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AS DISPUTAS DE MEMÓRIA EM TORNO DAS DITADURAS

MILITARES NA AMÉRICA LATINA NO ENSINO DE


HISTÓRIA

Universidade Federal do Espírito Santo


Centro de Ciências Humanas e Naturais
Departamento de História
Disciplina: Tópicos Especiais de História da América Contemporânea
Eliza Desabado Castiglioni
Profª Drª Camila Bueno Grejo

RESUMO

O tema proposto no presente trabalho consiste em compreender como o ensino de


História se encaixa nos processos de disputas de memória, especialmente quando esta
memória está atrelada à ditadura civil-militar latino-americano no século XX. Portanto o
objetivo é analisar, mesmo que de forma sucinta, a problemática da memória e do
esquecimento das ditaduras na América, refletindo o impacto para a construção das narrativas
da História e memória nos conteúdos escolares.

Palavras-chaves: ditadura, História, ensino, memória.

1 INTRODUÇÃO

Ser professor não é uma tarefa simples. Ensinar História significa fazer escolhas,
posicionando-se por meio de dimensões teóricas, epistemológicas e políticas. Na base dessa
discussão, encontram-se os Direitos Humanos, o cumprimento da Constituição, da tolerância
e respeito para com o próximo, da justiça e do dever de memória para com as vítimas das
ditaduras na América Latina no século XX. A escolha mais adequada e consciente para
ensinar esse assunto representa um enorme desafio aos professores.
O acesso nas redes de internet, canais de informações e à própria memória, fazem com
que as ditaduras civil-militares na América Latina estejam presentes em debates que surgem
quando o conteúdo é exposto ou mesmo quando fazemos alusão ao período em questão em
outros debates.
A escritora e crítica literária argentina Beatriz Sarlo (2007), faz referência à memória
quando defende o questionamento e a problematização sobre o passado para que se chegue ao
seu conhecimento, uma vez que a memória ou o testemunho sempre querem ser acreditados.
Ela aponta:

Não se deve basear na memória uma epistemologia ingênua cujas pretensões seriam
rejeitadas em qualquer outro caso. Não há equivalência entre o direito de lembrar e a
afirmação de uma verdade de lembrança; tampouco o dever de memória obriga a
aceitar essa equivalência. (SARLO, 2007, p. 44)

Apesar da crítica, não podemos negar o papel e a importância da memória. Isso se dá


de uma maneira mais nítida quando observarmos o documento argentino “Nunca Más”,
relatório emitido pela Comissão Nacional sobre as atrocidades da ditadura argentina. Os
testemunhos são fontes, objetos de análise da história e foram fundamentais para o
entendimento da ditadura. Por um bom tempo, eles foram as únicas fontes, visto que os
documentos do período estavam interditados. Sarlo afirma que:

A memória foi o dever da Argentina posterior à ditadura militar e o é na maioria dos


países da América Latina. O testemunho possibilitou a condenação do terrorismo de
Estado; a ideia de “Nunca Mais” se sustenta no fato de que sabemos a que nos
referimos quando desejamos que isso não se repita. Como instrumento jurídico e
como modo de reconstrução do passado, ali onde outras fontes foram destruídas
pelos responsáveis, os atos de memória foram uma peça central na transição
democrática, apoiados às vezes pelo Estado e, de forma permanente, pelas
organizações da sociedade. Nenhuma condenação teria sido possível se esses atos de
memória, manifestados nos relatos das testemunhas e vítimas, não tivessem existido.
(SARLO, 2007, p. 20).

Ademais, destaco outro ponto importante quando se fala em usos do passado: a


relação construída entre história e memória. De acordo com Motta (2015), ambas são uma
representação do passado e o que as diferencia é o cuidado metodológico e teórico. Para além
desse detalhe, o professor de História deve manter-se sempre desconfiado e questionador,
tendo em vista a verossimilhança que deve ser próprio do fazer historiográfico.
Memória e História são formas distintas de representação do passado, sem que se
possa considerar uma superior à outra. A distinção está no fato da História operar
com procedimentos científicos, um método, a crítica das fontes e a busca de
evidências as mais amplas e diversificadas. O historiador deve desconfiar das suas
fontes, inquiri-las em busca da verdade. Se o objetivo e a ambição da historiografia
é a verdade, a Memória, por seu turno, tem como compromisso maior a fidelidade
ao passado de que oferece testemunho. Não obstante a Memória configure uma das
matrizes da História, esta procurou se autonomizar e mesmo submeter a Memória,
ao transformá-la em uma de suas fontes. (MOTTA, 2013, p. 61)

Dessa forma, observamos que o caráter seletivo da memória implica numa adição,
bem como numa subtração do que vai ser lembrado em um dado momento social e político, a
fim de atender a determinados interesses. A memória pode ser um instrumento de luta pelas
vítimas de guerras e de regimes autoritários contra a hegemonia do esquecimento de grupos.
A principal reflexão que não se pode esquecer é a seguinte: não esquecer o passado, por mais
doloroso que ele seja, precisamos elaborar uma produção de sentidos, a partir da História e da
memória que aciona esse passado.

O ambiente escolar carrega consigo as possibilidades de reflexão sobre essas questões.


Ela se constitui em um ambiente de disputas, de resistência e também de transformação por
meio do questionamento de professores e de alunos. A História está situada em um ponto
estratégico do ensino, especialmente quando pensamos questões ligadas à cidadania e aos
Direitos Humanos.

2 O ENSINO DA DITADURA MILITAR NAS ESCOLAS DO BRASIL

No Brasil, a abordagem que aparece no ensino de História persiste há muito tempo


com a ideia de que é responsabilidade da História ou do seu ensino tomar partido nas disputas
sobre a construção de memórias e por isso, vemos a estratégia utilizada nas redes de ensino de
não estudar a história “mais recente”. O principal argumento é que essa história ainda não foi
escrita e, portanto, não pode ser ensinada. Ademais, ela poderia gerar certos
constrangimentos, porque muitos dos principais protagonistas desse passado ainda estão vivos
e ativos na arena político-social. Assim, o ensino de história no Brasil tem se afastado cada
vez mais das polêmicas e focado em temas consagrados.
Na historiografia recente, a memória traz consigo uma bagagem traumática do
passado, as disputas por sua apropriação e ressignificação por diferentes atores políticos, os
seus “usos públicos” e o seu caráter controverso para a historiografia e para as políticas
educativas tornam-se ainda mais complexas as relações entre história e memória. E nesse
processo o uso de relatos e testemunhos como o “Nunca Más”, cumprem um papel essencial.
Entretanto, a construção de pertencimentos com esse passado, sem uma reflexão crítica sobre
os acontecimentos e suas condições de possibilidade, delimita sua função de orientação
temporal no presente. Sarlo afirma que “é mais importante entender do que lembrar, embora
para entender também seja preciso lembrar” (SARLO, 2007, p. 22).
De acordo com Helenice Ciampi e Conceição Cabrini (2003) os anos de 1960 e 1970
a produção historiográfica brasileira estava concentrada para o debate sobre o lugar ocupado
pela teoria na investigação histórica, especialmente no que diz respeito ao objeto do saber
histórico e ao fazer história, fomentando a politização do fazer História para além dos muros
das universidades. Contudo, no âmbito do ensino, essas questões foram aos poucos sendo
apagadas devido pela junção das disciplinas de História e Geografia em “Estudos Sociais” e
pela introdução do estudo de “Educação Moral e Cívica”, nas reformas curriculares operadas
durante a ditadura civil-militar. O “Segundo Grau”, História e Geografia existirm ao lado de
“Organização Social e Política do Brasil”, e foram excluídas do currículo as disciplinas de
Filosofia, Sociologia e Psicologia.
Nas diretrizes curriculares para o Ensino Médio, a discussão gira em torno do
desenvolvimento de “competências” e de “conceitos estruturadores” e em nenhum momento
faz qualquer menção ao estudo da história das ditaduras, nem mesmo na definição de temas e
subtemas para o ensino de História. Já nos livros didáticos, as Ditaduras de Segurança
Nacional, seja em suas perspectivas nacionais ou regionais, surgem em três momentos
específicos: no 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e no 3º ano do Ensino Médio, que são
exatamente os anos de “conclusão”, devido à abordagem cronológica adotada na maioria dos
programas de ensino do país. A BNCC deixa claros os objetivos esperados para o ensino de
História em cada ano. Conforme a BNC:
“Habilidades na BNCC do 9º ano do fundamental:
● Identificar e compreender o processo que resultou na ditadura civil-militar no Brasil e
discutir a emergência de questões relacionadas à memória e à justiça sobre os casos de
violação dos direitos humanos;
● Discutir os processos de resistência e as propostas de reorganização da sociedade
brasileira durante a ditadura civil-militar.
Habilidade na BNCC do ensino médio:
● Identificar e caracterizar a presença do paternalismo, do autoritarismo e do populismo
na política, na sociedade e nas culturas brasileira e latino-americana, em períodos
ditatoriais e democráticos, relacionando-os com as formas de organização e de
articulação das sociedades em defesa da autonomia, da liberdade, do diálogo e da
promoção da democracia, da cidadania e dos direitos humanos na sociedade atual.”

No 3º ano do Ensino Médio encontramos uma abordagem um pouco maior, porque


costuma cair muitas questões em vestibulares e as ditaduras e se tornou tema recorrente do
ENEM. Nesse sentido, passa a existir uma pressão ao final do Ensino Médio caracterizada
pelo utilitarismo. Quando partimos para os livros didáticos, ao buscar a Ditadura no Brasil a
terminologia mais utilizada é “regime militar pós-64”, que não caracteriza nem se posiciona
criticamente em relação ao período, e também não discute a participação dos civis no
processo, assim como “ditadura militar” / “golpe militar”, e não “civil-militar”. Além disso, a
citação excessiva de nomes de pessoas e instituições que não fazem parte do cotidiano ou
vocabulário dos jovens, sem a devida contextualização, pode dificultar a construção do
conhecimento dos alunos.
Página do livro 'História - sociedade & cidadania', volume 3, escrito por Alfredo Boulos Júnior e aprovado pelo
PNLD 2018 para o ensino médio.

A pergunta que fica é: os livros didáticos de História estão livres de doutrinação


religiosa, política ou ideológica, respeitando o caráter laico e autônomo do ensino público?
Em relação à ditadura militar, boa parte dos livros tratam o período como um regime militar.
Os livros que defendem o período violam o princípio básico dos direitos humanos, que é o
apoio à tortura.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A maneira como o Brasil lida com as ditaduras na América Latina do século XX nas
políticas públicas para o ensino de História reflete diretamente em como se escolheu lembrar
desse passado. Contudo, também não podemos esquecer que a escola enquanto corpo político,
esteve imersa nos conflitos internos durante os regimes ditatoriais e, portanto, também foi
vítima dos crimes cometidos contra os direitos humanos e do esquecimento.
Durante esse processo, pesou a forma como se deram as transições para regimes
democráticos e a ideia de anistia como esquecimento no Brasil contribuiu para a consolidação
de práticas educativas que reprimem, menosprezam ou silenciam sobre essa época. Até então,
a reflexão sobre esse passado no ensino de História ou a construção de memórias sobre o
período entre as novas gerações ainda não havia se tornado propriamente um problema no
Brasil. Mas, quando pessoas que não viveram a fase adulta no período se reúnem em
manifestações públicas para pedir a “volta” da ditadura, o reflexo do descaso começa a
assustar. Mesmo que essas manifestações não contem com adesões expressivas, elas refletem
o desconhecimento sobre o passado e abrem espaço todo tipo de manipulação.
Não foi o intuito deste trabalho solucionar o problema em questão, ou apontar a
maneira de como se deve ensinar sobre a história das ditaduras da América Latina. Contudo, é
possível apresentar alguns caminhos interessantes a serem percorridos. O primeiro trata-se da
necessidade de recuperar as narrativas em primeira pessoa que podem contribuir para a
construção de memórias mais sensíveis sobre esse passado, produzir identidades e gerar
empatias. Neste sentido, destaca-se a importância de narrativas não só sobre a repressão, mas
também sobre as resistências e a militância política durante o momento histórico, de modo
que seja possível diferenciar uma da outra e compreender os diferentes projetos de futuro que
estavam em jogo. Desse modo, fica mais fácil analisar o que era considerado subversivo e os
grupos envolvidos e atingidos por suas ideias. Ademais, é de suma importância que se
discuta não só o que se passou, mas também como foi relatado pelos atores políticos e sociais,
abrindo caminhos para outras versões e interpretações sobre o passado. Porque é só ao
colocar em diálogo tais dimensões da história que se entende as diferentes representações
sobre as Ditaduras Militares na América Latina no século XX.
4 REFERÊNCIAS

CAPELATO, Maria Helena. Memória da ditadura militar argentina: um desafio para a


história. In: Clio: Revista de Pesquisa Histórica, n. 24, 2006.

SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia
das Letras, Belo Horizonte: UFMG, 2007.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. História, Memória e as disputas pela representação do passado
recente. Patrimônio e Memória, Assis, v. 9, n. 1, p. 56-70, jan./jun. 2013.

CIAMPI, H.; CABRINI, C. Ensino de história: histórias e vivências. In: CERRI, L. F. (org.).
O ensino de história e a ditadura militar. 2. ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003.

REVISAR ditadura nos livros de história exigiria novo currículo e novas evidências, dizem
especialistas. 4 abr. 2022. Disponível em:
https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/04/09/revisar-ditadura-nos-livros-de-historia-exig
iria-novo-curriculo-e-novas-evidencias-dizem-especialistas.ghtml. Acesso em: 5 ago. 2022.

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