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Historiadora, mestre em História social da cultura e doutora em Serviço Social (PUC-Rio). Coordenadora técnica do Museu
do Horto.
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Pode-se assistir ao trailer do documentário que estamos realizando sobre esse conflito fundiário entre os moradores do
Horto e o Instituto Jardim Botânico, acessando o link:
http://www.museudohorto.org.br/Horto_lugar_de_Memorias_documentario.
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Hoje, a área é ocupada por 589 famílias de baixa renda, formada, em sua maior parte,
por pessoas idosas. A área sobre a qual ergue-se a comunidade pertence à União federal e
encontra-se em processo de regularização fundiária, realizada pela SPU (Secretaria de
Patrimônio da União), juntamente com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ,
instituições que realizaram um cadastramento sócio-econômico para a regularização fundiária
na comunidade e conseguiu junto à AGU (Advocacia Geral da União) um documento,
garantindo a impossibilidade de despejos nas áreas em processo de regularização. Este fato
honrou duplamente a dignidade cidadã: por um lado pelo direito dos moradores tradicionais
do Horto permanecerem em suas moradias e, por outro lado, por voltarem a acreditar na
democratização e na governabilidade das instituições públicas, após tantos anos de
atravessamentos dos poderes privados em situações de interesse e direito públicos. Assim
caminhamos para o fortalecimento da democracia no país.
A importância de apresentarmos a história da Comunidade do Horto Florestal e de seu
território tradicionalmente ocupado, justifica-se como meio de preservação da cultura local e
dos modos de vida de seus moradores, entendendo-se como patrimônio imaterial excepcional
e singular. Justifica-se, igualmente, como afirmação do constitucional direito de morar e,
portanto, o reconhecimento do direito à posse como condição material fundamental para o
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A comunidade do Horto possui uma história bastante antiga, seus moradores são
tranquilos e convivem há séculos com a natureza de forma harmônica e orgânica.
Em 1578 a região já era habitada pelos trabalhadores de dois Engenhos de cana ali
instalados e depois por Fazendas de café. Os senhores dos engenhos e cafezais possuiam
escravos e estes constituíram a 1ª composição populacional da localidade. Ainda hoje há
monumentos reveladores desta remota época, como o Solar da Imperatriz (1750), os
aquedutos tipicamente coloniais e algumas construções de cujos vestígios se insinuam ruínas
de Senzalas.
Em 1808 D. João VI desapropriou o Engenho de Nossa Senhora da Conceição da
Lagoa, de propriedade de Rodrigo de Freitas, para a construção de uma fábrica de pólvora.
Alguns meses depois, fundou o Real Horto (que hoje é o Instituto Jardim Botânico). Para tais
empreendimentos, houve uma 2ª onda populacional, pois os trabalhadores da fábrica e do
parque foram convidados a residir nas proximidades do trabalho. Em 1811, foram erguidas
vilas para a instalação dos trabalhadores da fábrica de pólvora e do Jardim Botânico. Assim,
gerações de famílias de funcionários e descendentes de funcionários da antiga fábrica e do
Jardim Botânico construíram uma comunidade nos arredores do parque, com autorização
(formal e informal) das diversas administrações do Jardim Botânico e/ou do Ministério da
Agricultura, instância de poder a que o Horto Florestal estava subordinado na época.
Com o advento da República e seus projetos de industrialização surgiram as fábricas
de tecidos na região, como a famosa América Fabril. Delas decorreram as vilas operárias, um
casario bastante emblemático do início da história operária no país e localmente conhecido
como Chácara do Algodão. Esta foi a 3ª onda de ocupação pelos habitantes do Horto.
Durante anos, os moradores do Horto vêm cuidando desta localidade como extensão
de suas vidas, impedindo, inclusive, a implantação de projetos de grande impacto sócio-
ambiental, como a construção do cemitério Santa Catarina de Siena (de iniciativa do então
governador Carlos Lacerda) e de um conjunto residencial do BNH, de 35 blocos de 6 andares
cada, ambos projetos da década de 1960 para a região.
A apresentação da história da Comunidade constitui ato de reconhecimento – interno e
público – da luta e da resistência centenária dos moradores do Horto. Uma resistência de
caráter cultural, consubstanciada na preservação da memória das rodas de samba, da capoeira
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e dos antigos blocos de carnaval. Uma resistência de caráter político, na afirmação de uma
memória dos trabalhadores, cujas origens remontam à Fábrica de Pólvora, mas também às
Fabricas têxteis Chácara do Algodão, Fábrica Carioca e América Fabril. As vilas operárias do
Horto eram um importante local da resistência comunista e anarquista frente aos diversos
governos ditatoriais pelos quais o Brasil passou.
Além da preservação das relações sociais e dos bens culturais como patrimônio
imaterial, a localidade é rica em monumentos de tempos passados. Os habitantes anciãos
guardam relíquias de outros momentos históricos, algumas delas tão antigas quanto foram os
primórdios da primeira ocupação oficial (1808) da localidade. Há, ainda, vestígios de que a
região do Horto pode ter sido ocupada ainda mais remotamente, podendo ter abrigado
Quilombos em suas densas matas oitocentistas. Uma resistência histórica, portanto em cujos
rastros se inserem lugares de memória (Pierre Nora) e monumentos-documentos (Jacques Le
Goff) da pesquisa histórica. Por isso, o Horto deve também ser reconhecido como patrimônio
histórico e cultural materialmente importante para a história do Brasil e até mesmo como
patrimônio mundial, no âmbito dos marcos legais da UNESCO3.
A importância de documentar oral e visualmente os personagens e os lugares de
memória do Horto e transformar a localidade em Museu se dá por duas razões, ambas
urgentes. A primeira é que os idosos da região em breve deixarão caladas as suas memórias se
as suas histórias não forem ouvidas e registradas. Com isso saberes tradicionais e memórias
ancestrais poderiam não vir a serem conhecidas. O mesmo se pode afirmar com relação aos
lugares de memória. Um importante monumento histórico situado no Horto, o Solar da
Imperatriz, construído em 1750 para ser sede do Engenho Nossa Senhora da Conceição da
Lagoa, foi recentemente reformado pelo Instituto Jardim Botânico que, com o aval do
IPHAN, transformou em cafeteria o que antes era um porão repleto de evidências históricas,
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O patrimônio material protegido pelo IPHAN, com base em legislações específicas, é composto por um conjunto de bens
culturais classificados segundo sua natureza nos quatro Livros do Tombo: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico;
belas artes; e das artes aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis como os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e
paisagísticos e bens individuais; e móveis como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos,
arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.
Os bens culturais materiais tombados podem ser acessados no Arquivo Noronha Santos, do Iphan, que é o setor responsável
pela abertura, guarda e acesso aos processos de tombamento, de entorno e de saída de obras de arte do país. O Arquivo
também emite certidões para efeito de prova e inscreve os bens nos Livros do Tombo.
A UNESCO define Patrimônio Cultural Imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas e também
os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados e as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os
indivíduos que se reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.
O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em
função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e
continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
Fonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN
Apud. www.palmares.gov.br
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4. Ancestralidade afrodescendente
feito parte das rotas de fuga quilombolas da cidade do Rio de Janeiro à época dos movimentos
abolicionistas, como claramente demonstrou o renomado historiador Eduardo Silva (2003).
com nome de flor (característica abolicionista), de cujo topo se tem uma visão panorâmica da
cidade e de suas matas, os quilombolas passavam e se hospedavam rumo ao Quilombo das
Camélias (na região hoje conhecida como Alto Leblon) grande reduto da resistência negra
oitocentista, QG e símbolo do movimento abolicionista, então com muitos adeptos, circulação
e divulgação.
Quanto à senzala do Solar da Imperatriz, sabe-se que após sucessivos proprietários, já
no final do sec. XVIII, tinha o referido Engenho cerca de 59 chácaras no seu interior
arrendadas a terceiros. Provavelmente deriva daí o casario erguido no entorno do Solar.
Esta outra senzala tinha características de uma Casa senhorial típica do século XIX,
quando as construções imperiais das Fazendas de Café (sobretudo no Vale do Paraíba)
incluíam a senzala no interior da Casa Grande, normalmente em seu porão. Sabe-se, ainda que
o Solar passou por obras grandes e estruturais em 1875, quando o governo Imperial
desapropriou a Fezenda dos Macacos (o último nome que delimitava a área do Solar da
Imperatriz em alusão ao Rio dos Macacos) para ali instalar o Asilo Agrícola, sob a gestão do
Jardim Botânico.
Portanto, nos perguntamos: será que a obra sofrida no Solar em 1875 fez do porão da
casa o reduto dos escravos (uma senzala) estando seus proprietários antenados ao novo
modelo arquitetônico de Casa Grande com senzala imbutida no subsolo? Ou será que a
senzala dos Engenhos que tiveram lugar na região do Horto sempre foi ali, se configurando
numa espécie de embrião arquitetônico vanguardista das construções do porvir e a ruína do
Morro das Margaridas ao invés de ter sido uma senzala poderia ter sido, isto sim, um tipo de
quilombo, identificando ancestralmente a história do Horto com a resistência da cultura negra
na cidade?
Sejam quais forem as respostas que encontraremos adiante, temos como hipóteses: 1)
senzala ou quilombo, a construção do Morro das margaridas abrigava a resistência escrava no
Horto porque continha as características arquitetônicas e culturais de terreirão, o que fazia do
lugar um reduto africano na cidade; 2) a população pobre do Horto tem a resistência cravada
no coração sua identidade, historicamente e ancestralmente.
Por fim, temos uma certeza: o Museu do Horto tem a missão de reafirmar essa
identidade negra e guerreira da região e está trabalhando junto com os moradores a história e
a cultura da resistência afrobrasileira em ações que envolvem a capoeira, a cultura ervateira
ancestral, as expressões religiosas, o samba, a feijoada... E doa a quem doer, incomode a
quem incomodar, não vamos dar o braço a torcer e nos manteremos firmes na luta, como
sempre esteve a combativa população do Horto em séculos de resistência e afirmação cultural.
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5. Referências
Jardim Botânico do Rio de Janeiro, do seu início aos nossos dias. Rio de Janeiro, Rodriguésia,
1980; Histórico do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1983; “O Solar da
Imperatriz” in: Boletim do Museu Histórico. nº3.
NASCIMENTO, Alexandre. Consulta realizada por email pela autora desse texto ao estudioso
de kilombos. dados coletados em fevereiro de 2011.
SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura . São Paulo: Cia das
Letras, 2003.