Você está na página 1de 5

O DEVER DE LEMBRAR E O DIREITO DE ESQUECER: ANÁLISE DOS

AGENTES DO MEMORICÍDIO DA DITADURA BRASILEIRA NA CENTRAL


DE ARTESANATO MESTRE DEZINHO EM TERESINA - PIAUÍ.

MARIA CLARA DOS SANTOS LIMA


Mestranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo
(Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP)
eucajuina@usp.br

Resumo:

Palavras-chave:
O DEVER DE LEMBRAR E O DIREITO DE ESQUECER: ANÁLISE DOS
AGENTES DO MEMORICÍDIO DA DITADURA BRASILEIRA NA CENTRAL
DE ARTESANATO MESTRE DEZINHO EM TERESINA - PIAUÍ.

MARIA CLARA DOS SANTOS LIMA


Mestranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo
(Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAUUSP)
eucajuina@usp.br

Introdução
Berço da efervescência cultural e artística no centro da cidade de Teresina, capital do
Piauí, a praça Pedro II abriga inúmeros ícones da arquitetura do século XX: desde o
Cine Rex, um dos primeiros cinemas de rua com características Art Déco, até o Theatro
4 de Setembro, referência em espetáculos teatrais, este perímetro se destaca não só pelo
abundante conjunto arquitetônico, em sua maioria tombado em instância estadual
(CAU, 2014), mas também pelo papel de protagonista desempenhado nas inúmeras
memórias vividas por gerações e gerações de piauienses. Em posição privilegiada nesse
contexto urbano está a Central de Artesanato Mestre Dezinho (CAMD): edifício de
fachada principal eclética voltada para a praça supracitada e objeto central desta
pesquisa. Com o processo de transferência da capital do estado de Oeiras para Teresina,
o Governo Provincial do Piauí adquire o prédio para ser o Quartel da Polícia do Estado
em 1851, no entanto, o espaço só assume esse fim anos mais tarde, abrigando àquela
época a Casa de Educandos Artíficies (FERNANDES, 2018). Em 1873, findado o
projeto de civilidade no local, tem início a ocupação pela Polícia Militar do Estado do
Piauí que ali ficou por mais de um século (LOPES, 2009) e cuja atuação no período da
Ditadura Civil-Militar ficou marcada não só na memória traumática daqueles que
sofreram nas dependências do quartel, mas também no prédio cuja função se alterou
para um complexo turístico-educacional a partir de 1983.
A configuração atual do espaço, ainda que de uso alterado, é bastante semelhante à
antiga tornando esse edifício o único no estado que conservou a memória da ditadura
para além da oralidade, de maneira material. O que hoje se convenciona em um
complexo cultural, com 34 lojas de artesanato piauiense, uma escola de música e uma
escola de dança, já fez parte do aparato repressivo que exercia a injustiça cometida com
estudantes e militantes no Brasil, em um regime que se capilarizou por todos os estados.
Sem placas de identificação, visitas guiadas ou processo de reconhecimento
institucional, hoje a memória da ditadura civil-militar ali existente encontra projeção
apenas em um local: um porão úmido, embaixo da loja de número 43, cedida ao artesão
Carlos Antônio de Oliveira que, durante as visitas, frisa a impossibilidade do local ter
abrigado outra função se não de ambiente de tortura durante os anos de chumbo, uma
história nebulosa e difícil, cuja confirmação não existe por parte dos encarcerados ali
que se tem notícia. Atuando como um agente de preservação dúbio, a situação do porão
em perspectiva acadêmica é difícil: embora não existam evidências históricas de que
esse compartimento em específico foi um local de grave violação de direitos no regime
militar - diferente do edifício como um todo onde existem relatos de cárcere - o porão é
o único ‘elo’ de conexão entre a memória da ditadura civil-militar brasileira e a Central
de Artesanato Mestre Dezinho.
Outro reflexo dessa negligência e, consequentemente, apagamento, são algumas
matérias de jornais, geralmente veiculadas apenas durante os aniversários do golpe e da
Lei da Anistia, que abordam o papel do porão e do seu guardião, mas sem uma pesquisa
mais profunda acerca dos acontecimentos relatados. Ainda que atualmente seja possível
visitar o andar inferior do box 43 por uma módica quantia em dinheiro e assim conhecer
o único nó que conecta o edifício da CAMD a uma memória tão sensível, o evidente e
gradativo processo de apagamento historiográfico e social dessa memória é preocupante
e abre margem para a instabilidade dos acontecimentos relatados: apesar de ser um
marco mnemônico da época da Ditadura Civil-Militar e estar localizado em um
perímetro onde diversas outras edificações contemporâneas a ele são frequentadas,
estudadas e até mesmo tombadas, esse espaço permanece um mistério não só à luz do
patrimônio histórico, mas também dos transeuntes e visitantes que rotineiramente estão
ali e desconhecem o histórico do edifício.
Evidência de acontecimentos atrelados à memória da ditadura em locais nem sempre
reconhecidos pelos órgãos responsáveis é a ausência da Central de Artesanato Mestre
Dezinho no Volume I do relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) onde são
apontados três lugares de graves violações de Direitos Humanos, de 1964 a 1985, em
Teresina. São eles: o 25° Batalhão de Caçadores (25° BC), o Departamento de Ordem e
Política Social (DOPS) e a Penitenciária Estadual do Piauí. É importante citar que em
nenhum desses lugares há qualquer artifício de identificação ou mesmo menção da
participação deles nesse capítulo tão nebuloso vivido na capital do Piauí: o 25° BC
permanece no mesmo local, mas teve o seu uso e estrutura alterados ao longo dos anos;
o Departamento de Ordem e Política Social (DOPS) hoje abriga a Delegacia Geral de
Polícia Civil; já a Penitenciária Estadual foi demolida e, no lugar, foi construído o
Ginásio Verdão.
O memoricídio gradativo da Central de Artesanato é causado não só por aspectos
contidos nos limites desse edifício em específico, mas também inúmeros outros que
fazem parte da intersecção que o patrimônio cultural brasileiro abrange: a origem das
políticas de patrimônio, a transformação de edifícios preservados em bem de consumo,
o privilégio das memórias felizes em detrimento do apagamento das tristes e como isso
vem sendo tratado pelas principais instituições responsáveis pela preservação são
algumas das reflexões relevantes para entender que o fenômeno do apagamento desses
espaços tem muitos agentes e formas, não sendo - de maneira alguma - algo
exclusivamente vinculado ao objeto em questão. Pretende-se, ao longo desse trabalho
acadêmico, analisar o fenômeno do apagamento, os seus agentes e, por conseguinte,
compreender o edifício sob a perspectiva arquitetônica, patrimonial, mnemônica e
histórica, além de revisitar conceitos que acrescentem debates relevantes ao tema
defendido.
Quais narrativas podemos contar a partir das memórias da ditadura civil-militar
atreladas a esse espaço? Por que, apesar do período repressivo ter comprovadamente se
capilarizado por todas as regiões do país, ainda existem locais à margem do
reconhecimento documental necessário? Quais critérios que delineiam o patrimônio
brasileiro contribuem ou não para o reconhecimento de locais de memória difícil como
bens culturais relevantes? Entender esse lugar do patrimônio no Brasil, como é
escolhido e estabelecido, é uma das pontas que conecta essa pesquisa aos debates
recentes em torno dos sítios de consciência e do estabelecimento de memoriais da
ditadura civil-militar nos mesmos locais onde existiram graves violações de direitos,
bem como reforça a necessidade latente de mudança dos critérios utilizados para
institucionalização de locais de memória pela sua trajetória alinhada aos interesses de
regimes opressores.

Os agentes gerais do apagamento: afeto e trauma, duas faces da moeda Patrimônio

1. O patrimônio como conceito

1.1 Lugar de memória, as coletividades e o trauma

2. O patrimônio no Brasil e o que é patrimônio para o Brasil


2.1 – A preservação segundo as instituições
2.1.1 – A preservação das memórias difíceis
2.1.2 – O privilégio institucional de ser uma memória feliz

Os agentes específicos do apagamento: o que os olhos não vêem…

1. Os “porões” da ditadura
1.1 O contexto e o entorno
1.2 Quem visita? E por quê?

2. O direito de esquecer
2.1 Memórias de quem viu e viveu
2.2 Outras memórias vividas

3. A preservação não institucionalizada


3.1 A figura do “guardião” do lugar de memória

4. Memória, Justiça, Verdade e Reparação


4.1 Quem repara?
4.1.1 Como reparar sem reparar?

Você também pode gostar