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Por uma cartografia da ação: pequeno ensaio de método *

Ana Clara Torres Ribeiro, Alice Lourenço, Laura Maul de Carvalho


“Perdera tudo: o sinal, o ponto, aquilo que fazia com que eu –
sendo o autor daquele sinal naquele ponto – fosse de fato eu.
O espaço, sem sinal, tornara-se uma voragem de vácuo sem
princípio nem fim, nauseante, na qual tudo – eu inclusive – se
perdia” (Ítalo Calvino – As consmicômicas)

A intenção deste texto é contribuir na organização e na expressão sintética de


informações relativas às lutas sociais na América Latina. Acredita-se que existam
dificuldades concretas na apreensão da multiplicidade de reivindicações, protestos e
conflitos, expressivos do agravamento das condições de vida e de intensas mudanças,
observadas a partir dos anos 60 e 70, em formas de agir e, também, em ideários que
orientam a ação social. Em verdade, surgiram práticas sociais nas últimas décadas que
trazem à cena política identidades culturais profundas, permitindo maior visibilidade a
sujeitos sociais com histórica presença nas formações sociais latino-americanas, e lutas
pela afirmação política de reivindicações coletivas que enfrentam desafios antes
desconhecidos. Trata-se da implementação de táticas e estratégias inovadoras em busca
do alcance de objetivos imediatos e de conquista de legitimidade no espaço público.

Acredita-se que a fase contemporânea do capitalismo, por sua capacidade de


envolver as sociedades periféricas na velocidade da acumulação financeira, exija o
reposicionamento teórico-conceitual dos vínculos entre estrutura e conjuntura e maior
rapidez na obtenção de resultados analíticos, mesmo que provisórios. A resistência à
fragmentação no âmago da estrutura de classes envolve a valorização do redesenho da
ação e a leitura, tentativa e sintomática, das referências culturais que orientam,
atualmente, os movimentos sociais na América Latina. A compreensão da resistência à
opressão e à exclusão social exige a aproximação entre problemáticas políticas mais
abrangentes e as práticas diárias e as táticas de sobrevivência que têm permitido a
afirmação de identidades sociais historicamente ocultadas. Afinal, as práticas concretas,
desenvolvidas no dia-a-dia, também modificam sentidos da ação social e podem ser
portadoras de futuras consequências estruturais.

Assim, os elos entre estrutura e conjuntura precisariam ser realmente tratados de


forma biunívoca e, não apenas, como foi antes usual, através da alocação analítica dos
sujeitos sociais à sua posição no âmago da (re)organização de economia; sendo daí
derivados os sentidos da ação. Da mesma forma, os vínculos entre super e
infraestruturas ainda são carentes de investimentos analíticos conduzidos pelo
reconhecimento da complexidade. Este reconhecimento é especialmente indispensável
agora, quando a esfera cultural é transformada crescentemente em lugar de negócios,
observando-se, de forma simultânea, a luta pelo resgate de identidades culturais
desconsideradas por sucessivos projetos de modernização da América Latina. Existe,
portanto, necessidade de renovação das ciências sociais, o que não significa
desconhecer o valor de análises anteriores mas, sim, a obrigação de seu
rejuvenescimento através de diálogo com os múltiplos outros que reconstróem a
experiência social. O trabalho de conjugação analítica (Le Moigne, 1999) entre estrutura
e conjuntura, sujeitos sociais e atores políticos, tendências da economia e mudanças na
cultura, em sintonia com vontades sociais em construção, pode oferecer caminhos para a
renovação necessária.
A ação hoje observada tanto corresponde a encadeamentos de amplas e
diferentes práticas como a fatos isolados cultural e politicamente relevantes, já que
significam a emergência de formas transformadas de manifestação social. A vitalidade
das sociedades latinoamericanas manifesta-se, assim, numa pluralidade de frentes de
mobilização, com rápida possibilidade de serem reproduzidas através da base técnica da
vida coletiva: as atuais formas de comunicação e informação. Desta maneira, o
acompanhamento analítico da ação apresenta desafios de método que não podem ser
respondidos, totalmente, através de um debate teórico-conceitual dirigido à gênese
estrutural da ação, conforme referido acima, ou com apoio, somente, em questões
políticas abrangentes – como exemplificam os relevantes temas da democracia e da
cidadania ou as variadas formas assumidas pela problemática do sujeito. Poderia ser
dito que a ação social, ao mesmo tempo em que exige a consideração destes grandes
temas, impõe o reconhecimento de outros, propostos por aqueles que fazem
concretamente a vida e que (re)costuram, de forma incessante, o tecido social. Para
estes, experiência vivida e futuro caminham juntos.

Este ensaio encontra-se construído em direção à vida imediata, sem com isto
desconhecer referências estruturais abrangentes. Esta opção de método não significa o
elogio irresponsável do cotidiano mas, sim, a valorização de contextos, lugares e
narrativas. Envolve, ainda, a intenção de contribuir no encontro de formas de
representação da vida coletiva que facilitem o enraizamento da questão social. Para
tanto, busca-se refletir os elos entre mapas (orientações da ação) e imagens
(representações da experiência), trazendo a ação para o aqui e agora, ao mesmo tempo
em que reconhece-se que os vínculos entre mapeamentos e representações coletivas
exigem a reflexão da experiência histórico-cultural latino-americana. Esta proposta
metodológica encontra inspiração em Milton Santos (1994; 1996; 1999), Edgar Morin
(1996), Boaventura Santos (1991) e Carlos Fuentes (1994).

Mapas e imagens

A natureza e a riqueza, aí incluído o volume da população, conduziram com


especial força a simbiose entre imagem e mapa acelerada pela modernidade. Medir,
contar, precisar, desvendar caminhos e penetrar territórios foram processos que
articularam representação e apropriação do mundo e que envolveram religião e poder. A
capacidade de medir e avaliar torna-se crescentemente exata, mesmo que na exatidão
escondam-se obscuros espíritos e permanentes imprecisões1. Também o valor
excepcional da informação rara, aparentemente uma característica do mundo
contemporâneo, existiu no segredo dos mapas e nas redes que transmitiam aos centros
de poder, ainda no período dos descobrimentos, os segredos das terras desconhecidas e
das rotas trilhadas (Bueno, 1988). Por outro lado, imagens e relatos encontraram
rapidamente o seu mercado entre aqueles que sonhavam com a aventura não vivida,
com as cores e os sabores das terras distantes e com uma fauna exuberante e mística
(Bueno, op cit).

1
“Medir montanhas, contudo, é uma tarefa diabolicamente difícil, com espaço de sobra para que se
cometam erros. Como explica Louis Baume em Sivalaya, um compêndio de fatos sobre as catorze
maiores montanhas do mundo, ‘o cálculo das altitudes dos picos do Himalaia é um campo de tanta
complexidade erudita que nem mesmo anjos munidos de teodolitos e fios de prumo ousariam meter o
nariz no assunto”(Krakauer, 1999).
Talvez a direção assumida pela busca do desconhecido possa ser encontrada na
forma como a natureza foi desvendada, desde os primórdios da modernidade, pela ânsia
de riqueza imediata; passando gradualmente a ser compreendida como sendo a própria
forma possível da riqueza, ao mesmo tempo em que culturas e seres humanos foram
classificados e aprisionados como elementos do surpreendente quadro natural do novo
mundo2. A beleza das representações cartográficas do período dos descobrimentos, e
dos séculos imediatamente subsequentes, resulta de leituras que buscam recursos e que
registram, através de imagens, os entes de um paraíso perdido, por vêzes demonizados
por interpretações emanadas, como diz Eduardo Lourenço (2000:8), de uma Europa
culpada e vestida. Em suas palavras: “Neste primeiro instante inaugural, os trópicos não
eram tristes. A famosa ‘tristeza dos trópicos’ é da decepção de todos os que, desde (...)
Colombo até Lévi-Strauss, não reconheceram na realidade do novo mundo a Natureza
mítica do primeiro olhar ocidental, aquela que a civilização vestida e pecadora da
Europa buscava para se sentir na aurora do mundo, com a sua inocência e a sua
imaginária felicidade”.

Estas leituras espelhadas, no plano liso das cartas, seduzem e assustam, sendo
assim gerado o estranhamento que nos transporta para o vórtice sempre renovado do
olhar externo3. Este estranhamento introduz um viés de distanciamento na obrigação,
continuamente reproduzida, de sermos analistas de nós mesmos; permitindo recordar,
de forma aqui conjunturalmente deslocada, as palavras de Flávio Venturi em “Eu,
caçador de mim”: “Por tanto amor, por tanta emoção / a vida me fez assim doce ou
atroz, manso ou feroz / eu, caçador de mim / preso a canções, entregue a paixões / que
nunca tiveram fim / vou me encontrar longe do meu lugar / eu, caçador de mim”. No
caso brasileiro, o frequente retorno de questões do tipo: que país é este? que sociedade é
esta? denota a ânsia por um olhar inaugural pleno e não mistificador, cuja possibilidade
de instauração encontra-se perdida para sempre.

A carência deste olhar transforma-nos, com frequência, em surpresos e ávidos


consumidores de representações preservadoras do confortável e, por vêzes, doloroso
afastamento da sociabilidade imediata4. Esta experiência distanciada e extrovertida é
sedutora, difundindo nas sociedades periféricas os anseios absenteísticas e a melancolia
que conformam parte relevante da experiência literária das camadas dominantes e de
segmentos intelectualizados das classes médias urbanas. O olhar predominante da

2
“O tópico da salvação do nativo não é original de Caminha nem apenas uma reprodução da realidade,
mas pertence aos lugares-comuns do gênero ‘literário’ das cartas de descobrimento: permite a associação
dos interesses da Igreja Católica Romana aos da Corte. A perspectiva ‘nativista’, que até hoje prepondera
no Brasil como tipicamente brasileira, não é brasileira. É a perspectiva do conquistador e do colonizador,
que louva o valor do objeto conquistado, da propriedade adquirida, para agradar o rei que o paga” (Kothe,
1997: 224).
3
“Fontes valiosas para o conhecimento do meio ambiente e da sociedade, os textos dos viajantes foram
também responsáveis pela difusão de alguns equívocos sobre o passado colonial. Podemos lembrar as
referências (...) à pouca sociabilidade entre os escravos, a uma população pobre e livre embrutecida pela
ignorância e pela ociosidade, e ao mito do interior como um espaço vazio. Argumentos desse tipo foram
incorporados a reflexões de intelectuais brasileiros e marcaram profundamente nossa imaginação social e
política” (Lima, 2000).
4
“No fundo, até não há muito tempo, o único e capital problema da cultura latino-americana não foi outro
que o de incorporar ao seu discurso de continente descoberto e religado à cultura do mundo dos seus
descobridores e povoadores não-autóctones, o continente perdido que continua inaccessível - salvo como
máscara e relíquia – à sua consciência” (Lourenco, op cit, p.8).
modernidade – aquele que classifica, desenha e conta mas, que, sobretudo, não ouve ou
compreende narrativas – omite assim, a não ser por belíssimas exceções, a experiência
daqueles que praticam o espaço; daqueles que, por imbricamentos culturais
extraordinários, compõem e engendram o tecido social.

Trata-se de um descolamento de raiz, ou melhor de um desenraizamento hoje


acelerado pelos fluxos mundiais, calcado na transitoriedade dos percursos e das estadias
e, em inovações materiais e imateriais difundidas no centro do mundo. Somos
tendencialmente condenados a ser eternos viajantes ou, como diz Carlos Fuentes (1994),
a sempre retomar o esforço da primeira narrativa. Absorvidos no tempo do mundo,
constituímos sobretudo território, como afirma este autor, para a expansão de forças
modernizantes em risco de esgotamento em sua própria espacialidade de origem. Forças
que compõem segmentos de nossa própria identidade, reproduzindo ideações de
heroismos e caminhos nunca percorridos e trazendo, também, moralização e destruição,
mesmo que involuntárias. Portanto, os praticantes dos territórios podem ser, através de
orientações analíticas por nós acionadas, extraídos física ou simbolicamente do seu
lugar, já que, para o olhar dominante, apenas existem. Estabelece-se, pelo
distanciamento, a recorrência de uma outra forma de naturalização, onde a fala aparece
como objeto, juntamente com mapas e imagens. Este movimento reificador colabora
para anular condições de afirmação de sujeitos sociais.

O avanço da modernidade se fez acompanhar de enormes ganhos na capacidade


de desvendar e registrar, possibilitando tanto a fixação da pauta humanista e da ciência
quanto a conquista de instrumentos técnicos que agilizam a reificação de culturas e
seres humanos. Como afirma Edgar Morin (1996), a manipulação do mundo põe em
risco, atualmente, o próprio humanismo e os usos socialmente progressistas da ciência.
Mapas, imagens e falas, articulados à reprodutibilidade e à calculabilidade, possibilitam
novos distanciamentos, envolvendo as ciências sociais e dificultando o encontro de
projetos e utopias efetivamente transformadores. Sem dúvida, as técnicas atuais não
podem impedir, por elas mesmas, o esvaziamento de sentido decorrente do excesso de
exatidão transitória e de informação sem análise. O alisamento da antiga cartografia
permanece acontecendo nas lisas telas dos computadores, assim como, a naturalização
dos inúmeros outros, como exemplificam as telenovelas em que mulheres tropicais
continuam balançando-se em redes e servindo aos seus senhores ou integradas, em
secretas identidades, aos animais das florestas e a rios transbordantes.

Hoje, o ponto exato no tempo-espaço – encontrado com apoio em satélites e no


GPS (Castilho, 1999) – favorece os deslocamentos ágeis exigidos pelos fluxos da
economia e o monitoramento preciso de recursos. Este ponto sem autoria, como nos fez
lembrar a epígrafe de Ítalo Calvino, não contém nem memória nem narrativa. Jamais,
portanto, poderá ser o localizador da música dos lugares, aquela construída por dores e
amores, inscritos na toponímia ancestral, e nos passos cotidianos de projetos libertários5.
5
“O discurso do mundo mecânico se apóia, a título de exemplo, em três imagens básicas da Renascença:
a iconografia, como noção de mundo; a perspectiva, como noção de espaço e o relógio, como noção de
tempo. O discurso do mundo eletrônico se apóia, também a título de exemplo, em três outras imagens: a
aldeia global, a televisão e a mundialização do cotidiano com a ilusão do ‘mundo em sua casa’. Nos dois
discursos desenham-se concepções de mapas do mundo apartentemente diferentes mas, na realidade,
muito próximas (...). Discursos de tecnologias claramente opostas mas, na consequência da informação
que produzem, se assemelham. O desenho de um novo mapa do mundo supõe traçar a concepção da
informação e da cultura com desenhos também novos” (Ferrara, 1993).
Estes são outros pontos-lugares, carentes de cartografia, mas que possuem, quando a
sorte os protege, o cantar dos grandes poetas. O registro do mundo vivido transborda,
por exemplo, no canto de Patativa do Assaré: “Foi em mil novecentos / e nove qu’eu
vim ao mundo/ foi na Serra de Santana / em uma pobre choupana / humilde e modesto
lar / foi alí onde eu nasci / e a cinco de março vi / os raios da luz solar / foi ali que eu fui
crescendo / fui lendo e fui aprendendo / no livro da Natureza / onde Deus é mais visível
/ o coração mais sensível / e a vida tem mais pureza” (poema “Eu e Meu Campina”.
Revista Palavra, Ano 2, N.15, julho 2000). Ou, ainda, no canto de Pablo Neruda: “Mi
casa, las paredes cuya madera fresca / recién cortada huele aún: destartalada / casa de la
frontera, que crujía / a cada passo, y silbaba con el viento de guerra / del tiempo austral,
haciéndose elemento / de tempestad, ave desconocida / bajo cuyas heladas plumas
creció mi canto” (poema “La casa”. Antología poética, Madrid, Espasa-Calpe, 1985).

Contextos, lugares e representações sociais

A cartografia aqui sugerida é a da denúncia e também aquela que oriente a ação


social, desvendando contextos e antecipando atos (Cf Almeida, 1994). Significa,
portanto, tanto a contextualização veloz da ação hegemônica, cada vez mais
estrategicamente localista, quanto a valorização imaginativa dos lugares vividos, onde a
vida escorre ou ganha força reflexiva e transformadora. Como carta, mapa, não aparece
como instrumento isolado ou como bela ilustração de textos, exarcebando critérios
estéticos; mas, sim, como ferramenta analítica e como sustento da memória dos outros6.
Neste sentido, propõe-se uma cartografia incompleta que se faz, fazendo; uma
cartografia praticada, que não seja apenas dos usos do espaço mas, também, usável,
tentativa e plástica, através da qual ocorra a sincronia espaço-temporal, o que apoiaria,
inclusive, o trabalho interdisciplinar. Esta seria uma forma de representação da ação
que poderia alimentar narrativas e que, em vez do território naturalizado, trataria, como
orienta Milton Santos (1999:18), de território usado: “O território não é uma categoria
de análise, a categoria de análise é o território usado. Ou seja, para que o território se
torne uma categoria de análise dentro das ciências sociais e com vistas à produção de
projetos, isto é, com vistas à política (...) deve-se tomá-lo como território usado”.

A voragem dos lugares constitui uma das ameaças do presente, facilitada por
técnicas inscritas, rapidamente, em objetos de consumo e símbolos de status. Existem,
assim, riscos ampliados de ocultamento da complexidade e de perda da temporalidade
necessária à escuta da música dos lugares e, portanto, de narrativas das quais depende a
indispensável formulação de utopias. A difusão técnica, sem alterações culturais
abrangentes, colabora para que seja afirmada a ilusão de que todos nós podemos ser
viajantes-descobridores pós-modernos, o que atrasa o uso realmente transformador das
novas tecnologias. Entretanto, a explosão da ação social, estimulada por características
da atual expansão do capitalismo, impõe a apropriação da técnica como instrumento e o
seu uso articulado a fontes pretéritas e atuais de informação. No sentido da reflexão
específica de fontes, sugere-se que a relevância da mídia não pode ser negada,

6
No livro Pour Walter Benjamin (Scheurmann e Scheurmann, 1994), encontra-se na págs 154,155 um
mapa dos Pirineus com a indicação das rotas de fuga criadas pela Resistência para encaminhar os
refugiados, entre outras a percorrida por Walter Benjamin até o lugar de sua morte (Port-Bou, Espanha).
Este é um exemplo extraordinário de território praticado, que impede esquecimentos.
principalmente quando associada a narrativas, elementos da historicidade de contextos e
lugares e, ainda, estatísticas e indicadores georeferenciados.

O uso da informação de mídia exige, porém, um investimento rigoroso no


registro e, também, na decodificação ágil dos seus possíveis significados, o que é uma
condição indispensável à preservação do pensamento crítico. Para o trabalho de análise
da informação, sugere-se a constituição de três bancos de dados: o primeiro, dirigido à
documentação dos veículos de comunicação (origem, propriedade, vínculos políticos); o
segundo, constituído por personas, permitindo a rápida identificação de atores políticos
com presença na conjuntura e o reconhecimento dos interesses por êles representados e
o terceiro, voltado ao registro de instituições (histórico, formas de financiamento, linhas
de atuação). A sistematização gradual destas informações permitiria a constituição de
um nível analítico coeso, diretamente político-institucional, em constante processo de
aprimoramento. Este nível analítico, articulando atores sociais, mediações institucionais
e estratégias de comunicação, além de orientar a decodificação da informação, pode
garantir que a análise da ação social não seja absorvida no fluxo contínuo de
informações, neutralizador dos seus significados. Esta absorção implicaria, de fato, em
perda dos elos da ação social com determinantes estruturais e questões políticas
abrangentes.

Quanto à cartografia da ação, as notícias relativas a protestos, revoltas,


passeatas, ocupações de terras e prédios públicos, comícios, acampamentos,
interrupções de vias, greves, confrontos e reivindicações precisariam ser consideradas
de forma plena, isto é, através da análise detalhada de atores sociais e políticos,
mediadores, discursos, objetivos da ação e, também, formas de repressão sofridas. Estas
informações constituiríam um banco de dados específico, viabilizador da construção de
mapas expressivos da vitalidade do tecido social e de análises de conjuntura. O gradual
registro analítico destas informações possibilitaria superar: (a) – as formas de
classificação da informação utilizadas pelos veículos de comunicação; (b) – a
incoerência e a fugacidade com que, em geral, é tratada a ação social; (c) – o
ocultamento do esforço realizado por sujeitos sociais para garantir a sua presença no
território; (d) - o esquecimento da ação repressora e de seus responsáveis. Na
cartografia da ação adquirem especial relevância os espaços praticados, os espaços
usados e a geografia da resistência social.

Nesta cartografia, também valoriza-se as relações espaço-temporais na medida


em que a conformação do banco de dados específico possibilitaria o resgate, a qualquer
momento, de um tipo particular de ação (por ex: greves) ou de um ator (por ex:
funcionários públicos) e, portanto, de sua variada presença num determinado contexto
ou lugar ao longo do período estudado. Esta cartografia também constituiria, assim, um
recurso de memória, impossibilitando esquecer os praticantes do território e facilitando
a narrativa, o que contraria tendências à cristalização fotográfica da ação social ou à
escolha de atores políticos a priori considerados mais relevantes do que outros. Aliás,
esta escolha tem sido responsável pela lentidão e pela surpresa, que não são raras, com
que as ciências sociais valorizam novas formas e sentidos da ação e acolhem mutações
no tecido social. A cartografia da ação, favorável à memória e à narrativa, reconhece
táticas populares e não apenas grandes estratégias (Certeau, 1998); reunindo-as a
informações sobre condições de vida.
De fato, ainda é uma tendência predominantes o privilégio, quase exclusivo, ao
mapeamento da riqueza e dos recursos, assim como ao registro dos usos dominantes do
território. Nas palavras de Boaventura Santos (1991:65): “O poder tende a representar a
realidade social e física numa escala escolhida pela sua virtualidade para criar os
fenômenos que maximizam as condições de reprodução do poder. A representação /
distorção da realidade é um pressuposto do exercício do poder”. Neste ensaio, propõe-se
uma outra cartografia, singela e ativa, que não desaproprie culturas nem naturalize os
múltiplos nós-outros. Uma cartografia que, acionando as novas técnicas, afaste-se da
reificação estética de sujeitos sociais. Trata-se de uma cartografia rápido-lenta,
subordinada aos ritmos e trajetos da ação social e à apropriação do território. Esta seria
uma representação de homens lentos, conceito proposto por Milton Santos (1994);
também orientada por outra indicação analítica de Boaventura Santos (op cit:64): “(...) o
modo como imaginamos o real espacial pode vir a tornar-se matriz das referências com
que imaginamos todos os demais aspectos da realidade”.

Referências bibliográficas

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- Scheurmann, Konrad e Scheurmann, Ingrid – 1994 – Pour Walter Benjamin, Bonn,
L’Arbeitskreis selbständiger Kultur-Institute – AsKI e Inter Nationes.
*
Este ensaio registra propostas desenvolvidas, com apoio CNPq, no Laboratório da conjuntura social:
tecnologia e território (LASTRO) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. As autoras agradecem à socióloga Amélia Rosa Sá Barretto o
estímulo constante às iniciativas do LASTRO e a Jorge Luís Borges Ferreira, Cristiane Calheiros Falcão e
Luis Cesar Peruci do Amaral o apoio dado aos experimentos em cartografia da ação.

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