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Olhos nos Olhos

Do Furacão
12.10.13

Redemoinhos. Catavento. Sopros de sua voz azulando suave em meu coração! Tão encorajadoras
suas palavras! Ver as fotos das meninas, então... Luisa de Branca de Neve pronta pra mandar em
todos os Sete Anões e descartar de sua história a bruxa de uma vez por todas! E Mari com a
sabedoria de uma Cora Coralina em semblantes que atravessam a noção do tempo ou espaço. Fico
muito feliz com suas possibilidades de mudanças, com sua sinceridade ao colocar seus receios. E
também inspirado pela sua grande coragem em trazer à sua vida chances de atuar numa escala mais
vertical que simplesmente linear. Nureyev disse uma vez que depois de tanto tempo, ainda sentia
medo ao entrar num palco. É surpreendente se considerarmos sua originalidade e ousadia. Tão
excêntrico e revolucionário artista que ele foi. Vi Nureyev dançar em 1983, já aos 45 anos de idade.
Luz emanava de seu corpo. Vê-lo em cena era como observar alguém tomando um drink em sua
sala de estar. Ali era seu habitat. Tão viva sua performance que a audiência transformava-se num
ecossistema ao seu redor. A magia do artista na sua capacidade em criar do nada... novos mundos...
Do medo ele disse que era assim mesmo que deveria ser, senão a
expressão de sua dança perderia o encanto e a frescura. Isso procurei
sempre trazer como um mote para o meu Trabalho. Começar cada manhã
com a surpresa de uma flor que se abre sem julgar o destino do jardim ou a
tonalidade do céu. Ser intenso e resignado perante o destino. Eu não teria
meios de réguas ou esquadros para desenhá-lo mais sábia e perfeitamente
que as das chances que este rápido teatro de vida me apresenta nesta
forma atual.
Ainda que Nureyev não estivesse visivelmente interessado em qualquer
trabalho espiritual sobre sua alma, já que ele mesmo afirmou que havia
vendido sua alma à dança, toda sua coragem, seu ser, sua luta para se
tornar um gênio movido a esforços árduos aliados a um talento descomunal
e mais a legitimidade de seu carisma, sempre me trouxeram um símbolo da
seriedade requerida a tudo o que almejei fazer desta medida de tempo
disponível e reservada para mim no decorrer dessa existência.
Portanto, sua coragem ao experimentar novos passos me indica também
uma rara qualidade, que você parece buscar alterando sua rotina já
estabelecida e que será alcançada desta vez num nível superior, tenho
certeza. orientada que é pela sua suprema ousadia ao tentar uma
coreografia marcada em nome e honra da excelência.
A cultura grega que atingiu seu ápice de maturidade no Período Clássico
contava como alicerce da formação da pólis, o cultivo de certas virtudes
básicas, as arethés, das quais a Coragem era uma das componentes, junto
com Reverência, Justiça, Hospitalidade e Temperança. A cultura helênica,
solar e divina, sucumbiu ao domínio do Império Romano mas seu legado
está impresso em toda a história da civilização ocidental como uma tatuagem
movida a ferro e fogo sobre nossa pele. A própria forma em que os
Evangelhos foram compilados e redigidos, seguindo já uma tradição vinda de
fontes completamente distintas, foi orientada pelo mais forte modelo de
literatura que emergiu no Mundo Antigo, a Odisseia. É peculiar a diferença do
Antigo para o Novo Testamento, se considerarmos que o personagem
principal deste segundo seguia a tradição dos Profetas da Torá. Ele afirmou
num certo ponto que não viera destruir a Lei ou os Profetas (Mat 5: 17,18).
Mas o evento tsunâmico que Cristo foi, iniciou uma página completamente
distinta na História. Todo o Cisma da Igreja Católica no século XI pode ser
resumido na afirmação concisa de que a Igreja Ortodoxa, por seu turno,
baseara-se principalmente na Filosofia Grega. E foi desta Igreja que surgiram
os Patriarcas do Deserto e toda a profunda literatura religiosa contida na
Philokalia. Ainda que a Igreja Romana tenha tentado apagar a disseminação
do pensamento de alguns filósofos gregos na Idade Média, a inegável
e corajosa cultura helenista fez vários gols de tabela nas traves da
Inquisição, aquela que ousaram um dia chamar 'santa'. Desse tipo de
ousadia, baseada em crimes morais e éticos ninguém precisa. Ali a filosofia
do cristianismo viveu seu inverso em termos de geometria cartesiana. Todo o
Trabalho anterior do evento Cristo ficou ali reduzido a potenciais números
negativos. Cristianismo a menos um.
Falar de mim? Como hei de? Após todo este passeio que tivemos minha vida
reduz-se agora a um pequeno sopro. Mas posso dizer que a Ulpan tem sido
meu objeto de desejo, Ju. E que é lindo ver a lógica dessa língua semítica
cristalizar-se num cérebro desacostumado a ela. A grande surpresa
redentora da novidade outra vez! É muito bom que meus trabalhos têm
permitido tempo suficiente para eu estudar e colocar energia em meus
escritos e aquarelas. Considerava antes de vir para Jerusalém, que morar
numa aldeia como Ein Karem traria condições mais naturais e férteis a tudo
que tenho almejado para a direção da minha vida, principalmente no tocante
a Mahamudra. Mas o curso que o rio foi tomando me faz velejar mares antes
não pensados. A nascente de água cristalina de onde bebemos é hoje foz,
resultando em grandes oceanos. Os remos criam calos com o tempo, assim
como as facas. Faço do meu avental engordurado uma prece. Fique com
todo meu Amor. Sempre. Beijo sua fronte de luz. Que ela veja cada dia mais
longe! Seu no Dharma. C.

PS: Redigira ontem à noite uma carta linda para você. Uma tecla errada e
tudo se perdeu, veja só! Restou-me a certeza do que gostaria de dizer-lhe.
Tentei hoje, sem muito êxito, seguir o mesmo itinerário, mas, navegador
atento, alerta aos novos ritmos da maré que o momento sempre pede, deixei
que o Amor, mapa sagrado, conduzisse a nova travessia. Geografia em
acertos. Mar belo.
Conheci o Cemitério Israelita do Chora Menino. Sempre tive muita curiosidade de entrar
nele apesar de seu aspecto sombrio e abandonado. Minha avó portuguesa, com quem ia
regularmente ao cemitério cristão, jamais aceitou minhas ideias de visitar aquele local. Era
mesmo impossível, já que a entrada que dava acesso a ele pelo outro cemitério estava
sempre fechada. Desde que me lembre, o Mikvá sempre teve aquela mesma aparência
sinistra e carcomida pelo tempo quando visto pelo portão da entrada oficial do cemitério, na
Rua dos Portugueses. Achava que era uma igreja, algum local de culto e preparo funerário.
Mas não havia cruz naquele domo, apenas uma estrela enferrujada que para mim
representava um enigma. Não havia judeus naquele bairro, nada nem ninguém que
informasse por que aquele lugar existia justamente ali. Mas algumas tardes, após as aulas no
Externato Consolata, quando eu já tinha bem uns onze anos, tomado de coragem entrava
sozinho no cemitério como quem adentrava um lugar de mistérios. Encontrei lápides caídas,
caminhos irregulares cobertos pelo mato que crescia e o interior do Mikvá completamente
imundo, com um cheiro forte de urina, fezes pelo chão e pombos que ali acharam abrigo em
alguns nichos. As letras hebraicas nas lápides me intrigaram particularmente. Lembro-me de
copiar algumas delas nos meus cadernos. Procurei anos por uma foto desse lugar. Há pouco
tempo, já morando em Israel, comecei a pesquisar algum material disponível sobre o
Cemitério Israelita e soube então da estória das polacas. Hoje encontro essa imagem icônica
do Mikvá, algo que aguçou a curiosidade de toda minha infância. Algum dia preciso
escrever uma estória sobre ele…
O Cemitério Judeu Abandonado

Zona Norte de São Paulo. A Avenida Imirim prolonga-se num ganges


interminável cortando dezenas de bairros. Em quilômetros de ironia, o destino
quis que ela começasse depois do Cemitério de Santana, inaugurado em 1897 e
terminasse antes de outro, o de Vila Nova Cachoeirinha.
Em 1926, um grupo de mulheres, a Sociedade Feminina Religiosa e
Beneficente Israelita, comprou um grande lote de terreno na necrópole de
Santana para inaugurar ali um Cemitério Israelita, separado do outro por um
muro e com entrada principal pela Rua Nova dos Portugueses.
Guinendel Lubinsk e Lola Brand, membros daquela sociedade falecidas em
1922 e 1924 antes da inauguração em 24 de maio de 1928, foram sepultadas
num outro lugar e nas lápides de seus túmulos, custeados por duas amigas, lê-se
a mesma inscrição em hebraico: “Deseja-se que sua alma não seja mais
encarnada”.
Encimada em seu domo por uma estrela de seis pontas, havia uma capela
naquele cemitério judaico, já praticamente abandonado quando o conheci. O
sentimento de um tempo perdido para sempre permeava a ferrugem de seu
portão permanentemente fechado. Era como um segredo que no bairro ninguém
contava porque não sabia.
Nunca vi ninguém ali, fosse colocando flores ou mesmo algum jardineiro
cortando o mato que invadia então as pequenas alamedas de silêncio.
Minha avó portuguesa, com quem ia com frequência ao outro cemitério cristão,
era a única com idade e conhecimento que poderia me dizer alguma coisa. Mas
ela também de nada sabia. Quando perguntada a respeito, sua única resposta
era: ‘É dos judeus.’
Havia outro portão que dava acesso àquele recanto de mistérios por onde
passávamos quando ela ia a outros sepulcros de pessoas que conhecera, o que
nem sempre fazia. Era algo que até evitava quando estava comigo, pois
incondicionalmente eu pedia a ela que entrássemos ali.
-’Mas o que é que você quer fazer aí dentro? Você conhece alguém que foi
enterrado aí?’
-’Eu só queria ver como é...’
Por alguns segundos ela concordava e parava sob alguma sombra que a
protegesse do sol escaldante e me deixava espiar pelas grades.
Lápides intrigantes sem nenhuma cruz sobre elas, um espaço relativamente
pequeno e repleto de ciprestes. Pouco mais de duzentas pessoas foram
sepultadas naquele espaço onde reinava uma paz diferente. A capela no centro
erguia-se como um forte, derrotado e calado de orações. Um cadeado grande
lacrava uma velha corrente enferrujada de sonhos antigos. Que chaves
desvendariam tantos segredos? Tudo era triste e desolado.
-’Chega! Vamos embora que vai cair um temporal!’
Minhas questões não eram respondidas. Caminhávamos sob seu guarda-chuva
de mãos dadas. Relâmpagos riscavam o céu negro atrás dos muros...
- ‘Mas por que eles têm um cemitério só deles e não vêm colocar flores?’
- ‘Não pise nas poças de água que depois não há quem tire essa lama!’
Quando passávamos diante do portão principal, já na nossa rua, eu via a chuva
luzindo os mármores negros e sentia medo. Talvez fosse isso o que mais me
atraía, o medo daquilo que nunca conheci.
Alguns anos depois, voltei da escola fazendo um percurso mais longo para um
curto pecado e entrei de propósito no cemitério judaico.
Abandonado, sua capela era então utilizada como vestiário pelos funcionários
da outra necrópole e o portão interno ficava aberto.
Era uma conquista silenciosa entrar naquele lugar proibido, selado desde
sempre; estar perto daquelas lápides que vi distantes por tanto tempo não trazia
respostas. Havia inscrições num idioma desconhecido e diferente, sem
fotografias que identificassem os mortos, frutos secos e ramos de ciprestes
caídos sobre algumas tumbas formavam um tapete de uma nostalgia perdida
cuja história ninguém adivinharia.
Copiei algumas daquelas letras num dos meus cadernos. Sem que eu soubesse,
aquela foi a minha primeira lição do alfabeto semítico. Voltei ali mais algumas
vezes, por teimosia e curiosidade, sem qualquer medo de que alguma pessoa me
visse. Meu sentimento era sempre o mesmo diante de um enigma que ninguém
sabia decifrar. Por que tanta negligência?
Tomado de coragem, numa tarde de inspirada ousadia, entrei naquela capela
sombria e fui tomado então de um pavor fatídico: vi seu interior completamente
imundo, paredes mofadas e janelas lacradas, um cheiro forte de urina e fezes
pelo chão de pombos que acharam abrigo em alguns nichos.
O estado profanado de um espaço que algum dia talvez até tivesse desfrutado de
alguma santidade, criou em mim um misto de indignação e remorso, uma culpa
pelo que não era. Como o abandono podia pisotear com o passar do tempo
aquilo que teve um início tão diferente? Houve decerto um princípio onde tudo
era novo e digno. Em que ponto tudo se perdera? Onde estavam as pessoas que
tinham os seus entes queridos enterrados ali naqueles túmulos de mármore tão
preciosos, tão esquecidos? Teriam morrido também?
Assim, eu ficava ali até que um sentimento de medo fosse tomando conta de
mim e me fizesse fugir de forma apressada e sem razão, um visitante no mínimo
insano e desastrado, é isso o que fui!
No mesmo ano em que saí da capital para estudar num seminário no interior de
São Paulo, o cemitério judeu foi definitivamente desapropriado por conta de
total abandono. A antiga Sociedade Beneficente não existia mais porque suas
fundadoras agora estavam ali também, vítimas do mesmo desterro, despejadas
no além-túmulo.
Sonhei com cemitérios a vida toda. E depois de um certo momento eram
lugares em que evitava entrar. E nesses sonhos sempre havia coisas a fazer,
obrigações que nunca estavam claras. Mas tinha que cumpri-las. E nada ficou
pela metade.
Mas persistiu a lembrança daquele lugar abandonado que incitou tanto minha
fantasia e meus medos infundados, repleto de ciprestes empoeirados apontando
o mesmo céu que sempre me sorriu cúmplice a tantas tempestades que cometi.
Nas aulas de hebraico em Jerusalém, após anos de muitos temporais, a silhueta
da capela era como um sino de saudade. Procurei no google alguma referência e
uma noite pasmei com algumas pistas e respostas que me aturdiram. E achei
uma imagem sinistra da capela, já em seus últimos dias de ruína.
As Polacas, prostitutas judias que chegaram a São Paulo no início do século
XIX organizaram-se e obtiveram a concessão para serem enterradas de acordo
com sua religião naquele lugar que não as excluiria, como as necrópoles
judaicas oficiais e ortodoxas. O mesmo aconteceu em Cubatão e no Rio de
Janeiro.
É nas Polacas que eu penso quando vejo qualquer cemitério em Israel, uma
âncora que o destino delas não conheceu, um porto onde suas rotas não
atracaram jamais. A elas foi concedido o direito de permanecerem invisíveis,
esquecidas entre a fumaça e a malícia de uma moral estúpida que elas
reverteram em sedas e volúpia, santas putas de um mundo imbecil que não vale
delas nem o elástico de uma liga!

Mortas talvez houvesse muitas.

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