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Resumo
O artigo trata, a partir da descrição e análise do que aqui será classificado como “acontecimento
Giuliana Vallone”, dos limites de certa abordagem estruturalista das relações entre mídia, poder
e sociedade. Embora seja útil na medida em que sistematize e dê inteligibilidade a tais relações, o
estruturalismo presente, por exemplo, na obra de Hallin & Mancini e Jeffrey Alexander, é por
demais duro para abordar os momentos de ruptura e ajustes nestas relações. O “acontecimento”
(FRANÇA) - fato impactante que desorganiza as continuidades do presente gerando
interrogações e suscitando sentidos - embaralha as categorias estruturalistas, realoca o poder e
rearranja os atores. Nessas ocasiões críticas em que a harmonia é deixada de lado a “estrutura”
dá lugar ao “movimento” (MENDONÇA apud TURNER p. 90), as oposições se escancaram e a
sociedade lida com suas contradições: a este movimento as categorias que compõem o
“pluralismo polarizado”, o “profissionalismo da mídia” e o “paralelismo político”, conforme
propostos por Hallin & Mancini, não conseguem alcançar.
Palavras-chave
Protestos de 2013; estruturalismo; drama social; acontecimento; Folha de S.Paulo.
Introdução
1
Tradução minha de: “We attempt to identify the major variations that have developed in Western
democracies in the structure and political role of the news media” pg 1. “Our purpose here is to develop a
framework for comparing media system and a set of hypotheses about how they are linked structurally and
historically to the development of the political system”.
2
Tradução minha de: “the press always takes on the form and coloration of the social and political
structures within which operates” (Siebert, Peterson and Schramm’s apud Hallin)”; “The belief that the media have
become an important ‘exogenous’ variable affecting other political institutions is one reason scholars in
comparative politics have begun to pay attention to media institutions they previously ignored”
sociedade diminui o intercâmbio e o trânsito de opiniões entre estes dois “polos”. A mídia,
afinal, se insere no seio da sociedade, fala dela e para ela.
Os principais lances desta negociação entre imprensa, sociedade e poder
político, conforme será defendido a seguir, se deixam entrever no “drama social”
(MENDONÇA, 2014) que envolve os acontecimentos marcantes. Nestes momentos, mesmo as
características determinantes de um “modelo midiático” são tensionadas com a entrada de novos
atores e o questionamento das estruturas dadas: no acontecimento a ser analisado, por exemplo,
que se relaciona com as manifestações de junho de 2013, a mídia chamada “alternativa” acabou
pressionando a mídia “tradicional” a rever seus procedimentos na cobertura das manifestações;
as reportagens mais tradicionais da “Folha de S.Paulo” sobre os ocorridos passaram a conviver
com transmissões ao vivo do tipo “live blog” no site do jornal, tal qual fazia o canal “Mídia
Ninja”. Em outras palavras, a “Mídia Ninja”, ligada ao movimento “Fora do Eixo”, organização
cultural de esquerda, conformou em certa medida a cobertura dos protestos na “Folha”, jornal de
maior circulação do Brasil. O “profissionalismo” esmiuçado por Hallin & Mancini, que leva em
consideração, entre outros fatores, a independência do jornalista em relação a instituições
políticas e ideológicas, não é de muita ajuda para aclarar o que se deu nesse caso.
Outra das categorias apontadas por Hallin & Mancini é o “paralelismo político”,
isto é, a reflexão, no nível da mídia, das posições políticas em determinada sociedade. Nas
palavras dos autores, “o paralelismo político possui diferentes componentes, e há diversos
indicadores que podem ser usados para se entender o quão forte ele está presente num sistema
midiático. Talvez de forma mais básica, ele se refere ao conteúdo da mídia – de que maneira os
diferentes veículos refletem orientações políticas distintas em suas notícias e reportagens” (2004,
p. 28). Em outro trecho, eles apontam que o “paralelismo político também se manifesta na
partidarização dos leitores da mídia, com apoiadores de diferentes partidos e tendências políticas
comprando diferentes jornais” (2004, p. 28) 3. No exemplo que se seguirá, em que será
demonstrada a maneira como a “Folha” inverteu sua posição em relação aos protestos de junho
de 2013, a categoria “paralelismo político” perde parte de sua força explicativa. Se antes do dia
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Tradução minha de: “political parallelism has a number of different components, and there are a number
of indicators that can be used to assess how strongly it is present in a media system. Perhaps most basically, it
refers to media content – the extent to which the different media reflect distinct political orientations in their news
and current affairs reporting, and sometimes also their entertainment content”;
“Political parallelism is also often manifested in the partisanship of media audiences, with supporters of
different parties or tendencies buying different newspapers or watching different TV channels”.
13 de junho a “Folha” refletia determinada “orientação política”, por uma convergência de
fatores essa orientação mudou radicalmente do dia 14 em diante. Do mesmo modo, o lugar que o
jornal ocupava entre os leitores se tornou outro, a ponto de a “Folha” comemorar, quando do
cancelamento do aumento das passagens, a “vitória” dos manifestantes que ela antes chamava de
“vândalos”.
Mais a frente no livro, explicam Hallin & Mancini que no “pluralismo
moderado” prevalecem tendências políticas centristas, as diferenças ideológicas são menos
distintas e há certo consenso de aceitação às regras fundamentais que moldam a ordem política
(2004, p. 60). Guardadas as diferenças pontuais, o Brasil, antes de junho de 2013, poderia ser
classificado dentro do regime do “pluralismo moderado”. Já no “pluralismo polarizado”, dizem
os autores, a divisão entre os grupos políticos e ideológicos é profunda, o consenso é baixo e a
legitimidade do sistema político é constantemente questionada (2004, p. 60). Estas características
descrevem com mais precisão o momento político brasileiro pós-junho de 2013. Tamanha
mudança no panorama de uma sociedade e a possibilidade de toda uma nação transitar do
“pluralismo moderado” para o “pluralismo polarizado” (se é que esse paralelo é possível)
demonstram como as categorias estruturalistas se embaralham frente a emergência dos
acontecimentos.
Por fim, Hallin & Mancini, inspirados pela teoria da diferenciação dos campos
sociais de Jeffrey Alexander (1990), esquematizam a organização conjunta do poder político, dos
aparatos midiáticos e da sociedade:
“É função da opinião pública, organizada pelo sistema midiático, chamar atenção para
problemas importantes, mas é o governo e o sistema político quem têm a
responsabilidade de tomar decisões sobre esses problemas – a mídia e o público
discutem, mas não decidem. A organização da discussão pública sobre estes temas
simplifica a complexidade social, que de outra forma não seria manejável. Para
performar essa função comunicativa a mídia precisa ser independente dos demais
sistemas, particularmente do sistema político para o qual ela desenvolve uma agenda
temática” (2004, p. 78)4.
4
Tradução minha de: “It is the function of public opinion, organized by the media system, to draw
attention to important problems, but government and more broadly the political system has the responsibility to
make decisions about those problems – the media and the public discuss but do not decide. The organization of
public discussion around themes simplifies social complexity, which would otherwise be unmanageable. To
perform this function the means of communication need to be independent from other systems, particularly from
the political system for which they develop a thematic agenda”
Em junho de 2013, em muitos casos a cobertura da mídia conformou de certa
maneira as posições do público, mas é inegável que o contrário também aconteceu em larga
escala. Já a decisão que colocou um fim momentâneo à crise – a reversão do preço das passagens
- foi decidida pela população e ao governo, acuado, coube apenas sacramentá-la. A função de
cada “campo social”, neste caso, se desenvolveu mais pela interdependência entre eles que por
sua autonomia.
Mídia, poder e sociedade não constituem instâncias separadas; como foi dito, a
mídia se insere no seio da sociedade e reúne dispositivos que fazem produzir e circular
informações e representações desta sociedade. Nas palavras de Vera França, pesquisadora da
Comunicação, “a mídia constitui talvez a instituição que melhor caracteriza o cenário
contemporâneo”, sendo “um espaço privilegiado no qual a sociedade fala consigo mesma, a
propósito de si mesma” (2012, p. 12). Os acontecimentos que reverberam na mídia estão
intimamente ligados à experiência individual e coletiva das pessoas, e para entender a potência
que eles encerram é preciso atentar para a “convergência entre fato e sentido, discurso e ação,
afetando e sendo conformado pelos indivíduos” (2012, p. 19). Por se inserir no âmbito da
experiência, cujas condições são negociadas socialmente, os acontecimentos impactantes, que
fazem falar e agir, nos dizem dos valores de uma sociedade e nos fornecem o seu retrato. Um
olhar que ignore esse dinamismo, atentando apenas para as estruturas dadas como via de
explicação, deixa passar o modo como as estruturas, elas mesmas, são agenciadas.
Isto dito, parto para a análise e descrição dos antecedentes e dos acontecimentos
que conformaram a cobertura da “Folha de S.Paulo” durante os protestos de junho de 2013.
7
Edição disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/08
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Edição disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/10
9
Reportagem disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/em-novo-protesto-policia-joga-
bombas-em-manifestantes-1939.html
10
Edição disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/11
11
Reportagem disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/13203
12
Edição disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/12
Mas foi em 13 de junho, um dia depois de uma grande manifestação na avenida
Paulista, que o jornal expôs de forma mais contundente sua opinião sobre as marchas que
tomavam a capital. Escreve a “Folha”, no editorial “Retomar a Paulista” 13:
“A reivindicação [do MPL] de reverter o aumento da tarifa de ônibus e metrô de R$3
para R$3,20 – abaixo da inflação, é útil assinalar – não passa de pretexto, e dos mais
vis. São jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária (...)
Os poucos manifestantes que parecem ter algo na cabeça além de capuzes justificam a
violência como reação à suposta brutalidade da polícia, que acusam de reprimir o
direito constitucional de manifestação. Demonstram, com isso, a ignorância de um
preceito básico do convívio público: cabe ao poder público impor regras e limites ao
exercício de direitos por grupos e pessoas quando há conflito de prerrogativas. (...)
É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as
restrições já existentes para protestos na avenida Paulista (...)”
O jornal não poderia ter sido mais claro em sua opinião: tanto a manifestação do
dia 12 de junho, na qual compareceram, do acordo com a PM, cerca de 5 mil pessoas, quanto as
manifestações dos dias anteriores, quando também haviam milhares, eram compostas por jovens
“pseudorrevolucionários”, sem nada na cabeça além de capuzes, e fundavam-se num pretexto
“vil”. Já os procedimentos da PM, corporação que apenas no campo da “suposição” agira com
brutalidade, eram legítimos: trabalhavam no sentido de “impor regras e limites”, tarefa que cabe
ao poder público e, portanto, à PM. Na conclusão, os editorialistas pedem que a polícia faça
“valer as restrições já existentes”, endossando, assim, o uso da força.
A “Folha” ressoava a opinião de muitos de seus leitores. Embora não tenham
sido empreendidas à época pesquisas de opinião sobre o apoio aos protestos, a seção “Painel do
Leitor”, que publica trechos de cartas enviadas pelos assinantes, aponta nessa direção. “Sugiro
aos líderes desses insensatos atos de rua que revejam suas estratégias de atuação”, escreveu no
dia 13 de junho o leitor José de Anchieta; “gostaria de saber, e aí vai uma sugestão para a
reportagem, se essas organizações que protestam pagam os prejuízos que causam, se os
manifestantes são processadas (...) Conhecendo o Brasil, já tenho um palpite”, ironiza Fabio
Paschoal, no dia 8 de junho. Vozes dissonantes, contudo, encontravam espaço no mesmo “Painel
do Leitor”; no dia 13 de junho, escreveu Guilherme Cassis: “Fico assustado com a hipocrisia da
Folha ao chamar os manifestantes brasileiros de vândalos, ao mesmo tempo que chama os
manifestantes turcos de ativistas”.
13
Edição disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/13
A “Folha de S.Paulo” costuma fechar suas edições às 21:00 horas. A edição do
dia 13, que trouxe o editorial “Retomar a Paulista”, e foi fechada, portanto às 21:00 horas do dia
12, já antecipava que no dia 13 mais um grande protesto estava agendado para a mesma avenida.
A insistência dos protestos, que em pelo menos três datas levaram mais de 5 mil pessoas às ruas,
e a possibilidade real do governo e a prefeitura retrocederem no aumento das passagens já eram o
suficiente para conquistar a atenção do jornal. Assim, no dia 13, enquanto o editorial “Retomar a
Paulista” repercutia na internet – revoltando quem era favorável aos protestos e sintetizando o
pensamento daqueles que eram contra -, o jornal mandava seus repórteres as ruas.
No protesto do dia 13, como nos protestos anteriores, os manifestantes acusaram
a polícia de iniciar os ataques enquanto a passeata seguia pacífica; como no dia 6 e no dia 12,
muitos estudantes foram presos, bancos e lojas tiveram suas vidraças quebradas, objetos foram
arremessados contra a PM, jovens e idosos foram atingidas por balas de borracha e bombas de
gás e os policiais se apresentaram em geral sem identificação no colete (o que, como chamava
atenção o MPL, é vedado por lei); e tal qual no protesto do dia anterior, cerca de 5 mil pessoas
estavam na manifestação. É verdade também que a PM agiu com mais vigor do que antes na
ânsia de retomar a Paulista: na capa do dia 14 de junho 14, a “Folha” estampava a foto de um
policial agredindo um casal que, segundo a reportagem, bebia cerveja em um bar e sequer
participava do protesto. Outra das consequências do excesso extra por parte da polícia foi sentido
pelo jornal em sua própria “pele”: sete repórteres, fato inédito até então, foram alvejados por
balas de borracha disparadas pela PM. Entre eles, Giuliana Vallone, atingida no rosto e que, pelo
que se comentava na redação15 da “Folha”, corria o risco de perder parcialmente a visão.
Se havia entre os repórteres e redatores do jornal aqueles com a impressão de
que o editorial “Retomar a Paulista” fora duro demais com os manifestantes e permissivo com a
polícia, esse sentimento se intensificou na noite do dia 13, quando a edição do dia seguinte era
preparada. Nas redes sociais da internet, veículos de orientação progressista como a “Carta
Capital” já acusavam a “Folha” de haver incitado a violência dos policiais ao colocar a
desocupação da avenida Paulista como “ponto de honra”16.
14
Edição disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/14
15
Na época, eu havia sido recém-contratado pelo jornal. Todas as informações referentes à “redação” são
fruto de minha observação pessoal.
16
Reportagem disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/midiatico/editoriais-da-folha-e-do-
estadao-pediram-repressao-da-pm-1256.html
O tom da cobertura no dia 14 de junho era outro 17. O jornal trouxe depoimentos
que afirmavam haver sido a polícia quem iniciara os confrontos, publicou artigo de opinião que
dizia que os protestos “tonificam” a democracia e estampou fotos de policiais agredindo
manifestantes. O Datafolha divulgou, também, a primeira pesquisa de opinião relativa às
manifestações, apontando que 55% dos paulistanos apoiavam os protestos, embora 78% do total
considerassem que os manifestantes “foram mais violentos do que deveriam”. Curiosamente,
55% apoiavam também o uso da força policial da forma como se deu. A “Folha” informava, por
fim que Giuliana Vallone havia tomado 15 pontos no rosto em decorrência da bala de borracha
que a alvejou.
No editorial do dia 15, que repercutiu os acontecimentos do dia 13, afirmava a
“Folha”18:
“A PM protagonizou, na noite de anteontem, um espetáculo de despreparo, truculência
e falta de controle ainda mais grave que o vandalismo e a violência dos manifestantes
(...).
De promotores da paz pública, policiais transformaram-se em agentes do caos e da
truculência que lhes cabia reprimir”.
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Edição disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/18
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Edição disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/19
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Edição disponível em: http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/06/20
(...) Da revolta com a qualidade da saúde e da educação à crítica aos gastos com a Copa
do Mundo, várias insatisfações vieram à tona durante os protestos”.
Conclusão
ALEXANDER, J. C. The mass news media in the systemic, historical and comparative
perspective. In KATZ, E., & SZECSKO, T (eds). Mass media and social change. Sage Studies in
International Sociology, 22, Londres.
HALLIN, D. C., & MANCINI, P. Comparing media systems: Three models of media and
politics. Cambridge University Press, 2004.
FRANÇA, V. O acontecimento e a mídia. Galaxi (São Paulo, Online), n. 24, 10-21, dez. 2012.
MENDONÇA, C., CARDOSO, J. (org). Drama: o social e o estético em performance. In:
Experiência Estética e Performance. Salvador: EDUFBA, 2014.
*Nota complementar: todos os links para a internet foram acessados entre os dias 15 e 25 de
agosto de 2015.