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Por quem A Sirene ressoa

As histórias do jornal feito para e pelos atingidos pela lama da Samarco

Antes da pandemia do coronavírus alcançar o Brasil, Sérgio Papagaio costumava percorrer


um trajeto que, do alto de seus 52 anos, ele conhece até de olhos fechados: as cidadezinhas situados
na bacia do rio Doce.
Nesse caminho, que coincide com o princípio da rota da lama desprendida pelo rompimento
da barragem do Fundão em 5 de novembro de 2015, ele distribuía as edições mais recentes do jornal
A Sirene, cujo público-alvo – e os repórteres e editores – são justamente os membros das
comunidades atingidas pelas operações da mineradora Samarco.
Como nem todos os seus interlocutores soubessem ler, era comum que se reunissem nos
alpendres das casas para ouvir de Papagaio as notícias do jornal, que sai uma vez por mês, sempre
aos dias 5. Então, se informavam sobre os processos que reivindicam a compensação pelas perdas
decorrentes do rompimento, tomavam conhecimento das reuniões com o mutirão de advogados da
Samarco e do rumo das doações voltadas para eles próprios.
Mas estas notícias constituem só uma parte dos assuntos abordados. Nas leituras públicas do
jornal, as comunidades se emocionavam também com os relatos dos amores que tiveram início na
praça de Bento Rodrigues, soterrada pela lama; relembravam as glórias do time feminino de futebol
da mesma localidade, cuja quadra sumiu em meio aos destroços; e se admiravam com narrativas
como a de Ana Clara, moradora de Paracatu que, aos 11 anos de idade no dia do rompimento, tendo
que escolher entre quais objetos salvaria da destruição, optou por levar seus livros.
Centenas de notícias como estas compõem o periódico A Sirene, que está em seu sexto ano
de funcionamento. Papagaio, morador de Barra Longa, ele próprio um dos milhares de atingidos
pelo rompimento, exerce não só a função de jornaleiro: é repórter, fotógrafo, colunista, membro do
conselho editorial e editor-chefe do jornal. E, além disso, trabalha como eletricista e vendedor
ambulante de produtos pecuários; e, antes ainda, fora garimpeiro e agricultor. Mas talvez a
atividade que o define, e inspira as demais, seja mesmo a de poeta.
“Muitos jornalistas chegaram aqui na época do crime da Samarco para saber do rompimento
da barragem. Mas a nós interessa falar também sobre os rompimentos que aconteceram dentro da
gente”, diz, resumindo um dos objetivos de A Sirene.

Um minuto de sirene

Horas após o rompimento da barragem, um grupo de amigos se reuniu em Mariana, na casa


da professora de português Ana Elisa Novais. O intuito era sofrer junto pela tragédia e mobilizar
esforços para ajudar.
Nos dias seguintes, quando ficou claro que a dimensão da desgraça excedia em muito os
limites de Bento Rodrigues, as reuniões se repetiram, e novos amigos, entre eles jornalistas,
fotógrafas, arquitetas e advogados, foram chegando. Nascia o movimento “Um Minuto de Sirene”,
cujo nome remete ao fato de que as sirenes nas comunidades próximas a barragem não soaram na
tarde do rompimento – um entre os vários erros que o Ministério Público atribui à Samarco.
Paralelamente, milhares de atingidos se instalavam de modo provisório em hotéis de
Mariana; jornalistas chegavam dia após dia na cidade e a Samarco suspendia temporariamente suas
atividades.
Se muitos estenderam as mãos aos desterrados, outros se preocupavam mais com a
manutenção de seus próprios empregos, pedindo a retomada da mineração. Mais esse estigma era
acrescentado ao fardo dos atingidos: para alguns, eles se associavam à ameaça do desemprego na
região de Mariana.
Frente a tanta desinformação, um dos colegas de Novais, o jornalista Gustavo Nolasco,
sugeriu criar um veículo onde prevalecesse a verdade dos atingidos, sem a edição da mídia
tradicional e a influência das relações-públicas da Samarco. De pronto, a Arquidiocese de Mariana,
na pessoa do padre Geraldo Martins – que é jornalista por formação –, o departamento de
Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto e o Ministério Público abraçaram a proposta.

Para e pelos atingidos

A ideia, conta Nolasco, era criar um jornal “onde todas as etapas da produção jornalística
(da escolha de pautas à distribuição) fosse revolucionada de maneira a garantir o protagonismo e a
real presença dos atingidos”. Silvany Diniz, por ter lecionado história aos alunos de Bento
Rodrigues, era amiga dos moradores da região, e coube a ela convidá-los para a empreitada.
“O jornal só faria sentido se eles quisessem participar”, lembra Diniz. Os amigos do Um
Minuto de Sirene convocaram uma primeira reunião em janeiro de 2016, já contando que se os
atingidos não aderissem, “a ideia acabaria naquele dia”. Para a satisfação de todos, o
comparecimento foi amplo, e eles compraram a ideia.
Em fevereiro de 2016 foi impressa a “edição zero” de A Sirene. Em uma linguagem popular
que se tornou uma de suas marcas, ela trazia matérias como “E se fosse com você?”, que,
reproduzindo um diálogo entre dona Maria, moradora de Paracatu de Baixo, e Marinalva, de Bento
Rodrigues, rebate o preconceito de parte dos marianenses para com os atingidos.
Já em “Quem foi a sua sirene?”, os deslocados pelo rompimento relembravam o pior dia de
suas vidas. Um deles, seu Sebastião, conta: “Minha sirene foi Deus. Vi a lama a cinco metros de
onde estava; corri muito, se não corresse morreria. Salvei minha irmã de 70 anos, carreguei ela no
colo”.

Aprendendo a ser atingido

Nolasco conduziu as primeiras edições com a intenção de passar o bastão a um dos atingidos
tão logo fosse possível. A partir do número 5, delegou a função a Milton Sena, 65 anos, que vive
entre Mariana e Ponte do Gama, outra das comunidades alcançadas pela lama.
Sem experiência na área, Sena se virou no dia a dia para organizar reuniões de pauta, fazer
entrevistas e buscar o melhor ângulo e a luz ideal para as fotos – e gostou do trabalho.
“Levo este período como uma lição de vida. Nele, interagi com as pessoas, suas histórias e
locais. Sofri, sorri e chorei com elas. Admiro e respeito muito qualquer trabalho jornalístico sério”,
diz.
Enquanto aprendiam a ser jornalistas, muitos dos colaboradores passavam por outro
aprendizado mais sofrido e desgastante: entendiam o que era ser um atingido pelos rejeitos da
mineração.
Ex-moradora de Ponte do Gama e colaboradora do jornal, Mirella Lino, hoje com 23 anos,
viveu a adolescência em meio a esse processo, e teve em A Sirene uma aliada. “Foi um
amadurecimento forçado e violento. Antes, não dependíamos da Samarco, mas no dia 5 de
novembro nossos caminhos se cruzaram e a empresa passou a ter o monopólio das nossas vidas. Faz
seis anos que buscamos retomar as coisas como eram antigamente”.
Também por isso, o lema do jornal - “Para não esquecer” - diz não só das denúncias contra a
mineradora, mas de um bem impalpável: o direito à memória. Assim, a cada edição o leitor se
depara com matérias sobre a saudade das crianças de perseguir as galinhas pelo campo e, nisso,
encontrar uma ninhada de pintinhos; ou sobre a alegria de seu Zezinho, que recuperou dos destroços
a sua coleção de camisas do time de futebol São Bento.
Com o passar das edições, A Sirene se estabeleceu como o veículo que mantêm vivos os
vínculos das comunidades. É o que opina Expedito da Silva, o Kaé, ex-morador de Bento Rodrigues
e membro do conselho editorial. “Ser atingido é como voltar a ser criança, e uma criança doente,
transtornada. Temos de comparecer a um monte de reuniões e lidar com a enrolação da empresa
para fazer o reassentamento e pagar as indenizações. Isso acaba com a gente. É no nosso jornal que
temos a chance de colocar esse desabafo, e ele sai do jeito que a gente quer colocar. Uns preferem
contar a sua história, outros querem denunciar. Cada um do seu jeito”.
O sucesso de A Sirene chamou a atenção da academia e foi tema de publicações de
importantes universidades brasileiras, como a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal
de Minas Gerais. Também a Renova, criada pelas mineradoras para, segundo elas, atuar na
“reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem do Fundão”, se interessou pela
iniciativa e criou, em meados de 2017, seu próprio jornal.
Através de sua página na internet, ela convidou os atingidos a sugerir um nome para o
periódico. Papagaio foi curto e grosso: “O Plágio”.

Risco de acabar

A pandemia alterou a rotina dos jornalistas de A Sirene. O olho no olho das entrevistas foi
substituído pelas chamadas telefônicas, e a distribuição dos jornais teve de ser suspensa. As edições
têm circulado pela internet, onde é possível ler gratuitamente todas as reportagens já produzidas.
“Era um prazer ser acolhido nas casas, e estar ali falando com outros atingidos”, lembra
Genival Pascoal, 38 anos, natural de Bento Rodrigues. Desde junho de 2018, ele divide as funções
de editor-chefe com Papagaio, e como o colega exerceu múltiplas funções, de repórter a fotógrafo e
entregador de jornais.
Mas se a pandemia cedo ou tarde há de passar, Pascoal e os demais atingidos têm outro
problema a resolver: os recursos do jornal, fruto de doações recebidas pelos atingidos, está em vias
de acabar. Para superar esse desafio sem abrir espaço para a publicidade, A Sirene lançou uma
campanha de financiamento coletivo.
“Se o jornal acabar, vai cessar uma forma que temos de gritar, de falar e mostrar para a
sociedade a injustiça de ser condenado por estar na rota da lama”, resume Marino D´Angelo, 52
anos, produtor rural que, antes do rompimento, morava em Paracatu de Cima. “Apesar de sermos
vítimas, temos que negociar com os criminosos, e com o aval do poder público. A Sirene é o lugar
que o atingido tem para expor a sua realidade e o tanto que a gente sofreu nesses anos. Calando o
jornal, mais uma voz dos atingidos será calada”.

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