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Um caso comum
A rua e eu
“Falar da rua é falar de mim”, resume Helena*, 53 anos, 28 dos quais passados nas ruas e
em abrigos, e 18, entre idas e vindas, em penitenciárias. Aos 6 deixou a casa materna, fugindo dos
abusos do padrasto. Na adolescência, entrar e sair da antiga Febem, instituição que recebia menores
de 18 anos acusados de burlar a lei, era parte de sua rotina.
Ao atingir a maioridade, sabia que às mulheres em situação de rua três opções eram dadas: o
roubo, a prostituição ou a cadeia.
“Nunca fui capaz de vender o meu corpo, nem de roubar. Foi por isso que me envolvi no
tráfico. Eu queria ser presa”, conta. “Na cadeia pelo menos eu tinha comida e um lugar para deitar.
Na rua eu não tinha nada. Voltar para a prisão era o meu método de sobrevivência”.
No início deste ano, a Justiça determinou a retirada da tornozeleira de Helena, que respondia
em liberdade a um processo em que foi inocentada. Após um período vivendo sem teto, ela
começou a trabalhar na Pastoral Carcerária, auxiliando pessoas com histórias parecidas à sua, e,
assim, pode alugar um barracão, deixando enfim a vida nas ruas.
Os esquecidos
Um policial penal há quinze anos na profissão relatou ao TAB, sob anonimato, que é
habitual a chegada de detentos famintos à penitenciária. Sem vínculos fora da prisão que os
remetam kits de higiene e cigarros – a “moeda” corrente nos presídios – eles correm o risco de
tornarem-se “guardadores”.
Se numa vistoria são encontrados celulares, armas ou drogas na cela, o “guardador” é quem
assume a culpa, o que tende a multiplicar o seu tempo de pena. Quase todos os “guardadores”, que
assim livram suspeitos condenados por crimes mais graves do que furto ou roubo, viviam nas ruas
antes de serem presos, diz o policial.
O defensor público Hélio da Gama, 52, que atua em audiências de custódia desde o
estabelecimento da prática em Minas em 2015, diz que a relação entre a fome e o encarceramento
nunca foi excepcional no Brasil. Para ele, enquanto o Estado não desenvolver uma estrutura que dê
as bases para que os apenados em situação famélica resgatem sua dignidade, estas pessoas
continuarão retornando às prisões, onde ao menos terão a garantia de receber um prato de comida.
E esse grupo é legião, como revelou uma pesquisa recente da rede Penssan, referência
reconhecida pelas Nações Unidas no monitoramento da fome no país: 33 milhões de brasileiros
passam o dia sem saber se terão o que comer.
“Quando as pessoas dão as costas para esse problema, o brasileiro que passa fome perde o
amor-próprio e a esperança. Esse ser humano esquecido se fará notado pelo Estado, nem que seja no
sistema prisional”, explica Cirlene.
Samuel Rodrigues, 53 anos, é um dos líderes do Movimento Nacional de População de Rua.
Passou 13 anos sem-teto, e, em 2009, conseguiu um emprego e pôde reestruturar sua vida. Hoje
trabalha como socioeducador, e entende bem o drama dos que pedem para ficar na prisão para
poder comer.
“O desespero é o que leva alguém a esse extremo. Só quem já revirou o lixo em busca de
comida sabe o que é isso”, conclui Samuel.