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FACULDADE DE AMPÉRE - FAMPER

JOSIEL DOS SANTOS LIMA

AS CRIANÇAS VÃO À LUTA: PROTAGONISMO INFANTIL E CRÍTICA AO


AUTORITARISMO NA OBRA DE RUTH ROCHA

AMPÉRE - PR
2020
JOSIEL DOS SANTOS LIMA

AS CRIANÇAS VÃO À LUTA: PROTAGONISMO INFANTIL E CRÍTICA AO


AUTORITARISMO NA OBRA DE RUTH ROCHA

Artigo apresentado como requisito parcial para


obtenção do título de especialista no curso de
pós-graduação em Contação de Histórias e
Literatura Infantil Juvenil da Faculdade de
Ampére – FAMPER, Paraná.
Linha de Pesquisa: Literatura Infantil Juvenil

Orientador: Dr. Cleber Fabiano da Silva

AMPÉRE - PR
2020
JOSIEL DOS SANTOS LIMA

AS CRIANÇAS VÃO À LUTA: PROTAGONISMO INFANTIL E CRÍTICA AO


AUTORITARISMO NA OBRA DE RUTH ROCHA

Artigo aprovado como requisito parcial para a obtenção do título de especialista


no curso de pós-graduação em Contação de Histórias e Literatura Infantil Juvenil da
Faculdade de Ampére – FAMPER, tendo obtido a nota _________
(____________________________________).

Ampére, mês e ano.

Prof. Dr. Cleber Fabiano da Silva


AS CRIANÇAS VÃO À LUTA: PROTAGONISMO INFANTIL E CRÍTICA AO
AUTORITARISMO NA OBRA DE RUTH ROCHA

Josiel dos Santos Lima 1


Cléber Fabiano da Silva2

RESUMO: O presente trabalho pretende discutir as obras da autora Ruth Rocha em


uma relação entre literatura e história sob a perspectiva da Estética da Recepção e da
relação entre literatura e sociedade tendo como base os autores Wolfgang Iser e Antônio
Cândido respectivamente. Analisaremos em especial as obras que compõem a tetralogia
dos reis escritas entre 1978 e 1982 sendo elas O reizinho mandão, O que os olhos não
vêem, O rei que não sabia de nada e Sapo-vira-rei-vira-sapo. Também fazemos
referência a Marcelo, marmelo, martelo. Tais obras foram publicadas durante a
Ditadura Militar brasileira e como tantas outras, tinham um tom de contestação ao
sistema de governo vigente e uma pregação da importância da democracia.

Palavras-chave: Criança. Literatura. Democracia.

INTRODUÇÃO

A literatura é uma forma de arte que demonstra a capacidade de escrita de um


autor e pode ser estudada apenas pela sua beleza estética, porém, o efeito estético é
apenas um dos pontos que pretendemos analisar neste trabalho. Queremos mostrar como
importantes obras de Literatura Infantil da autora Ruth Rocha apresentam um discurso
engajado em plena Ditadura Militar (1964-1985), época em que livros adultos eram
censurados.
Durante os anos de repressão, além dos escritores de livros para um público
adulto e críticos da política, os autores de livros infantis também se sensibilizaram com
o momento histórico. Nesse sentido, vemos um movimento artístico literário inserido

1
Doutorando em Teoria Literária pela Uniandrade, Professor de história da rede pública do Paraná e
contador de histórias
2
² Doutor e mestre em Educação. Graduado em Letras. Diretor pedagógico da FATUM Educação.
Professor nos cursos de graduação e pós-graduação nas áreas de Letras e Pedagogia. Ministra cursos,
palestras e consultorias em várias cidades do Brasil. Escritor de livros teóricos sobre crítica da Literatura
Infantil. Ganhador do Prêmio Acervo FNLIJ (2014) na categoria teoria literária. Membro imortal da
Academia Brasileira de Contadores de Histórias. Participou de seminários e congressos internacionais nas
áreas de literatura infantil e contação de histórias em Cuba, Portugal, Itália, Colômbia, Argentina,
Nicarágua, Panamá, Venezuela, Chile, Bolívia, México, Irã e Alemanha.
dentro de uma época em que refratam a sociedade e por isso, podemos nos apoiar na
afirmação de que a literatura “possui tantas ligações com a vida social, que vale a pena
estudar a correspondência e a interação entre ambas” (CANDIDO, 1989, p. 163). O
contexto em que vive o autor influencia na criação de seus escritos já que “

a ligação entre a literatura e a sociedade é percebida de


maneira viva quando tentamos descobrir como as
sugestões e influências do meio se incorporam à estrutura
da obra de modo tão visceral que deixam de ser
propriamente sociais, para se tornarem a substância do ato
criador (Idem, p. 163-164).

Já para a historiadora Sandra Jatahy Pesavento “a Literatura permite o acesso á sintonia


fina ou ao clima da época; o modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si
próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e
sonhos” (2005, p. 82).

1. As crianças vão à luta: protagonismo infantil e crítica ao autoritarismo na obra


de Ruth Rocha

1.1 A literatura em tempos de ditadura

Na época em que nos propomos analisar, através das artes, eram discutidos
problemas sociais brasileiros, propagava-se a ideia de liberdade e experimentação aos
moldes do movimento da contracultura internacional, debatiam-se as propostas de luta
política das esquerdas do país e, ainda, criticava-se e combatia-se a ditadura
(ARAÚJO; SILVA; SANTOS, 2013, p. 35). Mesmo com a repressão podemos
destacar que

Durante todo esse período muitos brasileiros resistiram e


lutaram contra a ditadura de variadas formas. Nos
primeiros anos após o golpe, estudantes, artistas e
intelectuais se manifestaram contra a ditadura. Uma forte
repressão se abatera sobre as lideranças sindicais e
políticas ligadas principalmente aos partidos trabalhista e
comunista que haviam liderado as lutas políticas no pré-
64. Com isso a ação política de estudantes e artistas
ganhou maior destaque. (ARAÚJO; SILVA; SANTOS,
2013, p. 19)
Já Rosa Maria Cuba Riche afirma que

O autoritarismo político, a interferência do Estado nos


diversos níveis sociais gerou insatisfação e desconfiança
nos meios intelectuais. Impedidos de debater livremente os
escritores recorrem à literatura para através de metáforas e
símbolos falar do real (RICHE, 1985, p. 113).

Perante esse cenário, muitas obras foram censuradas como mostra a


pesquisadora Sandra Reimão no seu trabalho Repressão e Resistência: Censura a livros
na Ditadura Militar publicado pela FAPESP no ano de 2011. Dentre as principais obras
e autores atingidos pela censura estão Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca; Zero, de
Inácio de Loyola Brandão; Dez estórias imorais, de Aguinaldo Silva; Em câmara lenta,
de Renato Tapajós; Mister Curitiba, de Dalton Trevisan; O Cobrador, de Rubem
Fonseca e Lúcio Flávio: o passageiro da agonia, de José Louzeiro.
Dentro desse contexto temos uma produção intensa de literatura infantil. Por ter
esse rótulo, ela vem carregada de sentidos culturais e históricos, e que por ser um ato
social que envolve um escritor ou uma escritora e quem lê que no caso é a criança,

Tal fato produz um efeito imediato: o interesse de propor


ao destinatário um modelo de mundo moldado pelas
propostas comportamentais, com as regras morais, com a
visão e conduta de quem escreve. Esse processo,
autoritário e castrador, inibe a emancipação e frustra
qualquer possibilidade estética e criativa (SILVA, 2008, p.
14).

Ao tentar se aproximar de realidade das crianças e tratar com respeito esse público, os
escritores conseguem obter bons resultados estéticos. Monteiro Lobato já havia alertado
sobre isso ao escrever “Ah, que mundos diferentes, o do adulto e o da criança! Por não
compreender isso e considerar a criança ‘um adulto em ponto pequeno’, é que tantos
escritores fracassam na literatura infantil e um Andersen fica eterno”. (LOBATO, 1951,
p.56). Ruth Rocha compreendeu o que escreveu seu antecessor.
É interessante ver que a autora da tetralogia dos reis, de Dois idiotas sentados
cada qual em seu barril, Marcelo, marmelo, martelo entre outros se envolveu com o
processo de conscientização e crítica sem perder de vista o tipo de narratário a que se
dirigia, no caso, crianças. Suas histórias se inserem no contexto ditatorial de forma
engajada ao mostrar por meio de alegorias “generais distintos se tornando cada vez mais
ofensivos, ideologias políticas arbitrárias, valorização da canção, crença em uma nova
ideologia de união social” (MARIANO, 2012, p. 92). Essas histórias podem ser
consideradas subversivas “... porque fazem uso da alegoria, objetivando dialogar com as
crianças, ao mesmo tempo em que burlavam a censura” (PINTO, 2018, p. 794). Nos
livros “Suas personagens são transgressoras natas, sempre se opondo à prepotência, à
esperteza ou à indiferença do mundo adulto. A autora sabe falar a língua dos pequenos
usando amor, afeto, subversão, imaginação e cumplicidade” (MIGUEL, 2006, p.56).
Sua primeira obra de destaque foi lançada em 1976. Na história, um menino chamado
Marcelo questiona os adultos sobre a origem e o significado das palavras e com isso, os
adultos representam a autoridade, já as palavras, o sistema vigente.

1.2 Análise das obras

Em O reizinho mandão, 1978, há um rei que morre e no seu lugar assume o filho
que era “mandão, teimoso, implicante, xereta”! (ROCHA, 2013, p. 10). Os moradores
daquele reino deviam se calar e “(...) de tanto ficarem caladas, as pessoas foram
esquecendo como é que se falava” (ROCHA, 2013, p. 14). Foram se calando com medo
do reizinho que com o tempo percebe o problema e ao procurar a solução se vê a frente
de uma menina campesina que ainda sabia falar e lhe diz “cala a boca já morreu, quem
manda na minha boca sou eu!” As pessoas do reino começam a repetir a frase que acaba
amedrontando o reizinho a ponto de ele ter que fugir do seu reino, porém, o narrador
que é um contador de histórias alerta que esse reizinho pode voltar a aparecer, indicando
um movimento cíclico da história enquanto ciência e indicando a possibilidade de
continuação dessa história enquanto ficção, o que se confirmaria anos mais tarde com
Sapo-vira-rei-vira-sapo, ou a volta do reizinho mandão quatro anos depois.
No segundo livro da tetralogia, O rei que não sabia de nada, 1980, um rei ouve
seus conselheiros e deixa o reino sob os cuidados de uma máquina que em pouco
tempo começa a apresentar problemas. Os conselheiros com medo do rei, tentam
esconder o problema e quando o ele descobre se desespera a ponto de sair correndo
pelo interior do reino e perder cetro, manta, coroa até se parecer com um cidadão
comum. Nesse momento, uma menina chamada Cecília se aproxima e começa a falar
com ele. O rei ao perceber que não fora reconhecido se interessa em conhecer a família
da menina que logo reclama da distância do castelo e a distância do governante em
relação aos cidadão, da máquina e das coisas do reino. Ele revela sua identidade e a
família se propõe a solucionar o problema com a participação de todos. Um iria
desligar a máquina, outro iria demitir os ministros e Cecília sugere que o castelo real
seja transformado em parque de diversões. A comunidade é reunida e mais uma vez a
democracia prevalece.
Em 1981 foi publicado O que os olhos não vêem, uma história em que o rei e
sua corte reinante não conseguiam ver o povo e nem ouvir suas vozes. A população
cansada de tanto trabalhar pelo reino e não ser ouvida encontra uma solução: construir
pernas de paus e ir todos juntos até o palácio para que fossem vistos e ouvidos. O rei
abandona o poder e os grandões antes tão fortes se sentem assustados e fogem.
Sapo-vira-rei-vira-sapo, 1982, é a quarta história da tetralogia dos reis. Aqui
uma princesa derruba sua bola no rio e um sapo aparece para ajudá-la. Como nos
contos de fadas, o sapo se transforma num príncipe e se casa com a princesa. Tempos
depois se torna rei, porém, não era um rei bom, mas o sapo do início da história. Ele
cria várias leis e desagrada ao povo, logo manda prender as verdades no teto do castelo
e isso gera um problema que podemos ver nesses trechos do livro

Para consolar a tristeza


Que tinham no coração,
Começaram a cantar
Uma bonita canção.
Que não temiam mais nada,
Pois já estavam na prisão...

Da canção que eles cantavam


Pulavam muitas verdades,
Que se espremiam no sótão
Com grande dificuldade,
Que estava tudo tão cheio
Que era uma barbaridade!

E então, com tanta apertura,


E com tanta agitação,
O palácio foi rachando,
Desde o teto até o chão,
Despejando todo mundo,
Que caiu de trambolhão.

E do meio das ruínas


Muita gente vai saindo,
Cantando sua canção,
Gritando, chorando, rindo.
Como uma grande explosão
Que deixasse o mundo lindo... (ROCHA, 2003, p 30-32)

Ao final, o sapo sai pela estrada a procurar outra princesa que pudesse lhe dar um
beijo.
A autora em suas obras procura tocar as crianças por meio da ironia, do riso e
fazê-las refletir sobre as decisões coletivas, sobre o trabalho em grupo, sobre o
autoritarismo que pode ser de um governante ou da própria família.

A crítica implícita na sua obra se desdobra por meio do riso


constante. É por meio dele que a autora se encontra com o seu tempo e,
sobretudo, com os leitores. O humor é uma arma para inverter valores,
princípios, comportamentos, conselhos, contrariando sempre as
mensagens conformistas e o conservadorismo reinantes nos contos de
fadas e mesmo nas narrativas de aventuras que disseminam sempre
noções de submissão e obediência num universo cosmicamente
inabalável. Ao criar reis que são antipáticos, ministros desonestos,
mulheres liberadas e crianças contestadoras a autora provoca risadas
inesperadas preenchendo o gênero infantil com novos significados, por
vezes também dialoga com a literatura não infantil de forma parodística,
irônica e irreverente. (MIGUEL, 2006, pp. 37-38)

Ruth Rocha faz parte de uma geração conhecida como os filhos de Lobato e
assim como o criador da boneca Emília, faz da criança protagonista das histórias,

A autora coloca nos mais fracos a sabedoria prática que


lhes permite criar soluções. Emancipa a criança
entregando-lhe as regras do jogo. Cecília, de O rei que
não sabia de nada, a menina que ainda sabia falar de O
reizinho mandão detêm o germe da transformação capaz
de restituir o equilíbrio ao reino (RICHE, 1985, p. 115).

Os pequenos (em duplo sentido) são chamados para refletir sobre as transformações
que a democracia pode promover. “Para nós, os pequenos leitores conquistam por
meio das narrativas uma consciência crítica de que a imposição das vontades
exclusivas de um sujeito traz, muitas vezes, o desconforto em tantos outros, como
relatam as tramas selecionadas” (MARIANO, 2012, p. 79). Naquelas histórias “A
participação do povo nas decisões do reino e a valorização da criança vinculam a
ideologia democrática” (RICHE, 1985, p. 115). Não temos uma cartilha que prega
ensinamentos e moralismos, mas enredos e tramas que divertem e podem trazer
reflexões para o público infantil.
O espírito democrático é uma marca nessas histórias que analisamos, pois

o espírito comunitário une os personagens nas histórias de


Ruth. Em O rei que não sabia de nada, os camponeses se
unem para ajudar o rei a governar, consertando os estragos
decorrentes da má administração da máquina. Em O que
os olhos não vêem, ao perceber que não estava sendo
ouvido, o povo se une, constrói pernas de pau e todos
juntos "fazendo muito alarido" seguem para a capital
(RICHE, 1985, p. 117)

Uma criança que lê esses livros tem uma interpretação, porém, um adulto ao ler
tem outra percepção e logo associa às questões políticas uma vez que “A efervescência
cultural, a imposição do silêncio, o controle das ideias, a concentração do poder e o
enfrentamento das políticas arbitrárias compõem os textos através da alegoria” (PINTO,
2018, p. 793-794). É esse um dos motivos que torna a obra da autora clássica e
universal, pois independente da época e do lugar, ela trata de temas que são comuns a
todas as sociedades como o autoritarismo, a democracia, o papel da criança,
organização da sociedade, diferenças sociais, etc. “Desta forma a escritora faz com que
os problemas sociais entrem na vida da criança através dos meios de comunicação
tornando próxima uma realidade distante” (MIGUEL, 2006, p. 54). Outra pesquisadora
que tratou do tema nos mostra que “a criança aproxima as narrativas ficcionais com a
realidade de seu país, apenas com o auxílio de leitor crítico adulto, pois sozinha, ela as
aproxima de suas vivências sociais em instituições como casa e escola” (MARIANO,
2012, p. 91). Ao falar de campos esturricados, máquinas que não funcionam, trânsito,
ônibus que atrasam e mau funcionamento de escolas, vemos uma aproximação dos
problemas cotidianos dos adultos com o mundo infantil. “Se o povo pequeno consegue
encontrar saída para seus problemas, a criança, ao ser devolvida à realidade após um
mergulho no maravilhoso, se sentirá estimulada a descobrir suas próprias soluções”
(RICHE, 1985, 117). Elas são dotadas de um poder que não vem dos músculos ou das
armas, nessa relação “Não há lutas ou demonstrações de força, a sabedoria é a grande
vencedora no confronto entre fortes e fracos” (Idem, 1985, 117). A ignorância e a
brutalidade do mundo adulto são vencidas pela inteligência e leveza do mundo infantil,
Ruth Rocha com a sensibilidade artística que possui consegue mostrar isso.
É inquestionável a qualidade de suas obras e mesmo que houvessem
questionamentos por questões partidárias ou ideológicas, devemos considerar o que
escreveu em sua dissertação de mestrado o professor Cléber Fabiano, 2008, que enfatiza
a questão de quem decide o que é literário e logo, o que tem qualidade literária ou não.
Segundo ele,

diante das muitas formas de literatura, o que considerar


como uma obra especificamente literária? Para conceituar
sua natureza seria necessário reconhecer seu momento
histórico e seu contexto, normalmente, com seus
parâmetros de legitimação instituídos pelos intelectuais e
pela classe dominante (p. 13).

Alinhada aos intelectuais de sua época, Ruth Rocha escreveu obras de literatura e não
cartilhas que indicam um tipo de comportamento, pois suas histórias não pretendem
ensinar ou pregar algum discurso moralizante, mas sim entreter e divertir, contudo, “Por
falta de conhecimento, a maioria dos docentes infelizmente ainda possui uma visão
equivocada da literatura infantil, utilizando-a como manual para ensinar normas de
conduta” (MIGUEL, 2006, p.8). Conhecendo um pouco da arte de escrever vemos que
não é para isso que os artistas dedicam as suas criações.
A literatura infantil, assim como uma literatura considerada adulta, deve em
primeiro lugar dar prazer ao leitor, e é o leitor que vai atribuir sentido ao que lê de
acordo com o seu horizonte de expectativas conforme nos aponta a teoria da estética da
recepção desenvolvida por autores como Wolfgang Iser e Robert Jauss. Nessa
perspectiva vemos que “A leitura só se torna um prazer quando nossa produtividade
entra em jogo, ou seja, quando os textos nos oferecem a capacidade de exercer as nossas
capacidades” (1999, p. 10), assim é com os adultos e assim é com as crianças. Ruth
Rocha sabendo disso, respeita a criança como leitora e valoriza sua capacidade de
interpretação ao tratar de temas e assuntos tão necessários. Nesse sentido, “Sem ser
tendenciosa, ela dialoga com os seus leitores, quer sejam crianças quer não, pois a sua
escrita é polissêmica, aberta, polifônica. Utilizando-se de símbolos universais, ela
constrói um mundo ficcional onde adultos e crianças se vêem refletidos” (MIGUEL,
2006, p.9).
Ainda tratando da relação autor-texto-leitor recorremos a Iser, 1999, que afirma
que “tem se utilizado o termo ‘efeito estético’ porque, ainda se trate de um fenômeno
desencadeado pelo texto, a imaginação do leitor é acionada, para dar vida ao que o texto
apresenta, reagir aos estímulos recebidos”. (p. 20). Dessa forma, “o livro só cumpre o
seu percurso à medida que se destina a um leitor, e nesse sentido o papel da recepção é
fundamental” (RICHE, 1985, p. 25). As alegorias e símbolos utilizados pela autora
promovem um efeito estético ao fazer com que o leitor, seja adulto ou criança, pensem,
reflitam e dêem significado ao texto. Cléber Fabiano, 2008, ao interpretar a teoria da
Estética da Recepção aplicada à literatura infantil diz que

Essa teoria ao tratar da relação da literatura com o seu


leitor, defende a premissa de que a literatura não é
meramente reprodução, mas desenvolve um papel atuante,
ao fazer história e participar do processo de pré-formação
e motivação do comportamento social, concebendo a
recepção como um envolvimento intelectual, sensorial e
emotivo com uma obra (p. 30).

Logo, a literatura cumpre um papel artístico, mas depende da relação do leitor com a
obra para promover alguma mudança. Seu horizonte de expectativas, capital cultural,
sentidos e emoções é que podem desencadear algum efeito.
Afrânio Coutinho, 1976, afirma que “a Literatura é um fenômeno estético. É
uma arte, a arte da palavra. Não visa informar, ensinar, doutrinar, pregar, documentar.
Acidentalmente, secundariamente, ela pode fazer isso, pode conter história, filosofia,
ciência e religião” (p. 08). Longe de possuir um tom panfletário, Ruth dá seu recado
“Logo, não há neutralidade nas histórias escritas por Ruth Rocha, sendo impossível
destacá-las do cenário social em que foram escritas e publicadas, mesmo que as obras
não estejam circunscrita a este aspecto” (PINTO, 2018, p. 793). Ela não se furta ao
discurso político, mas quando o faz é de uma forma engraçada pois quando fala de um
reizinho, “A escritora o ridiculariza para denunciar os políticos no poder brasileiro com
atitudes próximas a de uma criança mimada e com pensamentos em processo de
formação” (MARIANO, 2012, p. 78). Não só na época da ditadura, mas também hoje
caberia esse tipo de alegoria. Observando o contexto e “partindo da realidade
vivenciada, Ruth Rocha cria uma narrativa análoga que ‘denuncia’ o abuso da
autoridade e o governo dos militares no país” (Idem, p.78). É a sensibilidade do artista
que capta os sentimentos de sua época e o descreve e critica através de sua arte.
Para Cuba Riche, 1985, “Entre as muitas leituras possíveis de sua obra o
questionamento ideológico é um dos traços marcantes gerador da tensão repressão x
transgressão” (p. 113). A fala da menina que diz cala a boca já morreu, o povo que canta
uma canção no sótão do teto, as vozes que ecoam como um trovão são a ilustração
disso. A professora e autora ainda afirma que “Em autores como Ruth Rocha, Lygia
Bojunga Nunes e Ana Maria Machado, percebem-se as marcas de um texto que se quer
libertário” (RICHE, 1985, p.22). Como herdeiras de algumas características lobatianas,
elas apresentam questionamentos e propõem soluções em que as crianças são
protagonistas, dotadas de inteligência e de um poder transformador.
Uma escritora com esse potencial consegue produzir “narrativas ideológicas que
enaltecem as figuras subjugadas na sociedade: idosos, crianças, mulheres e pobres. De
forma (in)direta são elas quem rompem com a política autoritária vigente nos reinos
fictícios” (MARIANO, 2012, p. 91). A política repressiva é combatida por todo o povo
unido que se une e se encoraja de enfrentar seus algozes. Promovendo um
posicionamento crítico ao governo implantado na Ditadura,

as obras da escritora brasileira, aproximam os reinos ao


regime militar brasileiro, mas não há uma relação com
algum militar em especial, podendo apenas dizer que os
monarcas presentes em O reizinho mandão e Sapo-vira-
rei-vira-sapo, aproximam-se de Geisel e Médici e o de O
rei que não sabia de nada e O que os olhos não veem, de
João Figueiredo (MARIANO, 2012, pp 91-92).

E mesmo havendo esse tom contestador, observa-se um aumento no mercado editorial


da literatura infantil no período, o que mostra um certo esnobismo dos governantes em
relação ao conteúdo das obras. Sobre isso, Silva 2013 nos dá uma pista ao escrever que
Embora essas obras tenham sido publicadas no final da década de 1970 e início
dos anos 1980, ainda estavam sob o regime militar e escaparam da censura. Podemos
deduzir que um dos motivos seria o fato de se tratar de literatura infantil, sobre isso
Silva, 2013, afirma que “Desde sua gênese, a literatura infantil relaciona-se com a
função de ensinar e, portanto, sempre foi considerada uma forma de literatura menor”
(p. 17). Publicar a tetralogia dos reis foi um risco que a autora assumiu, mas com certa
moderação, pois eram histórias infantis que tratavam de temas como a democracia, mas
por saber que era considerada uma literatura menor, escaparia da perseguição do
governo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudar a literatura com olhos voltados exclusivamente para o texto é algo


defendido por alguns grupos hoje em dia. Seria de grande valia fazer esse tipo de análise
na literatura infantil e especificamente em obras da Ruth Rocha, porém, esquecer outros
aspectos da obra como as questões da recepção e da relação com a sociedade é deixar de
lado uma parte muito importante nesse tipo de estudo. Sua obra vai muito além de
questões relacionadas à beleza da escrita. Essa autora marcou uma geração e continua
sendo importante. Ela conseguiu se consolidar como escritora de livros infantis ao
mesmo tempo em que se posicionou em relação ao Regime Militar, não fugiu do embate
e pôs adultos e crianças para refletir sobre o seu mundo. Esse engajamento político
ligado à sua criatividade e capacidade artística contribuiu para que tivéssemos obras
com um caráter contestador e muito divertidas sem se utilizar de um tom panfletário que
poderia tornar suas histórias enfadonhas. Enfim, a criança se sente valorizada por ver
personagens infantis como protagonistas e agentes de transformação e o adulto é
convidado a refletir sobre o autoritarismo e a importância da democracia.

REFERÊNCIAS

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