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Teoria e metodologia da história I

Docente: Eliane Freitas


Discente: Ana Carolyne Maggio

Resenha: Uma Cidade Sem Passado - Michael Verhoeven

Resumo: Esta resenha tem como objetivo fazer uma análise relacionando a
história com a fonte cinematográfica “Uma Cidade sem Passado”, visando
discutir as questões de memória em paralelo com o filme e o tempo.

Sinopse:
A trama do filme desenrola-se na cidade alemã de Pftlzing, durante as
décadas de 70 e 80 do século XX. A protagonista, Sonia, ganha um concurso
nacional de redação com o tema "A liberdade na Europa", o que a incentiva a
embarcar em uma jornada de pesquisa. Ao receber como prêmio uma viagem a
Paris, Sonia vivencia experiências diversas. Dois anos depois, ela participa de
outro concurso e decide abordar o tema "Minha cidade natal durante o Terceiro
Reich". As primeiras informações indicam que Pfilzing teria participado da
resistência ao nazismo, com testemunhos que personificam essa resistência no
Dr. Juckenack, um professor universitário, diretor do Arquivo do Bispado e
editor-chefe de um dos principais jornais da cidade.
Ao dar uma olhada nos jornais da época, Sonia depara-se com notícias
confusas, onde nomes e eventos são apresentados de maneira truncada,
fragmentada ou até omitida. Ao buscar relatos orais, ela começa a perceber
contradições, com autoridades se recusando a fornecer informações e
designando como nazistas indivíduos que outras pessoas consideravam
defensores. Outras fontes de pesquisa, como o Arquivo da Prefeitura, não
estão disponíveis devido à sua classificação como confidenciais.
Diante dos desafios apresentados, a protagonista encontra-se impossibilitada de
cumprir o prazo estabelecido, resultando em sua desistência no segundo concurso.
Sonia, então, contrai matrimônio com seu antigo professor de Física, dando à luz duas
filhas, às quais atribui nomes de origem judaica. Anos mais tarde, ainda atormentada
pela pesquisa inacabada, decide ingressar na universidade para estudar Teologia,
Alemão e História. Determinada a retomar suas investigações, enfrenta a resistência de
Juckenack, figura anteriormente venerada. Desconfiando das alegações de sua
participação na resistência, Sonia aciona judicialmente a cidade em busca de acesso
aos documentos confidenciais relacionados ao Terceiro Reich.
Vencendo o processo legal, ela se depara com a frustração de não obter
acesso aos documentos almejados. Enquanto persevera na pesquisa, Sonia
enfrenta ameaças à sua família, incluindo bombas caseiras e alterações nas leis
de divulgação. Inabalável, ela persiste na busca pela verdade. Por um golpe de
sorte, descobre que Pfilzing manteve um campo de concentração e promoveu
perseguições aos judeus durante o regime nazista. Sua pesquisa é concluída e
divulgada, conferindo-lhe reconhecimento acadêmico em universidades
estrangeiras, mas também desencadeando um novo processo movido por
Juckenack, acusando-a de difamação.
Já no tribunal, o poder judiciário e executivo, unidos, decidem abandonar o
processo, deixando Juckenack isolado. Uma homenagem é organizada pela
Prefeitura, que presenteia Sonia com um busto em sua inauguração. Contudo,
durante o evento, Sonia percebe que a homenagem é resultado de uma
barganha, alinhando-se a forças contrárias aos princípios que sempre defendeu.
Em um ato de indignação, recusa a homenagem e foge para se refugiar na
"árvore dos milagres".

Discussão:
Segundo Milton Santos, “a história pode ser vista como um fluxo ininterrupto,
onde passado e futuro se entrelaçam num presente mais ou menos revelador
dos processos responsáveis pelas grandes mudanças. Estas nem sempre são
percebidas, porque tem suas origens em movimentos de fundo, acelerações
até então desconhecidas e com a entrada em cena de novos atores. É assim
que se dão as rupturas e novos objetos, novas paisagens, novas relações,
novos modos de fazer, de pensar e de ser que se levantam e difundem”.
(http://www2.correioweb.com.br/cw/2000-10- 15/mat_12941.htm; 2000)
Considerando estes,
Considerando essas reflexões sobre a história e seus personagens,
percebendo que a cidade é um desses personagens, pois é o espaço onde as
políticas públicas são estabelecidas e está em constante movimento, levando
em conta também os conceitos de Michel de Certeau, que a enxerga como um
sistema vivo, onde as relações históricas e sociais ali estabelecidas a
caracterizam e fazem evoluir, podemos concluir que a cidade possui uma
dinâmica própria, que ao mesmo tempo cria espaços disciplinares e os
reinterpretam constantemente. É essa dinâmica que possibilita ao ser humano
se inserir na história como um agente social, capaz de construir sua memória e
alcançar sua cidadania. Não há identidade sem memória e, por conseguinte, sem
história.
Mas, como o próprio geógrafo coloca, “as relações estabelecidas nem sempre
são percebidas, porque tem suas origens em movimentos de fundo, acelerações
até então desconhecidas e com a entrada em cena de novos atores”. (SANTOS;
2000). De que maneira e em que contexto podemos identificar os elementos
fundamentais de nossa sociedade? Onde podemos localizar a cidade planejada
e o pedestre que percorre suas ruas?
Segundo Certeau, o pedestre é alguém que atualiza as dinâmicas urbanas,
escapando dos moldes da cidade planejada e perturbando a horizontalidade desejada
pela elite dominante. Representando os marginalizados, esses pedestres refletem as
práticas no espaço, desempenhando um papel na construção do sentido histórico e na
dinâmica social. Certeau compara o ato de caminhar ao speech-act na linguagem,
descrevendo-o como uma apropriação do sistema topográfico pelo pedestre, análogo à
apropriação da língua pelo locutor.
O filme introduz outro elemento importante, a "Árvore dos Milagres", um refúgio
para as meninas da cidade associado à tradição local de uma forca. Na trama
cinematográfica, esse local é apresentado como um monumento, uma espécie
de casa das relíquias, onde o "eu" encontra expressão e as meninas se sentem
como voyeurs. A "Árvore dos Milagres" pode ser interpretada como um espaço
para contemplação da cidade, de sua urbanização e dos mecanismos de
controle. Em uma reinterpretação das palavras de Certeau sobre o voyeurismo
em Nova York, subir até lá no alto é percebido como uma evasão da massa que
esmaga as identidades de autores e espectadores.
Durante sua jornada, Sonia depara-se com desafios relacionados à
documentação, ao receio da população diante da reabertura das discussões
sobre o nazismo, que haviam sido encerradas, e, simultaneamente, diante dos
preconceitos persistentes e da ideologia nazista que ainda perdura. Surge,
então, a necessidade de apagar do consciente coletivo esse fragmento da
história da cidade, considerado um período sombrio e triste, marcado pelo desejo
de esquecer os monumentos erguidos em meio ao sofrimento e à dor dos
politicamente marginalizados, como os campos de concentração, e a própria
memória social. Sonia se depara com os silêncios sociais, contrastando com a
urgência de expressão de alguns indivíduos.
Luce Giard, em nome de Certeau, aborda esse tema, destacando que,
aparentemente conformando-se com as expectativas do conquistador, na
realidade, esses indivíduos "metaforizavam a ordem dominante", operando suas
leis e representações "em outro registro", dentro de sua própria tradição
(CERTEAU; 1994).
Apesar da oposição persistente, Sonia mantém sua determinação e progride.
Neste contexto, é inevitável recordar as palavras de Certeau, citadas por Luce
Giard: "É sempre bom lembrar que não se deve subestimar os outros. Nessa
confiança depositada na inteligência e inventividade do mais fraco, na atenção
cuidadosa à sua mobilidade tática, no respeito ao fraco, desarmado diante das
estratégias do forte, detentor do teatro de operações, esboça-se uma concepção
política das ações e das relações não igualitárias entre um poder qualquer e seus
súditos" (CERTEAU; 1994).
Enfrentando o silêncio, Sonia parte em busca de documentos que validem a
história da cidade e revelem o que ela percebia estar oculto nas entrelinhas
desse relato. No entanto, à semelhança do panoptismo de Foucault, Sonia se
torna alvo de vigilância por parte de uma rede de personagens, desde a elite
dominante e seus professores até os habitantes e amigos da família.
Documentos são deliberadamente ocultados da protagonista, levando-a a
recorrer à justiça para obtê-los, como ilustrado na cena em que a desculpa é
baseada na necessidade de proteger os direitos de terceiros ou em diversas
outras alegações, como o avançado estado precário de conservação,
empréstimo e atualização do suporte. Este episódio destaca outro aspecto
relevante para a formação e promoção da cidadania dos pedestres: a
documentação.
Os documentos desempenham um papel crucial tanto para a administração
pública quanto para os cidadãos, sendo ferramentas eficazes no controle dos
atos administrativos, na promoção da transparência e na busca por direitos e
deveres em regimes democráticos. Além disso, eles servem como meio de
comprovação do passado histórico. Ramón Alberch Fugueras e José Ramón
Cruz Mundet destacam que os documentos são produzidos e preservados com
três propósitos principais. Primeiramente, para a gestão administrativa,
auxiliando nas decisões e como prova de valor. Em segundo lugar, eles
constituem um recurso essencial de informação para os cidadãos, garantindo
transparência administrativa ao permitir que questionem assuntos de interesse.
Por último, ao longo do tempo, os documentos adquirem valor histórico,
tornando-se objetos de pesquisa e divulgação cultural.
No filme, Sonia persiste na busca de aliados, conectando-se a outros
pedestres, como sua avó que desafiava as ordens nazistas, alimentando judeus,
e um senhor ligado à resistência. Além dos documentos obtidos, muitos por meio
de processos judiciais, a história oral surge como outra arma social, com relatos
armazenados na memória coletiva que resgatam a história e a memória da
sociedade. Ao alcançar seus objetivos, Sonia recebe homenagens que ela
interpreta como uma tentativa de silenciamento, uma maneira de incorporá-la ao
grupo dominante. O filme conclui com Sonia e sua filha sob a “Árvore dos
Milagres”, simbolizando que a dinâmica social é constantemente construída e
que os pedestres sempre terão um papel fundamental nesse processo.
Portanto, conclui-se que a preservação do acervo arquivístico é essencial para
o planejamento urbano, a estruturação da sociedade e a preservação da
memória coletiva, sendo a história oral um meio crucial para sustentar essa
memória compartilhada. A partir do momento em que o indivíduo se reconhece
como pedestre, ele se transforma no cidadão capaz de forjar essa narrativa e
influenciar ativamente sua realidade. Esse é o legado deixado por pensadores
como Michel de Certeau, Milton Santos, Ramón Cruz Mundet e Verhoeven, que
continua a inspirar e empoderar os indivíduos e cidadãos.

Referencias:
CERTEAU, Michel de Certeau. A Invenção do Cotidiano – Artes de Fazer.
12.ed.,Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p. 202, 19, 177, 170, 18, 19.
FUGUERAS, Ramón Alberch & MUNDET, José Rámon Cruz. Archivese – Los
Documentos del poder , El poder de los documentos. Madrid: Alianza Editorial,
1999.
SANTOS, Milton. “Por um Modelo Brasileiro de Modernidade", 05/10/2000,
disponível em http://www2.correioweb.com.br/cw/2000-10- 15/mat_12941.htm.
Acesso em 13 ago. 2007
VERHOEVEN, Michael. Uma Cidade sem Passado, Alemanha, 1989.

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