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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA INFORMAÇÃO – ICHI


CURSO DE HISTÓRIA LICENCIATURA
DISCIPLINA: ELEMENTOS FILOSÓFICOS DA EDUCAÇÃO
Professora Alana das Neves Pedruzzi
Discente: Marcelo Studinski - 157759

O livro infantil “Amoras” (2018), escrito pelo rapper Emicida 1, tem por objetivo
fortalecer as identidades afro-brasileiras, por meio do diálogo entre a protagonista e seu pai,
sobre a importância de se ver e se reconhecer no mundo. Na narrativa, e nas ilustrações de
Aldo Fabrini, “uma criança negra, de cabelos encaracolados, percebe-se tão linda quanto as
amoras que colhe do pomar, que quanto mais pretinhas mais doces 2” e, a partir desta
percepção, a personagem tem acesso às culturas e religiões diferentes e é apresentada às
personalidades que lutaram pelos direitos da população negra. Em suma, uma obra que
discute a importância de estimularmos a autoestima de crianças, rompendo com a idealização
de um padrão fixo de beleza e de visão de mundo.

O livro é indicado para crianças em fase de alfabetização, a partir dos cinco anos de
idade. Por esta razão, no início do ano letivo de 2023, uma escola privada de educação
infantil, em Salvador/BA, inseriu a obra em suas práticas de ensino, integrando-o ao projeto
pedagógico “Ciranda Literária”, da instituição, que consiste na indicação de livros a serem
adquiridos pelas famílias dos/as alunos/as e, após a leitura, são repassados a outros colegas,
com intermediação do corpo docente.

Foi neste processo de trocas de livros que, em março deste ano, uma pessoa
responsável por um dos/as discentes denunciou à escola um caso de racismo e intolerância
religiosa envolvendo a obra literária “Amoras”. Neste caso 3, o livro teve várias páginas
escritas à mão com frases e pequenos textos de cunho preconceituosos e discriminatórios,
relacionados às religiões de matriz africanas e às questões étnico-raciais. Para sustentar suas
ideias racistas, a mãe de um aluno, autora dos crimes, escreveu em oito páginas do livro
passagens bíblicas e/ou sugeriu que os próximos leitores lessem os salmos indicados por ela.
Por sua vez, como o fato teve repercussão nacional através das redes sociais virtuais, a direção
da escola posicionou-se contra o ocorrido, alegando que iria repor a obra vandalizada e que

1
Leandro Roque de Oliveira: rapper, cantor, compositor, escritor, apresentador e empresário.
2
Juliane Eslabão: https://www.alpv.org.br/wp/resenha-livro-amoras-do-emicida/?
gad=1&gclid=Cj0KCQjwmN2iBhCrARIsAG_G2i7yVBVEVL4CUQ1FgzKNeofBVa8lu0P2RByAjZyZa24AN6
YwN-MjUKgaAi-UEALw_wcB (acesso em 08/05/2023)
3
O portal G1 realizou uma matéria completa sobre o caso de racismo envolvendo o livro “Amoras”.
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/03/07/livro-infantil-de-emicida-e-alvo-de-intolerancia-religiosa-
praticada-por-mae-de-aluno-em-escola-de-salvador.ghtml (acesso: 08/05/23)
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continuaria a utiliza-la, além de convocar a criminosa e outros pais e responsáveis para


dialogar sobre o tema.

Em uma sociedade estruturalmente racista como a brasileira, não são raros episódios
como o crime narrado acima, que acontecem no ambiente escolar onde, muitas das vezes, são
praticados entre alunos/as, familiares, professores/as, coordenação pedagógica ou direção. Em
2009, por exemplo, “Exu foi barrado” em uma escola municipal do Rio de Janeiro/RJ. Na
ocasião, uma professora assumidamente umbandista foi proibida, pela diretora autodeclarada
evangélica, de utilizar o livro “Lendas de Exu 4” em suas aulas. Esta contenda virou objeto de
investigação do Ministério Público do RJ e a professora recebeu apoio dos representantes da
categoria, docentes e pesquisadores das universidades e da sociedade civil, organizada pelos
movimentos sociais, sobretudo pelo movimento negro. À época, a professora Stela Guedes
Caputo (UERJ), que pesquisou por mais de vinte anos a relação da escola com crianças de
candomblé na capital fluminense, trouxe importantes questionamentos para o debate público,
por meio de uma nota no jornal O Globo 5: “Por que Jesus pode entrar na escola e Exu não
pode”?

Quando uma escola proíbe um livro de lendas africanas ela discrimina


culturas afrodescendentes. Exu é negro. Um poderoso e imenso orixá negro.
É o orixá mais próximo dos seres humanos porque representa a vontade, o
desejo, a sexualidade, a dúvida. Por que esses sentimentos não são bem-
vindos na escola? Porque a Igreja católica tratou de associá-lo ao seu diabo e
muitas escolas incorporam essa lógica conservadora, moralista e racista. O
Exu proibido afirma que este país tem negros com diferentes culturas que, se
entendidas como modos de vida, podem incluir diferentes modos de ver,
crer, não crer, sentir, entender e explicar a vida. Positivo foi que muitos
professores e professoras criticaram o ocorrido, o que mostra que também a
escola não é “uma coisa só”. É nas suas tensões cotidianas que devemos
lutar contra o racismo (CAPUTO, 2009).
A professora Stela Caputo não apenas denunciou o racismo implícito no caso da
proibição do uso do livro sobre a mitologia iorubá, mas, em seu texto, evidenciou que a escola
é um campo de disputa ideológica. Ideologia, aqui, compreendida como visão de mundo, que
para Karl Marx (2008), são pautadas pelas forças produtivas da vida material, que condiciona
a vida social, política e intelectual de homens e mulheres. Ou seja, a tomada de consciência a
partir da nossa compreensão de que somos seres sociais, interpelados, constantemente, pelas
4
MARTINS, Adilson. Lendas de Exu. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.
5
Acessei o conteúdo através do portal de notícias Geledés, que reproduziu a matéria do jornal O Globo em
23/11/2009. https://www.geledes.org.br/exu-nao-pode/ acesso em maio/2023.
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“formas ideológicas”, onde adquirimos tal consciência. A essas formas ideológicas, Marx
denomina como “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas6”.

Neste sentido, a escola, sendo a segunda instituição social em que as crianças entram
contato, é um campo de disputa ideológica porque é neste lugar que estes sujeitos sociais irão
se deparar com outras visões de mundo, diferentes daquelas apresentadas pela primeira
instituição social, a família. Desta forma, a escola contemporânea preserva, ainda, os modelos
fundados pela filosofia ocidental, que desde Aristóteles, Platão e outros filósofos gregos, se
pretende universal e se propõe como o “conhecimento racional do mundo e da natureza 7” –
cosmologia. Assim, aos alunos/as é apresentada outras formas de ver, pensar, sentir, agir e
estar no mundo.

Por outro lado, por ser herdeira dessa filosofia “universal” grega, a escola como
instituição, por muito tempo, pretendeu universalizar os seres humanos, formando cidadãos e
cidadãs para manter a ordem social vigente. Ou seja, por muito tempo fomentou o
conhecimento racional do mundo e da natureza, a partir dos valores socioculturais
hegemônicos: uma sociedade branca, heteronormativa, judaico-cristã, com vistas a fortalecer
e perpetuar o poder econômico, político e jurídico nas mãos de um pequeno grupo de homens
brancos. Neste horizonte, a filosofia contemporânea contribui expressivamente com a
educação, a partir da divisão do trabalho, propondo uma ruptura com o pensamento
hegemônico, ao pensar a sociedade por meio da luta de classes. Mesmo que os fundadores
desta filosofia, Engels e Marx, não tenham aprofundado suas discussões sobre educação,
sinalizaram que seria por meio desta que trabalhadoras e trabalhadores romperiam com a
alienação, e atingiriam a consciência de classe.

A partir desta compreensão, a filosofia ampliou seus horizontes e Paulo Freire, no


Brasil, foi fundamental para pensar a educação como ruptura ao processo de alienação e a
tomada de consciência – uma educação emancipadora. Assim, a educação só é libertadora
quando compreendida como trabalho coletivo, agir e refletir sobre o mundo (a própria
realidade/experiência dos/as alunos/s e educadores/as) a fim de modifica-lo. Educação como
prática. Nesta direção Bell Hooks, influenciada pela obra de Freire, pensa a educação como
uma “pedagogia engajada”, que exige que professoras/es tenham compromisso ativo –
6
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Expressão popular, 2008. p. 47-52
7
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000. p. 27.
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processo autoatualização que promova também seu próprio bem-estar, para ensinar de modo a
fortalecer capacitar. Assim, “Os professores que abraçam o desafio da autoatualização serão
mais capazes de criar práticas pedagógicas que envolvam os alunos, proporcionando-lhes
maneiras de saber que aumentem sua capacidade de viver profunda e plenamente8”.

Refletindo sobre os casos de racismo e racismo religioso, que apresentei no início


deste texto, penso que de alguma forma as educadoras buscaram romper com a cultura
hegemônica quando inseriram em sua prática pedagógica os livros “Lendas de Exu” e
“Amoras”. Obviamente, com as fontes trabalhadas, não é possível identificar se o caso que
envolve o livro do rapper Emicida é uma imposição da escola, na tentativa de cumprir a lei
10.639/03, ou se foi iniciativa da educadora. No caso de 2009, ao contrário, a professora
tentou trabalhar a mitologia iorubá, mesmo contra a vontade da direção da escola.

De qualquer forma, em ambos os casos, as fontes dão conta de elucidar os conflitos


que eclodiram nas escolas, quando a prática docente decidiu apresentar às alunas e alunos a
herança sociocultural africana e afro-brasileira, uma cosmovisão diferente daquela que nos é
imposta pelos sistemas de educação. As fontes demonstram que as educadoras, por meio da
prática docente, tentaram “transformar o currículo de tal modo que ele não reforce os sistemas
de educação” e fizeram desta “pedagogia engajada e sua prática de ensino um foco de
resistência9”.

8
HOOLKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2013. p. 36
9
Idem. p. 36.

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