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Memória social e arqueologia cultural: apontamentos sobre a história e a ancestralidade

da comunidade do Horto Florestal do Rio de Janeiro.

LAURA OLIVIERI CARNEIRO DE SOUZA1


Janeiro de 2012

A memória age ‘tecendo’ fios entre os seres, os lugares, os acontecimentos (tornando


alguns mais densos em relação a outros), mais do que recuperando-os, resgatando-os
ou descrevendo-os como ‘realmente’ aconteceram. Atualizando os passados —
reencontrando o vivido ‘ao mesmo tempo no passado e no presente’— a memória
recria o real; nesse sentido, é a própria realidade que se forma na (e pela) memória.
(Jacy Alves de Seixas, 2001: 51)

2. Memória como Projeto social

Gilberto Velho em Memória, identidade e projeto (2003) desenvolve a relação


inseparável e interdependente de memória, identidade e projeto, partindo da pressuposta
retroalimentação orgânica e constante do ciclo. Tudo se inicia pela “adesão” a uma causa
social. A partir daí, o “indivíduo-sujeito” elabora seus projetos e atua socialmente. Velho se
apropria declaradamente de Alfred Schutz em sua concepção de projeto “como ‘conduta
organizada para atingir finalidades específicas’” (Schutz citado em Velho, 2003, p.101), que
pode ser realizada individual ou coletivamente porque a noção de “indivíduo-sujeito” abarca
as duas possibilidades e necessariamente se liga aos projetos e à sua memória, pois:
A consciência e valorização de uma individualidade singular, baseada em uma
memória que dá consistência à biografia, é o que possibilita a formulação e a
condução de projetos. Portanto, se a memória permite uma visão retrospectiva
mais ou menos organizada de uma trajetória e biografia, o projeto é a antecipação
no futuro dessas trajetória e biografia, na medida em que busca, através do
estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais
esses poderão ser atingidos. A consistência do projeto depende fundamentalmente,
da memória que fornece os indicadores básicos de um passado que produziu as
circunstâncias do presente, sem a consciência das quais seria impossível ter ou
elaborar projetos (Velho, 2003: 101).

Uma vez conhecidos e compreendidos, passado e presente favorecem o despertar das


identidades individuais e coletivas. O autor continua sua argumentação salientando o caráter
fragmentário da memória e a descontinuidade do passado e chama a atenção para o papel da
identidade na organização desses “pedaços” e do projeto na elaboração consistente da
identidade. A identidade é a coerência de uma biografia (individual ou coletiva); a memória

1
Historiadora, mestre em História social da cultura e doutora em Serviço Social (PUC-Rio). Coordenadora técnica do Museu
do Horto.
2

confere o sentido retrospectivo e o projeto o sentido prospectivo da identidade. Projeto e


Memória associam-se e articulam-se para dar significado à vida e às ações dos sujeitos.
Ao final do texto, Velho diz que o projeto é intersubjetivo, ou seja, requer a existência
do outro: “o projeto é o instrumento básico de negociação da realidade com outros atores,
indivíduos ou coletivos” (p.103) e também: “o projeto é dinâmico e permanentemente
reelaborado, reorganizando a memória do ator, dando novos sentidos e significados,
provocando com isso repercurssões na sua identidade” (p.104, grifos nossos).
A “negociação da realidade” sugere um sentido ético para a memória. A memória
induz condutas na medida em que é projeto de vida, projeto societal. Seu sentido ético diz
respeito tanto ao que se quer construir socialmente quanto ao inaceitável histórico, ou seja, às
situações que não devem se repetir historicamente.
Assim, a memória é um topos que orienta o devir. Memória é utopia, projeto.
Enquanto projeto, a memória confere sentido e estabelece as linhas de continuidade entre os
tempos passado, presente e futuro.
Para nós, historiadores comprometidos com a memória, trata-se de um dever ético
pesquisar e compreender os acontecimentos para além do que afirmam discursos e
documentos oficiais.

Ultimamente a mídia formal, reproduzindo o discurso hegemônico de uma “cidade


partida” vem tentando disseminar o mito de que a comunidade do Horto invadiu o parque
Jardim Botânico, quando isso jamais aconteceu historicamente. Muito pelo contrário:
descobrimos com nossas pesquisas de memória social e arqueologia urbana que foi o Instituto
Jardim Botânico, na sua presente gestão, que se expandiu territorialmente de tal forma que
englobou dentro de seus limites a comunidade do Horto 2.
O histórico conflito entre moradores do Horto Florestal (pelo direito de moradia digna
e histórica) e Instituto Jardim Botânico (pela intenção de expandir seu arboreto e atividades
botânicas) não se configura como “invasão” –como a mídia vem afirmando destorcidamente-
porque as residências em questão existem e ali permanecem há mais de dois séculos, sendo
anteriores ao próprio parque.
A tentativa de subestimar e desmoralizar os moradores do Horto acontece há muitos
anos, mas foi bastante acirrada desde as últimas gestões do Instituto Jardim Botânico e da

2
Pode-se assistir ao trailer do documentário que estamos realizando sobre esse conflito fundiário entre os moradores do
Horto e o Instituto Jardim Botânico, acessando o link:
http://www.museudohorto.org.br/Horto_lugar_de_Memorias_documentario.
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Amajb. Injustamente chamados de invasores, os habitantes do Horto possuem raízes


profundas com o território que ocupam e sua maioria é composta por gente idosa e
trabalhadora, cuja família contribuiu com a construção do bairro e do Parque Jardim Botânico.
Matérias veiculadas pela Rede Globo em agosto e setembro de 2010, tanto no jornal O
Globo, quanto no RJ TV e, mais recentemente, em matéria publicada pela Revista Veja (“Um
ultraje, um escândalo” na edição 2203, ano 44, no 6, de 9 de fevereiro de 2011) reafirmam a
maneira reacionária e distorcida com que o discurso hegemônico se constrói para confundir as
pessoas com relação aos pobres do país. No Brasil, desde os tempos coloniais houve a
tentativa de criminalização da pobreza e a consequente difamação da cultura popular.
Sabemos que isso aconteceu com a capoeira, o candomblé, os quilombos, os cortiços, as
favelas... e esses preconceitos vêm se reproduzindo historicamente. Inclusive no Horto, região
da cidade do Rio de Janeiro em que a luta de classes se manifesta de maneira emblemática.
Este jogo perverso tenta silenciar o passado popular e a ancestralidade afro-
descendente do Horto, mas o Museu do Horto tem como missão justamente desvelar e
iluminar cada vestígio e cicatriz dessa história e reconstruir suas memórias de acordo com a
voz e a ingerência dos moradores do Horto, na afirmação identitária de sua cidadania.

Hoje, a área é ocupada por 589 famílias de baixa renda, formada, em sua maior parte,
por pessoas idosas. A área sobre a qual ergue-se a comunidade pertence à União federal e
encontra-se em processo de regularização fundiária, realizada pela SPU (Secretaria de
Patrimônio da União), juntamente com a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ,
instituições que realizaram um cadastramento sócio-econômico para a regularização fundiária
na comunidade e conseguiu junto à AGU (Advocacia Geral da União) um documento,
garantindo a impossibilidade de despejos nas áreas em processo de regularização. Este fato
honrou duplamente a dignidade cidadã: por um lado pelo direito dos moradores tradicionais
do Horto permanecerem em suas moradias e, por outro lado, por voltarem a acreditar na
democratização e na governabilidade das instituições públicas, após tantos anos de
atravessamentos dos poderes privados em situações de interesse e direito públicos. Assim
caminhamos para o fortalecimento da democracia no país.
A importância de apresentarmos a história da Comunidade do Horto Florestal e de seu
território tradicionalmente ocupado, justifica-se como meio de preservação da cultura local e
dos modos de vida de seus moradores, entendendo-se como patrimônio imaterial excepcional
e singular. Justifica-se, igualmente, como afirmação do constitucional direito de morar e,
portanto, o reconhecimento do direito à posse como condição material fundamental para o
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gozo do direito à memória.

3. O Museu do Horto: um trabalho de arqueologia cultural

A comunidade do Horto possui uma história bastante antiga, seus moradores são
tranquilos e convivem há séculos com a natureza de forma harmônica e orgânica.
Em 1578 a região já era habitada pelos trabalhadores de dois Engenhos de cana ali
instalados e depois por Fazendas de café. Os senhores dos engenhos e cafezais possuiam
escravos e estes constituíram a 1ª composição populacional da localidade. Ainda hoje há
monumentos reveladores desta remota época, como o Solar da Imperatriz (1750), os
aquedutos tipicamente coloniais e algumas construções de cujos vestígios se insinuam ruínas
de Senzalas.
Em 1808 D. João VI desapropriou o Engenho de Nossa Senhora da Conceição da
Lagoa, de propriedade de Rodrigo de Freitas, para a construção de uma fábrica de pólvora.
Alguns meses depois, fundou o Real Horto (que hoje é o Instituto Jardim Botânico). Para tais
empreendimentos, houve uma 2ª onda populacional, pois os trabalhadores da fábrica e do
parque foram convidados a residir nas proximidades do trabalho. Em 1811, foram erguidas
vilas para a instalação dos trabalhadores da fábrica de pólvora e do Jardim Botânico. Assim,
gerações de famílias de funcionários e descendentes de funcionários da antiga fábrica e do
Jardim Botânico construíram uma comunidade nos arredores do parque, com autorização
(formal e informal) das diversas administrações do Jardim Botânico e/ou do Ministério da
Agricultura, instância de poder a que o Horto Florestal estava subordinado na época.
Com o advento da República e seus projetos de industrialização surgiram as fábricas
de tecidos na região, como a famosa América Fabril. Delas decorreram as vilas operárias, um
casario bastante emblemático do início da história operária no país e localmente conhecido
como Chácara do Algodão. Esta foi a 3ª onda de ocupação pelos habitantes do Horto.
Durante anos, os moradores do Horto vêm cuidando desta localidade como extensão
de suas vidas, impedindo, inclusive, a implantação de projetos de grande impacto sócio-
ambiental, como a construção do cemitério Santa Catarina de Siena (de iniciativa do então
governador Carlos Lacerda) e de um conjunto residencial do BNH, de 35 blocos de 6 andares
cada, ambos projetos da década de 1960 para a região.
A apresentação da história da Comunidade constitui ato de reconhecimento – interno e
público – da luta e da resistência centenária dos moradores do Horto. Uma resistência de
caráter cultural, consubstanciada na preservação da memória das rodas de samba, da capoeira
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e dos antigos blocos de carnaval. Uma resistência de caráter político, na afirmação de uma
memória dos trabalhadores, cujas origens remontam à Fábrica de Pólvora, mas também às
Fabricas têxteis Chácara do Algodão, Fábrica Carioca e América Fabril. As vilas operárias do
Horto eram um importante local da resistência comunista e anarquista frente aos diversos
governos ditatoriais pelos quais o Brasil passou.
Além da preservação das relações sociais e dos bens culturais como patrimônio
imaterial, a localidade é rica em monumentos de tempos passados. Os habitantes anciãos
guardam relíquias de outros momentos históricos, algumas delas tão antigas quanto foram os
primórdios da primeira ocupação oficial (1808) da localidade. Há, ainda, vestígios de que a
região do Horto pode ter sido ocupada ainda mais remotamente, podendo ter abrigado
Quilombos em suas densas matas oitocentistas. Uma resistência histórica, portanto em cujos
rastros se inserem lugares de memória (Pierre Nora) e monumentos-documentos (Jacques Le
Goff) da pesquisa histórica. Por isso, o Horto deve também ser reconhecido como patrimônio
histórico e cultural materialmente importante para a história do Brasil e até mesmo como
patrimônio mundial, no âmbito dos marcos legais da UNESCO3.
A importância de documentar oral e visualmente os personagens e os lugares de
memória do Horto e transformar a localidade em Museu se dá por duas razões, ambas
urgentes. A primeira é que os idosos da região em breve deixarão caladas as suas memórias se
as suas histórias não forem ouvidas e registradas. Com isso saberes tradicionais e memórias
ancestrais poderiam não vir a serem conhecidas. O mesmo se pode afirmar com relação aos
lugares de memória. Um importante monumento histórico situado no Horto, o Solar da
Imperatriz, construído em 1750 para ser sede do Engenho Nossa Senhora da Conceição da
Lagoa, foi recentemente reformado pelo Instituto Jardim Botânico que, com o aval do
IPHAN, transformou em cafeteria o que antes era um porão repleto de evidências históricas,

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O patrimônio material protegido pelo IPHAN, com base em legislações específicas, é composto por um conjunto de bens
culturais classificados segundo sua natureza nos quatro Livros do Tombo: arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico;
belas artes; e das artes aplicadas. Eles estão divididos em bens imóveis como os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e
paisagísticos e bens individuais; e móveis como coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos,
arquivísticos, videográficos, fotográficos e cinematográficos.
Os bens culturais materiais tombados podem ser acessados no Arquivo Noronha Santos, do Iphan, que é o setor responsável
pela abertura, guarda e acesso aos processos de tombamento, de entorno e de saída de obras de arte do país. O Arquivo
também emite certidões para efeito de prova e inscreve os bens nos Livros do Tombo.
A UNESCO define Patrimônio Cultural Imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas e também
os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados e as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os
indivíduos que se reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.
O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em
função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e
continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
Fonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN
Apud. www.palmares.gov.br
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documentos-monumentos da história da escravidão na região. Ainda o Jardim Botânico,


novamente com a aprovação do IPHAN, pintou de branco o Aqueduto do Caxinguelê (ou
Aqueduto da Levada), ocultando os rastros de antiguidade, descarecterizando a historicidade
do mesmo. Pintaram de branco aquele monumento colonial, documento da mão-de-obra
escrava e portanto da construção negra da história da região e da participação afro-
descendente na primeira composição populacional do bairro.

4. Ancestralidade afrodescendente

Na região, que pertencia à Freguesia da Gávea, ergueu-se, em 1575, o Engenho D´el


Rey que depois passou a se chamar Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, cujos
proprietários de terra possuíam escravos que residiam na localidade, em senzalas. Parte da
população do Horto é descendente dos africanos que ali trabalharam e firmaram suas raízes
culturais e simbólicas. Os descendentes de africanos moravam em sua maioria no Grotão, no
Solar e cercanias, e no Morro das Margaridas, todas áreas do Horto.
A outra parte da população do Horto descende diretamente de escravos
(primeiramente, já que o parque data de 1811) e funcionários do Jardim Botânico, cuja
maioria teve permissão para construir suas moradias em terreno da União Federal e arcou com
os custos e o trabalho da construção. Essa parcela da população do Horto que escolheu o lugar
de suas moradias optou pela região do Caxinguelê, atualmente o pivô do conflito fundiário
com o IJB. Por ser a zona mais próxima ao parque, o Caxinguelê foi escolhido pelos
moradores para construirem suas residências e exatamente por ser área fronteiriça, o conflito
com o parque acontece principalmente ali.
Cabe esclarecer que, ao contrário do que afirma inescrupulosamente a citada matéria
da revista Veja, quilombos não se inventam, mas são historicamente construídos e
identificados segundo uma realidade histórica específica, a qual remonta ao tempo da
escravidão brasileira. Algumas populações quilombolas mantiveram suas tradições e suas
experiências compartilhadas de forma tão viva e resistente que ainda hoje vivem de maneira
semelhante ou idêntica à época da escravidão, preservando costumes e valores ancestrais. Por
isso são reconhecidas pelo Governo Federal como patrimônio brasileiro, merecidamente.
Por falta de provas (mas não de evidências) não podemos afirmar que no Horto tenha
havido um quilombo strito sensu -chamado pela literatura de quilombo tradicional ou
quilombo-rompimento (Silva, 2003). No entanto, há evidências cabais de que o Horto tenha
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feito parte das rotas de fuga quilombolas da cidade do Rio de Janeiro à época dos movimentos
abolicionistas, como claramente demonstrou o renomado historiador Eduardo Silva (2003).

Apud SILVA, 2003, p. 74

Além disso, há evidências concretas e imaginárias (que dizem respeito ao imaginário


coletivo de sua população) de que existiram duas senzalas na região do Horto, uma das quais
preservada pelos moradores do Morro das Margaridas e atualmente incorporada ao acervo do
Museu do Horto, com o reconhecimento e apoio do IBRAM – Instituto Brasileiro de Museus.
A outra, no porão do Solar da Imperatriz, Casa Grande do Engenho D´El Rey, depois
chamado Engenho Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, continha evidências da escravidão
(correntes e ferros em que os negros eram aprisionados) até pouco tempo atrás, quando uma
obra do IJB para ali construir sua cafeteria descarecterizou esse rico acervo. Infelizmente hoje
não podemos mais (re)conhecer ali uma senzala, a não ser por meio da memória dos
habitantes mais antigos da região que contam histórias das correntes e dos gemidos que ali
tinham lugar.
A senzala do Morro das Margaridas, hoje em ruína mas presente no sítio histórico do
Horto, pode ter abrigado os primeiros escravos que chegaram aos engenho D´el Rey e Nossa
Senhora da Conceição da Lagoa, a partir de 1575. Representa um tipo de construção
característico das primeiras casas de escravos: um barracão pobre e rústico integrado a um
terreiro, onde se celebravam os ritos e se cultuavam as tradições africanas e (depois)
afrobrasileiras. Mais ou menos nos mesmos parâmetros arquitetônicos e culturais se
construíam também os quilombos.
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Quais as diferenças, então, entre uma senzala e um quilombo dessa época,


denominado por Eduardo Silva de “quilombo-rompimento”?
Grosso modo, podemos dizer que as principais diferenças se davam pelo lugar em que
os quilombos se erguiam inicialmente, em matas isoladas, e pelo espírito de resistência e luta
que mantinham, pois os quilombolas dessa época precisavam radicalizar: fugiam do cativeiro
e se afastavam fisica e moralmente da sociedade escravista.
No modelo tradicional de resistência à escravidão, o quilombo-rompimento, a
tendência dominante era a política do esconderijo e do segredo de guerra. Por isso
esforçavam-se os quilombolas exatamente para proteger seu dia-a-dia, sua
organização interna e suas lideranças de todo tipo de inimigo, curioso ou forasteiro,
inclusive, depois, os historiadores (SILVA, 2003: 11).

Fundavam, assim, um território africano nas margens e a despeito do poder senhorial,


um território repleto de símbolos e práticas ancestrais africanas, cuja territorialidade marcava
também algumas senzalas. Havia algum intercâmbio entre o cativeiro e os quilombos, cujos
heróis da resistência circulavam destemidos com a força do seu axé, manifestado na sua arte
marcial –a Capoeira- e na sua religião –o Candomblé.
"Kilombo, segundo Kabenguele Munanga, é uma palavra de origem umbundo, que
designa uma instituição política e militar corriqueira em várias regiões de África
(MUNANGA, 1995/1996 apud. NASCIMENTO, 2011). E diz ainda o sociólogo estudioso de
kilombos:

"Como procurar resquícios de construções materiais oriundos das terras de pretos e


ou/ kilombolas se os negros foragidos construíam seus abrigos com troncos de
árvores, folhas de pindoba, de coqueiro, hastes de bambu e com amarras de cipó?!
São materiais biodegradáveis... A comprovação da existência de remanescência
negra nos territórios se dá pelo reconhecimento de árvores e plantas
representativas para as etnias ali resguardadas e signos e símbolos desconhecidos
ou métodos não aceitos pelas cátedras acadêmicas." (NASCIMENTO, 2011).

No Horto há uma enormidade de costumes que remontam aos citados signos e


símbolos afrodescendentes.
No século XIX o movimento abolicionista crescera de tal forma e abrangera tanta
gente da sociedade que os quilombos já não precisavam se esconder em demasia. Nem assim
desejavam pois fazia parte da estratégia abolicionista evidenciar o movimento de resistência.
Eram novos tempos e um novo modelo de quilombo se configurava: o “quilombo
abolicionista” (SILVA, 2003, p. 11).
Foi nesse contexto abolicionista que o Horto, nomeadamente o Morro das Margaridas,
fez parte da rota quilombola de fuga e resistência. Ali no coração do Horto, em cima do morro
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com nome de flor (característica abolicionista), de cujo topo se tem uma visão panorâmica da
cidade e de suas matas, os quilombolas passavam e se hospedavam rumo ao Quilombo das
Camélias (na região hoje conhecida como Alto Leblon) grande reduto da resistência negra
oitocentista, QG e símbolo do movimento abolicionista, então com muitos adeptos, circulação
e divulgação.
Quanto à senzala do Solar da Imperatriz, sabe-se que após sucessivos proprietários, já
no final do sec. XVIII, tinha o referido Engenho cerca de 59 chácaras no seu interior
arrendadas a terceiros. Provavelmente deriva daí o casario erguido no entorno do Solar.
Esta outra senzala tinha características de uma Casa senhorial típica do século XIX,
quando as construções imperiais das Fazendas de Café (sobretudo no Vale do Paraíba)
incluíam a senzala no interior da Casa Grande, normalmente em seu porão. Sabe-se, ainda que
o Solar passou por obras grandes e estruturais em 1875, quando o governo Imperial
desapropriou a Fezenda dos Macacos (o último nome que delimitava a área do Solar da
Imperatriz em alusão ao Rio dos Macacos) para ali instalar o Asilo Agrícola, sob a gestão do
Jardim Botânico.
Portanto, nos perguntamos: será que a obra sofrida no Solar em 1875 fez do porão da
casa o reduto dos escravos (uma senzala) estando seus proprietários antenados ao novo
modelo arquitetônico de Casa Grande com senzala imbutida no subsolo? Ou será que a
senzala dos Engenhos que tiveram lugar na região do Horto sempre foi ali, se configurando
numa espécie de embrião arquitetônico vanguardista das construções do porvir e a ruína do
Morro das Margaridas ao invés de ter sido uma senzala poderia ter sido, isto sim, um tipo de
quilombo, identificando ancestralmente a história do Horto com a resistência da cultura negra
na cidade?
Sejam quais forem as respostas que encontraremos adiante, temos como hipóteses: 1)
senzala ou quilombo, a construção do Morro das margaridas abrigava a resistência escrava no
Horto porque continha as características arquitetônicas e culturais de terreirão, o que fazia do
lugar um reduto africano na cidade; 2) a população pobre do Horto tem a resistência cravada
no coração sua identidade, historicamente e ancestralmente.
Por fim, temos uma certeza: o Museu do Horto tem a missão de reafirmar essa
identidade negra e guerreira da região e está trabalhando junto com os moradores a história e
a cultura da resistência afrobrasileira em ações que envolvem a capoeira, a cultura ervateira
ancestral, as expressões religiosas, o samba, a feijoada... E doa a quem doer, incomode a
quem incomodar, não vamos dar o braço a torcer e nos manteremos firmes na luta, como
sempre esteve a combativa população do Horto em séculos de resistência e afirmação cultural.
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Diz ainda Chalhoub sobre a questão da memória:


... é preciso mencionar um outro motivo para a truculência contra os cortiços neste
contexto: tais habitações foram um importante cenário da luta dos negros da Corte
contra a escravidão nas últimas decadas do século XIX. Em outras palavras, a
decisão política de expulsar as classes populares das áreas centrais da cidade podia
estar associada a uma tentativa de desarticulação da memória recente dos movimentos
sociais urbanos (Chalhoub, 2006: 25-26).

5. Referências

BIZZO, Maria Nilda et al. Cacos de memórias. Experiências e desejos na (re)construção do


lugar: O Horto Florestal do Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Arquimedes, 2005.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte . São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Jardim Botânico do Rio de Janeiro, do seu início aos nossos dias. Rio de Janeiro, Rodriguésia,
1980; Histórico do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1983; “O Solar da
Imperatriz” in: Boletim do Museu Histórico. nº3.

NASCIMENTO, Alexandre. Consulta realizada por email pela autora desse texto ao estudioso
de kilombos. dados coletados em fevereiro de 2011.

SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura . São Paulo: Cia das
Letras, 2003.

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