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Este ensaio encontra-se construído em direção à vida imediata, sem com isto
desconhecer referências estruturais abrangentes. Esta opção de método não significa o
elogio irresponsável do cotidiano mas, sim, a valorização de contextos, lugares e
narrativas. Envolve, ainda, a intenção de contribuir no encontro de formas de
representação da vida coletiva que facilitem o enraizamento da questão social. Para
tanto, busca-se refletir os elos entre mapas (orientações da ação) e imagens
(representações da experiência), trazendo a ação para o aqui e agora, ao mesmo tempo
em que reconhece-se que os vínculos entre mapeamentos e representações coletivas
exigem a reflexão da experiência histórico-cultural latino-americana. Esta proposta
metodológica encontra inspiração em Milton Santos (1994; 1996; 1999), Edgar Morin
(1996), Boaventura Santos (1991) e Carlos Fuentes (1994).
Mapas e imagens
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“Medir montanhas, contudo, é uma tarefa diabolicamente difícil, com espaço de sobra para que se
cometam erros. Como explica Louis Baume em Sivalaya, um compêndio de fatos sobre as catorze
maiores montanhas do mundo, ‘o cálculo das altitudes dos picos do Himalaia é um campo de tanta
complexidade erudita que nem mesmo anjos munidos de teodolitos e fios de prumo ousariam meter o
nariz no assunto”(Krakauer, 1999).
Talvez a direção assumida pela busca do desconhecido possa ser encontrada na
forma como a natureza foi desvendada, desde os primórdios da modernidade, pela ânsia
de riqueza imediata; passando gradualmente a ser compreendida como sendo a própria
forma possível da riqueza, ao mesmo tempo em que culturas e seres humanos foram
classificados e aprisionados como elementos do surpreendente quadro natural do novo
mundo2. A beleza das representações cartográficas do período dos descobrimentos, e
dos séculos imediatamente subsequentes, resulta de leituras que buscam recursos e que
registram, através de imagens, os entes de um paraíso perdido, por vêzes demonizados
por interpretações emanadas, como diz Eduardo Lourenço (2000:8), de uma Europa
culpada e vestida. Em suas palavras: “Neste primeiro instante inaugural, os trópicos não
eram tristes. A famosa ‘tristeza dos trópicos’ é da decepção de todos os que, desde (...)
Colombo até Lévi-Strauss, não reconheceram na realidade do novo mundo a Natureza
mítica do primeiro olhar ocidental, aquela que a civilização vestida e pecadora da
Europa buscava para se sentir na aurora do mundo, com a sua inocência e a sua
imaginária felicidade”.
Estas leituras espelhadas, no plano liso das cartas, seduzem e assustam, sendo
assim gerado o estranhamento que nos transporta para o vórtice sempre renovado do
olhar externo3. Este estranhamento introduz um viés de distanciamento na obrigação,
continuamente reproduzida, de sermos analistas de nós mesmos; permitindo recordar,
de forma aqui conjunturalmente deslocada, as palavras de Flávio Venturi em “Eu,
caçador de mim”: “Por tanto amor, por tanta emoção / a vida me fez assim doce ou
atroz, manso ou feroz / eu, caçador de mim / preso a canções, entregue a paixões / que
nunca tiveram fim / vou me encontrar longe do meu lugar / eu, caçador de mim”. No
caso brasileiro, o frequente retorno de questões do tipo: que país é este? que sociedade é
esta? denota a ânsia por um olhar inaugural pleno e não mistificador, cuja possibilidade
de instauração encontra-se perdida para sempre.
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“O tópico da salvação do nativo não é original de Caminha nem apenas uma reprodução da realidade,
mas pertence aos lugares-comuns do gênero ‘literário’ das cartas de descobrimento: permite a associação
dos interesses da Igreja Católica Romana aos da Corte. A perspectiva ‘nativista’, que até hoje prepondera
no Brasil como tipicamente brasileira, não é brasileira. É a perspectiva do conquistador e do colonizador,
que louva o valor do objeto conquistado, da propriedade adquirida, para agradar o rei que o paga” (Kothe,
1997: 224).
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“Fontes valiosas para o conhecimento do meio ambiente e da sociedade, os textos dos viajantes foram
também responsáveis pela difusão de alguns equívocos sobre o passado colonial. Podemos lembrar as
referências (...) à pouca sociabilidade entre os escravos, a uma população pobre e livre embrutecida pela
ignorância e pela ociosidade, e ao mito do interior como um espaço vazio. Argumentos desse tipo foram
incorporados a reflexões de intelectuais brasileiros e marcaram profundamente nossa imaginação social e
política” (Lima, 2000).
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“No fundo, até não há muito tempo, o único e capital problema da cultura latino-americana não foi outro
que o de incorporar ao seu discurso de continente descoberto e religado à cultura do mundo dos seus
descobridores e povoadores não-autóctones, o continente perdido que continua inaccessível - salvo como
máscara e relíquia – à sua consciência” (Lourenco, op cit, p.8).
modernidade – aquele que classifica, desenha e conta mas, que, sobretudo, não ouve ou
compreende narrativas – omite assim, a não ser por belíssimas exceções, a experiência
daqueles que praticam o espaço; daqueles que, por imbricamentos culturais
extraordinários, compõem e engendram o tecido social.
A voragem dos lugares constitui uma das ameaças do presente, facilitada por
técnicas inscritas, rapidamente, em objetos de consumo e símbolos de status. Existem,
assim, riscos ampliados de ocultamento da complexidade e de perda da temporalidade
necessária à escuta da música dos lugares e, portanto, de narrativas das quais depende a
indispensável formulação de utopias. A difusão técnica, sem alterações culturais
abrangentes, colabora para que seja afirmada a ilusão de que todos nós podemos ser
viajantes-descobridores pós-modernos, o que atrasa o uso realmente transformador das
novas tecnologias. Entretanto, a explosão da ação social, estimulada por características
da atual expansão do capitalismo, impõe a apropriação da técnica como instrumento e o
seu uso articulado a fontes pretéritas e atuais de informação. No sentido da reflexão
específica de fontes, sugere-se que a relevância da mídia não pode ser negada,
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No livro Pour Walter Benjamin (Scheurmann e Scheurmann, 1994), encontra-se na págs 154,155 um
mapa dos Pirineus com a indicação das rotas de fuga criadas pela Resistência para encaminhar os
refugiados, entre outras a percorrida por Walter Benjamin até o lugar de sua morte (Port-Bou, Espanha).
Este é um exemplo extraordinário de território praticado, que impede esquecimentos.
principalmente quando associada a narrativas, elementos da historicidade de contextos e
lugares e, ainda, estatísticas e indicadores georeferenciados.
Referências bibliográficas
- Almeida, Alfredo Wagner – 1994 – Carajás: guerra de mapas, Belém, Ed. Falangola.
- Bueno, Eduardo – 1998 – A viagem do descobrimento: a verdadeira história da
expedição de Cabral, Rio de Janeiro, Objetiva.
- Lima, Nísia Trindade – 2000 – Apresentação do catálogo da exposição “A ciência dos
viajantes: natureza, populações e saúde em 500 anos de interpretações do Brasil”, Rio
de Janeiro, Casa de Oswaldo Cruz.
- Castilho, Ricardo Abid – 1999 – “Sistemas orbitais e usos do território: integração
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USP.
- Certeau, Michel de – 1994 - A invenção do cotidiano: artes do fazer, Rio de Janeiro,
Vozes, 3a ed.
- Ferrara, Lucrécia d’Alessio – 1993 – “O mapa da mina: informação, espaço e lugar”
In Miton Santos, Maria Adélia de Souza, Francisco Scarlato, Monica Arroyo (org.) -
1993 - O novo mapa do mundo: fim de século e globalização, São Paulo, Hucitec-
ANPUR.
- Fuentes, Carlos – 1990 – Valiente mundo nuevo: épica, utopía y mito en la novela
hispanoamericana, México, Fondo de Cultura Económica, 2a impressão.
- Kothe, Flávio R. – 1997 – O cânone colonial, Brasília, UnB.
- Krakauer, Jon – 1999 – Sobre homens e montanhas, São Paulo, Companhia das
Letras.
- Le Moigne, Jean-Louis – 1999 - “A inteligência da complexidade” In Alfredo Pena-
Veja e Elimar Pinheiro do Nascimento (org.) – O pensar complexo, Rio de Janeiro,
Garamond.
- Lourenço, Eduardo – 2000 – “América Latina: entre natureza e cultura”. Humbolt, 80.
Morin, Edgar – 1996 – Ciência com consciência, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
Santos, Boaventura – 1991 – “Uma cartografia simbólica das representações sociais:
prolegômenos a uma concepção pós-moderna do direito”. Espaço e Debates. Vol 33,
N.XI.
- Santos, Milton – 1994 – Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico –
científico – informacional, São Paulo. Hucitec.
- ____________ – 1996 – A natureza do espaço: técnica e tempo / razão e emoção,
São Paulo, Hucitec.
- ____________ – 1999 – “O território e o saber local: algumas categorias de análise”.
Cadernos IPPUR, Vol XIII, N.2.
- Scheurmann, Konrad e Scheurmann, Ingrid – 1994 – Pour Walter Benjamin, Bonn,
L’Arbeitskreis selbständiger Kultur-Institute – AsKI e Inter Nationes.
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Este ensaio registra propostas desenvolvidas, com apoio CNPq, no Laboratório da conjuntura social:
tecnologia e território (LASTRO) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. As autoras agradecem à socióloga Amélia Rosa Sá Barretto o
estímulo constante às iniciativas do LASTRO e a Jorge Luís Borges Ferreira, Cristiane Calheiros Falcão e
Luis Cesar Peruci do Amaral o apoio dado aos experimentos em cartografia da ação.