas de um cenário histórico que
nunca existiu; pelas encenações que transformam a materialidade em espetáculo e pelas
animações que explicam exacerbadamente as funções e acontecimentos históricos para
quem visita (CHOAY, 2001).

A nossa inserção em uma sociedade de consumo desenfreado e o nível de importância


que a chancela garante para esses monumentos, entre outros fatores, contribuem para a
mercantilização da cultura que perde seu caráter de realização individual e torna-se uma
empresa e tão mais indústria. O culto aos monumentos e ao patrimônio histórico se
torna o culto a cultura onde os bens são única e exclusivamente produtos culturais para
fins de consumo. A mudança do valor de utilização para valor econômico é realizada
pela engenharia cultural e sua principal tarefa é multiplicar indefinidamente o número
de visitantes ao patrimônio. A suposta “valorização” desses locais ocorre através das
mais variadas operações: pela conservação e o restauro provocados pela
institucionalização; através de reconstituições fantasiosas de um cenário histórico que
nunca existiu; pelas encenações que transformam a materialidade em espetáculo e pelas
animações que explicam exacerbadamente as funções e acontecimentos históricos para
quem visita (CHOAY, 2001).

Assim, mesmo os ambientes mais preservados são munidos de dispositivos que


atrapalham o real diálogo e compreensão do passado em nome do estímulo de consumo
para o visitante, resultando em uma relação superficial entre sujeito e objeto. Em alguns
projetos que podem ser considerados ecos produzidos pelo PCH, como a revitalização
do Recife Antigo e até mesmo a Requalificação do Pelourinho, é possível observar as
estratégias e ferramentas do mercado agindo sobre os monumentos na intenção de
fomentar o turismo e, por conseguinte, o consumo. Um exemplo disso são duas
publicações da Revista Veja, de 1997 e 1998, onde analisa-se a reforma feita no Recife
Antigo, em Pernambuco, apoiada em inúmeras táticas para atração de público. Primeiro,
em 1997, a intervenção é vista como sinônimo de sucesso e modelo para outros centros
históricos, com uma pintura fantástica nos casarões e ‘limpeza’ das praças; depois, em
1998, como fracasso, sob alcunha de ‘pedaço sem vida’, o bairro é comparado com o
Pelourinho e a falta de público é atribuída a falta de eventos, de efervescência cultural,
de felicidade no geral, pois, afinal quem gosta de consumir tristeza?
Regimes ditatoriais e a preservação seletiva

Memória, coletividade, ausência do espaço na comissão da verdade, ausência de


outros espaços na comissão da verdade, explicação do que é a preservação coletiva

Considerações finais
O patrimônio é, acima de tudo, a presentificação de questões do passado. Através de
bens que reconstituem, tangível ou intangivelmente, as memórias vividas é possível
compreender os passos que se dão no presente e qual o destino desse caminho sinuoso
no futuro. Ao construir uma linha do tempo do macro para o micro, abordando minúcias
na trajetória do estabelecimento do conceito de patrimônio mundial e nacional, são
feitos recortes, muitas vezes rudes, para conduzir o raciocínio em uma espécie de funil
onde a gota derradeira é a constatação que se objetificava. Analisar no presente as
narrativas que constituem o patrimônio como conhecemos é, ao mesmo tempo, entender
a situação de outra perspectiva, com conceitos mais atuais e discussões furtivas, mas
também observar como o comportamento das instituições de chancela é a
presentificação de uma herança passada.

A Central de Artesanato Mestre Dezinho é um espaço que não está negligenciado


fisicamente: em seu uso atual funcionam mais de trinta lojas de artesanato, um
restaurante, uma escola de música e uma escola de dança. O complexo tem uma rotina
de vigilância, limpeza, comércio, educação e, principalmente, visitação. Um estudo
apenas espacial atestaria que a negligência é inexistente, mas sendo esse local repleto de
particularidades, na pesquisa memorial, enxergamos a construção de inúmeras novas
memórias felizes, mas o esquecimento total das sensíveis cultivadas ali. Escalonar
sucessivos acontecimentos que contribuem para o apagamento desse lugar de memória
relacionado a ditadura civil-militar brasileira é analisar o patrimônio não só da
perspectiva da proteção, mas reverberar as dinâmicas de poder atreladas a ele. Sendo
uma escolha, o registro de bens patrimoniais na Europa do século XIX levava em
consideração aquilo que era necessário lembrar, mas aos esquecimentos ficava
reservado o cânone da desimportância.

A reflexão acerca dos valores atribuídos desde o início da catalogação de monumentos


históricos transpõe a falha que temos em observar e celebrar apenas aquilo a que é
atribuído
Referências
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Liberdade, 2001. p. 259-262.
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FERNANDES, Robson. SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. 2019, Recife.
Estabelecimento de educandos artífices do Piauí: Práticas Educativas e Relações
de Poder (1849-1873). Recife: Anpuh - Brasil, 2019. 16 p. Disponível em:
encurtador.com.br/fqPQY. Acesso em: 15 jun. 2022.
LOPES, Denise. Praça Pedro II s/n, da tortura ao artesanato: a construção de uma
nova história. Teresina: UFPI, 2009. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/321767859_Praca_Pedro_II_sn_da_tortura_ao
_artesanato_a_construcao_de_uma_nova_historia. Acesso em: 02 jun 2022.
MICELI, Sérgio. SPHAN: refrigério da cultura oficial. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 22, 1987.
NEVES, Deborah Regina Leal. A persistência do passado: patrimônio e memoriais
da ditadura em São Paulo e Buenos Aires. 2014. Dissertação (Mestrado em História
Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2014. doi:10.11606/D.8.2014.tde-27062014-120128. Acesso em: 08
jul. 2022.
NORA, Pierre. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. Trad.Yara
Aun Khoury. In Projeto História, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em
História e do Departamento de História. PUC SP, n. 10. dez. /1993
PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, modernismo e preservação do
patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Edusp, 2011, cap.
5 e 7;
POULOT, Dominique. Cultura, História, valores patrimoniais e museus. Varia
história, v. 27, p. 471-480, 2011.
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente. São Paulo: estação
Liberdade: 2009. Cap. 4 (O trabalho do luto).
RIEGL, Aloïs. O culto moderno dos monumentos. Leya, 2019.

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