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HISTÓRIA, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO: NOTAS SOBRE OS MONUMENTOS HISTÓRICOS

E A ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO EM REDENÇÃO/CE

Ester Araújo Lima da Silva1


Antonio Jeovane Ferreira da Silva2

Resumo
O município de Redenção, anteriormente conhecido como Villa Nossa Senhora da Conceição de Acarape,
está situado na região do Maciço de Baturité, a 55 km de distância da capital Fortaleza, Ceará. Por sua vez,
destacou-se no cenário nacional e cearense pelo pioneirismo no processo de abolição da escravatura, ocorrida
em 01 de janeiro de 1883 – ao libertar 116 cativos que ainda permaneciam sob tal regime. Este pleito é,
portanto, anterior à abolição formal por parte da então Província do Ceará, ocorrida em 25 de março de
1884, e cinco anos antes da abolição da escravatura a nível nacional através da Lei Áurea, em 1888. Atual-
mente, 137 anos após este episódio abolicionista, podemos observar em seu cenário urbano e paisagístico
alguns elementos que reportam este marco histórico, a partir deste cenário pós-abolição, e que se destacam ao
acionar a memória coletiva dos redencionistas, tal como os monumentos históricos. Neste sentido, o escopo
principal desta análise são monumentos: o Busto da Princesa Isabel, o monumento Obelisco, a estátua do
Escravo Liberto – Vicente Mulato e o painel Negra Nua. Neste bojo, elencamos uma reflexão tanto histórica
como historiográfica sobre a construção de uma memória oficial acerca do fim da escravidão na cidade de
Redenção (1883), os diálogos que giram entorno da memória, das percepções do cotidiano e das experiências
sociais que acompanham tais sujeitos na atualidade.

Palavras-chave
Patrimônio, memória, abolição, Redenção/CE

Introdução

N este artigo buscamos trazer à baila uma reflexão histórica e historiográfica sobre a representação do
conjunto de monumentos históricos erigidos no município de Redenção, localizado na região do Maciço
de Baturité, a 55km de distância de Fortaleza – Ceará, e que buscam promover a difusão das memórias que
circunscrevem a abolição da escravidão no município. Conhecido como “Rosal da Liberdade”, “Berço das
Auroras” ou ainda “Terra da Liberdade”, Redenção é considerada a primeira cidade do Brasil a abolir a escra-
vidão em 01 de janeiro de 1883, circunstância em que foram alforriados 116 escravizados, precedendo tanto

1 esteraraujo67@gmail.com - Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Integração LatinoAmericana
(Unila) e Bolsista do Programa Demanda Social / DS-UNILA, Brasil.
2 jeovanesilvaferreira@gmail.com - Mestrando pelo Programa Associado de Pós-Graduação em Antropologia - UFC/UNILAB e Bolsista da
Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP), Brasil. Universidade da Integracao Internacional da
Lusofonia Afro Brasilera.

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a província do Ceará onde a abolição foi declarada em 25 de março de 1884 como o próprio país, ato oficia-
lizado em 13 de maio de 1888 com a Lei Áurea.
Sendo assim, um dos principais elementos constitutivos de sua trajetória e que lhe confere importância
histórica nacional está no seu protagonismo ante à abolição da escravidão, e as ações realizadas no sentido de
potencializar uma memória social acerca do feito abolicionista, fomentando o sentimento de pertença a essas
memórias sobre a trajetória histórica da cidade de Redenção. É nesse sentido que diferentes monumentos
foram erigidos, como o Busto da Princesa Isabel, o monumento Obelisco, o painel Negra Nua e a estátua do
Vicente Mulato, sobre os quais nos debruçaremos.
No plano metodológico partimos da análise de fontes documentais e da recuperação dos resultados de
uma pesquisa3 realizada durante a graduação, iniciada em 2015 e finalizada no ano posterior, que gira entorno
da trajetória histórica de construção dos monumentos históricos em Redenção. Neste sentido, apresentamos
inicialmente uma discussão mais conceitual acerca do campo do patrimônio no Brasil, trazendo elementos
relacionados a sua constituição e ressignificação conceitual, por conseguinte, nos debruçamos a analisar a
trajetória de concepção dos monumentos erigidos em Redenção, bem como seus significados e, por fim,
refletiremos sobre a relação entre patrimônio e escravidão, a partir dos tensionamentos e disputas atuais que
envolvem tanto o cenário mundial, com a derrubada de momentos, como no próprio contexto de Redenção,
a partir de episódios onde atividades acadêmicas foram consideradas como forma de tentar destruir um dos
monumentos, causando grande repercussão na cidade.

Uma breve contextualização sobre o campo do patrimônio no Brasil

Subscrevendo as ideias de Gonçalves (2003) o termo “patrimônio” apresenta-se com bastante recorrência
em nosso cotidiano e carrega consigo uma série de significados, sendo por vezes associado à ideia de bens
materiais, familiares, culturais, históricos, dentre outros, o que reforça um caráter polissêmico do termo. No
sentido etimológico e de acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)4, o
termo patrimônio advém do latim “pater”, que significa “pai”, ou seja, o patrimônio seria “o que o pai deixa
para o seu filho. Assim, a palavra patrimônio passou a ser usada quando nos referimos aos bens ou riquezas
de uma pessoa, de uma família, de uma empresa” (Iphan, 2012, p.12).
Todavia, a ideia mais atualizada sobre o conceito de patrimônio, atribuindo-lhe o “sentido de propriedade
coletiva” (Iphan, 2012, p. 12) ganha uma ressignificação conceitual a partir da Revolução Francesa, no século
XVIII. Sobre isso, analisa Abreu (2007) que a noção contemporânea de patrimônio, cuja fundação encon-
tra-se nesse episódio histórico, está associada a duas principais perspectivas: a) pelo fato de ser um conceito
forjado em um contexto ocidental moderno e b) por relacionar-se com uma noção de herança particular, o
que não necessariamente aplica-se integralmente a outros contextos sócios-culturais.
Ainda ressalta Abreu (2007) que a noção atualizada de patrimônio que conhecemos, sendo esta
bastante dinâmica, deu-se paulatinamente, encontrando suporte no cenário PósRevolução. Isso, pois a noção
de patrimônio no contexto francês contemplava a salvaguarda apenas de “obras de arte, castelos, prédios e
objetos pertencentes à nobreza, assim como os templos que lembravam o poder do clero” (Iphan, 2012, p. 12)

3 Silva, Ester Araújo Lima da. Narrativas pós-abolicionistas: a história escrita dos monumentos históricos. Redenção, 2016. 25p.
4 O Iphan é um órgão criado em janeiro de 1937, ainda no governo de Getúlio Vargas, mas que foi inicialmente designado como Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e que objetiva proteger e preservar o patrimônio cultural brasileiro.

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e que, a princípio, foram alvo do espírito revolucionário face o desejo de destruir símbolos e representações
relacionadas ao Antigo Regime.
Esse ato impulsionou, segundo o IPHAN (2012), a mobilização de alguns intelectuais que se posicio-
naram de forma contrária a esta ação “argumentando que, além do valor econômico e artístico, aqueles
monumentos e objetos também contavam a história do povo da França, dos camponeses, dos comerciantes,
dos pobres” (Iphan, 2012, p. 12), o que gerou, em seguida, uma frente salvacionista com o intuito de preservar
essa singularidade representativa do passado histórico francês.
Com esse intuito, impulsionou-se a criação de leis visando à defesa e preservação do patrimônio público,
como os citados anteriormente, levando ainda à implementação de políticas específicas para lidar com esse
novo cenário. Logo, “este é o ponto de partida para uma política do patrimônio na França, cujos objetivos
consistiriam em inventariar, ou seja; identificar, reconhecer e inscrever no contexto da propriedade nacional,
as obras consideradas imprescindíveis para a nação” (Abreu, 2007, p. 55).
Já no Brasil, segundo Abreu (2007), a inserção dessa temática só fará parte das pautas da elite política
e intelectual brasileira no início do século XX, haja vista que a preocupação imperativa à época estava na
modernização das cidades e não na recuperação do passado. Se no cenário francês houveram intelectuais
engajados no pleito de preservação patrimonial, no Brasil também, a exemplo do escritor Gustavo Barroso
que era contrário às demolições dos prédios públicos relacionados à história brasileira - o que mais tarde
resultou na criação do Museu Histórico Nacional em 1922 (Abreu, 2007).
Dentre as instituições criadas no sentido de proteger e preservar o patrimônio brasileiro está o próprio
IPHAN, inicialmente designado como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).
Segundo Chuva (2012) no histórico de criação da instituição há narrativas já consagradas, apesar das críticas
existentes quanto ao protagonismo de Mário de Andrade. Em 1936, Mário de Andrade, que também foi
um grande escritor brasileiro dedicando-se ainda ao estudo do folclore nacional, foi solicitado a pedido de
Gustavo Capanema (Ministro da Educação e Saúde à época) a esboçar um anteprojeto para a criação de uma
instituição voltada à proteção do patrimônio brasileiro.
Segundo Porta (2012), a ideia que direcionava as políticas patrimoniais no contexto brasileiro neste
período levava em consideração a identificação e proteção de bens “destacados por sua excepcionalidade
histórica, monumental ou artística” (Porta, 2012, p. 11), o que não se distanciava muito da perspectiva
francesa, mas que tinha diferencial a valorização do legado material da colonização portuguesa e do período
imperial. Logo, somente na década de 1970 é que se iniciam “as discussões sobre a necessidade de atualização
e ampliação desse conceito para que fosse capaz de abarcar os diversos legados históricos e culturais da traje-
tória brasileira” (Porta, 2012, p. 11), e incluindo também os saberes e os conhecimentos da cultura popular,
dos povos originários, afro-brasileiros e outros.
É a partir desses acirrados debates que o conceito de patrimônio se expande para englobar também a
ideia de herança cultural, portanto, aquilo que é transmitido através de bens culturais de um determinado
grupo, de forma que as gerações futuras possam atribuir significados, sentidos e ainda acionar memórias
alinhadas a seu sentido. Isso só se efetivará por volta dos anos 80 quando se promulga a Constituição Federal
do Brasil de 1988 que trará à tona não só o sentido material do patrimônio como também seu caráter
imaterial.
Neste bojo, pensando esse panorama quanto ao estabelecimento do campo do patrimônio no Brasil,
abordaremos a seguir uma perspectiva do patrimônio material – objeto de estudo deste artigo – trazendo à

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baila a trajetória de construção dos monumentos históricos em Redenção e o papel destes no acionamento das
memórias sobre o marco da abolição no município, o que são potencializadas a partir da construção destes
diferentes monumentos.

Memórias da Abolição: os monumentos históricos na “terra da liberdade”


Redenção o teu nome na história
É luzeiro de eterno fulgor
Faz lembrar tão brilhante vitória
Que nos enche de orgulho e de amor.
[...]
De teu solo se ergueu, sobranceiro
Um punhado invencível de heróis
Desprendendo este brado altaneiro
Não queremos escravos entre nós.

Trecho do Hino de Redenção5

O excerto do hino oficial do município de Redenção representa com bastante maestria a sua relação
face o cenário da escravidão e consequentemente da abolição no Brasil. Apesar das críticas quanto às nuances
que levaram à cabo esse feito (Gabarra, 2020), esse fato histórico alicerça não só a constituição de Redenção,
como também a concepção de uma memória social que é reverberada física e simbolicamente através de uma
diversidade de elementos que visam difundir o episódio abolicionista, seja através dos nomes de ruas, avenidas
e comércios locais, como também dos monumentos históricos, foco de nossa análise.
Como prova disso, logo na entrada da cidade é possível visualizar o Painel Negra Nua – além do Museu
Senzala Negro Liberto6 e da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)7
– e no centro comercial esse cenário se estende a partir do Busto em homenagem à Princesa Isabel, a Estátua
Vicente Mulato, a Praça da Liberdade onde está o Obelisco e também o Museu Memorial da Liberdade8.
Esses monumentos, também alguns prédios públicos e museus, têm evocado direto ou indiretamente um elo
com esse contexto histórico, o que tem sido objeto de diferentes reflexões (Lopes Filho, 2014; Silva, 2016;
Teixeira, 2016; Silva, 2019). Como veremos, estes monumentos representam “lugares de memória” (Nora,
1993) cuja relação está intrinsecamente relacionada à abolição da escravidão.
Os primeiros monumentos construídos para representar o marco da abolição em Redenção foram o
Busto da Princesa Isabel e o Obelisco, este último situado na Praça da Liberdade. Ambos foram inaugurados
em 01 de janeiro de 1933 visando celebrar o cinquentenário da abolição. Primeiramente, a ideia de erigir
um busto em homenagem à Princesa Isabel partiu do pároco João Saraiva Leão que justificava à época a
importância de evidenciar a imagem e o papel desempenhado por Isabel na assinatura da Lei Áurea (1888)

5 Hino de Redenção. Letra de Vital Bizarria e melodia por Monsenhor Mourão. Acessar em: https://www.redencao.ce.gov.br/omunicipio.php
6 O museu está localizado no Engenho Livramento e foi criado no ano de 2003 e até os dias atuais possui objetos preservados que foram
utilizados com os escravizados.
7 Localizada na Avenida da Abolição, no centro de Redenção, a Unilab foi inaugurada em 2010 e tem por objetivo a cooperação solidária, em
especial com os países africanos, falantes da língua portuguesa. Disponível em: http://unilab.edu.br/como-surgiu/
8 Inaugurado em 28 de dezembro de 1997 o Museu Memorial da Liberdade visa salvaguardar o acervo municipal sobre a escravidão e abolição,
promovendo a preservação desta memória. Ver Oliveira (2014).

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– que “aboliu” oficialmente a escravidão no Brasil –, o que teve respaldo positivo (Silva, 2016). Sendo assim,
“contratou-se Jacinto de Souza, um escultor cearense e natural do município de Quixadá, para executar a
construção do busto” (Silva, 2016, p. 07).
Destaca Silva (2016) que diferentemente dos demais monumentos que retrataremos na sequência,
este surgiu a partir das mobilizações e financiamentos internos, ou seja, dos próprios redencionistas, ao considerar
que este ato representaria “uma idealização de justiça” (InMemoriam, 1932, p. 07 apud Silva, 2016, p. 07). Logo,
podemos inferir que esse monumento põe em evidência a narrativa consagrada, porém acrítica, sobre o fim da
escravidão e a cristalização da “imagem da Princesa Isabel enquanto ‘Redentora’ [...]” (Silva, 2016, p. 07).
Concomitantemente a idealização do busto, na gestão do prefeito Zacarias Odmar de Oliveira Castro
(gestão entre os anos de 1930-1934), este solicitou ao “interventor do Estado do Ceará, Capitão Roberto
Carneiro de Mendonça, [...] a liberação de uma determinada quantia [...] para a comemoração do cinquen-
tenário da abolição da escravatura” (Silva, 2016, p. 11). Diante da solicitação e seu atendimento iniciou-se a
construção de um Obelisco. Esse tipo de construção tem suas origens no Antigo Egito, representando a glória
do faraó bem como sendo um “suporte de memória consagrado aos Deuses” (Saraiva, 2007, p. 16). No caso
de Redenção, sua construção registraria tanto o cinquentenário da abolição como imortalizaria de uma vez
por todas o marco da abolição da escravidão, de forma que as futuras gerações possam ter conhecimento dos
seus marcos fundantes.
Já em 28 de dezembro de 1968 foi construído pelo artista plástico Eduardo Pamplona o Painel
“Negra Nua”. Sua idealização visou enfatizar o marco do centenário da emancipação política entre Baturité
e Redenção, promulgada pela Lei 1.255 de 28 de dezembro de 1868. Segundo Barbosa; Sobrinho e Moura
(2011) Eduardo Pamplona projetou a ideia do monumento Negra Nua, mas durante aquele período lhe
conferiu o nome de “A Escrava, mas o povo de Redenção batizou-a com outro nome: Negra Nua. Assim ficou,
porque é assim que ela é conhecida por todos” (Barbosa; Sobrinho; Moura, 2011, p. 134). Por estar localizado
na entrada da cidade e especialmente ao lado da Unilab, este monumento atrai tanto os visitantes que vêm
para Redenção ou aqueles que passam na cidade a caminho de outros municípios da região como Guara-
miranga e Baturité, como também a população local que fazem tanto registros fotográficos, como exercícios
físicos ao seu redor, até mesmo aulas abertas e mobilizações estudantis.
Para fechar esse conjunto de monumentos destacamos a estátua do Vicente Mulato. Ela está localizada
na praça da Igreja Matriz de Redenção e foi construída em 2008 por Francisco Mendes Necreto9. Segundo
Da Silva (2004) na praça Matriz, local em que o monumento encontra-se fixado, ocorriam os processos de
compra e venda de escravizados, neste espaço “existiam três tamarindeiros em frente à praça, onde os escravos
rebeldes eram amarrados e expostos ao sacrifício público. Qualquer cidadão poderia surrar um negro que
demonstrasse estar contra as regras da escravidão” (Da Silva, 2004, p. 46).
Segundo Silva (2016) a estátua do Vicente Mulato foi construída anos depois em substituição ao tronco
das tamarindeiras que por “serem centenárias, cortaram-se os galhos deixando somente o tronco para repre-
sentar o local de vendas” (Silva, 2016, p. 17), o que com o passar do tempo parou de existir. Mas, segundo o
levantamento de “Atrativos Turísticos de Redenção”, disponível na biblioteca pública do município, o presente
monumento foi construído em homenagem aos 125 anos da libertação de seus cativos que data de janeiro
de 2008. Torna-se oportuno destacar que Vicente Mulato foi o último cativo da Vila de Acarape, tendo sido
vendido e revendido por diversas vezes e que de acordo com o documento de compra e vendas de escravizados

9 Também era pintor e escultor, residente no Distrito de Antônio Diogo em Redenção (Silva, 2016).

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salvaguardado pelo Museu Memorial da Liberdade foi possível notar que a palavra “Mulato” lhe foi atribuído
em decorrência da cor de sua pele.
Diante desse conjunto de monumentos, assim como de outros bens patrimoniais, em 2002, através
da Lei nº 1.018 de 20 de maio, Redenção instituiu uma política de preservação patrimonial criando ainda
o Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de Redenção (CONPHAR),
responsável por implementar diretrizes de preservação, bem como de tombamento desses bens. Todavia, se no
passado houve tamanho engajamento por parte das autoridades locais, membros eclesiásticos e outros sujeitos
para a difusão desse marco histórico e a perpetuação de uma memória social, como esta chega aos dias atuais
diante de um cenário tênue que envolve a relação entre patrimônio e escravidão? Sobre esta interrogação
esboçaremos algumas ideias.

Tensões e disputas entre patrimônio e escravidão: considerações finais

Em “Caminhos atlânticos: memória, patrimônio e representações da escravidão na Rota dos Escravos”,


Araújo (2009) analisa como todos esses elementos se entrelaçam no cotidiano da cidade de Ajudá, República
do Benim. Um ponto pertinente realçado pela autora quanto às memórias da escravidão, o que se aproxima
das estratégias empreendidas por diferentes sujeitos em Redenção no sentido de realçar a memória do marco
abolicionista, é que estas são memórias conflituosas e que se dão em um campo de disputas políticas e simbó-
licas. Segundo Araújo (2009),
A criação de museus, a organização de festivais e a construção de monumentos situados no espaço urbano constituíram a
expressão das memórias públicas oficiais da escravidão. Estas memórias, que aqui não se situam mais no terreno da trans-
missão, mas no da reconstrução, são, em grande parte, tributárias das gerações que cresceram em um lugar marcado pelo
legado do tráfico atlântico de africanos escravizados (Araújo, 2009, pp. 131-132).

No caso de Redenção, a construção de monumentos, museus e outros espaços que reverberam o ideário
da abolição da escravidão tem sido também um tributo as gerações atuais quanto a seu legado e pioneirismo,
contudo, este ideário tem passado por transformações na medida em que se tem produzido novas leituras e
interpretações, o que tem ganhado maiores proporções a partir das instalações da Unilab em 2010. Isto, pois
se por um lado os monumentos erigidos simbolizam para muitos redencionistas um marco que entrelaça o
sentimento de coletividade, memória social, pertencimento e o pioneirismo abolicionista, de outro, estes
também tem representado os silenciamentos, a submissão ou ainda “reafirmam essa glória representada pela
tortura e o milagre. Como se as lutas dos escravizados por liberdade não tivesse existido e apenas uma força
superior teria o poder de findar com a escravatura” (Gabarra, 2020, p. 01).
A crítica da autora é bastante pertinente, particularmente ao fazer uma análise do Painel Negra Nua e
às correntes quebradas que simbolizam o cenário da libertação ao passo que desconsidera qualquer estratégia
de resistência protagonizada pelos cativos africanos no Brasil e em Redenção. E por isso, acompanhando as
agendas políticas que confrontam essa lógica da submissão e invisibilidade da população negra, como no
caso da representação da mulher, em 25 de junho de 2017 foi realizado o evento “As pretas na Unilab”, em
comemoração ao Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra ou ainda o Dia Internacional da
Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, realizado Grupo de Pesquisa Escritas do Corpo Feminino
(Unilab/UFRJ), teve como objetivo principal:
[...] promover uma reflexão sobre o protagonismo das mulheres negras na construção da sociedade brasileira, inclusive ao
constatar que, embora sua representação esteja no imaginário coletivo do Maciço de Baturité, reforçada pela presença do

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“Monumento Negra Nua”, não há muitos registros de homenagens às mulheres negras e nem mesmo um maior debate
sobre tal representação (Unilab…, 2017, pp. 01).

Segundo Silva (2019), na ocasião deste evento o painel foi coberto com tecidos e fita adesiva encobrindo
a “nudez da negra nua” (Silva, 2019), o que gerou certa comoção por parte dos seus habitantes e uma inter-
pretação errônea do real propósito crítico que este ato representava. Este fato rapidamente se difundiu nas
redes sociais e nos meios de comunicação local, a exemplo de um programa de rádio bastante conhecido e que
difunde informações para as regiões de serras, distantes do centro urbano de Redenção, que informou ter se
tratado de uma tentativa de destruir o monumento, responsabilizando os estudantes da Unilab, professores e
outros participantes.
Já nas redes sociais esse fato repercutiu com bastante força, como destacado nos prints a seguir:

Figura 1. Monumento Negra Nua coberta por tecidos. Fonte: Unilab (2017).

Figura 2. Print screen de repúdio em rede social “denunciando” a suposta destruição do monumento. Fonte: Facebook (2017).

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Figura 3. Print screen dos comentários feitos em rede social sobre a manifestação feita duranteo evento “As pretas na Unilab”.
Fonte: Facebook (2017).

Diante da repercussão produzida por alguns moradores, em 31 de julho de 2017 a Unilab publicou
uma nota em seu site salientando que não houve intenção alguma de depredação do Monumento Negra Nua
e ressaltou que “é papel da universidade promover a troca de saberes entre a academia e a sociedade e, nesse
processo, promover uma visão crítica da realidade e lançar outros olhares” (Unilab…, 2017, p. 01) sobre os
patrimônios da cidade, em especial, o monumento Negra Nua que foi alvo de debate e repercussão. Além
disso, em certa ocasião um professor compartilhou em sala de aula uma cena que presenciou. Estando na
praça onde está localizada a estátua de Vicente Mulato, este viu um indivíduo batendo nela enquanto falava
repetidas vezes para ele voltar de onde havia vindo, portanto, da África. Esse fato tem total relação com a
negação da presença negra no Ceará e em Redenção e mais ainda com a presença de estudantes advindos dos
países parceiros e que dão forma ao projeto da Unilab.
Recentemente temos acompanhado, em decorrência da onda de protestos após a morte cruel de
George Floyd nos Estados Unidos, um movimento de insurgência e derrubada de monumentos que aludem
à memória de traficantes, colonizadores e outros sujeitos partícipes da escravidão como Cristóvão Colombo

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(Boston), Edward Colston (Inglaterra) e outros. Esse movimento espalhou-se por diferentes países suscitando
calorosos debates sobre a relação entre patrimônio e escravidão.
No Brasil, temos acompanhado a chegada desse debate, especialmente no sentido de se cobrar a mudança
de nomes de ruas, avenidas e rodovias, como proposto pelo deputado estadual de São Paulo, Carlos Giannazi,
através do Projeto de Lei 394/2020, bem como da retirada de estátuas que fazem alusão à escravocratas, a
exemplo do que tem proposto Erica Malunguinho, primeira deputada estadual transgênera de São Paulo, por
meio do Projeto de Lei 404/2020. Todavia, corroboramos com a ideia de Alves (2020) pois, “são tímidas as
obras públicas que demarquem, de forma inequívoca, a presença africana e indígena em nossas cidades, com
visibilidade a personagens de resistência e espaços por liberdade” (Alves, 2020, p. 01).
Em Redenção, por exemplo, para além dos monumentos supracitados, dos museus e senzalas não há
nenhuma referência a personalidades negras enquanto símbolo de resistência, estes quando representados
estão sempre subordinados à figura de um/a redentor/a. Enquanto isso, após 137 anos desde a abolição da
escravatura em Redenção, estes “lugares de memória” (Nora, 1993) vão servindo como pano de fundo para as
campanhas políticas, especialmente o painel Negra Nua e o Obelisco, nas propostas no sentido de promover
sua valorização e as próprias festividades municipais que são realizadas em grande parte nestes espaços e que
tem reforçando continuamente a memória social da abolição.

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POLÍTICAS CULTURALES, PATRIMONIO, MUSEOS Y TURISMO

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negra. Redenção,. 63p.

Outras Fontes

Atrativos Turísticos de Redenção. Disponível na Biblioteca Pública Municipal de RedençãoCE, s/d, pp. 01-05.
Alves, F.A.O. (2020). Podem os monumentos falar?. Nexo Jornal, 23 set.. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.
br/opiniao/2020/Podem-os-monumentos-falar . Acesso em: 27 de out. 2020.
Gabarra, L. (2020). Monumentos de cativeiro são circo de horrores para a consciência negra.
Ceará Criolo. Fortaleza, 11 de set. de 2020. Disponível em: https://cearacriolo.com.br/novo/monumentos-de-cat-
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Redenção. Lei nº 1.018 de 20 de maio de 2002. Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental
de Redenção (CONPHAR). Disponível no Museu Memorial da Liberdade.
Unilab. Grupos e setores da Unilab divulgam nota sobre suposta depredação do Monumento Negra Nua. 2017.
Disponível em: http://www.unilab.edu.br/noticias/2017/07/31/grupos-esetores-da-unilab-divulgam-nota-so-
bre-suposta-depredacao-do-monumento-negra-nua/. Acesso em 30 de out. de 2020.

196 MEMORIAS DEL VI CONGRESO DE LA ASOCIACIÓN LATINOAMERICANA DE ANTROPOLOGÍA

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