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Muitas árvores
e, aos fundos, o imenso quintal. As escadas brancas nos levava para outro país,
para a rua, aquela pacata rua chamada Benjamim Constant, em Belém do Pará,
que para nós parecia apenas um trecho sem importância, diante de nosso mundo
esquina da São Jerônimo à Dr. Morais. Com o decorrer dos dias fomos
descobrindo novos fragmentos e outros, ainda outros, até que tomamos conta da
realidade que nos pareceu comovedora: aquela rua que pensáramos nossa e
pequenina era imensa, começava muito longe, muito, entre capina e acabava
com a descoberta. Então não éramos só nós e as nossas, nossos amigos e nossos
ensaiava em maio para o junho festivo. (Meu irmão mais moço sonhava ser
pastor um dia; mas isso foi muito mais tarde, e quando conseguiu o papel num
pastoril especialmente criado para ele, fracassou inteiramente como ator. Tinha
Uma rua tão cheia de gente com trehcos pobres, outros muito mais pobres,
pedaços mal calçados, outros sem calçamento. Uma rua enorme, muito povoada,
e dentro dela, branco, elegante, solene mesmo, aquele palacete onde nascemos.
Satisfeitos em saber que a rua era um grande bem coletivo, começamos a
futebol, havia uma hora em que minha mãe, penalizada de tanto esforço dos
O quintal era o nosso feudo. Ao fundo aquela senhora vegetal tão gorda,
tão grande que só ela marcava uma enorme sombra no quintal imenso: a
doces do forno.
Não posso precisar hoje quem promovia esse diálogo, mas posso asseverar
que a voz mais doce e a mais cheia de cuidados era de minha mãe velando pelos
nossos destinos, como um grande amor alado. Que outra coisa ela foi?
exemplo: certo pintor da vizinhança, que não admitia gritos e que mandava à
nossa chefe – minha mãe – bilhetes pedindo silêncio, muito silêncio, pois ele
precisava pintar.
Era realmente um homem esquisito; sua casa ficava noutra rua, a grande
A velha mangueira jamais nos acolheu em seus braços e hoje creio que ela fosse
sombria, misteriosa, quase floresta escura. Era grande e velha, impunha respeito
nós o freqüentávamos com fidelidade; depois, dele não precisávamos para viver.
frutos dando para a rua, e na rua, do outro lado, Sinhazinha e seus sequilhos.
especiais, pareciam mais para ser olhadas do que amadas. Eram arbustos...
vida passada, se uns foram grandes e outros menores, tive quem contasse estórias
Perfumava todos.)
É por isso que até hoje sou capaz de dizer bom dia a uma mangueira e
meninice que está ficando cada vez mais distante, minha mocidade navegando
ao longe.
Que será feito hoje da caramboleira? Teria sido cortada? Estará ainda viva?
É agora uma matrona, e se ficou tão gorda quanto era no passado, pode hoje ser
com certeza, que suas irmãs foram minhas irmãs de travessuras. Sabem e é por
Durante o inverno a sala era tão úmida, que engelava mãos e obrigava os
pés um constante sapateado; no verão a sala era quente, tão quente que parecia
monotonia, pois nossa constante preocupação era inventar formas para que eles
variados, quando alguém dizia como se preparava esse ou aquele prato, podia-
de mar, praia, montanhas ou planícies, podia-se ver nos olhos famintos uma
Detenção, Pavilhão dos Primários, 1935, 1936, 1937, 1938. Quem já esqueceu o
desaparecimentos, torturas?
vinte e cinco camas. Quase presas ao teto alto, quatro janelas fechadas por umas
tristes e negras grades. Encostadas à parede, uma grande mesa com dois bancos.
Ao fundo da sala, os aparelhos sanitários. Por maior que fosse a nossa luta para
exalavam.
abater. Os filhos de Rosa eram nosso filhos. Sabiamos as graças e as manhas com
que embalavam aquela mulher forte, arrogante, atrevida sempre mas tão doce,
tão enlevada pelos "meninos". Quando Rosa falava nos "meninos" ficávamos
silêncio das noites, Rosa fazia com que assistíssemos aos nascimentos, aos
noivo. Queríamos saber suas notícias, coisas que nem a própria noiva conhecia.
(como estudava e lia Valentina) e queríamos a viva força que Nise desse lições de
Psicologia.
Um dia - jamais esquecerei esse dia - fazia muito calor e havia sol.
devia estar bela; era verão e com certeza ruas e avenidas ensolaradas viam passar
mulheres de vestidos claros e leves. Na sala, aquela tarde, havia tanto calor que
paciência, algumas, e o calor era tanto que nem tentávamos falar. Qualquer gesto,
sobreviver.
E foi nessa tarde que tenho gravada na memória que ela entrou na Sala
das Mulheres. Nunca esquecerei seu ar de espanto nem aqueles sapatos que
grades; depois ela entrou. Estatura mediana, vestido estampado, olhos curiosos.
- Quem será?
e o nosso próprio interrogatório: de onde vem, que fez, por que foi presa, seu
- Não sabemos quem é você. Mas nós somos antifacistas, nós somos presas
políticas. Cada uma de nós tem sua estória; esta veio presa do Norte, aquela está
beijou-lhe o rosto e pôs-se a exclamar com grandes lágrimas descendo pelo rosto
alquebrado:
O olhar com que agora envolvia as vinte e cinco mulheres era diferente;
chorava e ria. E contou. Contou com voz firme o quanto sofrera. A Polícia
seios.
sempre com voz clara, precisa, serena, em tudo que passara nas rpisões desta
de prisão em prisão. Ora era metida em celas de prostitutas, ora no meio das
ladras ou ébrias. Durante mais de dois meses sofreu humilhações físicas e morais.
queriam dar-lhe um pedaço de pão, de doce, uma fruta. Comia sorrindo. Sua
Minutos depois voltou o guarda. Explicou que fora engano. A prisão para
- Muito pior.
Quando partiu deixava vinte e cinco amigas. Não lhe dissemos adeus, não
A tarde tão quente de verão foi mais longa e dolorosa naquele dia.
Três meses depois ela voltou. Veio viver conosco. Todas as noites, à meia-
noite, levantava-se e andava, andava de um lado para o outro, sem uma palavra.
psicose.
matou-a.
Sabo, para mim, foi uma revelação; jamais conheci mulher tão culta, tão
Na noite em que ela partiu com Olga Benário para o navio que as levaria
a Hitler, era inverno e tiritávamos de frio. sofríamos ainda mais, porque tínhamos
aprendido a amá-la.
vinte e cinco mulheres da sala ora fria, ora quente, do Pavilhão dos Primários.
bem que saiba que o santo português que é que é tenente-coronel, do Exército
satisfatoriamente. A Santo Antônio nunca solicitei favores; nunca sei pedir nada
para mim mesma a ninguém, nem mesmo a meus melhores amigos. Consegui,
nos momentos precisos, resolver sozinha meus romances. Hoje dele nada mais
De São Pedro quase nada sei, a não ser que guarda as chaves do céu, lugar
Mas como São João o caso muda inteiramente de figura; São João é
Aprendi a amá-lo muito cedo. Creio que ele deve ter sido um dos
primeiros amores de minha vida, e ora contarei porque São João e eu somos tão
muitas felicidades.
Tomai de uma lata de banha bem limpa. Dentro dela, com bastante água
habituados aos caros, raros e belos perfumes franceses, cujos rótulos lembram
baunilha (só uma fava) e corrente. Deixai ferver e ferver muito. Depois – ah
depois – deixai esfriar e está pronto o vosso banho de São João, que deve ser
festiva, com a correria de homens carregando à cabeça tabuleiros cheios das ervas
de meu tempo.
deixava de comprar seu banho para aquela noite? Nos fogões e nas fogueiras –
as mesmas que iriam iluminar a noite do santo –, a grande lata fervendo. São João
para o ar as pistolas. Naquele tempo não havia, como hoje, bombas e morteiros
chamávamos foguetinhos.
claras enquanto gritávamos: “minhas estrelas são as mais bonitas! Tenho mais
estrelas do que tu!” Cada bola de cor que nascia de uma pistola era u grito de
direito de, naquela noite aquele – rara noite – dormi mais tarde, porque no dia de
São João nascera meu pai e, à meia noite, mesmo com a mesa cheia de iguarias,
mesmo que ela estivesse coberta de cristais, no quintal corria, em cuias pretas, o
manguzá.
ferver o banho da felicidade. Soltávamos gritando: “São João disse, São Pedro
confirmou que havemos de ser compadres que Jesus Cristo mandou”. Podía-mos
parentesco, porque o dom das fogueiras juninas é crias e ampliar novas famílias,
Somos muito amigos, por tudo isso, São João e eu. Nunca houve na minha
infância o raiar de um dia de 24 de junho sem que minha família tivesse sido
– Irmã, não. De irmã não pulo com ninguém. Irmã só mesmo de meus
Conheço-a há pouco tempo, mas tenho por ela a maior das simpatias. É
operação plástica facial, que acabe com as minhas rugas, devolvendo-me ao rosto
não fosse a longa explanação que dela ouvi sobre a técnica do rejuvenescimento.
quanto ao custo.
qualquer quantia.
grande perigo é que muitas mulheres, quando saem da casa de saúde despidas
muito importante — saber o que tirar, qual a ruga ou grupo de rugas que devem
compras e eu para trabalhar, despedimo-nos. Sua frase final andou comigo pelas
— Essa coisa está ficando tão comum e obrigatória que daqui a cinco anos
ouviremos uma mulher dizer que está com hora marcada num médico: — "Hoje
vou fazer minha operação plástica" — como hoje diz que tem hora marcada no
defender e conservar a beleza, mas depois dessa conversa pensei um pouco nas
minhas rugas, pobres rugas que jamais serão desfeitas e que até aquele momento
As rugas de minha testa apareceram cedo. Depois li que elas são o prêmio
concedido, a partir dos dezoito anos, às pessoas que costumam se preocupar com
Operando minhas rugas, eu poderia depois pensar sem que outras rugas
que o importante: é ter sempre saúde mental, física e moral. Pensei em George
minha vida foram a maternidade e a amizade." Com essas duas paixões quantas
com as operações plásticas a preço módico — cinqüenta mil cruzeiros — não mais
haverá brotinhos, balzacas ou coroas. Infelizmente a divisão de classes
continuará por algum tempo, e por isso no Brasil, daqui a pouco só serão velhas
aos milhares.