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Der Spiegel 20/2014 Tradução de Gabriel Perez

Gol contra do Brasil


Justo no país do futebol a Copa do Mundo pode ser um fiasco: protestos, greves e tiroteios
em vez de festa. Os cidadãos estão furiosos com estádios caros e políticos corruptos - e
sofrendo com a economia estagnada.

A presidente do Brasil Dilma Rousseff é uma mulher destemida. Como guerrilheira,


lutou contra a ditadura militar. Na capital Brasília, ela corre anonimamente de moto pelas
ruas. Obviamente, apenas uma coisa lhe causa desconforto: a visita a um estádio da Copa do
Mundo.
Várias vezes Rousseff mudou a data de sua ida ao Itaquerão, o novo estádio de São
Paulo. Mas agora a visita não pode ser mais adiada: Em breve começará a Copa e a partida
inaugural contra a Croácia acontecerá no Itaquerão em 12 de junho. Na quinta-feira passada a
presidente finalmente esteve na arena, a cena foi um terror.
A polícia havia bloqueado os acessos, soldados espreitavam em caminhões nas ruas
transversais, agentes secretos com ternos pretos e óculos escuros inspecionavam os
visitantes.
A chefe de estado pousou de helicóptero ao lado do estádio vazio sem falar com os
moradores. Ela cumprimentou alunos de uma escola que lá se encontravam e posou para
fotógrafos. Depois apertou a mão de alguns operários e desapareceu novamente. As centenas
de jornalistas esperaram em vão por algumas palavras da presidente.
Ela já deveria ter inaugurado o estádio há meses e os jogos de teste pretendidos pela
Fifa já deveriam ter sido concluídos há muito tempo. Contudo, as instalações ainda não estão
prontas.
A quatro semanas do início dos jogos, trabalhadores martelam e serram nas
arquibancadas adicionais solicitadas pela Fifa. Tratores planificam a terra vermelha em frente
ao estádio, o percurso até a estação de metrô mais próxima é feito sobre tapumes
improvisados.
O Itaquerão é um símbolo de tudo aquilo que está fazendo desta Copa um dos mais
caros e caóticos campeonatos na história da Fifa: Os gastos explodiram, três trabalhadores
morreram em acidentes, nenhum prazo foi cumprido.
A construção de novos estádios tampouco era necessária. São Paulo dispõe do
moderno estádio do Morumbi, teria sido possível reformá-lo sem grandes esforços.
Na cerimônia de abertura da Copa, a presidente Rousseff estará sentada na
arquibancada VIP do novo estádio. Seria a oportunidade de ser ouvida pelo mundo inteiro, no
entanto a presidente se manterá calada por temer uma salva de vaias. Algo difícil de simaginar
está prestes a acontecer: A maior festa do mundo pode terminar em fiasco justo no país do
futebol. O Brasil não está no clima da Copa.

Na Alemanha, os torcedores já estão vestindo a camisa da seleção e discutindo


apaixonadamente sobre a primeira escalação do técnico Jogi Löw. As prateleiras dos
supermercados já se encontram decoradas para os jogos, a ansiedade com a grande festa
futebolística cresce.

No entanto, os brasileiros, famosos mundialmente por seu carnaval, não estão


querendo comemorar. E pontualmente quando soar o apito da primeira partida, os velhos
fantasmas do Brasil voltarão. O noticiário certamente relatará sobre os protestos, greves,
problemas de infraestrutura e violência.

Nas favelas do Rio, traficantes e policiais travam batalhas sangrentas, em São Paulo
membros de gangues incendeiam ônibus quase todas as noites.

No Rio, cidadãos enfurecidos queimaram quinta-feira passada mais de 400 ônibus


devido à greve dos motoristas. Em São Paulo, sem terras bloquearam o trânsito no mesmo dia.
Os movimentos ocorreram também em Belém, Florianópolis, Fortaleza e Belo Horizonte. Isso é
apenas uma prévia dos protestos anunciados para os jogos.
Provavelmente, apenas a seleção brasileira ainda poderá salvar o bom humor. Na
quarta-feira passada, o treinador Felipe Scolari divulgou sua escalação, o evento no Rio se
assemelhou a uma cerimônia de estado. Se Neymar e companhia vencerem, o que, aliás, o
governo está esperando, os brasileiros poderão talvez dançar e festejar em vez de protestar.

Mas o que acontecerá se o Brasil for eliminado logo nas oitavas ou quartas de final? Os
jogos terminarão em pancadaria nas ruas? Serão o políticos e funcionários da Fifa caçados pela
cidade por uma turba enfurecida?

O governo coloca panos quentes sobre esses temores. O pessimismo é parte do jeito
de ser do brasileiro, explicou o ministro dos esportes Aldo Rebelo terça-feira passada a
correspondentes internacionais no Rio – uma declaração espantosa para um governo
acostumado a vender o Brasil como paraíso da alegria tropical.

O ministro reagiu irritado às perguntas críticas relacionadas aos problemas com


infraestrutura e segurança: Ele alega que seu celular não funcionou nas Olimpíadas de Londres
e que em Paris houve protestos durante a Copa de 1998. Quando a bola rolar o entusiasmo vai
aparecer, diz.

Mas de onde vem essa sensação repentina de crise no país? Há poucos anos, o Brasil
era considerado um dos mais poderosos países recentemente industrializados, a caminho da
elite dos países desenvolvidos. Milhões de pobres chegaram em poucos anos à classe média, o
Real foi por algum tempo uma das moedas mais fortes do mundo.

O crescimento foi notável, pois o maior país da América Latina era considerado até os
anos noventa um caso perdido. A economia cambaleou por décadas entre boom e crise, os
preços disparavam, em cinco anos o Brasil trocou três vezes de moeda.

Somente com o Plano Real do social-democrata Fernando Henrique Cardoso a economia se


estabilizou, em 1994 ele foi eleito presidente. Mas foi seu sucessor que fez o país brilhar a
partir de 2003.

Justo Lula da Silva, que seus opositores demonizavam como sendo comunista,
conseguiu satisfazer igualmente ricos e pobres: Investidores adoraram os juros altos, os pobres
foram lembrados pelo presidente com seus programas sociais. Ele não precisou economizar:
Os preços das matérias primas e produtos agrícolas brasileiros subiam; a exportação de soja,
peixe e minério de ferro gerava bilhões de dólares.
Com a Copa, Lula pretendia coroar sua obra. 64 anos após o Maracanaço, quando o
Brasil perdeu o campeonato para o Uruguai, o país penta-campeão espera conquistar o hexa
em casa. Lula chorou quando Brasil ganhou a disputa para sediar os jogos em 2004.

Mas a pergunta que se faz agora é: Seria o herói nacional um ilusionista? Seria a
ascensão do Brasil um castelo de areia? Pois o outrora paraíso econômico está perdendo seu
encanto. No ano passado, seu crescimento foi de apenas 2,3%. Os pátios das montadoras em
São Paulo estão com carros novos aos milhares, várias empresas anunciaram cortes na
produção.

Também a inflação, o velho mal do Brasil, está voltando. Não há a ameaça de recessão,
mas os cidadãos já devem se preparar para uma longa estagnação.

Muitos dos grandes projetos estatais iniciados por Lula viraram ruínas: terraplenos
sem trilhos; canais que não deságuam em lugar algum; pontes sem ligação a rodovias. Bilhões
de reais foram desperdiçados.

Não se podem negar as conquistas de Lula: Milhões de


Brasileiros puderam pela primeira vez comprar casas, carros e sair do país nas férias.
Antigamente, negros só podiam ser vistos nos shoppings do Rio e São Paulo como babás ou
seguranças. Hoje eles batem perna como clientes das lojas.

Quem saiu perdendo com o boom econômico nos anos de Lula foi a classe média, que
teve que pagar cada vez mais sem receber nada em troca: Escolas e hospitais decadentes,
carros particulares entupindo as ruas nas cidades já que não há ônibus e trens suficientes. Dois
terços das moradias não possuem água e esgoto. Ao mesmo tempo em que os aluguéis nos
bairros de classe média das cidades grandes não param de subir: No Rio, alguns deles
triplicaram de valor nos últimos anos. Quem quiser abrir o próprio negócio luta contra
centenas de regulamentos, sem propina nada anda.

Muitos brasileiros de classe média indignaram-se quando se descobriu que os


governantes utilizavam dinheiro público para fins particulares. Políticos do partido trabalhista
de Lula subornaram deputados de partidos aliados para que o governo obtivesse a maioria em
votações.

Rousseff, a sucessora de Lula, anunciou ao tomar posse três anos atrás que não
toleraria corrupção em seu quadro. No entanto, agora se constatou que o nepotismo domina o
grupo petroleiro Petrobras, o coração do capitalismo estatal no Brasil. Das centrais da empresa
teriam sido desviados milhões para os EUA, de onde devem ter sido transferidos para caixas
dois de partidos políticos.

Na semana passada o congresso instalou uma CPI e até as eleições presidenciais em


outubro novas descobertas podem ser feitas a qualquer momento, ameaçando a reeleição de
Rousseff.

Carismática ela nunca foi, mas até hoje ela era considerada uma tecnocrata
competente e especialista em política de energia. Essa fama agora está comprometida, já que
sequer se exclui o fato de faltar luz durante a Copa. O Brasil obtém mais de 80% de sua
eletricidade através de usinas hidrelétricas. No entanto, os reservatórios estão quase vazios,
há meses não tem chovido suficientemente.

O descontentamento dos cidadãos com suas condições de vida mistura-se agora com a
raiva da Fifa – os estádios custaram bilhões de reais. A antiga alegria com a Copa transformou-
se em ira contra o governo e os profissionais do futebol.

Também por esse motivo podem ser extravasadas durante a Copa as tensões já
manifestadas em junho do ano passado em protestos em todo o país que, naquele período,
também se inflamaram com o futebol: Durante a cerimônia de abertura da Copa das
Confederações em Brasileira, a presidente foi vaiada pelos torcedores. Depois, ela estabeleceu
um plano de cinco metas que previa a reforma do sistema político. Quando as manifestações
amenizaram, o projeto caiu por terra.
"Sem pressão não acontece nada", diz o auxiliar Zezito Alves, que estava próximo ao
Itaquerão quinta-feira passada, antes da visita da presidente. Junto com centenas de sem teto,
ele ocupa há três dias um terreno abandonado.

Em uma noite, eles ergueram barracas com plásticos e madeira. 2000 famílias
encontram-se na ocupação, por eles chamada de "Copa do Povo". "Queremos um teto sobre a
cabeça", diz Alves. Com a construção do estádio, o preço dos aluguéis aqui duplicou, muitos
pobres foram parar nas ruas.

Os ocupantes do terreno queriam protestar em frente ao estádio durante a visita de


Rousseff, quando receberam um telefonema do gabinete da presidente: A chefe de estado os
convidava a dialogar.

Pouco após seu pouso ela conversou com Alves e quatro de seus companheiros.
"Demos a ela uma lista com nossas reivindicações, devemos receber a resposta em alguns
dias", conta Alves. E se ela não vier?

Alves diz: "Aí nós vamos para frente do estádio durante a abertura dos jogos e
quebramos tudo."

Policiais militares em uma favela do Rio: Quando soar o apito da primeira partida, os velhos fantasmas voltarão.

Jens Glüsing
"Sempre fomos violentos"
Entrevista SPIEGEL: O escritor brasileiro Luiz Ruffato sobre a relação entre futebol e política
e a hipocrisia de uma sociedade que não consegue chegar a um consenso sobre seu próprio
descontentamento.

Entrevista concedida aos redatores Jens Glüsing e Juliane von Mittelstaedt.

Ruffato, 53, é um dos mais conhecidos autores no Brasil.


Sua vida soa como um romance: Os avós eram
imigrantes italianos pobres, a mãe analfabeta e o pai
pipoqueiro. Em seus livros, Ruffato dá voz à classe
urbana menos favorecida. O autor ficou famoso com seu
romance traduzido para o alemão "Eles eram muitos
cavalos", que narra em 69 cenas um dia em São Paulo,
tão sufocante, brutal e às vezes poético, como a vida lá o
é. Ruffato não possui carro, celular, televisão e vive com
seus dois gatos em um apartamento humilde na zona
leste, onde nos concedeu a entrevista.

SPIEGEL: Sr. Ruffato, por que os brasileiros, fanáticos por futebol, perderam a empolgação
com a Copa do Mundo?

Ruffato: Futebol continua sendo nossa paixão, só se pergunta agora se precisamos de uma
Copa do Mundo. A decisão de sediar os jogos foi feita como sempre se faz tudo aqui: de cima
para baixo, sem consultar o povo e baseando-se na ilusão de que somos a sétima maior
economia do mundo – e, com isso, ricos o bastante para arcar com uma Copa. Mas não é bem
assim. O fato de sermos a sétima maior economia do mundo não significa que somos um país
rico.

SPIEGEL: O Brasil comemora ter conseguido tirar da miséria milhões de pessoas em pouco
tempo. Isso foi tudo uma ilusão?
Ruffato: De fato, a redistribuição de renda melhorou a situação das classes menos favorecidas.
Hoje, 42 milhões de brasileiros recebem o salário mínimo de 350 dólares. Isso não significa que
as pessoas saíram da pobreza. Eles só obtiveram condições de ganhar mais dinheiro para
comprar televisões e carros. Isso aumentou o consumo e transformou as pessoas em
consumidores, mas não em cidadãos. Nas áreas da saúde, educação, transportes e segurança
pública nada mudou.

SPIEGEL: A sua própria ascensão social não é um exemplo de que muita coisa melhorou?

Ruffato: Eu sou uma exceção, não sou exemplo ou símbolo do novo Brasil. Minha mãe era
analfabeta, meu pai semi-analfabeto, mas uma coisa os dois sabiam: A única chance de se ter
uma vida digna era a educação. Isso significa que meus pais sem estudo entendiam mais do
que qualquer político brasileiro. Eu deveria ter virado torneiro mecânico, mas fui em frente,
estudei jornalismo e depois vim para a literatura. Só que isso não é um caminho comum. Dos
meus amigos de infância, a maioria ou morreu por envolvimento com o tráfico ou foram dar
duro em fábricas, vivendo infelizes e tornaram-se alcoólatras. Para meus amigos dessa época
eu sou um ET. E tem mais: Tenho certeza de que se eu não fosse branco, e sim negro, não
estaria sentado aqui.

SPIEGEL: Em qual mundo você se sente em casa, no mundo da sua infância ou no dos
intelectuais de São Paulo?

Ruffato: Eu sinto que não me enquadro em lugar algum, aliás, como a maioria dos brasileiros.
Nasci na cidade de Cataguases e vivo em São Paulo. E eu pertenço a qual lugar? A nenhum.

SPIEGEL: O senhor contou uma vez acordar todo dia de manhã com medo de cair. Por que
isso?

Ruffato: Pessoas como eu, da classe média e baixa, vivem em constante insegurança. No início
dos anos noventa, a inflação era de 90 por cento ao mês. A sensação vem daí. Hoje estamos
bem, mas amanhã ninguém sabe.

SPIEGEL: No ano passado o senhor apresentou uma palestra bastante dura na Feira de Livros
de Frankfurt, na qual o senhor falou sobre o lado negro do Brasil: brutalidade, homofobia e,
sobretudo, racismo. A convivência pacífica entre negros e brancos é um mito?

Ruffato: Essa impressão de que há uma mistura pacífica de raças no Brasil é uma falácia. A
escravidão foi abolida aqui apenas em 1888 e se você examinar a ascendência dos brasileiros
de hoje, verá que seus ancestrais homens possuem normalmente origem europeia e suas
ancestrais mulheres têm raízes indígenas ou africanas. Isso significa que os homens europeus
estupraram essas mulheres. Como poderia sair daí uma convivência pacífica? Ao ser
perguntado se o Brasil era racista, o jogador Ronaldo respondeu uma vez: Sim, há racismo no
Brasil e eu sofria com isso quando era negro. Ele quis dizer que hoje não é mais negro porque
tem dinheiro. Isso é o que chamamos de embranquecimento social. O que também não
significa que a elite branca aceita esses negros.

SPIEGEL: Falam do Pelé que ele é um negro com alma branca.

Ruffato: Exato, e esse é o pior racismo que há!

SPIEGEL: O PT foi eleito porque prometeu abolir essas estruturas elitistas. Por que o Brasil
ainda é tão desigual?

Ruffato: Nosso sistema político é um legado da ditadura. Para levar adiante decisões é preciso
fazer tantas alianças que fica praticamente impossível mudar o Brasil. O PT tentou no início,
mas acabou assumindo a prática política que tanto combateu antigamente, incluindo a
corrupção.

SPIEGEL: Isso se aplica à presidente Dilma Rousseff também, que havia anunciado que
combateria a corrupção?

Ruffato: Nós brasileiros somos todos corruptos. Eu inclusive, todo mundo aqui é. A estrutura
social nos leva a isso e não faz diferença se se trata de um real ou 100 milhões. Praticamos
corrupção na declaração do imposto de renda ou quando recebemos uma multa. A corrupção
é aceita e muitas pessoas acreditam que roubar o Estado não é ser corrupto. Porque o estado
nos rouba mesmo. Há corrupção no governo de Dilma Rousseff? Com certeza há, como
também houve com o presidente Lula ou durante a ditadura militar. Nosso sistema político é
todo podre. E o pior é que nós cidadãos não contribuímos em nada para mudar isso.

SPIEGEL: O senhor uma vez descreveu o Brasil como um país no qual "se vira as costas para o
próximo." De onde vem essa falta de consideração?

Ruffato: Nós não temos senso de coletivo, somos individualistas e egoístas. A principal causa
disso, na minha opinião, é nossa elite exploradora. Ela transformou o Estado em sua
propriedade privada. Por exemplo, nossas universidade públicas: Elas são boas, mas quem
estuda nelas? Apenas os ricos, que frequentaram boas escolas e conseguiram passar no
vestibular. E quando um brasileiro ascende socialmente, ele incorpora os valores da classe
média conservadora. Aqui acontece o seguinte: Quem tem um helicóptero ultrapassa quem
tem um carro caro, o carro caro ultrapassa o carro velho, o carro velho o motoqueiro, o
motoqueiro o ciclista e o ciclista o pedestre. Ninguém olha para trás, só para cima.

SPIEGEL: Isso é o oposto da percepção que muitos têm do seu povo.

Ruffato: Acho que as pessoas frequentemente entendem o Brasil errado. Nós sempre fomos
violentos. Começou com o genocídio dos povos indígenas, seguido pela escravidão e depois a
exploração de imigrantes pobres. E vivemos praticamente o século XX inteiro sob uma
ditadura. A história do Brasil é uma história de violência. Portanto não me surpreende essa
violência de hoje em dia. Somos tão legais que podemos linchar uma mulher na rua por
suspeitar que ela sequestrou uma criança. Tão livres que assassinamos 368 homossexuais ano
passado. Somos tão pacíficos que as estatísticas estimam 500.000 casos de violência
doméstica, mas que ninguém fica sabendo porque as mulheres têm medo de ir à polícia. Então
não sei por que seríamos um povo cordial. O que temos é uma tendência para a alegria.
Apesar de nossa miséria, tentamos ser alegres.

SPIEGEL: Por que ultimamente a violência até aumentou apesar de a pobreza ter diminuído e
as favelas terem sido pacificadas?

Ruffato: A situação piorou radicalmente e, na minha opinião, por diversos motivos. As


diferenças socioeconômicas cresceram, isso é uma razão. E devido ao tráfico não ser
combatido direito, o Brasil acabou se tornando um dos mercados mais importantes. E tem um
outro aspecto interessante: No Brasil, os pobres que trabalham para os ricos são invisíveis.
Quando um pobre se transforma em criminoso, ele não vê os outros como humanos porque
ele mesmo não é visto assim. Para ele tanto faz roubar R$ 100 ou matar alguém. Acho que isso
se deve ao fato de o Estado ser ausente no dia-a-dia.

SPIEGEL: Houve muitas reações negativas à sua palestra em Frankfurt. Seus opositores
disseram que se o senhor não ama seu país, é melhor sair daqui. Por que criticar as condições
do Brasil é um tabu?

Ruffato: Acho que isso é por causa de nossa baixa autoestima. Não é legal admitir que somos
um povo violento, que somos racistas, homofóbicos e machistas. É muito mais simples fingir
que não tem nada disso. Pois assim você não precisa mudar nada. Por isso que nos gabamos
de termos as praias mais maravilhosas, as mulheres mais bonitas e o melhor futebol do
mundo. Para que deveríamos lutar por melhores condições de vida se já temos tudo isso? Por
que fazer algo contra a homofobia se já temos a maior parada gay do mundo? E para
completar, ainda somos hipócritas.
Piscina em mansão em favela no Rio: "Quando um pobre se transforma em criminoso, ele não vê os outros como humanos"

SPIEGEL: Uma herança da ditadura?

Ruffato: Com certeza. A maioria dos brasileiros cresceu em sistemas autoritários. Fomos
criados a pontapés. Raramente olhamos nos olhos de alguém, e sim sempre de baixo para
cima; um olhar de gente com medo.

SPIEGEL: Em 2014 o golpe militar está completando 50 anos. A ditadura durou mais tempo
aqui do que em quase todos os países da América Latina. Contudo, vocês ainda mal
conseguem lidar com o passado. Por que isso é tão difícil?
Ruffato: Nós brasileiros gostamos de evitar o confronto. Sempre que podemos, resolvemos as
coisas colocando-as para baixo do tapete. A história ensinada nas escolas é uma história com
poucos conflitos: o conto de uma democracia racial, de um povo feliz. Mas ainda não
superamos a ditadura, continuamos tendo uma ditadura velada da elite política e econômica.

SPIEGEL: Há um ano vêm acontecendo a toda hora protestos de cidadãos insatisfeitos contra o
governo. Esse é o começo de um movimento maior que trará reformas para o sistema político?

Ruffato: Não gosto de fazer previsões, até os economistas e metereologistas erram sempre. O
certo é que os protestos indicam uma insatisfação geral, já que pessoas foram às ruas por
motivos diversos. Uns exigiam um Estado mais forte, outros um sistema educacional melhor.
Alguns estavam insatisfeitos por ficarem todo dia três horas no trânsito indo para o trabalho,
alguns por não poderem sair de casa de noite por causa da violência. E outros porque seus
filhos estudavam em escolas onde não aprendiam nada. Ou seja, insatisfação tem bastante. O
que faltam são metas comuns.

SPIEGEL: Por que até na insatisfação os brasileiros estão tão divididos?

Ruffato: Porque no Brasil o que é de todo mundo não é de ninguém. A gente só se importa
quando os problemas nos atingem. Se o vizinho foi assaltado, não temos nada com isso. Se eu
tenho um carro blindado, não vou ligar para os assaltos. Se há crianças com fome nas ruas, não
é problema meu se meus filhos tiverem o que comer. Não temos senso de coletivo.

SPIEGEL: O futebol pode ser uma pá de cal sobre essa divisão?

Ruffato: Por um lado é verdade que o futebol une pobres e ricos. Mas ele também é um
instrumento de dominação empregado para encobrir diferenças sociais. Quando o Brasil
conquistou o tricampeonato em 1970, as repressões estavam em seu auge. Opositores da
ditadura militar estavam sendo torturados e assassinados.

SPIEGEL: O futebol ainda é utilizado politicamente hoje em dia?

Ruffato: Com certeza, nada mudou. No começo se dizia que a Copa beneficiaria a população e
as cidades-sedes por causa dos investimentos em infraestrutura. E agora vemos que tudo foi,
sobretudo, uma oportunidade para a corrupção. Foram construídos estádios que ninguém
precisava e desperdiçaram o dinheiro público. Essa é nossa triste realidade.

SPIEGEL: O senhor, como grande fã de futebol, irá assistir os jogos em algum estádio?
Ruffato: Não, porque os ingressos são muito caros e não posso pagar. Por isso que o povo
brasileiro não será visto nos estádios. Deu para observar bem na final da Copa das
Confederações: O estádio todo estava cheio de espectadores brancos assistindo nossa seleção
composta predominantemente de negros. É uma metáfora do Brasil: Os negros suam para a
elite se divertir.

SPIEGEL: Sr. Ruffato, agradecemos pela entrevista.


Caçada a elefantes brancos
Haverá protestos e revolta nas ruas durante a Copa como houve ano passado na Copa das
Confederações? A reforma do estádio lendário do Maracanã é um exemplo de como os
políticos se distanciaram do povo. Por Jens Glüsing e Maik Großekathöfer

Protestos contra a Copa do Mundo no Brasil

Hamilton Moraes Theodoro é brasileiro e ama futebol, porém ele não quer assistir a
nenhum jogo durante a Copa do Mundo em seu país. Nem no estádio, nem na televisão. Ele
tem outros planos. Mais importantes, alega.

Theodoro trabalha como professor em Angra dos Reis, ele dá aula de História em uma
escola pública e diz: "Nosso povo está sendo roubado nessa Copa. Não quero ir preso, mas vou
assumir o risco. Quero ir para as ruas e protestar."

Ele chegou ao Rio de ônibus, próximo ao Pão de Açúcar, e viajou três horas para contar
sua história. Sentado em um sofá, com as mãos cruzadas sobre a barriga como se estivesse
rezando, um homem de baixa estatura e 37 anos, trajando jeans e camisa passada. Theodoro
se considera um ativista radical. Sua esposa e filha esperam na sala ao lado, passando o tempo
vendo novela.
Theodoro pigarreia. "Simpatizo com quem se opõe a violência do Estado. Eles causam
desordem porque querem dizer algo." Ele se refere aos black blocks, os encapuzados que
ficam nas primeiras fileiras nas manifestações. "Não quero abrir mão do direito de expressar
minha opinião. Mesmo que eu tenha que pagar caro por isso."

Ele aponta para seu olho esquerdo atingido por uma bala de borracha disparada por
um policial. Um ou dois milímetros e Theodoro teria perdido o olho.

Aconteceu no verão passado durante os protestos na Copa das Confederações, o


ensaio geral da Copa do Mundo. Naquele período nascia a geração de junho: jovens
escolarizados da classe média que protestavam contra políticos corruptos, contra o
desperdício de dinheiro público, contra o abuso de poder. Contra a Copa.

Primeiro marcharam 500 pessoas, depois 5.000, um dia depois já eram 100.000, e
depois mais de um milhão. Carros ardiam em chamas, sirenes apitavam, pedras voavam, seis
manifestantes morreram. "Não vai ter Copa", gritavam estudantes, garçons, secretárias.

"Vai ter Copa", diz Hamilton Moraes Theodoro, "mas não como a Fifa imaginou."

O que se passará durante a Copa? Haverá pancadaria nas ruas? O que acontecerá no
Rio, onde a final será disputada? Essas perguntas pairam sobre o campeonato como uma
nuvem de gás lacrimogêneo.

Theodoro está furioso. Furioso porque ele ganha apenas R$ 970 por mês, 300 euros, o que é
pouco para um professor. Vergonhosamente pouco. Furioso porque as passagens de ônibus
aumentaram. Porque falta luz constantemente. Os transportes estão caóticos. Furioso por
estarem construindo estádios monumentais enquanto escolas e hospitais estão degradados.

A Fifa exigiu oito estádios para a Copa, o governo brasileiro mandou erguer ou
modernizar doze. É uma megalomania. Juntos, os estádios custaram 2,7 bilhões de euros, ou
talvez mais, não se sabe ao certo. O tribunal de contas, o ministério dos esportes e o portal de
transparência: três órgãos oficiais, cada um deles cita números diferentes. Seja quanto for,
nenhum país gastou tanto com uma Copa. E quase tudo pago com recursos públicos.

Ainda falta um mês para a Copa do Mundo, mas no Rio mal se sente o clima de
empolgação. Normalmente as pessoas no Brasil fazem desenhos para a Copa nas ruas, pintam
as ruas com cores do país, em verde, amarelo e azul, penduram bandeirinhas, fazem concursos
de quem melhor decora suas casas. Até agora não se vê nada disso.
"As pessoas não estão com vontade de festejar", diz Theodoro. Ele teme que a polícia
reprima violentamente os protestos durante a Copa, mas não quer se deixar intimidar.
"Desobediência civil é o meu dever."

O que se passará na Copa? Haverá revoltas? O que acontecerá no Rio?

Do lado de fora desaguava uma tempestade, quando Christopher Gaffnet abriu a porta
de seu apartamento, na Praia de Botafogo, décimo segundo andar. Ele está descalço, vestindo
calça cargo e camisa de linho. Gaffney, um americano de Vermont, vive já há cinco anos no Rio
e trabalha como professor visitante na Universidade Federal Fluminense dando aulas de
planejamento urbano e pesquisando os impactos sociais e econômicos da Copa do Mundo. O
que ele tem a dizer não soa como futebol, samba e praia. Garrney desenha um cenário
sombrio.

"Não é só o Rio, não são só as favelas: O Brasil inteiro se encontra em estado de


guerra. Na frente dos estádios estarão tantos policiais e militares quantos forem necessários
para a Copa acontecer", diz Christopher Gaffney.

Ele escreve um blog chamado "Caçando Elefantes Brancos", em referência aos estádios
que ninguém mais precisará depois da Copa. Em Manaus, Cuiabá e Brasília não existem times
jogando nas duas divisões mais importantes.

O maior pecado para Gaffney, no entanto, é a renovação do Estádio do Maracanã.


Porque ela mostra exemplarmente como os políticos se distanciaram do povo.

O Maracanã, aquele estádio lendário, é o lar do futebol Brasileiro. Era, deve-se admitir.
Para a Copa, refizeram todo seu interior e roubaram sua alma.

"Não havia nenhum lugar no Rio, ou melhor, no país inteiro, que fosse mais
democrático que o Maracanã", diz Gaffney. "Era um lugar para todos. Agora é só para a elite."

Para a Copa de 1950, 11.000 trabalhadores construíram o Maracanã; enquanto a


Europa ainda estava em ruínas. Um símbolo em concreto contra o racismo e a ditadura. A
arquibancada era redonda para que todos tivessem a mesma visão do campo. Havia apenas
duas categorias de assentos. Nada de lugares marcados. Todo mundo ficava onde queria.
Quando os times trocavam de lado, os torcedores mudavam de posição.
E era para todos terem acesso. Cabiam 200.000 pessoas no Maracanã, um décimo da
população do Rio, aquele era o maior estádio do mundo. Os ingressos para a categoria inferior,
a "geral", custavam tão pouco que eram acessíveis até para mendigos.

Os franceses tinham a Torre Eiffel, os americanos a Estátua da Liberdade. E os


brasileiros o Maracanã.

Ele foi reestruturado três vezes. Em 1999 as fileiras superiores receberam cadeiras, a
partir de 2007 já não havia mais lugares em pé. 105 milhões de euros custou a reforma de sete
anos atrás, mesmo assim tudo teve que ser refeito para a Copa, segundo os padrões da Fifa.
Apesar de o estádio ser um prédio tombado, apenas as colunas externas foram mantidas. A
renovação devia ter custado 200 milhões de euros, mas viraram 400 milhões. Dinheiro público,
conforme se diz.

Um grupo de três empresas administra agora o Maracanã, o contrato é válido por 35


anos. O estádio não comporta mais nem metade do público de antes, mas agora há 125
camarotes, cada um com 50 metros quadrados, com bar e área descoberta. O Maracanã agora
tem a cara de um estádio da Fifa. Ele poderia estar em qualquer lugar: Londres, Frankfurt,
Yokohama.

Christopher Gaffney diz: "Transformaram o Maracanã em um shopping center com


grama no meio. Um estádio para a televisão, não para os brasileiros. Isso é um assassinato
cultural."

Há cadeiras articuladas coloridas no Maracanã, mas elas ficam frequentemente vazias.


Ingressos mais baratos custam R$ 80, quase 26 euros. Quem consegue pagar isso? No jogo do
Campeonato Carioca entre Flamengo e Madureira, 2487 pessoas pagaram entrada.

Os torcedores não podem mais acender sinalizadores. Se quiserem trazer bandeiras ou


banners maiores, eles devem ser inspecionados pela polícia. E não podem mais beber cerveja.
A atmosfera é ruim porque só as classes mais favorecidas vão ao Maracanã e eles não cantam
porque não conhecem os hinos das torcidas.

Gaffney é cientista, mas não é imparcial. Ele pertence a uma organização nacional
chamada Comitê Popular da Copa. Um dos muitos círculos grandes e pequenos que estão se
engajando. Todas as terças feiras ele se encontra com outros membros, entre 30 e 50 pessoas,
para planejarem seus atos.
Há quatro anos eles protestam contra a privatização do estádio. Eles caminham com
bandeiras pelo Rio nas quais se lê "O Maraca é nosso". A mensagem é clara, o sentimento por
trás dela idem.

Os ativistas do comitê popular dizem estar organizando 64 manifestações para a Copa,


uma em cada jogo. O objetivo deles é impedir a realização de pelo menos uma partida.

Eles já sondaram os ingleses, pode ser que com eles dê certo.

A seleção estará sediada no bairro de São Conrado, localizado pouco distante da praia
de Ipanema. No caminho para o aeroporto os ingleses precisarão passar por um túnel que os
manifestantes pretendem fechar. "Se conseguirmos, será histórico", diz Gaffney.
Ele também protestou no ano passado. Uma máscara de gás ele não tem, a proteção
contra os gases irritantes da polícia é feita com vinagre, leite e limão. Gaffney bate com os nós
dos dedos sobre a mesa: Até agora ele não foi ferido.

Em sua opinião, a Copa tem apenas um objetivo: garantir lucros polpudos para a Fifa.
"Está na cara. Por isso as pessoas querem protestar. E as manifestações serão notadamente
mais brutais que na Copa das Confederações", diz.

Gaffney luta porque o governo mais do que cumpre os desejos da Fifa. Mas não
mantém o que prometeu ao povo.

Quando o Brasil foi confirmado como a sede da Copa em outubro de 2007, as pessoas
no Brasil esperavam que agora finalmente as ruas seriam renovadas, as linhas do metrô
expandidas, mas dos 49 projetos maiores que deveriam estar prontos neste verão, 13 foram
interrompidos, reduzidos ou adiados.

Entre Rio e São Paulo, as duas maiores cidades do país, deveria ter sido construído um
trem expresso, mas as obras sequer começaram.

"Eu protesto porque pago imposto e não recebo nada", diz Gaffney. "Eu protesto
contra a relação parasitária da Fifa com o Brasil. Ela está sugando o país."

Os brasileiros que estão indo às ruas não têm nada contra futebol. Pelo contrário. Eles
também não têm nada contra uma Copa do Mundo. O que eles abominam é a Copa do Mundo
de 2014 no Brasil. A marca e as suas condições, regras, licenças.
No morro Santa Marta, bem acima do nível do mar e pouco distante do Cristo
Redentor, encontra-se um campo de futebol. Um tapete esfarrapado de grama sintética sobre
o cimento. Nas vielas sente-se o cheiro de alho e cocô de cachorro. Neste sábado estão se
encontrando oito times para um torneio. Os jogadores são comerciantes ambulantes que
vendiam salgados no Maracanã e foram expulsos. Homens e mulheres deslocados por causa
da Copa. Representantes da frente nacional de torcedores que despreza o novo estádio.
Quatro contra quatro, por 15 minutos. Mães com seus bebês assistem agachadas das lajes.

O ativista Costa com crianças na favela do Jacarezinho: "O que sua consciência lhe diz?"

Na grade que contorna o campo foram pendurados cartazes, em um deles se lê: "Verás
que um torcedor não foge à luta." A bateria de um grupo da favela toca, um DJ coloca funk
carioca e algumas meninas rebolam. Uma mulher vende ensopado de frango e Brahma gelada.
Devem acontecer ainda três desses eventos até a Copa do Mundo, cada um em uma favela
diferente.

Um pedaço do mundo da Fifa se encontra em um local deprimente na sombra do


Maracanã. Escoteiros e alunos em uniformes limpos descem de ônibus e se afileiram em frente
a um cubo vermelho erguido com placas laminadas, um pavilhão da Coca-Cola. No prédio são
projetados vídeos em grandes telas que exibem crianças jogando futebol em meio à poeira,
rostos rindo em close, palmeiras e um pôr do sol. Mundo são. A Coca-Cola está patrocinando a
Copa. Os filmes são propaganda da Fifa.

A última sala ao fundo do pavilhão ostenta a taça da Copa em uma vitrine blindada,
seis quilos em ouro de 18 quilates. Cada visitante pode tirar uma foto ao seu lado, dez
segundos, e já está na vez do próximo. Há quatro dias a Fifa está fazendo no Rio o Coca Cola
Tour da Taça da Copa do Mundo, depois ele seguirá para Porto Alegre, no Sul. 27 paradas em
todo o Brasil. Como uma vacinação em massa contra a ira com a Copa.

Dentro do próprio Maracanã, dúzias de turistas vindos do Uruguai, Alemanha e Itália


caminham entre as catacumbas cobertas de tapumes em direção aos vestiários. Eles
agendaram um passeio guiado ao estádio vazio e fotografam os chuveiros, alisando os
armários como se fossem altares. Depois passam por um relógio digital vermelho, descem três
degraus do túnel que leva ao campo. Das duas caixas de som ouvem-se gritos e aplausos.

Neste momento, é possível sentir-se um pouco como Philipp Lahm ou Lionel Messi ou
Neymar – ou seja lá quem estiver aqui dia 13 de julho, a data da final. Pode-se ter uma ideia do
evento: a tensão, o êxtase.

Durante a Copa das Confederações, após ter começado a grande final, gás
lacrimogêneo chegou até as arquibancadas quando os protestos se intensificaram em frente
ao estádio. O que é que acontecerá na Copa?

O descanso de tela do iPhone do major André Batista exibe dois revólveres cruzados
atrás de uma caveira com uma faca cravada em cima. O brasão do Bope, o batalhão de
operações especiais. Batista é vice-comandante da forte tropa de elite formada por 400
homens e que luta contra a máfia de narcóticos nas favelas, liberta reféns e acaba com
rebeliões em presídios. O Bope é considerado eficiente. E impiedoso. Alguns diriam brutal.
Para a Copa do Mundo, Batista assumirá outro posto. Sua tarefa será garantir a segurança no
lado de fora do Maracanã.

Ele está na polícia há 22 anos, 10 anos deles trabalhando nas favelas e tendo
participado de dezenas de tiroteios. "Se você não matar, vem outro e acaba contigo", diz. Seu
rosto permanece imóvel.

Quantas pessoas ele já abateu?

"Eu não mato. É o Estado, quem mata é ele."

Batista está contando com os protestos. "Vai haver confusão." Para cada jogo ele
poderá alocar entre 5 e 10.000 policias das força especial criada apenas para conter as
manifestações. "Não acho que traremos veículos blindados para as ruas." Possivelmente
haverá drones voando nos céus, ainda em fase de testes.

A polícia está trabalhando em cooperação com a agência brasileira de inteligência, eles


sabem como os manifestantes se organizam nas redes sociais, no Twitter, na página do
Facebook do Anonymous Rio. Eles tentam se infiltrar nos grupos, implantar neles seu pessoal.
A polícia sabe mais sobre os ativistas do que um ano atrás, ela conhece as estruturas, os
líderes.

"Nós sabemos o que movimenta essas pessoas e como eles se movimentam", diz
Batista. "O que não sabemos é se eles estão com garrafas de água ou coquetéis molotow na
mochila."

Torneio de futebol no Morro Santa Marta: "A Fifa está sugando o país"
Em um documento, o ministro brasileiro da defesa descreveu os participantes dos
protestos como "forças inimigas." Desde setembro é proibido no Rio cobrir o rosto em
manifestações, seja com capuzes, lenços ou bonés. O governo vem discutindo agora uma lei
antiterrorismo tão vagamente formulada que qualquer pessoa detida em um ato nas ruas
pode ser considerada como terrorista. Vandalismo poderia ser enquadrado como terrorismo e
punido de acordo.

"Violência gera contra-violência", diz Batista. Ele entende por que as pessoas estão
protestando, "minha tarefa é defender a ordem pública." Ele espera que as manifestações
continuem pacíficas.

Tudo pode correr bem. Mas não necessariamente.

Parte dos militantes, aqueles que compõem os Black Blocks, vem das favelas. De uma
comunidade como o Jacarezinho, localizado a seis quilômetros do Maracanã, 60.000
habitantes, viciados em craque, sem saneamento básico e coleta de lixo, com crianças
abandonadas brincando entre ratos. Aqui cresceu Romário, campeão da Copa de 1994,
atualmente deputado no Congresso Nacional.

Há sete anos o teólogo protestante Carlos Costa trabalha no Jacarezinho para a


Organização Rio de Paz. Ele não é um fanático religioso e aparenta cansaço quando fala.

"As pessoas daqui, os jovens entre 16 e 28 anos, desejam ser ouvidas. Eles carecem de
atenção", diz. "A Copa é uma oportunidade ideal." Ele diz não saber o que acontecerá. "Uma
morte e a situação pode sair do controle. As pessoas nas favelas podem parar o Rio."

Seu escritório localiza-se em cima de uma padaria, alguém traz uma pizza. Enquanto
Costa fala, ele rabisca em um bloquinho de papel. Ele só precisava de um por cento do
dinheiro enfiado na reforma do Maracanã, diz, para dar fim ao crime na favela, para acabar
com o solo fértil do tráfico de drogas. E para garantir que as crianças vão à escola em vez de
ficarem assistindo pornografia na internet.

Durante a Copa ele quer protestar em cada minuto livre. "É obsceno cobrar de nosso
país uma Copa segundo padrões europeus. Nosso governo é doente por ter se metido nisso. A
gente não vai ganhar nada com a Copa. Para a gente não muda nada." Em fevereiro foi à Suíça
e esteve em Zurique, onde se localiza a sede da Fifa. Doze bolas de futebol foram colocadas
por ele na entrada, uma para cada local onde se realizarão os jogos. Em cada bola está afixada
uma cruz vermelha, simbolizando todas as pessoas que morreram por seu país ter investido na
Copa em vez de em médicos. E segurou um cartaz onde se lia: "Copa 2014 - quem ganha mais?
A Fifa, os empresários ou o povo brasileiro?"

Um assessor de imprensa lhe respondeu explicando o quão grande a consciência social


da Fifa seria e o quanto ela estaria fazendo de bom para o mundo.

Costa deseja que Joseph Blatter, o presidente da Fifa, vá ao Jacarezinho durante a


Copa. Por meia hora apenas. Eles iriam juntos até a margem do rio fétido, contaminado por
matéria fecal, que corre pela favela. "Colocaria meu braço em seu ombro e perguntaria: Sr.
Blatter, se aqui fosse sua casa, você gostaria de ter uma Copa aqui? O senhor gostaria que seu
governo gastasse dinheiro com um campeonato de futebol? O que sua consciência lhe diz?"

Já é tarde e Costa precisa levar um detento em liberdade condicional de volta ao


presídio. Ele vai até seu carro, abre a porta e, antes de embarcar, se detém. E diz: "Não tenho
dúvida de que eles lá na Fifa estão pensando: Por que fomos mexer com o Brasil?" E segue
viagem.

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