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AMPÉRE - PR
2020
JOSIEL DOS SANTOS LIMA
AMPÉRE - PR
2020
JOSIEL DOS SANTOS LIMA
INTRODUÇÃO
1
Doutorando em Teoria Literária pela Uniandrade, Professor de história da rede pública do Paraná e
contador de histórias
2
² Doutor e mestre em Educação. Graduado em Letras. Diretor pedagógico da FATUM Educação.
Professor nos cursos de graduação e pós-graduação nas áreas de Letras e Pedagogia. Ministra cursos,
palestras e consultorias em várias cidades do Brasil. Escritor de livros teóricos sobre crítica da Literatura
Infantil. Ganhador do Prêmio Acervo FNLIJ (2014) na categoria teoria literária. Membro imortal da
Academia Brasileira de Contadores de Histórias. Participou de seminários e congressos internacionais nas
áreas de literatura infantil e contação de histórias em Cuba, Portugal, Itália, Colômbia, Argentina,
Nicarágua, Panamá, Venezuela, Chile, Bolívia, México, Irã e Alemanha.
dentro de uma época em que refratam a sociedade e por isso, podemos nos apoiar na
afirmação de que a literatura “possui tantas ligações com a vida social, que vale a pena
estudar a correspondência e a interação entre ambas” (CANDIDO, 1989, p. 163). O
contexto em que vive o autor influencia na criação de seus escritos já que “
Na época em que nos propomos analisar, através das artes, eram discutidos
problemas sociais brasileiros, propagava-se a ideia de liberdade e experimentação aos
moldes do movimento da contracultura internacional, debatiam-se as propostas de luta
política das esquerdas do país e, ainda, criticava-se e combatia-se a ditadura
(ARAÚJO; SILVA; SANTOS, 2013, p. 35). Mesmo com a repressão podemos
destacar que
Ao tentar se aproximar de realidade das crianças e tratar com respeito esse público, os
escritores conseguem obter bons resultados estéticos. Monteiro Lobato já havia alertado
sobre isso ao escrever “Ah, que mundos diferentes, o do adulto e o da criança! Por não
compreender isso e considerar a criança ‘um adulto em ponto pequeno’, é que tantos
escritores fracassam na literatura infantil e um Andersen fica eterno”. (LOBATO, 1951,
p.56). Ruth Rocha compreendeu o que escreveu seu antecessor.
É interessante ver que a autora da tetralogia dos reis, de Dois idiotas sentados
cada qual em seu barril, Marcelo, marmelo, martelo entre outros se envolveu com o
processo de conscientização e crítica sem perder de vista o tipo de narratário a que se
dirigia, no caso, crianças. Suas histórias se inserem no contexto ditatorial de forma
engajada ao mostrar por meio de alegorias “generais distintos se tornando cada vez mais
ofensivos, ideologias políticas arbitrárias, valorização da canção, crença em uma nova
ideologia de união social” (MARIANO, 2012, p. 92). Essas histórias podem ser
consideradas subversivas “... porque fazem uso da alegoria, objetivando dialogar com as
crianças, ao mesmo tempo em que burlavam a censura” (PINTO, 2018, p. 794). Nos
livros “Suas personagens são transgressoras natas, sempre se opondo à prepotência, à
esperteza ou à indiferença do mundo adulto. A autora sabe falar a língua dos pequenos
usando amor, afeto, subversão, imaginação e cumplicidade” (MIGUEL, 2006, p.56).
Sua primeira obra de destaque foi lançada em 1976. Na história, um menino chamado
Marcelo questiona os adultos sobre a origem e o significado das palavras e com isso, os
adultos representam a autoridade, já as palavras, o sistema vigente.
Em O reizinho mandão, 1978, há um rei que morre e no seu lugar assume o filho
que era “mandão, teimoso, implicante, xereta”! (ROCHA, 2013, p. 10). Os moradores
daquele reino deviam se calar e “(...) de tanto ficarem caladas, as pessoas foram
esquecendo como é que se falava” (ROCHA, 2013, p. 14). Foram se calando com medo
do reizinho que com o tempo percebe o problema e ao procurar a solução se vê a frente
de uma menina campesina que ainda sabia falar e lhe diz “cala a boca já morreu, quem
manda na minha boca sou eu!” As pessoas do reino começam a repetir a frase que acaba
amedrontando o reizinho a ponto de ele ter que fugir do seu reino, porém, o narrador
que é um contador de histórias alerta que esse reizinho pode voltar a aparecer, indicando
um movimento cíclico da história enquanto ciência e indicando a possibilidade de
continuação dessa história enquanto ficção, o que se confirmaria anos mais tarde com
Sapo-vira-rei-vira-sapo, ou a volta do reizinho mandão quatro anos depois.
No segundo livro da tetralogia, O rei que não sabia de nada, 1980, um rei ouve
seus conselheiros e deixa o reino sob os cuidados de uma máquina que em pouco
tempo começa a apresentar problemas. Os conselheiros com medo do rei, tentam
esconder o problema e quando o ele descobre se desespera a ponto de sair correndo
pelo interior do reino e perder cetro, manta, coroa até se parecer com um cidadão
comum. Nesse momento, uma menina chamada Cecília se aproxima e começa a falar
com ele. O rei ao perceber que não fora reconhecido se interessa em conhecer a família
da menina que logo reclama da distância do castelo e a distância do governante em
relação aos cidadão, da máquina e das coisas do reino. Ele revela sua identidade e a
família se propõe a solucionar o problema com a participação de todos. Um iria
desligar a máquina, outro iria demitir os ministros e Cecília sugere que o castelo real
seja transformado em parque de diversões. A comunidade é reunida e mais uma vez a
democracia prevalece.
Em 1981 foi publicado O que os olhos não vêem, uma história em que o rei e
sua corte reinante não conseguiam ver o povo e nem ouvir suas vozes. A população
cansada de tanto trabalhar pelo reino e não ser ouvida encontra uma solução: construir
pernas de paus e ir todos juntos até o palácio para que fossem vistos e ouvidos. O rei
abandona o poder e os grandões antes tão fortes se sentem assustados e fogem.
Sapo-vira-rei-vira-sapo, 1982, é a quarta história da tetralogia dos reis. Aqui
uma princesa derruba sua bola no rio e um sapo aparece para ajudá-la. Como nos
contos de fadas, o sapo se transforma num príncipe e se casa com a princesa. Tempos
depois se torna rei, porém, não era um rei bom, mas o sapo do início da história. Ele
cria várias leis e desagrada ao povo, logo manda prender as verdades no teto do castelo
e isso gera um problema que podemos ver nesses trechos do livro
Ao final, o sapo sai pela estrada a procurar outra princesa que pudesse lhe dar um
beijo.
A autora em suas obras procura tocar as crianças por meio da ironia, do riso e
fazê-las refletir sobre as decisões coletivas, sobre o trabalho em grupo, sobre o
autoritarismo que pode ser de um governante ou da própria família.
Ruth Rocha faz parte de uma geração conhecida como os filhos de Lobato e
assim como o criador da boneca Emília, faz da criança protagonista das histórias,
Os pequenos (em duplo sentido) são chamados para refletir sobre as transformações
que a democracia pode promover. “Para nós, os pequenos leitores conquistam por
meio das narrativas uma consciência crítica de que a imposição das vontades
exclusivas de um sujeito traz, muitas vezes, o desconforto em tantos outros, como
relatam as tramas selecionadas” (MARIANO, 2012, p. 79). Naquelas histórias “A
participação do povo nas decisões do reino e a valorização da criança vinculam a
ideologia democrática” (RICHE, 1985, p. 115). Não temos uma cartilha que prega
ensinamentos e moralismos, mas enredos e tramas que divertem e podem trazer
reflexões para o público infantil.
O espírito democrático é uma marca nessas histórias que analisamos, pois
Uma criança que lê esses livros tem uma interpretação, porém, um adulto ao ler
tem outra percepção e logo associa às questões políticas uma vez que “A efervescência
cultural, a imposição do silêncio, o controle das ideias, a concentração do poder e o
enfrentamento das políticas arbitrárias compõem os textos através da alegoria” (PINTO,
2018, p. 793-794). É esse um dos motivos que torna a obra da autora clássica e
universal, pois independente da época e do lugar, ela trata de temas que são comuns a
todas as sociedades como o autoritarismo, a democracia, o papel da criança,
organização da sociedade, diferenças sociais, etc. “Desta forma a escritora faz com que
os problemas sociais entrem na vida da criança através dos meios de comunicação
tornando próxima uma realidade distante” (MIGUEL, 2006, p. 54). Outra pesquisadora
que tratou do tema nos mostra que “a criança aproxima as narrativas ficcionais com a
realidade de seu país, apenas com o auxílio de leitor crítico adulto, pois sozinha, ela as
aproxima de suas vivências sociais em instituições como casa e escola” (MARIANO,
2012, p. 91). Ao falar de campos esturricados, máquinas que não funcionam, trânsito,
ônibus que atrasam e mau funcionamento de escolas, vemos uma aproximação dos
problemas cotidianos dos adultos com o mundo infantil. “Se o povo pequeno consegue
encontrar saída para seus problemas, a criança, ao ser devolvida à realidade após um
mergulho no maravilhoso, se sentirá estimulada a descobrir suas próprias soluções”
(RICHE, 1985, 117). Elas são dotadas de um poder que não vem dos músculos ou das
armas, nessa relação “Não há lutas ou demonstrações de força, a sabedoria é a grande
vencedora no confronto entre fortes e fracos” (Idem, 1985, 117). A ignorância e a
brutalidade do mundo adulto são vencidas pela inteligência e leveza do mundo infantil,
Ruth Rocha com a sensibilidade artística que possui consegue mostrar isso.
É inquestionável a qualidade de suas obras e mesmo que houvessem
questionamentos por questões partidárias ou ideológicas, devemos considerar o que
escreveu em sua dissertação de mestrado o professor Cléber Fabiano, 2008, que enfatiza
a questão de quem decide o que é literário e logo, o que tem qualidade literária ou não.
Segundo ele,
Alinhada aos intelectuais de sua época, Ruth Rocha escreveu obras de literatura e não
cartilhas que indicam um tipo de comportamento, pois suas histórias não pretendem
ensinar ou pregar algum discurso moralizante, mas sim entreter e divertir, contudo, “Por
falta de conhecimento, a maioria dos docentes infelizmente ainda possui uma visão
equivocada da literatura infantil, utilizando-a como manual para ensinar normas de
conduta” (MIGUEL, 2006, p.8). Conhecendo um pouco da arte de escrever vemos que
não é para isso que os artistas dedicam as suas criações.
A literatura infantil, assim como uma literatura considerada adulta, deve em
primeiro lugar dar prazer ao leitor, e é o leitor que vai atribuir sentido ao que lê de
acordo com o seu horizonte de expectativas conforme nos aponta a teoria da estética da
recepção desenvolvida por autores como Wolfgang Iser e Robert Jauss. Nessa
perspectiva vemos que “A leitura só se torna um prazer quando nossa produtividade
entra em jogo, ou seja, quando os textos nos oferecem a capacidade de exercer as nossas
capacidades” (1999, p. 10), assim é com os adultos e assim é com as crianças. Ruth
Rocha sabendo disso, respeita a criança como leitora e valoriza sua capacidade de
interpretação ao tratar de temas e assuntos tão necessários. Nesse sentido, “Sem ser
tendenciosa, ela dialoga com os seus leitores, quer sejam crianças quer não, pois a sua
escrita é polissêmica, aberta, polifônica. Utilizando-se de símbolos universais, ela
constrói um mundo ficcional onde adultos e crianças se vêem refletidos” (MIGUEL,
2006, p.9).
Ainda tratando da relação autor-texto-leitor recorremos a Iser, 1999, que afirma
que “tem se utilizado o termo ‘efeito estético’ porque, ainda se trate de um fenômeno
desencadeado pelo texto, a imaginação do leitor é acionada, para dar vida ao que o texto
apresenta, reagir aos estímulos recebidos”. (p. 20). Dessa forma, “o livro só cumpre o
seu percurso à medida que se destina a um leitor, e nesse sentido o papel da recepção é
fundamental” (RICHE, 1985, p. 25). As alegorias e símbolos utilizados pela autora
promovem um efeito estético ao fazer com que o leitor, seja adulto ou criança, pensem,
reflitam e dêem significado ao texto. Cléber Fabiano, 2008, ao interpretar a teoria da
Estética da Recepção aplicada à literatura infantil diz que
Logo, a literatura cumpre um papel artístico, mas depende da relação do leitor com a
obra para promover alguma mudança. Seu horizonte de expectativas, capital cultural,
sentidos e emoções é que podem desencadear algum efeito.
Afrânio Coutinho, 1976, afirma que “a Literatura é um fenômeno estético. É
uma arte, a arte da palavra. Não visa informar, ensinar, doutrinar, pregar, documentar.
Acidentalmente, secundariamente, ela pode fazer isso, pode conter história, filosofia,
ciência e religião” (p. 08). Longe de possuir um tom panfletário, Ruth dá seu recado
“Logo, não há neutralidade nas histórias escritas por Ruth Rocha, sendo impossível
destacá-las do cenário social em que foram escritas e publicadas, mesmo que as obras
não estejam circunscrita a este aspecto” (PINTO, 2018, p. 793). Ela não se furta ao
discurso político, mas quando o faz é de uma forma engraçada pois quando fala de um
reizinho, “A escritora o ridiculariza para denunciar os políticos no poder brasileiro com
atitudes próximas a de uma criança mimada e com pensamentos em processo de
formação” (MARIANO, 2012, p. 78). Não só na época da ditadura, mas também hoje
caberia esse tipo de alegoria. Observando o contexto e “partindo da realidade
vivenciada, Ruth Rocha cria uma narrativa análoga que ‘denuncia’ o abuso da
autoridade e o governo dos militares no país” (Idem, p.78). É a sensibilidade do artista
que capta os sentimentos de sua época e o descreve e critica através de sua arte.
Para Cuba Riche, 1985, “Entre as muitas leituras possíveis de sua obra o
questionamento ideológico é um dos traços marcantes gerador da tensão repressão x
transgressão” (p. 113). A fala da menina que diz cala a boca já morreu, o povo que canta
uma canção no sótão do teto, as vozes que ecoam como um trovão são a ilustração
disso. A professora e autora ainda afirma que “Em autores como Ruth Rocha, Lygia
Bojunga Nunes e Ana Maria Machado, percebem-se as marcas de um texto que se quer
libertário” (RICHE, 1985, p.22). Como herdeiras de algumas características lobatianas,
elas apresentam questionamentos e propõem soluções em que as crianças são
protagonistas, dotadas de inteligência e de um poder transformador.
Uma escritora com esse potencial consegue produzir “narrativas ideológicas que
enaltecem as figuras subjugadas na sociedade: idosos, crianças, mulheres e pobres. De
forma (in)direta são elas quem rompem com a política autoritária vigente nos reinos
fictícios” (MARIANO, 2012, p. 91). A política repressiva é combatida por todo o povo
unido que se une e se encoraja de enfrentar seus algozes. Promovendo um
posicionamento crítico ao governo implantado na Ditadura,
REFERÊNCIAS
CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
ROCHA, R.O que os olhos não vêem. Ilustrações de José Carlos Brito. 2. ed. São
Paulo: Salamandra, 2003b.
______.O rei que não sabia de nada. Ilustrações de José Carlos Brito.2. ed.São
Paulo: Cultura, 2003a.
______. Sapo vira rei vira sapo ou “A volta do reizinho mandão”. São Paulo:
Moderna, 2012.