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Dicionário do Ensino de Sociologia

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, o ensino de sociologia e as:

Amaro Xavier Braga Jr*

As Histórias em Quadrinhos (HQs) são imagens estáticas, justapos-


tas em sequência deliberada, que constroem uma narrativa. São uma
forma de expressão artística vinculada à escrita e ao desenho, de circula-
ção mercantil, fortemente associada à diversão, por isso, devem ser vistos
como “[...] objetos artístico-midiáticos de entretenimento” (BRAGA JR,
2015a, p. 104). Devido aos seus padrões especiais de consumo e produ-
ção, são também chamadas de Nona Arte (na Europa) ou Arte Sequencial
(nos EUA). As HQs podem ser vistas como uma linguagem ou macrogê-
nero de produção que inclui diversos produtos com aparências distintas:
revistas, páginas e álbuns de quadrinhos, tirinhas, charges, caricaturas, car-
tuns, fanzines, fotonovelas e suas respectivas versões cibernéticas.
Caricaturas foram a primeira forma de expressão dessa linguagem.
Formadas por desenho único, frequentemente na forma humana, que é
exagerada em determinados aspectos físicos que levam ao riso e ao escár-
nio. Tais características presentes no desenho são culturalmente associa-
das ao estigma social da região. Charges e cartuns são decorrentes da in-
serção de mais quadros desenhados e textos às caricaturas. As charges se
orientam por realizarem uma crítica satírica aos acontecimentos políticos
e sociais de sua época de produção. Seu caráter cômico se perde quando
analisada fora do contexto de época. Os cartuns são piadas construídas
graficamente, entre dois e quatro quadros justapostos. Reproduzem situ-
ações vexatórias, hilariantes e cômicas que estão fortemente associadas ao
imaginário coletivo e tendem a ser atemporais. As tirinhas ou tiras em
quadrinhos são narrativas que usam a estrutura de dois a três quadros e
possuem uma sequência entre as tiras, seja com personagens seja com o
enredo que titula a série. As páginas, revistas e álbuns são formas de apre-
sentação de narrativas mais amplas, não necessariamente vinculadas à co-
micidade. No Brasil são conhecidos como “gibis”, nome de uma revista
famosa de grande circulação nos anos de 1939 até 1950.

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Há duas formas de inter-relacionar as Ciências Sociais às HQS: uma


Sociologia nas HQs, pelo qual todas as suas formas de expressão se tor-
nam receptáculos de situações, casos e encenações ficcionais e reais de
esquemas de entendimento da sociedade discutidas e apresentadas pelos
autores no decorrer de suas teorias; ou por vias de uma Sociologia das
HQs, que enfatiza seu papel de instrumento social, campo axiológico, de
valores e até como agente social (agência dos objetos) cuja circulação e
consumo provocam mudanças sociais. As pesquisas têm enfatizado um
ou o outro aspecto. As primeiras imersões no campo começam dentro da
Sociologia da comunicação, como as investigações de Ariel Dorfman, em
dois livros clássicos: Super-Homem e seus amigos do peito, junto com Manuel
Jofré (1978), e Para ler o Pato Donald: cultura de massa e colonialismo, com
Armand Mattelart (1980). Ambos sobre a influência dos comics (as HQS
estadunidenses) na América Latina como um instrumento de dominação
ideológica e imperialismo cultural ao analisá-las como produtos da indús-
tria cultural e à serviço de uma mercantilização de valores. Metodologica-
mente, ambos focados na análise de conteúdo e das representações his-
tóricas dos processos. Na Europa, se destacam os trabalhos de Román
Gubern (1979), que já apresentava em seus textos a expressão “Sociologia
das literaturas da imagem” para se referir à politização, aos discursos reli-
giosos, das representações da vida cotidiana e da “projeção do eu” nas
HQs. Além de Jacques Marny, com o seu enfático Sociologia das histórias aos
quadradinhos (1970), e Thierry Groensteen, com o clássico Sistema dos qua-
drinhos (1999), que representam os trabalhos de maior impacto na percep-
ção sociológica das HQs na França, ainda no campo da Semiótica.
Uma terceira via surgiu com a utilização da linguagem dos quadri-
nhos para fazer Sociologia, reestruturando a escrita sociológica. Na prá-
tica, são artigos, dissertações e teses feitas em quadrinhos. Na Europa, se
destacam os trabalhos de Pierre Nocerino (2016), realizando etnografia
com quadrinhos. No Brasil, muitos autores mediaram suas pesquisas em
Antropologia com a feitura de HQS. O pioneiro foi Gilberto Freyre que,
em vida, já havia escrito artigo analisando o papel sociológico que os gibis
poderiam exercer na compreensão da sociedade e sua dimensão cultural
e pedagógica. Inclusive, é seu o primeiro trabalho sociológico adaptado
para as HQs no Brasil com o seu Casa Grande & Senzala em quadrinhos

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(1981); e outros, que aproveitaram suas dissertações e teses antropológi-


cas para construir HQs, como Os brasileiros, de André Toral (2009), sobre
nações indígenas brasileiras, e Passos perdidos, história desenhada: a presença
judaica em Pernambuco (2007) da antropóloga Tânia Kaufman, do sociólogo
Amaro Braga e das desenhistas Danielle Jaimes e Roberta Cirne. Apesar
de se encontrarem na França e nos EUA artigos socioantropológicos de-
senhados, essa nova modalidade ainda esbarra na dificuldade que a aca-
demia brasileira tem de avaliar, publicar e reconhecer o veículo das HQs
como válido para expressar uma análise academicamente orientada.
No Brasil, a dimensão sociológica das HQs tem encontrado res-
paldo nos trabalhos de Nildo Viana (2005; 2013b) e Edmilson Marques
pesquisando sobre Valores e luta cultural (2018) nas HQs. Ambos os auto-
res analisam a dimensão axiológica e axionômica nas HQs com forte in-
fluência dos estudos marxistas. Nos trabalhos de Nadilson Silva (2002;
2004) sobre as Fantasias e cotidiano nas Histórias em Quadrinhos e no papel
que os fanzines exercem na representação cultural e política; e de Amaro
Braga (2005; 2015a), que analisou o surgimento do mangá nacional no
Brasil e o papel que as imagens desenhadas das HQS exercem na com-
preensão dos fenômenos sociais e como elas têm atuado na percepção
das questões de raça, gênero e sexualidade por vias das HQS, nota-se um
enfoque sob a ótica dos Estudos Culturais e de perspectivas pós-huma-
nistas, em que as HQs são tratadas como objetos com agência. Nessa
mesma direção, Amaro Braga organizou coletâneas sobre o tema, tais
como Questões de sexualidade nas Histórias em Quadrinhos (2014) e Representa-
ções do feminino nas Histórias em Quadrinhos (2015). Outros ainda se destacam:
Iuri Reblin sobre a dimensão religiosa e cultural que as HQS assumem em
trabalhos como Para o alto e avante: uma análise do universo criativo dos super-
heróis (2008) e O alienígena e o menino (2015). Nildo Viana e Iuri Reblin,
inclusive, organizaram uma coletânea sobre esta inter-relação: Super-heróis,
cultura e sociedade (2011), além do primeiro Grupo de Trabalho exclusiva-
mente dedicado à Sociologia das HQs, em 2012, na cidade de Pelotas/RS,
durante o III Encontro Internacional de Ciências Sociais na Universidade
Federal de Pelotas.
O esforço em utilizar as HQs como recursos didáticos para ensinar
Sociologia aparece nos trabalhos de Amaro Braga (2015b) e em diversos

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de seus álbuns de HQs (sobre os judeus no Nordeste brasileiro, sobre a


cultura afro-brasileira, sobre a formação étnica do Estado-Nação e as prá-
ticas de discriminação racial e econômica nas comunidades periféricas)
que estão relacionados à formação étnica do Brasil e ao debate sobre pre-
conceito, discriminação e racismo.
Em todos os subprodutos da linguagem dos quadrinhos é possível
encontrar temáticas sociológicas, tais como: discriminação, modelos fa-
miliares, identidades sexuais, relações internacionais, sistemas políticos,
relações de poder, estigma social e práticas religiosas etc. Da mesma
forma, clarificações na forma de exemplificações de cenas de cotidiano,
em torno de teorias clássicas e categorias importantes para discutir ele-
mentos da Sociologia, tais como: capital, mais-valia, neutralidade axioló-
gica, representações coletivas, reflexividade, habitus, consciência de classe
etc. Todos os seus subprodutos são tipos de narrativas visualmente cons-
tituídas. São de fácil acesso e consumo. São materiais que podem circular
facilmente, de mão em mão e de custo baixo. A leitura dessas narrativas,
por mais ficcionais que pareçam, são fortemente associadas à realidade
circundante e contém dados, situações e práticas relacionadas às situações
sociais, políticas, religiosas e econômicas cujos leitores e produtores com-
partilham em algum grau. Sua leitura pode ser usada tanto para motivar a
percepção crítica do olhar sociológico (percebendo situações sociais des-
critas de maneira abstrata nas teorias) como pauta de investigações sociais
de como o imaginário processou determinados acontecimentos sociais
historicamente. Assim, surgem questões: como distinguir os padrões de
solidariedade em mundos pós-apocalípticos? Como os sistemas de gover-
nos são retratados nos cenários ficcionais das HQs? Quais os critérios de
distinção social e status entre os grupos de super-heróis? Como as mulhe-
res (e outros grupos minoritários) são representados em gibis de humor,
de terror, de superaventura ou nas HQs infantis? Como perceber os pa-
drões de discriminação que circulam socialmente através de charges e ca-
ricaturas publicadas nos jornais/internet? Como a circulação de HQs es-
trangeiras contribuem para os processos de aculturação, transculturação
e interculturalidade? É possível uma leitura etnográfica do jornalismo em
quadrinhos?

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Ensinar Sociologia com HQs pode ocorrer de duas formas: utili-


zando material gráfico pré-existente na forma de leitura crítica e/ou pro-
duzindo material gráfico orientado ao tema do currículo escolar no qual
o material se insere. A utilização na sala de aula pode ser direcionada pelo
docente ao se deparar com algum material que se identifique como tema
do currículo. Entretanto, é mais eficaz quando o professor identifica a
correlação entre as publicações que já fazem parte da leitura dos escolares
(BRAGA JR, 2015b). Inclusive, com atual projeção massiva das filmogra-
fias de super-heróis no cinema (e streaming de vídeo), é mais fácil ao pro-
fessor fazer as mesmas correlações.

*AMARO XAVIER BRAGA JR é doutor em Sociologia pela Universidade Federal de


Pernambuco (UFPE); professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL); especialista
em Artes Visuais (Senac), Gestão de EAD (UCB\Esc. do Exército) e em Ensino de His-
tória das Artes e das Religiões (UFRPE).

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HUMOR, o ensino da Sociologia e o:

Nelson Dacio Tomazi*

Na cultura ocidental, desde os gregos até hoje, o humor sempre es-


teve presente na filosofia, na literatura e no teatro como uma das formas
de crítica e análise das realidades sociais de uma época. O humor sempre
esteve relacionado aos costumes e às ideias de uma determinada socie-
dade, por isso é que, às vezes, o que pode ser risível para uma cultura
pode não ser para outra.
Para autores mais recentes que tratam a questão, como Sigmund
Schlomo Freud (1856-1939), Henri Bergson (1859-1941) e Vladimir
Propp (1895-1970), só para citar alguns entre centenas, o humor é próprio
do ser humano, ou seja, só o humano ri e faz o outro rir, além de ser capaz
rir de si mesmo. Como afirma Millôr Viola Fernandes (1923-2012), em
uma de suas máximas: “O homem é o único animal que ri. E é rindo que
ele mostra o animal que é”.

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