Você está na página 1de 12

THE COLOR PURPLE: A ESCRITA DE SI COMO AGENTE DE

RESSIGNIFICAÇÃO DO SUJEITO

RESUMO

Esta análise literária tem como objetivo apontar reflexões literário-culturais a respeito da
reconfiguração identitária da protagonista negra dentro da obra The Color Purple de Alice
Walker, com o intuito de entender como as relações socioculturais com as figuras
femininas dentro da sua comunidade interferem no processo de ressignificação identitária
de Celie. Propomo-nos também refletir como a escrita epistolar influencia no processo da
(re)construção identitária. Para isso, serão analisadas cartas presentes no romance com o
intuito de compreender os processos sociais que contribuem para a (re) construção da
identidade da mulher negra. Portanto, este estudo usará conceitos dos Estudos Culturais
e dos Estudos de Gênero, com foco em conceitos sobre identidade e feminismo, como
orientação para as reflexões aqui levantadas.
Palavras-Chave: Análise Literária; Estudos Culturais; Estudos de Gênero; Identidade.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O principal objetivo deste artigo é analisar os processos de interação social que


levam a (re) construção identitária da protagonista de A cor púrpura, fazendo uso das
cartas que narram a trajetória desta transformação. A escolha da obra favorece discussões
sobre a identidade feminina negra, pois a abordagem literária de Walker debate os
conflitos identitários-sociais da mulher negra na sociedade.
Em ‘A cor púrpura’, acompanhamos a trajetória de Celie, mulher afro-americana
que vive na região rural de Georgia, sul dos Estados Unidos, no início do século XX.
Nesse cenário, a protagonista é silenciada e obrigada a se expressar através de cartas.
Segundo Foucault (2006, p. 149-159), “[a carta] constitui (...) uma certa maneira de cada
um se manifestar a si próprio e aos outros”. Assim, escrever é “mostrar-se, dar-se a ver",
deste modo, a escrita epistolar consolida-se como agente de significação do “eu”. Esse
“eu” que não se prende ao imutável, pois a formação da identidade liga-se a
intercorrência.
Por tratar-se de um romance registrado em cartas, acompanhamos intimamente os
conflitos internos e externos da protagonista, podendo assim observar a (re) construção
identitária da mesma. A ressignificação identitária do sujeito é validada pelo pensamento
dos teóricos culturalistas. Assim como afirma Fônseca (2001) “Hall (2006); Bauman
(2005); Bhabha (2007) compartilham a ideia que as identidades são móveis, ambivalentes
e estão sujeitas à relação do indivíduo com o mundo exterior”. Ou seja, a formação
identitária está intrinsicamente ligada aos múltiplos sistemas de interação social e ao local
que o indivíduo ocupa nesse sistema.
Dado o exposto, analisamos esta obra para compreender os impactos das relações
socioculturais na formação identitária e social de mulheres negras, tendo como objeto de
estudo a protagonista do romance, Celie.

1. O ROMANCE EPISTOLAR: A ESCRITA DE SI POR MEIO DE CARTAS

Romances Epistolares são histórias escritas em forma de documentos como cartas,


diários, jornais e mensagens eletrônicas, como e-mail. A palavra “epistolar” vem do latim
epistoláris e significa “carta, epístola”. Este romance utiliza a técnica “close-up” que
induz o leitor a se cativar pelos escritores/narradores pois, através das cartas, o leitor é
submetido as memórias e sentimentos dos protagonistas. O que é defendido por Foucault
no livro “a escrita de si”, que afirma “o trabalho que a carta opera sobre o destinatário,
(...), implica uma “introspecção” entendida como “uma abertura de si que se dá ao outro”.
Há uma crença de que nas epístolas românticas de Horácio dirigidas a Lucius Calpurnius
Piso (10 a. C.) e em Herodes de Ovídio (20 A. c. – 8 d. C.) encontra-se as primeiras
sementes do romance epistolar. Contudo, a partir de obras como Cárcel de Amor (a. 1485)
de Diego de San Pedro, Lettres de respect, d'obligation et d'amour (1669) de Edmé
Boursault e Lettres portugaises (1669) de Gabriel-Joseph de La Vergne é que se encontra
a raiz do gênero. Essas obras foram constituídas com quantidades excessivas de cartas
que dominam a narrativa, iniciando o movimento de romances escritos através delas. O
romance de Walker é desenvolvido, em sua totalidade, por meio de cartas endereçadas
muitas vezes a “Deus” e outras à sua irmã. Vivendo em um contexto de total submissão,
Celie escreve cartas que auxiliam no processo de autoconhecimento e percepção crítica
de si e do contexto social em sua volta. Ao escrever, Celie se torna dona da própria
narrativa, rompendo as opressões causadas por sua sua etnia, raça e gênero.

Mesmo sendo privada de retornar à escola para continuar seus estudos, a


protagonista recorre às epístolas, o que gera o questionamento sobre os motivos que
levam essa mulher, criada em um ambiente não-letrado, a fazer isto. Assim como
questiona Conceição Evaristo, autora nacional de renome, “O que levaria determinadas
mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quando muito,
semialfabetizados, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da
escrita?” (EVARISTO, 2007) Nas palavras de Evaristo:

Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita,


proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo. E, em se
tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente
transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura
das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. (EVARISTO, 2007)

O ato da escrita é uma ferramenta de poder que possibilita a autonomia do sujeito.


Escrever não é só contar uma história, é também um ato de rebeldia. Ao estar
condicionada a um ambiente de submissão, estando na base da hierarquia social, ser dona
da própria história é afirmar que eu, como sujeito, existo e me posiciono. Se posicionar
nesta hierarquia é ir contra os paradigmas impostos ao sujeito dentro deste sistema.
Escrever sobre sua jornada é afirmar que, mesmo sendo ignorada pela elite cultural, a
mulher negra é capaz de se rebelar e adquirir o poder de contar a sua história para o outro.
Assim, ao transcrever para o papel os seus pensamentos, a escritora garante um
protagonismo dentro deste sistema e sua escrita serve de ponte de conexão com o outro.
Este ‘outro’ que é fundamental para a construção da narrativa, já que escrevemos não
somente para o eu, mas também, para o outro. Como afirma Butler (2015, p. 106):

(...) contar a história de si mesmo já é agir, pois contar é um tipo de ação,


executada com um destinatário, geral ou específico, com uma característica
implícita. É uma ação voltada para o outro, bem como uma ação que exige o
outro, na qual um outro se pressupõe.

Em suas cartas, a protagonista busca conversar com ‘Deus’, pois este é o único
com quem pode compartilhar sua história. As conversas direcionadas a ele, ajudam Celie
a continuar sua jornada, pois ao se expressar com o outro através da escrita, a protagonista
vê-se em um ambiente livre de opressões, podendo ter autonomia para compartilhar suas
opiniões com o outro. As cartas de Celie refletem seu ponto de vista sobre o mundo ao
seu redor, influenciando o leitor – aqui o ‘outro’ – a entender seus posicionamentos e
atitudes. Ao lermos as cartas, nos tornamos cúmplices de Celie, acompanhando sua
trajetória e desenvolvimento, assim, Celie se torna um exemplo a ser seguido ou
lembrando. A personagem não só escreve para expressar-se, mas também, demonstra,
através das cartas, que existe dentro da hierarquia patriarcal e, mesmo sendo silenciada,
encontra uma forma de mostrar-se ao outro.
2. AS REMANESCÊNCIAS DA ESCRAVIDÃO NA TRAJETÓRIA DA
PERSONAGEM SOFIA

A personagem Sofia é uma mulher tida como excêntrica pela protagonista da obra.
Ela não tem medo de se impor e não se submete aos desejos dos homens que a rodeiam.
Quando ela se casa com o filho mais velho de Albert, Harpo, Celie passa a conviver com
uma figura feminina que é o completo oposto de si. Essa mulher não guarda suas angústias
internamente e não teme lutar quando é contrariada, por este motivo, no decorrer da obra,
Sofia é presa. Enquanto levava os cinco filhos para cidade, ela e seus filhos são abordados
pela mulher do prefeito que se impressiona com a higiene dos pequenos, propondo que
Sofia se torne sua criada “Tantas crianças, (...)E com uns dentes tão brancos(...)Todas
estas crianças estão muito limpas. Gostavas de trabalhar para mim, de ser minha criada?”
(WALKER, 1986, p. 177). A mulher branca, em uma posição hierárquica elevada por sua
cor e classe social, observa essas crianças como objetos de um circo exótico e, como em
uma vitrine, vê também o potencial do trabalho doméstico que Sofia pode ter. Assim,
imaginando fazer um ato de benevolência, a mulher branca decide convidar Sofia para
ser sua empregada, o que é recusado pela mesma. A resposta negativa sendo proferida
por uma mulher negra é tão ofensiva que gera uma comoção da parte do prefeito e sua
mulher, gerando a revolta de Sofia que é esbofeteada pelo marido da outra. Por ser
temperamental, ela rebate a agressão com um soco e por isso é presa. “- A Sofia está
presa. (...) - Por que está ela presa? - Pergunta. - Por ser malcriada para a mulher do
presidente da Câmara.” (WALKER, 1986, p. 176). Antes de ser presa, a personagem é
espancada pelos cidadãos brancos que assistiam a cena e após ser levada para a prisão ela
é forçada a trabalhar na lavanderia, local onde quase morre. Por fim, em uma tentativa de
salvar-se, ela aceita abrigo na casa do prefeito e após anos de prisão, ela se torna a criada
da mulher do prefeito.

Foi a Sofia que viste a trabalhar como criada do presidente da Câmara. [...] Os
polícias prenderam-na por ela ter dito uma data de coisas feias à mulher do
presidente e ter batido no presidente. Primeiro esteve na prisão a trabalhar na
lavandaria e quase a morrer. Depois a gente conseguiu metê-la em casa do
presidente. Tinha que dormir num cubículo, no sótão, mas era melhor que na
prisão. Moscas, talvez, mas não ratos. (WALKER, 1986, p.385)

Mesmo vivendo no período pós-abolição, a trajetória de Sofia se equipara a um


sofrimento análogo a escravidão. Ao contrariar a hierarquia branca, ela é presa e
submetida a tortura física e psicológica, tendo como única saída o trabalho braçal forçado
para continuar sobrevivendo. Conforme afirma Davis (2018, p. 104) a população negra
era forçada a representar os mesmos papéis que lhes eram atribuídos durante a escravidão.
Homens e mulheres eram vítimas de prisões por motivos banais, para que fossem cedidos
como mão de obra carcerária. As remanências da escravidão perpetuam até os dias atuais,
onde a trajetória de Sofia, mulher negra que ao se rebelar contra o sistema é punida, é
revisita ou recontada diversas vezes. Sofia se tornou uma criada, tendo que servir a família
branca para o resto da vida. Assim como muitas mulheres e personagens da nossa cultura
que também são pressionadas a servir famílias ricas e brancas para conseguir sobreviver.
Como relata Evaristo ao relembrar sua infância:

As mãos lavadeiras, antes tão firmes no esfrega-torce e no passa-dobra das


roupas, ali diante do olhar conferente das patroas, naquele momento se
tornavam trémulas, com receio de terem perdido ou trocado alguma peça.
Mãos que obedeciam a uma voz-conferente. Uma mulher pedia, a outra
entregava. E quando, eu menina testemunhava as toalhinhas antes embebidas
de sangue, e depois, já no ato da entrega, livres de qualquer odor ou nódoa,
mais a minha incompreensão diante das mulheres brancas e ricas crescia.
(EVARISTO, 2007)

Para Evaristo, a sua realidade se baseava em ver mulheres brancas assumindo o


papel de patroas das mulheres negras, que eram reduzidas ao papel de criadas, assim como
Sofia. O estigma de criada foi cada vez mais associado a mulher negra ao mesmo tempo
que a mulher branca buscava se afastar dos serviços domésticos como uma demonstração
do poder hierárquico que obtinham por serem brancas. Davis (2018, p. 106) discorre que
enquanto as mulheres negras trabalhavam como cozinheiras, babás, camareiras e
domésticas de todo tipo, as mulheres brancas do Sul rejeitavam unanimemente trabalhos
dessa natureza. Dessa forma, enquanto mulheres brancas se desassociavam do trabalho
vinculado aos cuidados, este estigma foi recaindo nas mulheres negras que desde da
escravidão são forçadas a ocupar espaços de trabalho braçal por total privação de áreas
comumente acessados por pessoas brancas. Para elas, a sociedade impõe o estigma do
trabalho doméstico e como um ciclo, as mulheres negras continuam a serem associadas a
criadas.

3. PATRIARCADO E OPRESSÃO

3.1 A figura masculina como símbolo da opressão

The Color Purple narra a trajetória de Celie, menina negra de quatorze anos que
vive com sua mãe, pai – ou quem acreditava ser seu pai – e seus irmãos. Nas primeiras
cartas da história, descobrimos que a mãe de Celie está muito debilitada e todo trabalho
doméstico vira cargo da protagonista. Além do serviço doméstico, ela é obrigada a manter
relações sexuais forçadas com o pai, pois este atribui o cargo que seria da sua mulher
debilitada a ela. Os frequentes abusos geram duas crianças, que são retirados das mãos de
Celie assim que nascem. Para mascarar a violência cometida no corpo da garota, o
padrasto a impossibilita de frequentar a escola, alegando que a extrema ingenuidade da
menina a impossibilitaria de continuar os estudos: “A primeira vez que fiquei prenha o
meu pai fez-me sair da escola. Nunca se importou que eu me ralasse. A Nettie ficou ali à
porta, sem largar a minha mão. Eu estava toda arranjada para o primeiro dia de aulas”
(WALKER, 1986, p. 8).
Nesse ambiente opressor, Celie torna-se um indivíduo submisso, recorrendo ao
silêncio como uma forma de sobrevivência. Essa submissão é desenvolvida a partir de
um longo período de humilhação, privação de liberdade e violência sexual e psicológica,
que interligados aos paradigmas das opressões patriarcais e raciais, auxiliam para a
manutenção da identidade submissa da protagonista que, ao aprender a não se expressar,
cala-se, aceitando as regras e deveres impostos a ela mascarados como ‘dever da mulher’.
Assim, a figura de opressor-submisso é propagada na sua relação com o seu futuro
marido, que se casa com ela por estar procurando uma nova mulher – pode-se ler como
um novo produto – para cuidar de sua casa e filhos. Este homem vai até a casa de Celie
buscando casar-se com sua irmã mais nova, Nettie, mas ao não obter sucesso contenta-se
com a carne mais feia, porém mais trabalhadora. Em outras palavras, Celie é vendida
como uma carne de segunda mão.

Não penso dar a Nettie a si, - disse ele falando muito devagar. - É muito nova
e não sabe nada da vida. Além disso, quero que estude. Tem de ser professora.
Mas pode levar a Celie. Assim como assim, é a mais velha. Tem de ser a
primeira a casar. Já não está virgem, espero que saiba isso. Já a mancharam.
Duas vezes. [...] - É feia, - dizia ele, - mas sabe trabalhar. (WALKER, 1986, p.
22)

A protagonista vai morar em outra residência deixando o ambiente opressor em


que vivia para morar com o marido, contudo, o paradigma de opressor-submisso continua.
A figura opressora, antes ocupada por seu padrasto, é redirecionada para outro homem –
aqui representado pelo marido – e, junto a nova realidade, Celie continua sendo obrigada
a prestar serviços domésticos e ter relações sexuais forçadas com a figura masculina que
detém o poder dentro de sua realidade. Essa figura, além de submeter a protagonista a um
trabalho semiescravo, também a impede de ter conexões com sua própria irmã, já que ele
esconde as cartas que Nettie – a irmã – envia para Celie. Assim, Celie é submetida as
opressões sociais geradas pelos conflitos de raça e gênero, mas também, é obrigada a se
submeter as regras das figuras opressoras que têm alguma vinculo de relacionamento com
ela, pois estes enxergam a protagonista como um objeto que irá lhes auxiliar na
manutenção da casa, a saciar a necessidade carnal e deve ser submetida as regras que eles
impõem, como uma servente, ou escrava.

3.2 Agente-vítima do patriarcado

Como muitas mulheres que se encontram em uma situação de submissão, Celie é


mais uma das vítimas do patriarcado. Como vítima, ela acostuma-se com este sistema,
enxergando a submissão, a privação de liberdade e a punição à insubordinação como
fórmulas centrais para moldar o comportamento da mulher. Ao enxergar estes problemas
como fatores naturais na relação homem-mulher, Celie, assim como muitas outras vítimas
do patriarcado, se torna uma agente ativa desta problemática. Quando a protagonista
encontra uma mulher que foge do padrão submisso estabelecido, ela questiona o
comportamento alheio. Ao conhecer Sofia, mulher do filho mais velho de Albert, Harpo,
Celie não entende o porquê sua nora é tão diferente de si. Ela enfrenta o homem com
quem se casou, fala mais alto do que o necessário e sempre tem uma opinião sobre tudo
ao seu redor. Isto gera um grande estranhamento e, mesmo gostando da companhia de
outra figura feminina, Celie não hesita em aconselhar seu genro a usar força bruta para
ensinar Sofia como se comportar como uma esposa.

Eu gosto da Sofia, mas ela não faz como eu. Se está a falar quando o Harpo e
o Sr. entram, continua como se não fosse nada com ela. Se lhe perguntam onde
está qualquer coisa diz que não sabe e continua a falar. Penso muito quando o
Harpo vem ter comigo para saber como fazer que ela obedeça. [...] - Bate-lhe,
digo. (WALKER, 1986, p. 76)

Ao aconselhar Harpo a bater em Sofia, Celie reflete os estigmas patriarcais nas


suas ações. A mulher oprimida muitas vezes não age contra seu opressor por não ter uma
saída. Essas mulheres são vítimas do patriarcado e quando se conformam com a situação,

viram agentes ativos desta problemática. Para Safiotti, “(...) o poder é macho, branco e,
de preferência, heterossexual” (SAFFIOTI, 2015, p. 33). A reflexão instigada pela
filósofa, nos leva a entender que o sistema patriarcal funciona através da hierarquia, onde
o homem branco está no topo, enquanto a mulher negra encontra-se na base dessa
estrutura. Tanto Albert, quanto o padrasto de Celie, sabem que estão acima dela dentro
desse sistema, por isso, a reprimem com agressões. O sistema patriarcal também age sobre
os homens, os impulsionando à violência. Saffioti (2015, p. 35) discorre que o poder
(patriarcal) advém de construções socioculturais que designa, pela ordem patriarcal, o
papel do homem e da mulher na sociedade. Enquanto o homem é ligado à imagem de
perigo, agressividade, força e virilidade, a mulher é estimulada a ser dócil, apaziguadora.
Assim, tanto Celie quanto os homens que a oprimiram durante sua vida, são produtos do
patriarcado, pois eles reverberam em suas ações práticas que advém de um sistema
opressor e violento, tendo a figura mais ligada ao homem branco heterossexual como
opressor e as figuras que se distanciam desse patamar, como oprimidos. Nessa relação de
opressor-oprimido, os personagens agem de acordo com o que foram ensinados, Mr.__,
ou Albert, utiliza das agressões físicas, psicológicas e, principalmente, verbais para
oprimir Celie, demonstrando seu poder perante ela e Celie, sendo a vítima da maioria das
agressões, é submetida ao papel dócil, reprimindo seus posicionamentos para não
conflitar com a figura de poder presente em sua trajetória.

4. A RECONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE CELIE

¹Alcoff defende que a identidade racial ou de gênero de alguém é fundamental a


partir da concepção de interações sociais e familiares desta pessoa. As relações
socioculturais são fundamentais para a formação identitária de um indivíduo, assim, a
concepção de identidade não é algo fixo, ou algo unificado deste do nascimento, sendo
inerente ao ser humano. Nos baseando em Alcoff, podemos afirmar que as relações
sociais – que advém do convívio em grupos sociais como a família, a escola, o círculo
de amizades, a igreja e assim em diante – são necessárias para a construção identitária
de uma pessoa. Essas relações não se prendem ao fixo, e assim, como defendido por
²Hall, a forma como um indivíduo representa a si sofre alterações com o passar do
tempo, estando conectado as movimentações socioculturais que perpassam a trajetória

¹ALCOFF, Linda. Visible Identities:Race, Gender and the Self. Oxford University Press: Oxford, 2005,
p.92.
²HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006, p.31.
de alguém. São essas mudanças que contribuem para a ressignificação identitária de um
sujeito. Como é defendido pelas pesquisadoras Rocha e Araújo, no artigo intitulo ‘A
construção da identidade feminina em a cor púrpura’:

Ao tratar sobre A identidade cultural na pós-modernidade (2006), Stuart Hall


(...) indica a descoberta do inconsciente de Freud que mostra com a psicanálise,
que “a identidade é realmente algo formado, ao longo dos tempos, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento” (ROCHA, ARAÚJO, 2017, p. 06).

No romance, podemos identificar como as relações sociais contribuem para a


ressignificação identitária da protagonista. As esferas sociais que contribuem para esse
desenvolvimento estão ligadas às imagens femininas presentes na trajetória da
personagem, como também, aos signos de independência que a personagem adquire
durante a narrativa.
As relações com as figuras femininas na obra são fundamentais para a
ressignificação identitária da protagonista. Defendendo este posicionamento,
exemplificamos aqui como a relação com Sofia e, principalmente, Shug Avery, é
essencial para a libertação e compreensão do ‘eu’ de Celie. A primeira personagem citada
se contrapõe as tradições sedimentadas pelo patriarcado, pois ela não é presa ao
paradigma de dócil e gentil, pelo contrário, Sofia é uma mulher vista como bruta e
agressiva e não teme se posicionar contra as figuras masculinas da sua comunidade. O
posicionamento de Sofia gera um conflito na protagonista que se torna muito crítica às
ações da nora. Essa crítica é fundamentada no princípio do desconhecido, pois, Celie não
compreende porquê uma mulher se distância do comportamento submisso – entendido
por ela como normal. Sofia é a primeira imagem feminina que diverge do comportamento
estabelecido pelo patriarcado, se tornando um individuo que apresenta uma nova forma
de viver para a protagonista, vivência essa que era desconhecida até então.
Outra relação importante neste processo é a convivência de Celie com Shug
Avery. A primeira vez que a protagonista entrou em contato com Avery foi através de um
retrato e, a partir desse momento, nasceu em Celie a admiração e fascínio pela imagem
daquela mulher. O retrato de Shug se torna o símbolo do desejo da protagonista, tornando
as fantasias geradas por este símbolo um meio de fuga da realidade. Nesta narrativa, o
anseio por encontrar Avery passa a crescer em Celie, sendo o primeiro aspecto de desejo
demonstrado pela personagem.
O primeiro encontro entre elas acontece quando Albert, ou Mr.___, leva Shug
Avery – sua amante – para a residência, mandando Celie cuidar da mulher que estava
doente. Mesmo prestando o papel de empregada e enfermeira, o único sentimento que
Celie sente é o fascínio por finalmente conhecer a única pessoa que realmente deseja,
“Meu Deus: (...) A primeira vez que vi o corpo todo da Shug Avery, comprido e escuro,
com mamilos cor de ameixa, como a boca, pensei que me tinha transformado em homem”.
(WALKER, 1986, p.99)
Nossa protagonista gosta de ter Avery por perto, o que causa um estranhamento
de seus familiares. Quando questionada por seu marido sobre a permanência de Shug
Avery na casa, Celie rapidamente responde que deseja que ela continue ali, tendo uma
atitude contrária a seu comportamento submisso. Ao se posicionar, Celie demonstra uma
evolução de comportamento, pois passa a ter traços que exploram suas vontades e
opiniões. Neste sentido, a submissão, tão característica na personalidade da protagonista,
não se prende aos desmandos do marido, mas sim à sua própria satisfação e desejo.
No decorrer da narrativa, Shug e Celie se tornam amigas e é a partir desta amizade
que a protagonista passa a admirar-se, tendo Avery como mentora, pois é ela quem
incentiva Celie a conhecer o próprio corpo, conhecendo assim o prazer. Tendo ao seu
lado a imagem feminina que tanto idolatrou quando menor, ela se sente livre para explorar
novos nuances de prazer, auto conhecimento e rebelião. A partir de traços de rebelião
incentivada por Shug, Celie descobre que seu marido escondia as cartas que sua irmã
escrevia para ela e isso gera a revolta que a liberta completamente das amarras de
submissão. A protagonista enfrenta o seu opressor, se tornando dona de sua própria
narrativa e escolhas, reafirmando sua existência como sujeito nesse mundo. “Sou pobre,
sou preta, posso ser feia e não sei fazer comida, - diz uma voz para tudo o que tem ouvidos.
- Mas estou aqui.” (WALKER, 1986, 408). “Estou aqui”, ao proclamar sua existência, a
protagonista se desprende do papel de submissão que era condicionada desde pequena,
reafirmando-se como sujeito na comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A protagonista analisada aqui é uma personagem que foi submetida a diversas


agressões desde pequena. Além das agressões físicas, verbais e psicológicas, as forças da
opressão racial e de gênero contribuem para a construção de uma identidade submissa,
ligada às normas do sistema patriarcal. Sem ter como expressar seus desejos, Celie recorre
as epistolas para compartilhar seus pensamentos com Deus.
Durante a narrativa, acompanhamos o desenvolvimento narrativo dessa
personagem que se desprende dos paradigmas do papel da mulher impostos pelo sistema
patriarcal. Essa libertação só é possível através das relações sociais que a protagonista
mantém durante sua jornada.
Com base no que foi exposto, podemos concluir que as relações socias presentes
na jornada da protagonista são fatores fundamentais para a reconstrução identitária da
mesma. Seguindo a linha de reflexão de Alcoff, as relações familiares e sociais presentes
na obra contribuem para a jornada de identificação do próprio “eu” da protagonista. Essa
identificação é essencial para a libertação de Celie que, ao entender que viver não é apenas
sobreviver, se desprende das amarras patriarcais e pode finalmente contemplar os
prazeres da vida, algo que sempre foi lhe privado durante sua existência.

REFERÊNCIAS

ALCOFF, Linda. Visible Identities:Race, Gender and the Self. Oxford University
Press: Oxford, 2005.

BUTLER, Judith. Bodies that matter: On the discursive limits of Sex. London:
Routledge, 2011.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e Subversão da Identidade. São


Paulo: Civilização Brasileira, 2017.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de


nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.).
Representações Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo
Horizonte: Mazza, 2007. p.16-21. Disponível em
http://nossaescrevivencia.blogspot.com/2012/08/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-
dos.html. Acesso em 20/12/2020

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,


2006.
LANSER, Susan. Fictions of Authority: Women writers and narratives voice. New
York: Cornell University Press, 2018.

ROCHA, Maria. Araújo, Roseanne. A construção da identidade feminina em a cor


púrpura. Abralic, Rio Grande do Norte, 1º edição, p. 5578-5589, 2017.

SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado, violência. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular:


Fundação Perseu Abramo, 2015.

WALKER, Alice. A cor púrpura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.

Você também pode gostar