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“Na prisão é menos ruim”: desespero põe moradores de rua entre a fome e o cárcere em MG

Ulisses* costuma despertar às 6h, quando se intensifica o fluxo de ônibus em frente ao


viaduto aonde improvisou seu barraco de lona, no Complexo da Lagoinha, no centro de Belo
Horizonte. Se é dia útil, vai logo à Pastoral Carcerária da Arquidiocese de BH. Precisa recarregar
sua tornozeleira eletrônica.
Na manhã de terça-feira (14), quando o TAB o encontrou na Pastoral, ele mal parava em pé.
Declarou que sua última refeição fora o almoço do dia anterior, no que uma funcionária o ofereceu
café e biscoitos, imediatamente aceitos.
Assim que se recompôs, pôs-se a falar à reportagem. Ficou em dúvida quanto a idade: teria
46 ou 56 anos? Com tantos cabelos brancos, é capaz que sejam 56, concluiu. Contou ter vivido 2
anos em um presídio na capital mineira, acusado de roubo sem ser submetido a julgamento. Em
março deste ano um defensor público tomou ciência do caso, e Ulisses foi solto sob a condição de
usar a tornozeleira enquanto aguarda a Justiça decidir.
Gostaria de arranjar um emprego, mas, como já passou por uma cirurgia na coluna, não pode
carregar peso ou ficar muito tempo de pé, o que restringe suas possibilidades. A operação fez-se
necessária após uma queda que sofreu em 2006: em meio a um surto psicótico, escalou o telhado de
uma casa no centro de Recife, imaginando-se perseguido por policiais, e caiu.
Desde então toma remédios psiquiátricos, e nos últimos meses circula pelas ruas da
Lagoinha, para onde afluem numerosos ex-presidiários. A fome, o frio e o medo de atravessar outra
crise sem ter a quem recorrer o levaram a considerar uma opção extrema: deixar a tornozeleira
descarregar de vez, tornar-se foragido e se apresentar à polícia. Assim, poderá voltar à prisão.
“Na prisão é menos ruim. Como sou tranquilo e mais velho o pessoal me respeitava. Eu
tinha até amigos lá. Já na rua é solitário demais. Acordo sem saber se vou comer ou se estarei vivo
no fim do dia”, avalia.

Um caso comum

Diretores de albergues voltados à população de rua em BH confirmaram ao TAB que


histórias como a de Ulisses não são raras. Por razões que envolvem a fome, a perda de laços
familiares, o sofrimento mental e a dependência química, muitos veem na prisão um mal menor, e
para lá acabam por retornar.
Divulgado no início deste mês, o vídeo de uma audiência de custódia em que um rapaz
acusado de roubo em Santa Luzia, na região metropolitana de BH, pede à juíza para “ficar preso até
jantar”, afirmando estar há dias sem comer, não surpreendeu Cirlene Lima, 58 anos. Membro do
Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais e há 19 anos na coordenação de projetos da
Pastoral Carcerária, ela mesma já ouviu pedidos semelhantes.
No ano passado, um de seus atendidos, com passagens pela prisão por furto de fios de cobre
da iluminação pública, tentava largar o crack. Nas ruas, a sobriedade parecia impossível: o fácil
acesso à droga, cujo um dos efeitos é inibir o apetite, tornava a tentação forte demais. Na cadeia,
argumentou à época à Cirlene, onde a entrada do crack é vetada pelos próprios presos, se
distanciaria do vício, tornaria a se alimentar e recuperaria a saúde.
“Preciso voltar pra prisão”, disse então. Cirlene o esclareceu que as coisas não funcionam
assim. Na mesma semana ele desmontou um semáforo há poucos metros de uma base policial e foi
preso em flagrante.
Atuando na defensoria pública de MG desde 2011, Alessa Veiga, 43, presenciou cenas
similares. Uma delas se deu em agosto de 2021. Condenado por tráfico de drogas, um homem de 34
anos progredira para o regime aberto. Com contas atrasadas e sem dinheiro para comprar comida,
solicitou a Alessa que transmitisse um pedido ao juiz.
“Certifico que o apenado deseja voltar a cumprir sua pena recolhido na unidade prisional”,
anotou a defensora nos autos do processo, “tendo vista estar passando fome”.
Ele permaneceu solto, e, após sucessivos meses de dificuldades, conseguiu um emprego e
alugou um quarto para morar. Temendo ser demitido, preferiu não falar à reportagem.

A rua e eu

“Falar da rua é falar de mim”, resume Helena*, 53 anos, 28 dos quais passados nas ruas e
em abrigos, e 18, entre idas e vindas, em penitenciárias. Aos 6 deixou a casa materna, fugindo dos
abusos do padrasto. Na adolescência, entrar e sair da antiga Febem, instituição que recebia menores
de 18 anos acusados de burlar a lei, era parte de sua rotina.
Ao atingir a maioridade, sabia que às mulheres em situação de rua três opções eram dadas: o
roubo, a prostituição ou a cadeia.
“Nunca fui capaz de vender o meu corpo, nem de roubar. Foi por isso que me envolvi no
tráfico. Eu queria ser presa”, conta. “Na cadeia pelo menos eu tinha comida e um lugar para deitar.
Na rua eu não tinha nada. Voltar para a prisão era o meu método de sobrevivência”.
No início deste ano, a Justiça determinou a retirada da tornozeleira de Helena, que respondia
em liberdade a um processo em que foi inocentada. Após um período vivendo sem teto, ela
começou a trabalhar na Pastoral Carcerária, auxiliando pessoas com histórias parecidas à sua, e,
assim, pode alugar um barracão, deixando enfim a vida nas ruas.
Os esquecidos

Um policial penal há quinze anos na profissão relatou ao TAB, sob anonimato, que é
habitual a chegada de detentos famintos à penitenciária. Sem vínculos fora da prisão que os
remetam kits de higiene e cigarros – a “moeda” corrente nos presídios – eles correm o risco de
tornarem-se “guardadores”.
Se numa vistoria são encontrados celulares, armas ou drogas na cela, o “guardador” é quem
assume a culpa, o que tende a multiplicar o seu tempo de pena. Quase todos os “guardadores”, que
assim livram suspeitos condenados por crimes mais graves do que furto ou roubo, viviam nas ruas
antes de serem presos, diz o policial.
O defensor público Hélio da Gama, 52, que atua em audiências de custódia desde o
estabelecimento da prática em Minas em 2015, diz que a relação entre a fome e o encarceramento
nunca foi excepcional no Brasil. Para ele, enquanto o Estado não desenvolver uma estrutura que dê
as bases para que os apenados em situação famélica resgatem sua dignidade, estas pessoas
continuarão retornando às prisões, onde ao menos terão a garantia de receber um prato de comida.
E esse grupo é legião, como revelou uma pesquisa recente da rede Penssan, referência
reconhecida pelas Nações Unidas no monitoramento da fome no país: 33 milhões de brasileiros
passam o dia sem saber se terão o que comer.
“Quando as pessoas dão as costas para esse problema, o brasileiro que passa fome perde o
amor-próprio e a esperança. Esse ser humano esquecido se fará notado pelo Estado, nem que seja no
sistema prisional”, explica Cirlene.
Samuel Rodrigues, 53 anos, é um dos líderes do Movimento Nacional de População de Rua.
Passou 13 anos sem-teto, e, em 2009, conseguiu um emprego e pôde reestruturar sua vida. Hoje
trabalha como socioeducador, e entende bem o drama dos que pedem para ficar na prisão para
poder comer.
“O desespero é o que leva alguém a esse extremo. Só quem já revirou o lixo em busca de
comida sabe o que é isso”, conclui Samuel.

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