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Brasil,
país do
futebol?
RESUMO ABSTRACT
Como todo clichê, aquele que define o As it is the case with any cliché, the one
Brasil como o país do futebol contém that defines Brazil as the country of foot-
algumas verdades e muitos exageros. É ball contains some truths and many exag-
preciso examiná-lo criticamente. Verifi- gerations. It is necessary to examine it criti-
car o que é que se entende por esse ró- cally, explore what is meant by that label
tulo e analisar cada um de seus compo- and analyze each of its components from
nentes de um ponto de vista histórico e a historical and comparative perspective.
comparativo. A conclusão revela, então, Then, what the conclusion reveals about
tanto sobre o futebol brasileiro quanto Brazilian football is as much as it does
sobre o Brasil. about Brazil.
“[...] compreender
numa linguagem muda,
escrevendo com os pés
magnéticos e alados HILÁRIO FRANCO JÚNIOR é professor aposentado do
uma epopeia internacional! Departamento de História da USP.
Não está mesmo claro se a expressão significa país Tomando em conta as respectivas populações, o
onde o futebol é mais praticado, ou mais apreciado, ou peso do contingente brasileiro não é superior ao in-
mais bem compreendido, ou mais bem jogado, ou que glês. Por outro lado, a profissionalização reflete mais o
produz os maiores futebolistas, ou que mais vence. Ou contexto socioeconômico do que o amor pelo esporte.
todas essas coisas a um só tempo. A dificuldade em Em Bangladesh, por exemplo, 6 milhões de pessoas
decidir não reside apenas no olhar nacional a respeito, jogam regularmente futebol, mas não existe nenhuma
inevitavelmente viciado. O mesmo ocorre com estran- que o faça profissionalmente. Em termos de pratican-
geiros que gostam de futebol e conhecem bem o Bra- tes amadores, a China, com 26 milhões, os Estados
sil, como exemplificam dois correspondentes ingleses. Unidos, com 25,5, a Índia, com 20,5, estão à frente
Alex Bellos (2003, p. 103), que aqui trabalhou entre do Brasil e seus 13 milhões. Esses 7% da população
1998 e 2003, julga que se os brasileiros amam mais brasileira também ficam bem atrás dos 27% da Costa
Garrincha do que Pelé é porque este simboliza a vitó- Rica e 20% da Alemanha. Quanto aos clubes de fu-
ria, aquele o prazer de jogar: “O Brasil não é um país de tebol profissional, nenhuma cidade brasileira pode se
vencedores. É um país de gente que gosta de se diver- vangloriar de possuir 14, metade dos quais na divisão
tir”. Tim Vickery (apud Pires, 2012, p. 45), que reside principal, como é o caso de Londres. Ou de Buenos
aqui desde 1994, acredita por sua vez que os brasileiros Aires e seus 16 clubes (37 na Grande Buenos Aires),
gostam da vitória mais do que do futebol propriamente dos quais 6 na elite do futebol nacional.
dito. Tentemos, então, examinar todas aquelas possibi- Nada, também, permite afirmar que o Brasil é
lidades de entendimento da expressão “país do futebol”. o país que mais gosta de futebol. A presença de pú-
*** blico nos estádios é bem inferior à de outros países
Essa condição do Brasil estaria comprovada, afir- de tradição no esporte. Ou mesmo de tradição mais
mam alguns, pelo número de jogadores e clubes aqui recente. Em Portugal, na temporada 1951-52 (antes,
existentes. De fato, levantamento da Fifa em 2007 portanto, da inauguração dos grandes estádios entre
mostrou que o Brasil era o país com mais profissionais 1952 e 1956) foram vendidos cerca de um milhão de
no mundo, 16.200, enquanto, por exemplo, a Inglaterra ingressos, o que é muito significativo numa população
possuía 6.000. Ainda que a cifra bruta seja impressio- que girava na época em torno de 8 milhões de pessoas
nante, é preciso ver por detrás dela. Boa parte desses (Serrado, 2010, p. 331). Sessenta anos depois, no Brasil
praticantes considerados profissionais não consegue o campeonato nacional vendeu menos de 5 milhões de
viver com a remuneração do futebol, e se insistem é ingressos, ou seja, apesar da distância temporal dos
tanto devido ao sonho alimentado pelo exemplo dos dois casos, a relação ingresso/habitante foi em Portu-
ídolos milionários e famosos quanto pela impossi- gal o quíntuplo (0,125) da do Brasil (0,025). Tomando
bilidade de exercerem outra atividade. Quando, em para ambos os países a mesma data-base, 2012, a mé-
2006, o francês Thierry Henry comentou que a técnica dia de público dos três clubes de melhor desempenho
dos brasileiros devia-se ao fato de muitos garotos não nesse aspecto foi, em Portugal, de 37.465 pessoas, no
irem à escola e não terem outra coisa a fazer a não ser Brasil, de 29.694 (Pluri, 2012). Diferença ainda mais
jogar bola na rua ou em qualquer canto de terreno, significativa se tomado em conta que a população por-
levantaram-se protestos considerando a observação tuguesa é dezoito vezes menor que a brasileira.
preconceituosa e ofensiva. Todavia ela era correta, e a Mais importante, a questão não é circunstancial, é
comprovação está no fato de que à medida que o Brasil estrutural. A média de público brasileiro da última dé-
melhora seus índices sociais e tira garotos da rua, que cada do século XX foi de 12.586, e apenas em dois anos
eleva seus índices econômicos e escasseiam terrenos ultrapassou um pouco os 15.000 pagantes. Nos trinta
baldios nas grandes cidades, os craques espontâneos primeiros anos do campeonato brasileiro (1971-2000),
vão desaparecendo. As escolinhas de futebol, apesar a maior média, verificada em 1983, foi de 22.9531. Em
de métodos científicos, não substituem as “escolinhas” 2012 continuamos no patamar da década anterior,
dos terreiros. As bolas improvisadas, os pés descalços, com 13.010 assistentes nos estádios. Nossos extremos
o solo irregular aperfeiçoavam o domínio da bola e a também são piores que os de outros países: os cinco
criatividade. O futebol em certa medida é esporte da
carência, daí o eixo da exportação estar se deslocando
da América Latina para a África. 1 Placar, no 1.171, janeiro de 2001, pp. 55 e 29.
search mostrou que 85% dos torcedores brasileiros Parte essencial do clichê “Brasil, país do futebol”
não sabiam o que é a Copa das Confederações (Portal é a crença de que aqui se joga com mais habilidade,
2014, 2013) que começaria no país dois meses e meio com mais qualidade. A rigor, porém, o nível de nossas
mais tarde e da qual o Brasil era o maior vencedor, até competições é mediano, quando não baixo. O enqua-
então com três conquistas (1997, 2005, 2009). dramento institucional impede que a potencialidade
Reflexo dessa situação é a quantidade e a qua- esportiva se torne realidade. Se tivéssemos um produ-
lidade das publicações especializadas. A tradicional to futebolístico realmente organizado e de alto nível
Gazeta Esportiva, criada em 1947 e que deixou de ter técnico, ele seria visto regularmente em muitos outros
edição em papel em 2001, conheceu sua tiragem má- países, como ocorre com as competições nacionais e
xima, 534.530 exemplares, ao noticiar o Tri do Brasil continentais europeias. A Premier League, inglesa,
em 1970. Por comparação, o jornal L’Équipe, surgido por exemplo, tem 212 contratos de televisionamento
em 1946 e que circula até hoje com tiragem diária en- para o estrangeiro que lhe renderão anualmente 800
tre 350.000 e 400.000 exemplares, bateu seu recorde milhões de euros a partir de 2013-14. Os direitos te-
em 1998 com a conquista francesa da Copa do Mun- levisivos para o próprio Reino Unido foram vendidos
do, 1.645.907 unidades. Considerando as respectivas pela liga inglesa por 1.167 milhões anuais. Compu-
populações naqueles momentos, o diário esportivo tando ainda a cessão de direitos para rádio, Internet
brasileiro publicou um pouco menos de seis exem- e resumos semanais na televisão, o negócio atinge
plares por mil habitantes, o francês, 28, quer dizer 2,207 bilhões de euros por ano (no Brasil, em 2012,
quase cinco vezes mais. O brasileiro Lance!, surgido os clubes receberam o correspondente a cerca de 340
em 1997, publicou em 2012 cerca de 80.000 exem- milhões de euros).
plares diários, em claro contraste com o português A Mas largas parcelas do jornalismo esportivo na-
Bola, fundado em 1945, cuja tiragem é de 120.000, cional costumam “provar” a condição de país do fu-
com o espanhol Marca, lançado em 1938, que dis- tebol supostamente detida pelo Brasil, apontando o
tribui a cada dia entre 260.000 e 300.000 (lidos por equilíbrio de seu campeonato, onde sempre há vários
dois milhões de pessoas), com o italiano La Gazzetta candidatos ao título. A observação é procedente, tanto
dello Sport, fundado em 1896, que imprime todo dia que, em 42 anos de campeonato brasileiro, de 1971 a
300.000 (lidos por quatro milhões de pessoas, o que 2012, 17 clubes diferentes ganharam a competição.
faz dele o jornal mais manuseado do país). Todavia a interpretação do fato não é tão óbvia quan-
A grande revista mensal brasileira especializada to se pretende. A verdade é que forte concorrência
em futebol é Placar (criada em 1970) cuja tiragem geralmente significa nivelamento por baixo. Os cam-
está em torno de 100.000 exemplares. Ou seja, pouco peonatos mais equilibrados são os mais fracos – nas
menos que os 110.000 impressos pela inglesa Four- ligas europeias de 2012-13, a diferença de pontos entre
FourTwo (fundada em 1994), que além da atualida- o 1o e o 2o colocados foi de 25 na Alemanha, 15 na
de do futebol interessa-se pelo seu enraizamento na Espanha, 11 na Inglaterra, 9 na Itália, 7 na Holanda, 6
sociedade. A mesma tiragem de Placar é alcançada, na Bélgica, 3 na Suíça, 2 na Rússia, 1 em Portugal. O
com outro nível jornalístico e gráfico, pela francesa Bayern e o Barcelona foram campeões liderando seus
So Foot (lançada em 2003), de abordagem socioló- campeonatos da primeira à última rodada. Na Fran-
gico-culturalista e linguagem irreverente. Anterior ça, embora o campeão tenha dado uma arrancada na
(criada em 2000) e na mesma linha que a congênere reta final e terminado 12 pontos na frente, beneficiado
francesa, a alemã 11Freunde vende cerca de 74.000 pelos tropeços dos perseguidores diretos, a algumas
exemplares mensais. Mesmo na Suécia, de tradição rodadas do término havia apenas 2 pontos de diferen-
futebolística menor, foi lançada em março de 2000 ça, levando a revista France Football a reconhecer
uma revista refinada no tratamento dos temas e nos em editorial que o futebol de seu país “é campeão
ensaios fotográficos, Offside, da qual são vendidos um da Europa do suspense, mas lanterna do espetáculo”
pouco mais de 18.000 unidades a cada edição bimen- (Lacombe, 2013, p. 3).
sal. Assim, a proporção é de uma revista para cada Diagnóstico semelhante poderia ser feito em re-
grupo de 1.900 habitantes no caso da Placar, 1.095 no lação ao Brasil. No que diz respeito ao suspense, o
da 11Freunde, 650 no da So Foot, 527 no da Offside, Brasileirão de 2012 acabou com 5 pontos de vantagem
482 no da FourFourTwo. do campeão sobre o vice, somente 2 pontos em 2011,
Torcida do Barcelona,
durante jogo Barcelona e Ajax,
pela Copa Uefa 2013
é sempre bom. E na verdade não é assim. Bons são automaticamente; em 1950 (e 2014) o Brasil participou
alguns, craques são poucos. Tem uma turma de bons como país-sede; em 1962, 1966, 1974 e 1998, por ter
e uma turma de péssimos”5. Comprovando a consta- sido campeão da edição anterior. De seu lado, a Itália
tação, no começo de 2007 o site de La Gazzetta dello ficou de fora de duas edições, uma por deficiência téc-
Sport publicou uma pesquisa sobre os piores estran- nica, não tendo passado pelas eliminatórias (1958), ou-
geiros contratados por clubes italianos e, na lista, os tra por opção, recusando o convite a participar (1930).
brasileiros ocuparam posição de destaque. Além de A Alemanha não quis participar em 1930 e não pôde
jogadores, o raciocínio de Tostão poderia ser aplicado em 1950, igualmente absorvida que estava pela recons-
aos treinadores brasileiros, cujo mercado fora do país trução, já que tinha sido arrasada pelos bombardeios
limita-se à periferia do Oriente Médio e cuja experi- aliados em 1944-45 e debilitada pela morte de cinco
ência em grandes centros é mínima e malsucedida milhões de cidadãos. O Uruguai não aceitou disputar
(Luxemburgo no Real Madrid em 2005, Scolari no a Copa de 1934 por represália ao que considerou o
Chelsea em 2008). O fato ganha realce se lembrarmos boicote de vários países europeus à Copa de 1930, e
que nos centros futebolísticos importantes trabalham recusou também estar na de 1938, pois ela deveria,
técnicos argentinos, chilenos, portugueses, romenos. pelo princípio do rodízio, ser disputada na América
Alguns poderiam dizer que todos os argumentos do Sul e não na Europa.
anteriores são periféricos, que o importante é “dentro ***
das quatro linhas”, e ali o Brasil é o único pentacam- Existem práticas e produtos culturais bem conhe-
peão mundial de futebol. É verdade, mas também nes- cidos em todo o mundo e que pelo seu enraizamento
se domínio a superioridade nacional não é tão flagran- ou excelência estão associados a determinados países.
te quanto se gosta de pensar. Foi necessário jogar seis Entretanto ninguém pensaria em reduzir a França a
Copas do Mundo para conquistar a primeira, em 1958. “país da baguete”, a Espanha a “país da siesta” ou
Depois do tri de 1970, levamos mais seis Copas para os Estados Unidos a “país do cinema”. Como, então,
ganhar de novo, e com estilo e qualidade que nada o Brasil se tornou o “país do futebol”? Devido a um
tinham a ver com 58-62-70. Vencemos cinco vezes, constructo de princípios do século XX. Depois de cer-
mas sem que isso represente superioridade destacada ta hesitação na década de 1920 quanto à nocividade
– nossas conquistas vieram da participação em 19 Co- (por exemplo, Lima Barreto e Graciliano Ramos) ou
pas do Mundo, o que dá 26,3% de aproveitamento, en- ao benefício (caso de Coelho Neto) social da novidade
quanto a Itália tem 23,5% (4 conquistas em 17 Copas que era o futebol, a popularização dele a partir dos
disputadas), a Alemanha 17,6% (3 em 17), o Uruguai anos 30 levou muitos intelectuais a vê-lo como expres-
18,18% (2 em 11). O caso desse país é interessante, são da nacionalidade (Gilberto Freyre, José Lins do
pois com população equivalente à de uma cidade Rego, Mario Filho). Porque as virtudes desta seriam as
como Belo Horizonte alcançou dois títulos olímpicos virtudes daquele, o estilo de jogar brasileiro baseado
(que nunca conseguimos), duas Copas do Mundo, qua- no talento individual, na improvisação e na exuberân-
se o dobro de Copa América (15 contra 8 do Brasil). cia decorreria da sociedade mestiça na qual cada um
O possível contra-argumento de que o Brasil tem precisa contar com sua astúcia para sobreviver diante
o mérito de ter participado de todas as Copas – caso da frágil organização coletiva. Sendo a mestiçagem ét-
único no futebol mundial – é pouco consistente. Re- nica e cultural brasileira única no mundo pela sua am-
lembremos os fatos: em 1930 todos os filiados à Fifa plidão, o futebol que ela praticava também era único, o
foram convidados; em 1934 havia 32 inscritos para 16 que justificava, mesmo antes de surgir a etiqueta, falar
vagas, e o Brasil deveria disputar a sua com o Peru, em “país do futebol”. Desse ponto de vista, os poste-
porém este desistiu e o Brasil classificou-se sem jogar; riores resultados positivos no campo de jogo teriam
em 1938 Argentina e Uruguai, por razões políticas, sido apenas a comprovação dessa verdade intuída.
renunciaram a disputar a única vaga reservada à Amé- Tal explicação essencialista e racista era in-
rica do Sul, e o Brasil, único inscrito, classificou-se gênua e resultava de um momento histórico bem de-
finido, o que não impediu que se tornasse um mantra
longamente repetido. A razão desse sucesso foi dupla.
5 Entrevista a Christian Schwartz (Gazeta do Povo, Curitiba, De um lado, certa inércia intelectual decorrente da
10/5/2008, p. 3). prática reflexiva pouco institucionalizada (a primeira
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