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DIREITO E MEMÓRIA
A rua como centro e quadro da vida cotidiana, onde o homem é passante, habitante,
artesão; elemento constitutivo e permanente, às vezes quase inconsciente, na visão
de mundo e no desamparo do homem; realidade concreta, imediata, que faz do
citadino “um homem da rua”, um homem diante dos outros, sob olhar de outrem,
“público” no sentido original da palavra. (DARDEL, 2015, p. 28)
As coisas que são produzidas e postas numa cidade participam conjuntamente com a
sociedade de um jogo de mescla temporal, em que passado e presente convivem e promovem
intepretações, sentidos, emoções. É nessa dinâmica que se formam símbolos, monumentos,
patrimônios culturais. A permanência ou não de um objeto depende invariavelmente de como
ele é tomado pela sociedade: como algo qualquer no espaço e na paisagem; ou como marco de
identidade, reconhecimento, ou seja, adentro ao contexto social, histórico e fenomenológico.
Assim, o relógio reverberava “[...] a configuração do tempo humano: o imbricamento
constante, cruel e alimentador ao mesmo tempo, do passado com o presente, [...] presente
invasivo, a ênfase da representação do passado como parte integrante do imediato” (RIOUX,
1999, p. 49). O relógio era uma memória do tempo passado da cidade, do grupo, ao mesmo
tempo, a identidade e contexto de quem passava pelas ruas, de moradores, de visitantes ou de
quem visualiza-se o cenário. O relógio participava da dinâmica da vida social, a interação
produzia, histórias, memórias individuais e coletivas. Interpretando o patrimônio e as
marcações identitárias à luz do pensamento de Chartier, tem-se que seu uso ou desuso
demanda uma construção no tempo, mesmo que seus significados mude ao longo dele, pois:
[...] não têm sentido estável, universal, imóvel. São investidas de significações
plurais e móveis, construídas na negociação entre uma proposição e uma recepção,
no encontro entre as formas e os motivos que lhes são sua estrutura e as
competências ou as expectativas dos públicos que delas se apropriam. [...]
Decifradas a partir dos esquemas mentais e afetivos que constituem a cultura própria
(no sentido antropológico) das comunidades que as recebem, elas tornam-se em
retorno um recurso para pensar o essencial: a construção do laço social, a
consciência de si, a relação com o sagrado. (CHARTIER, 2002, p. 93)
Perder os referenciais rompe com vínculo entre pessoas e cidade, o que aconteceu
com o relógio foi uma quebra na narrativa, seja pela autorização da lei ou pela atuação
política e econômica, algo que fazia parte da história social deixa de fazer, sem a consulta de
outros atores da coletividade. Dentre os argumentos elucidados nas reportagens sobre a
retirada do letreiro, a lei de Belo Horizonte foi aplicada em desconexão com a própria
interpretação sistemática que ela exige.
O primeiro ponto está quando ao interesse público, no início do texto legislativo o
art. 5º1 prevê em seu caput que todas as questões que incidirem em direito do consumidor
ambiental, sanitário, segurança, trânsito, estética ou cultural passarão pelo Poder Público. Do
exposto percebe-se com exceção a estética e cultural, os demais temas, são majoritariamente
atos de caráter vinculados, estando o agende público ligado a decisões judiciais e ao que foi
autorizado e descrito em lei. A estética e a cultura por sua vez, apresentam uma tomada de
decisão mais discricionária, pois antes de decidir o agente deve se ater aos fenômenos sociais,
a noção estética, tradição, costume e acervo cultural, encontra-se inserido principalmente em
quem a produz, a coletividade, grupos e indivíduos.
O segundo ponto liga-se ao primeiro, no que diz respeito ao ato do representante
público determinar a retirada ou a manutenção do letreiro. Não poderia o agente decidir com
livre ou exclusivamente pela vontade da lei, conforme estabelecido no texto em seu art. 263,
inciso III2, que os engenhos de publicidade estão inseridos na participação popular, para
verificarem se aceitam ou não o letreiro publicitário. Assim, sob a interpretação da teoria dos
poderes implícitos – “quem pode o mais pode o menos” (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, 2019) -, se é autorizado a participação popular para decidir sobre a instalação de
novas publicidades, o relógio já instalado, deveria passar por essa consulta popular.
O terceiro ponto é em relação a função social desempenhada, o relógio, não atendia
somente a uma publicidade, também informava as horas e temperatura da cidade para quem
precisasse. Também, desde o momento que foi instalado no alto do edifício, tornou-se bússola
para quem precisasse se localizar na cidade, tais as funções desempenhadas por ele “[...] estão
associados a práticas sociais concretas e são construídos e vividos no interior da vida social,
1
Art. 5º As operações de construção, conservação e manutenção e o uso da propriedade pública ou particular
afetarão o interesse público quando interferirem em direito do consumidor ou em questão ambiental, sanitária, de
segurança, de trânsito, estética ou cultural do Município (BELO HORIONTE, 2003).
2
Art. 263 Constituem diretrizes a serem observadas no disciplinamento da instalação do engenho de
publicidade: [...] III - participação da população e de entidades no acompanhamento da adequada aplicação desta
Lei, para corrigir distorções causadas pela poluição visual e seus efeitos [...] (BELO HORIONTE, 2003).
com seus conflitos, contradições, consensos e hierarquias” (VELOSO, 2006, p. 440), dessa
maneira o engenho publicitário foi aderido a convivência coletiva.
Aqui a ênfase muda: não interessa mais, pura e simplesmente, o valor arquitetônico,
histórico ou estético de uma dada edificação ou conjunto, mas verificar como os
"artefatos", os objetos se relacionam na cidade para permitir um bom desempenho
do gregarismo próprio ao ambiente urbano. Em outras palavras: é importante
perceber como eles se articulam em termos de qualidade ambiental. Abordar o
patrimônio ambiental urbano vai ser assim, como se pode perceber, muito mais que
simplesmente tombar determinadas edificações ou conjuntos: é antes, conservar o
equilíbrio da paisagem, pensando sempre como inter-relacionados a infra-estrutura,
o lote, edificação, a linguagem urbana, os usos, o perfil histórico e a própria
paisagem natural. Não se trata mais, portanto, de uma simples questão estética ou
artística controversa, mas antes, da qualidade de vida e das possibilidades de
desenvolvimento do homem. Com isso, desloca-se o eixo da discussão, recolocando-
se a questão do patrimônio frente a balizamentos capazes de enquadrá-la em sua
extensão contemporânea. (CASTRIOTA, 2007, p. 17)
Dessa fala o que se aponta é que o letreiro não gera uma poluição visual3, na
percepção social ele integra a paisagem urbana, na medida que desenvolve com a sociedade
laços afetivos e de uso, o que contribui para a construção da história da cidade e o sentimento
de pertencimento. A lei municipal ao ser aplicada numa exegese, desconsiderou a sistemática
de seu próprio texto, impelindo a participação popular, desrespeitando a história, a alteridade
com o passado e sua permanência, pois negligência a importância desse relógio para a cidade.
O relógio apesar de descumprir as regras de publicidade, representa para a sociedade um
vínculo de identidade e memória, muito mais forte que a vontade legal.
O contexto histórico, cultural e social do relógio mantido pela instituição financeira,
não deve ser descartado pelo Poder Público, nem pelo direito pois:
3
Como conceito: Poluição visual é pois, consequência e resultado de desconformidades de todas essas situações
e também o efeito da deterioração dos espaços da cidade pelo acúmulo exagerado de anúncios publicitários em
determinados locais, porém o conceito mais abrangente é aquele que diz que há poluição visual quando o campo
visual do cidadão se encontra de tal maneira que a sua percepção dos espaços da cidade é impedida ou
dificultada. (MINAMI; GUIMARÃES JÚNIOR, 2001)
município a vontade popular, haveria a possibilidade de rever ou flexibilizar a aplicação da lei
mantendo o engenho publicitário onde estava.
Associado a aplicação da lei, a retirada do relógio rompe com o sentimento de
pertencimento da sociedade, rouba-se dela símbolos e patrimônios que servem como
referências históricas, culturais, mnemônicas, o que pode prejudicar o relacionamento dos
conviventes com o espaço e seu entorno. Não obstante à lei, a sua aplicação e interpretação
precisam respeitar a própria sistematicidade e externalidades de sentido produzidos
socialmente, convergir dentro do espaço urbano, a proposta legal com sentimentos coletivos.
FERREIRA, Pedro. Relógio do banco Itaú começa a ser desmontado no JK; Prefeitura é
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RIOUX, Jean-Pierre. Pode-se fazer uma história do presente? In: CHAUVEAU, Agnès;
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39-50
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Vocabulário Jurídico (Tesauro). (2019) Brasília:
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