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Sem clima de Copa: na ocupação Izidora, ranço da camisa da CBF marca a estreia da seleção

brasileira

Leandro Aguiar
colaboração para o TAB, de Belo Horizonte (MG)

Dia da estreia da seleção brasileira na Copa do Mundo do Qatar. No caminho até a entrada
da ocupação Izidora, na divisa de Belo Horizonte com Santa Luzia, multiplicavam-se os bares
decorados com as tradicionais bandeirinhas verde e amarelas. Terminado o asfalto, acaba também a
corrida de táxi: “tem muita lama aí, moço”, justificou o motorista. Surgem então as primeiras casas
da Izidora, uma das maiores ocupações urbanas da América Latina, onde residem mais de 30 mil
pessoas.
Entre os postes de iluminação pública recém-instalados, nenhuma bandeirola auriverde
podia ser avistada, e tampouco havia, nos muros das casas e lotes, representações do “canarinho
pistola” ou de qualquer mascote futebolística. “Você não tá vendo o clima de Copa?”, ironizou a
sorridente Charlene Egídio, 41 anos, uma das lideranças da Rosa Leão, que, junto de outras quatro
ocupações, compõem a Izidora.
Ainda em fase de regularização da posse dos terrenos, e sem contar com a infraestrutura
básica existente na maioria dos bairros da cidade, como saneamento e coleta de lixo, Charlene
explica que pintar a Izidora nas cores nacionais não é uma prioridade atualmente. “O povo tá
passando fome, e a Copa é a última das preocupações para nós. Obviamente, temos aquele
sentimento de 'olha, o Brasil vai jogar!', mas, em meio as nossas lutas diárias, o futebol perde a
relevância”, disse.
Das janelas de muitas residências, porém, emanava a conhecida voz de Galvão Bueno. E em
frente ao Centro de Poder Popular Marielle Franco, onde acontecem reuniões periódicas dos
moradores e variadas oficinas para as crianças, o Bar do Negão ascendia a sua churrasqueira para
alimentar os torcedores do hexa.

A Copa é um trauma

Durante a Copa do Mundo de 2014, quando a seleção brasileira foi nocauteada pela
Alemanha em pleno estádio do Mineirão, a cerca de 12 km da Izidora, o Bar do Negão foi palco de
grandes emoções. Muitas delas são traumáticas e, mais uma vez, nada tiveram que ver com o que se
passava dentro das quatro linhas dos campos de futebol.
A região onde fica a Rosa Leão passou a ser ocupada em 2013, em meio a escalada da
especulação imobiliária que acompanhou os empreendimentos urbanos para a Copa de 2014. Um
dos primeiros a chegar foi Célio Luiz, 38 anos, o dono do Bar do Negão. Como todos os novos
moradores que dia a dia aportavam ali, ele já não podia pagar os alugueis praticados na Grande BH.
“Ocupar uma região ociosa, que não cumpria a sua função social, era a minha única saída”, contou.
Em seus primeiros anos, os moradores tiveram que resistir a uma forte pressão pública e
privada para deixar o local, que atingiu seu auge justamente durante a Copa de 2014. Foi nessa
época que uma militante pelo direito à moradia foi assassinada na região. Rosa Leão era o seu
nome.
Abatidos, mas sem alternativas, os ocupantes decidiram ficar mesmo assim. Enquanto
transcorria o evento da FIFA, vez ou outra soava uma sirene na Izidora – sinal de que a polícia
cercava a região. Era corriqueiro que helicópteros sobrevoassem o local, atirando panfletos que
exigiam a saída imediata dos moradores, sob a ameaça de retirá-los a força caso não o fizessem.
Célio colocou a cozinha do bar a serviço da comunidade, e o estabelecimento funcionou
como uma espécie de QG da resistência. De lá, todos se aprontavam para os protestos na Cidade
Administrativa, sede do governo de Minas, e também recolhiam doações de alimentos e
organizavam as barricadas para impedir o avanço da polícia militar.
O conflito rapidamente cresceu de proporção, chamando a atenção de movimentos sociais,
que passaram a auxiliar os moradores. Em 2016, o Tribunal Internacional de Despejos, ligado à
ONU, apontou a Izidora como um dos conflitos por moradia mais significativos do planeta. No
mesmo ano, o presidente eleito do Brasil, Lula (PT), esteve na região, ouvindo as demandas dos
habitantes.
Nesse processo, muitos deles, como Charlene, foram se politizando. “Os poderosos não têm
um plano habitacional decente para a população carente, que se vê obrigada a escolher entre pagar o
aluguel e comprar comida. Essa é a nossa forma de pressionar o poder público a garantir o direito à
habitação”, disse ela.

Ranço da amarelinha

Já no apito inicial de Brasil Vs Sérvia na Copa de 2022, não se presenciavam tantas emoções
no Bar do Negão, fossem elas boas ou ruins. Só uns gatos pingados apareceram para assistir ao jogo
– e, dentre eles, apenas o pedreiro Matheus Almeida, 28 anos, trajava a camisa da seleção.
“Mas eu não sou bolsonarista!”, foi logo explicando. O rapaz apostava num placar elástico:
5 a 1 para a equipe comandada por Tite.
Ao início do jogo, um longínquo foguete se fez ouvir, e mais um torcedor uniformizado se
uniu a Matheus. Era o pequeno Bernardo Pereira, 5 anos, que vinha acompanhado da mãe, Josiane
Pereira, 32. Segundo contou ela, o uso de trajes verde e amarelos foi uma exigência da escola – e
algumas crianças, cujos pais não puderam arcar com a compra uma réplica da camisa da CBF,
optaram por faltar de aula. De toda forma, Bernardo estava animado, e portava a única corneta do
bar, que acionava sem parar. Aparentemente, era ele também o único fã de Neymar no recinto.
Sempre que o camisa 10 pegava na bola, algum dos presentes exclamava, em referência ao
posicionamento não tático, mas político, do jogador: “esse é 22, sai fora!”
“Tomei raiva da camisa do Brasil nos últimos anos”, confessa Charlene. Ela discorda de
análises publicadas recentemente na imprensa, que apontam para uma possível união dos brasileiros
em torno de um objetivo comum, a taça da Copa do Mundo. “O Bolsonaro conseguiu transformar a
nossa bandeira e as nossas cores numa coisa tão ruim, que significa a destruição de tantas vidas e
direitos sociais, que perdemos até a empolgação de enfeitar a rua”, diz.
A professora aposentada Rosemere Almeida, 54 anos, porém, pretende dar início ao resgate
dos símbolos brasileiros. “Lôra”, como é conhecida na ocupação, só assiste a partidas de futebol a
cada quatro anos, quando o Brasil entra em campo na Copa. Em sua página nas redes virtuais, ela
publicou um inusitado pedido aos bolsonaristas de seu círculo de relações: quer uma bandeira do
Brasil emprestada para torcer pela seleção. “Depois eu devolvo!”, garante. Ela ainda não conseguiu
o empréstimo.
Na oficina de Raony de Souza, 38 anos, o resgate já aconteceu. Sem a proibição de cerveja
que assola os estádios qataris, ele recebeu numerosos amigos, que vibraram ante o gol antológico do
atacante Richarlisson. “O Brasil é isso aí, tem que representar. E ele é Lula, sabia?”, disse à
reportagem.
Mas Raony faz questão de reforçar que a camisa do Brasil não tem dono. Ou, melhor, que
ela é um bem compartilhado por todos os brasileiros. “A camisa é de todo mundo. Eles usaram ela
pra fazer política, mas a bandeira e o verde e amarelo são nossos. Pra cima deles, Brasil!”

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