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O azul do féretro

Os dias que antecipavam o Dia de Finados eram para nós sinônimo de diversão,
alegria, entusiasmo. E não tem nada de estranho nisso, pois para pivetes como nós que
pouco saíamos de casa, acompanhar minha mãe e outras amigas alguns dias por semana
ao cemitério, se tornava um acontecimento muito singular. Descobríamos novas
construções, como uma igreja velha, já abandonada, cheia de imagens de santos
empoeirados, uma lagoa escura ladeada por carnaúbas antigas e um matagal fechado que
se abria apenas pela vereda onde caminhávamos um atrás do outro; árvores enormes,
como juazeiros, umbuzeiros carregados e cajueiros que convidavam à aventura de escalá-
los e apanhar os cajus mais vermelhos da copa, os mais difíceis de serem alcançados, os
mais saborosos e de um doce sem igual, como um mel que embebedava até os pássaros
que bicavam a superfície de suas polpas. A caminhada era longa e a adrenalina que nos
enchia o corpo fazia-nos saltitantes caminho à frente, diante das mulheres com baldes e
sacolas. Todos os anos era assim: as covas na areia seca do cemitério ganhavam vida
pelos cuidados dessas mulheres. Carregavam baldes de água de um cacimbão que ficava
num baixio a uns setecentos metros do cemitério. O caminho de volta do poço era
cansativo e fatigante. Montes - quase dunas - de areia frouxa se acumulavam no percurso
vencido por aquelas mulheres de latas e baldes nas cabeças, determinadas a cumprir tão
contumaz missão todos os anos. Ao chegar ao cemitério, cada qual delas dirigia-se à
morada dos seus entes de outro tempo; com as mãos, se dedicando com o cuidado
extremo, arrancavam os matos pequenos, muitas vezes, rumas de carrapicho
entrincheiradas, douradas pelo afogueado de um sol rubro, que se alvorava ao bater nos
mármores das tumbas… Davam até medo meter a mão! Depois de limpa a terra, regavam
aquele pequeno pedaço de chão até a umidez completa, de modo a deixá-lo fértil para
receber o arroz em casca. Passados os dias, depois do plantio, feito em desenhos
engenhosos, como corações, estrelas, retas, círculos, flores, a palha virgem do arroz, de
um verde-amarelado brilhante, formava uma vista linda, o chão da cova ficava
primorosamente lindo. No dia de Finados, era lindo de se ver as covas simples, sem
alvenaria, sem epitáfios, amontoadas quase que umas por cima das outras de tão perto
que ficavam, verdinhas, contrastando com o chão seco que rodeava as minúsculas ruas
que as margeavam. A coroa de flores de plástico posta sobre a cruz e o nome do finado
completavam o trabalho daquelas mulheres e os elogios eram muitos no dois de
novembro.
Mas, e nós? Durante todos esses dias do preparo e arranjo das covas, às vezes pela
manhã, muitas vezes, à tarde, sempre que chegávamos ao campo santo, matávamos a
curiosidade inicial de ver os túmulos em mármore, os nomes dos mortos, retratos.
Corríamos toda a área interna do local e nos fixávamos, durante muito tempo, no setor
onde eram enterradas as crianças, ou como os adultos falavam, os anjinhos. As cruzes
brancas e azuis, sem nomes, empoeiradas e derreadas na torrente da areia desértica do
cemitério causavam em nós imensa ternura e comoção, de modo que ao contemplarmos
calados durante longo tempo, evitávamos passar por ali de novo, deixando-os como que
esquecidos à visita. Fora toda essa tristeza e silêncio, de onde ecoavam as barulhentas
conversas das mulheres e fora o mistério que nos fazia rodear as catacumbas à procura de
coisas estranhas, coisas que não eram do nosso mundo, como panos velhos e até
minúsculos pedaços de ossos, coisas que estavam ligadas aos mortos, o resto era diversão.
O que mais me vem à memória é o nosso passeio em cima do muro do cemitério. Aquele
lugar era magnífico para nós. O muro era alto, branco e enorme; o cume arredondado de
sua superfície era um desafio que nos provocava a vencê-lo. Cair ou pular de lá em algum
lugar que não num dos recantos, de onde somente lá conseguíamos escalá-lo, era o que
mais nos botava medo; cair para o lado de fora, então, era coisa que nos aterrorizava!
Caminhando em cima do muro, nós éramos grandes, donos, invencíveis pelo mistério ou
o medo, estar em cima do muro favorecia nossa visão, panorâmica ao ponto de divisarmos
todas as covas, a capela do centro e, principalmente, as nossas mães que não paravam a
conversa. Se um de nós caía para o lado de dentro, acompanhava os demais colegas ao pé
do muro, sempre conversando e tentando tirar a concentração de outro para que esse lhe
fizesse companhia no percurso interminável. Sozinho, quem caísse poderia correr até o
ponto onde estavam as mulheres, mas isso implicaria contornar verdadeiros vales entre
covas e covas, faces mortas coladas no azulejo das jardineiras e penduradas aos gradilhos
enferrujados que nos alimentava as mais horríveis sensações. O mistério transformava-se
num medo mudo inexplicável que hoje ainda não sei definir direito.
Mas havia um local durante o percurso ao qual evitávamos olhar para a parte
externa. Não lembro de algum dos meus colegas ter falado que olhou por conta própria.
Na verdade, até um certo dia, ninguém olhou. Era um dos lados do cemitério que
correspondia ao fundo do terreno. Segundo os adultos, era ali onde “sossegavam” as
almas dos corpos que estavam enterrados ali dentro. Então, ninguém ousava. O fato é que
acreditávamos no que as mulheres falavam, acreditávamos que as almas mais miseráveis
permaneciam naquele local mais escuro que os demais, coberto de moitas de marmeleiros
gigantes, a conversar, a penar pela sua situação eterna. Então, quando passávamos por
aquele local específico, voltávamos o rosto para o lado de dentro, com as pernas suadas
e trêmulas e com um tanto de cuidado a mais, prevenindo-se de uma possível queda para
fora. Muitos de nós passavam ali agachados, escanchados no muro, mais seguros do
sucesso da travessia. Mas um dia, a curiosidade, ou mais, a inevitável força da
contemplação do estranho e do indecifrável venceu em mim o medo oculto. E eu olhei
para o lado de fora. Não vi tantos mistérios, exceto um caixão velho, fechado e azul.
Restos de concreto, tábuas desgastadas, uma enxada e gravetos no chão. O mistério
acabaria ali se não fosse aquele caixão fechado e azul. E o mais estranho era justamente
essa cor. Os poucos caixões que eu havia visto em velórios não tinham essa cor, aliás, não
tinham cor alguma, eram cor-de-caixão-de-defunto, com uma pequena janelinha de vidro
na tampa por onde mirava-se o rosto do morto até a primeira par de areia cair-lhe na face,
para nunca mais ser vista. Mas aquele caixão penso, numa ruma de concreto com areia,
era azul como o mar ou, antes, como o céu, de um azul perfeito. Alguém havia jogado
aquele caixão ali há algum tempo. Mas antes tivera o cuidado de fechar-lhe. Talvez
aberto, a impressão lhe perturbasse, como me perturbaria, com certeza. Mas fechado, o
mistério projetava-se na insólita sensação que se apoderava de mim ao mirar aquilo.
De início, veio à minha mente um rosto que poderia estar além daquela tampa, de
olhos fechados, pele amarela e dura. Isso me causou um verdadeiro terror. Eu fazia o
trajeto todo pensando em ver um dia, não sei, aquele caixão aberto para que esse rosto se
dissipasse na minha imaginação, se desfizesse para que eu, de certa forma, desconhecesse
aquela cara, já familiar. Um homem, sem barba, nem bigode, nariz comprido,
sobrancelhas finas, cinquenta anos. Havia falecido quando? Onde? Em que
circunstâncias? Provavelmente, teria sido uma doença cardíaca. Não, não! Um câncer!
Sim, um câncer o teria matado. Aquilo ficou em mim.
Passado o Dia de Finados, esperava ansioso a próxima época do próximo ano,
para acompanhar minha mãe no arranjo das covas. Alguns dias depois, ouvi dizer que
aquele caixão havia sido doado pela prefeitura ao cemitério para servir de féretro aos
defuntos cujas famílias humildes não pudessem comprar um caixão novo. Confesso que
assisti a dois enterros naqueles tempos em que os mortos eram depositados diretamente
na vala e a areia jogada diretamente sobre o corpo morto e a face inexpressiva. Mas não
lembro daquele caixão. Na certa, fora novidade de cinco ou seis velórios daquelas
redondezas. Sujo, inutilizado, jogaram-no naquele local sombrio e ali permanecia
sucumbindo ao sol e às chuvas.
Nos próximos anos que visitei o cemitério, percorrendo com meus amigos o muro,
olhava para para o ataúde cada vez mais desgastado, com seu azul claro e forte mantendo-
se intocável. Meu Deus – eu pensava – quem haveria usado aquele caixão? Ficava
pensando nos mortos dentro dele, nas pessoas chorando, no cortejo até o cemitério. O
rosto implacável em minha memória, desde a primeira vez, multiplicava-se agora em
muitos rostos, de mulheres, velhos, mas que eu jamais havia visto. Olhar para aquele
caixão azul me fazia lembrar de pessoas que eu não conhecia, nem sequer sabia em quais
covas estavam, pessoas que criaram laços, foram felizes ou tristes, provaram do gosto da
vida terrena e se foram para sempre. Anos depois, para minha surpresa, caminhando em
cima do muro, já sem o encanto que aquilo me trazia, o caixão estava sem a tampa, ou
melhor, sem a tampa no local. Estava aberto. A tampa estava estragada metros ao lado.
Meus olhos caminharam para o interior do caixão: uma almofada e panos brancos sujos
do último corpo que ali havia sido conduzido. Era isso, e só! Poderiam ter enterrado este
último corpo no próprio caixão, mas a família não aceitara, a reclamar um último desejo
do finado. Não sei quem fora este último a ocupar-lhe. Nunca soube. Nunca me disseram.
Do caixão, penso que não existe mais nada. Hoje, o muro branquinho tornou-se baixo, o
ambiente perdeu muito daquele misterioso ar que nos alimentava a imaginação mais
profunda rumo ao esquisito. As coisas parecem mais decifráveis. Na última vez que fui à
visita de finados, caminhei até o lado do muro onde jogaram o caixão, para olhar além da
parede alva, mas o rosto amarelo daquele homem de cinquenta anos me fez recuar. Talvez
a sua imagem estivesse muito ligada àquele caixão azul. Tentei esquecer o caixão e o seu
azul sublime; tentei desfazer o rosto daquele homem que eu não sei quem era ou se existiu.
Apesar de hoje isso aparecer-me como um episódio da vida de criança, as duas tentativas
foram sempre em vão.

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