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A gramática do grotesco não se materializa apenas em obras de arte, como num quadro de
Goya ou num filme de Cronenberg, mas pode ser vista e sentida nas relações mais corriqueiras e
também nas mais “elevadas” – numa piada de churrasco de domingo ou num discurso na bancada
da ONU, como já demonstrou Jair.
Tanto quanto o “belo” ou o “harmônico”, o grotesco “funciona como signo de comunicação,
abrindo-se para uma semântica do imaginário coletivo e fazendo-se presente na ordem das formas
sensíveis que investem as relações intersubjetivas no espaço social”. Como se dá esse investimento,
e com quais efeitos? Segundo Paiva e Sodré,
O grotesco, assim, faz “descer ao chão tudo aquilo que a ideia eleva alto demais”. Sua
eficácia crítica, quando direcionada à classe política, é portanto altíssima; mas pode também, e
geralmente é o que ocorre, descambar da crítica para o escárnio puro e simples – no popular,
frequenta o perigoso limite “avacalhação”, esvaziando-se assim de qualquer potencial construtivo.
Semelhante eficácia, argumenta Sodré, funda-se nas "vivências emocionais primordiais" do
ser humano, quando "o psíquico e o corporal revelam-se em estreita conexão" – daí a profusão de
metáforas que associam a política ao coito, ou, como vimos no 8 de janeiro bolsonarista, e já aí não
se tratava de uma metáfora, à defecação. A estética bolsonarista, enfim, trata-se de uma sofisticada
estratégia comunicacional, que promoveu estímulos à dimensão humana mais impermeável aos
argumentos racionais: a dimensão emotiva.
Relegadas pela tradição racionalista ocidental por altamente subjetivas, suscetíveis e
predispostas ao melodrama, inimigas portanto do rigor objetivo que o intelecto supostamente
demanda, as emoções encontraram na generalização tecnológica do espetáculo a sua desforra.
Televisão, whatsapp, instagram são espaços privilegiados para o cultivo das emoções, esfera que
encontra-se, para Sodré, "no centro da nova sociedade da informação e da comunicação".
Desde 2013, a extrema-direita provou-se mais consciente do que seus antagonistas de que
esse arranjo demanda outras abordagens por parte de quem pretende manter-se na vanguarda das
disputas políticas. Improváveis peritos nas estratégias sensíveis de que fala Sodré, souberam
reciclar, neste "mundo especializado do estético, todas as velhas e gastas imagens, guardadas nos
arquivos óticos" da autoproclamada brasilidade tradicional.
“Na noção de gosto”, explicam Sodré e Paiva, “operam motivações estéticas, morais e
sensoriais”. De um lado, a agressividade "autêntica" de Jair, a maneira com que ele emula a
indignação do "povo", o planejado desleixo de suas aparições públicas, sua branquitude paulista; do
outro, a convicção (sem provas) na sem-vergonhice de um velhaco, o nordestino ex-proletário de
“nove dedos”, como o tratam aqueles que o detestam: tudo nessas representações transpira
significados. Mas, mesmo tosca, e por isso de fácil compreensão, o enredo grotesco logrou
emplacar a sua "narrativa", e sua missão estava assim cumprida.
Porém, uma vez estabelecido nas instituições políticas, o caos e a dissociação promovidas
pelo grotesco tendem a ali permanecer, e saneá-las há de tomar muito tempo. Pois toda a
“dissonância” a que se prestam tais representações “não se resolve em nenhuma conciliação”,
tornam a avisar Sodré e Paiva: dos espetáculos proporcionados pelo grotesco “decorrem o espanto e
o riso, senão o horror e o nojo”, e nada mais.