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ABC afro-brasileiro

Carolina Cunha
Ilustrações da autora
Temas  ultura afro-brasileira • Brasil • Diversidade cultural • Dança •
C
Costumes • Rituais • História • Religião

Guia de leitura
para o professor

48 páginas

A autora Carolina Cunha nasceu em


Salvador, Bahia, em 1974. Depois de se
formar em Propaganda e Marketing pela
ESPM, em São Paulo, estudou design
gráfico na School of Visual Arts, em Nova
York. Trabalhou em agências, escritórios de
design, redações de revistas e, atualmente,
tem seu próprio estúdio, onde ilustra e
realiza projetos gráficos para livros. Em
2002, publicou Aguemon: um mito yorubá
da criação do mundo. Pela SM, em 2005,
lançou Caminhos de Exu, na coleção Barco
a Vapor, e, em 2007, Eleguá e Yemanjá, os
dois primeiros títulos da coleção “Histórias
de Okú Láilái”. Sua obra é resultado de
inúmeras pesquisas e revela conhecimentos
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profundos sobre a herança cultural e


religiosa afro-brasileira.
ABC afro-brasileiro Carolina Cunha

a história do livro

Relevância do tema e organização dos verbetes


Não existe consenso sobre os moldes do ser “afro-brasileiro”.
E, se for possível traçar um retrato dessa fisionomia reunindo
qualidades a partir das características coletivas salientes ou im-
pressivas dos mais distintos grupos étnicos, este é igualmente va-
riado e jamais definitivo. Porque é assim que a África empresta
ao Brasil suas marcas.
Nós não somos exatamente um povo que “tem o pé na África”,
mas um povo em cuja alma a África se manifesta. Por aqui, a in-
fluência do negro sente-se em toda parte. Não apenas no aspecto
físico, mas no jeito de viver. Um jeito alegre, acolhedor, afeito a
cores exuberantes, festivo, simples, admirável, sereno, guerreiro,
reformador, apimentado.
O que o ABC afro-brasileiro pretende mostrar são resultados da
aproximação entre costumes, histórias e culturas completamente
estranhos, fatos e processos de expansão da vida africana em al-
gumas regiões do Brasil, provocados pelo deslocamento geográ-
fico do tráfico e estabelecidos com os reagrupamentos de negros
das diversas “nações”, sobretudo a partir do século XVII, à época
do regime escravista. E isso inclui a árdua atuação revolucionária,
as conspirações, os movimentos rebeldes que aqui se sucederam
(como o quilombismo rural, a rebelião malê) e outras numerosas
reações contestadoras às camadas senhoriais e à violência sistêmica
(como a capoeira, o batuque, o sotaque, o samba, o candomblé).
Endereçado aos que desejam conhecer temas fundamentais
da cultura negra, esse livro busca iluminar a cena brasileira e
sublinhar palavreados que temperam nossa língua com pro-
núncias divinas e sabores quentes. Em suas páginas, as infor-
mações verbais e visuais se entrelaçam para tentar compor a
trajetória multissecular de nossa ancestralidade africana. Esta-
mos no dever de lê-lo meditando mais profundamente sobre
esses sujeitos ativos e transformadores do real histórico e so-
ciocultural brasileiro.

UMA HISTÓRIA AFRO-BRASILEIRA


Fatos geográficos e históricos
A chegada dos africanos ao Brasil é uma história complexa
que se inicia ainda no século XVI, na época colonial de todo o
continente americano.
É o auge das transações marítimas entre Europa, África e
Américas, no ponto mais alto da presença portuguesa no mun-

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do. E o Brasil, com destaque para algumas regiões, se torna um


porto dinâmico e capital de comércio, riqueza, criatividade. É o
tempo do florescimento da produção açucareira.
Os portugueses têm entrepostos e fortalezas em toda a cos-
ta oeste da África (designada Guiné pelos historiadores) e seu
maior interesse nessas paragens é o ouro. Eles trocam negros
bantos que capturam em Angola e no Congo pelo ouro da Costa
da Mina. No Brasil, vêm buscar açúcar e cachaça. Já no século
XVIII, é daqui que retiram o ouro em troca de escravos trazidos
da Mina. Dessa época em diante, a economia portuguesa entra
em declínio. E o Brasil conhecerá um processo de desestabiliza-
ção decisivo, que o transformará profundamente.
Em questão de pouco tempo, a exploração do açúcar passa a
ser controlada pela Companhia Holandesa das Índias Ociden-
tais. O Brasil goza o privilégio de ser a zona agrícola mais im-
portante do mundo atlântico. Enquanto isso, são descobertas
fartas jazidas auríferas em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
Calcula-se que, pela virada do século XVIII, o Brasil forneça
mais ouro a Portugal do que todo o ouro remetido pela Améri-
ca aos espanhóis em 150 anos. A dependência de Portugal com
relação à Inglaterra é fato consumado. Afastado da cena prin-
cipal, submetido à nova potência do mundo, Portugal deixa de
lado a era industrial para estar mais interessado em palácios.
Por tudo isso, a riqueza das minas brasileiras vai desembocar
em outras praças europeias. E, assim como o açúcar se torna
um negócio holandês, o ouro brasileiro passa a ser um negócio
britânico. Tem mais: a Inglaterra drena o ouro brasileiro não só
via Portugal, por expedientes legais, mas por contrabando feito
diretamente do Brasil.
Do outro lado do mar, pressionados pelos holandeses, os por-
tugueses são expulsos do Forte São Jorge da Mina e deslocam o
tráfico para portos no golfo de Benin, onde o tabaco brasileiro,
a essa altura, faz o maior sucesso e torna possível uma troca in-
tensa e recíproca entre as duas margens do Atlântico. Ou seja,
graças ao fumo, pelo que os negros daomeanos têm grande apre-
ço, é que, a partir desse período, yorubás, haussás, nagôs, ewes,
bornus, capturados e feitos escravos pelo reino de Daomé, não
param de chegar ao Brasil. Os negreiros do Benin criam um mo-
vimento comercial intenso sem correspondência na história do
tráfico, que escapa inclusive ao controle de Lisboa e se estende
clandestinamente, por anos e anos, após a lei que aboliu o tráfico
de escravos nas colônias ao sul do equador (1830).
Com relação à realidade negra no Brasil, o século XVII apre-
senta duas mudanças radicais. A primeira delas refere-se à che-
gada de negros de uma faixa territorial específica do continente
africano: a região de Angola e do Congo. São os negros bantos.

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Por que, até então, o que havia aqui eram os chamados escravos
O ciclo da Guiné | século XVI da Guiné, negros de procedência variada e sobre os quais muito
Foi na segunda metade desse século pouco se sabe, com precisão. A segunda faz referência à superio-
que começaram a chegar os escravos ridade numérica de importação de escravos nesse período, pois
da Guiné. Eles eram embarcados nas bantos são os primeiros africanos que vêm “em massa” para o
ilhas de Cabo Verde, ilhas e margens Brasil, o que promoverá uma verdadeira alteração na composi-
do Senegal, margens do rio Gâmbia, ção do contingente negro de nossa população, principalmente
até a região conhecida nos primeiros nos estados da Bahia e Pernambuco. E não tardarão a chegar os
tempos como “rios do sul”, entre escravos minas, seguidos dos sudaneses (com predominância
os quais se distinguem o Grande, jeje e nagô), à tenda cruel do cativeiro.
o Nunez, o Pongo, os rios Grande e Em seu livro O negro na Bahia, publicado em 1946, Luiz Vianna
Pequeno Soarcies. Filho informa que, se é possível esquematizar a presença afri-
Os principais povos dessa região central cana no Brasil em ciclos ou períodos, estes são em número de
da África, que compreende as terras quatro: o ciclo da Guiné (a partir da segunda metade do século
situadas entre o Senegal até a foz do XVI), o ciclo de Angola e do Congo (no século XVII), o ciclo da
Orange, estavam organizados em tribos. Mina (durante os três primeiros quartos do século XVIII) e o
Eram os axantis (gente que constituía o ciclo da baía de Benin (entre 1770 e 1850, incluído o período do
império do Mali), os fantis (de Gana), os tráfico clandestino). Os dois primeiros ciclos são considerados
fulas e bambaras (de origem os de menor importância, sobretudo numérica, ao passo que as
berbere-etiópica), os jolofos (já marcas deixadas pelos dois últimos parecem mais expressivas e
influenciados pelo islamismo), os intimamente ligadas ao desenvolvimento do país.
sereres e os mandingas (de tradição Nessas circunstâncias objetivas, procuramos entender as im-
guerreira, considerados altivos e plicações do escravismo e recortar alguns ângulos da realidade
perigosos pelos lusos, que lhes vivida pelos negros. Este guia é, portanto, uma reconstrução do
atribuíam feitiçarias). Já conheciam a ambiente social e ecológico que se configurou em nosso país por
agricultura de enxada, o artesanato do mais de quatro séculos de tráfico; uma visão panorâmica do pro-
ferro, do ouro, do bronze, do cobre e cesso que fez de nós o que somos.
destacavam-se nas atividades
de pecuária.
A influência dos negros trazidos por
esse ciclo é bem menos considerável e
quase imperceptível, se compararmos
com o fluxo intenso de africanos
advindos de outras regiões nos
períodos seguintes. Apenas sabemos
que sob a denominação genérica de
“negro da Guiné” muitos bantos
de Angola, Congo, Zaire, Benguela,
Zimbábue e sudaneses do Mali,
Mauritânia e Camarões entraram
no Brasil.
A expressão “Guiné”, que os primeiros
navegadores deram ao conjunto de terras
situado ao norte da linha equatorial,
entre a Senegâmbia e o Congo, perdeu

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O tráfico de escravos e a diáspora africana


gradualmente seu valor compreensivo Regra geral, esse ramo de comércio deflagrado pelas grandes
à medida que os países foram sendo navegações oceânicas revelou-se um dos principais motores da
mais conhecidos em suas toponímias. economia mundial, desdobrando-se das Índias às Américas num
Provém o fato, principalmente, das incessante ir e vir, vital para a manutenção dos sistemas produ-
restritas noções geográficas da época tivos e para a circulação das mercadorias entre colônias e me-
dos descobrimentos, quando a costa trópoles. Portanto, qualquer empreendimento nas terras férteis
africana, como a brasileira, esteve sujeita do Brasil seiscentista e setecentista teria sido impensável sem o
a batismos que nem sempre viriam a suporte da mão de obra escrava trazida da África a bordo dos
prevalecer posteriormente. famigerados navios negreiros.
No Brasil, os guineanos foram Até 1531, quando a Coroa lusitana finalmente decidiu investir
responsáveis pela implantação das na expedição de Martim Afonso de Souza, as terras brasileiras não
culturas extensivas de mandioca, passavam de um sonho tropical. Àquela altura, não eram apenas
milho e coco. portugueses que cobiçavam as riquezas do Brasil; espanhóis, fran-
ceses, ingleses, holandeses já frequentavam as praias desta terra
com grande desenvoltura e faziam trocas comerciais com aldeias
de toda a costa. Viagem de caráter colonizador, ela vinha da preo-
cupação lusitana com a expansão americana dos espanhóis e com
O ciclo de Angola e do
a ameaça francesa ao território nacional. Em suma, era preciso
Congo | século XVII
ocupar a orla brasileira, e, como fosse esse um projeto dispendio-
Os territórios de Angola e do Congo,
so, atrair capitais da iniciativa privada se tornara absolutamente
que até o século XVI estiveram
indispensável. Gente enriquecida no Oriente era o que mais havia.
compreendidos sob a designação
Daí a transplantar a experiência ultramarina realizada, com êxito,
geral de Guiné, tiveram em seguida,
na colonização das ilhas da Madeira, dos Açores, de Cabo Verde e
ao serem mais bem explorados pelos
de São Tomé e Príncipe para cá foi um pulo.
navegantes lusos, seus limites fixados
Dois anos após a expedição afonsina, estava concebido o decre-
entre os cabos Lopo Gonçalves e
to que promulgava o regime das capitanias hereditárias no Brasil. O
Negro, abrangendo o território
“modelo” havia convertido aquelas ilhas em bases importantes do
de Benguela.
comércio açucareiro e consistia basicamente na divisão da colônia
A importância desse ciclo foi
em sesmarias, na denominação de um chefe ou capitão-donatário
extraordinária e suas marcas
e no pagamento de taxas para a Coroa em troca da doação e da
conservam-se entre nós até hoje. A
proteção do território costeiro e das lavouras.
proximidade era, por sinal, uma grande
vantagem no deslocamento do tráfico
em direção a essas costas. O comércio
de gente proveniente das regiões
subequatoriais africanas com o Brasil
era facilitado pela pequena distância
entre os portos de Angola e do Congo e
os portos da Bahia e do Rio de Janeiro.
Essas travessias se faziam, em média,
em quarenta dias.
Por conta dessa conveniência, as
migrações de negros bantos inauguram
um tempo sem precedentes. Nessa
época, a indústria açucareira reclama

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Indo em busca das origens da cana-de-açúcar, descobrimos


cada vez maior quantidade de negros que seu cultivo começou em terras asiáticas, alcançou a Pérsia e,
para o trabalho no plantio, nas oficinas graças aos árabes, foi levado ao Mediterrâneo. Chegou ao nor-
e para o trabalho doméstico. E às te da África, depois ao continente europeu, às ilhas atlânticas,
necessidades do novo mercado, os para, finalmente, implantar-se no continente americano. De lá
reinos de Angola e do Congo se abrem até aqui as tecnologias produtivas se aprimoraram, difundindo-
com grandes ofertas de escravos. -se rapidamente ao longo do século XV, e para essa produção se
Todos os estudiosos da diáspora impusera o emprego da mão de obra escrava negro-africana, que
apontam numerosas e decisivas sustentaria a economia de toda uma época.
contribuições desses povos para a O que se desenha nesse momento da história é a passagem
formação da identidade biológica e da feitoria e do escambo para a agricultura escravista. Resultado
cultural do povo brasileiro. O já citado desse brutal e multicultural evento foi o estabelecimento de “na-
autor Vianna Filho (p. 88) diz: “Bantos ções”, comunidades negras reagrupadas em nosso país, desde os
foram os primeiros negros exportados primeiros dias subordinadas aos interesses do sistema colonial.
em grande escala, e aqui deixaram No final do século XVI, já se contavam mais de cem engenhos es-
de modo indelével os marcos da palhados entre as terras de Pernambuco e da Bahia. Essas empresas
sua cultura. Na religião, no folclore, desempenharam o papel determinante de promover o domínio ter-
nos hábitos, na língua, influíram ritorial e de fixar gente nas regiões franqueadas às plantações. Mais
poderosamente”. que um polo econômico produtivo, o engenho constituía um polo
cultural, colonizador, desbravador, formado pela fábrica, pela casa-
Destacamos como pontos iniciais de
-grande, pela capela e pela senzala. Ao se implantar em determinada
entrada das nações bantas os mercados
região, imediatamente magnetizava o espaço a seu redor. E, no ras-
de escravos de Pernambuco (extensivos
tro de sua expansão, foram surgindo, aqui e ali, vilas e paróquias.
a Alagoas), Rio de Janeiro (servindo a
A gente que colocava os engenhos para funcionar sofreu uma
Minas e São Paulo) e Bahia. Entre os
sensível variação, se compararmos o que havia no século XVI
povos agrupados sob essa designação,
com o que aconteceu no século XVII. Nos primeiros tempos, os
os mais influentes no Brasil foram os
engenhos viviam com base na exploração do trabalho indígena.
cabindas do Congo, os benguelas de
Já pelo limiar do século seguinte, o composto da escravidão re-
Angola, com muxicongos, rebolos e
velava-se misto, mais ou menos dividido entre índios e africanos.
negros de Moçambique, chamados
E, com o andar da carruagem, os negros passariam a despontar
macuos e angicos.
como principal fonte de recursos humanos em todos os setores
Ao contrário dos berberes, os bantos
da crescente economia.
eram essencialmente agricultores.
Tinham experiência com as lavouras
de cana e de algodão, já haviam
domesticado animais, em certas zonas
possuíam gado bovino, conheciam a
metalurgia e eram bons oleiros
(ver p. 36).
A partir do século XVII, quando
ocorrem as descobertas das primeiras
minas de ouro no Brasil, há uma
movimentação ainda mais intensa
do tráfico entre as províncias da
Bahia, Rio de Janeiro e os reinos de
Angola e do Congo. A preferência,

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Ora compreendendo vastos territórios, ora restrito a peque-


aliás, era explicável também pelas nas regiões, movimentando milhões de negros de um lado para o
melhores condições de adaptação outro do Atlântico, permitindo lucros consideráveis, é assim que
e pela docilidade desses negros. o tráfico se torna parte inseparável da nossa história e, devemos
Os bantos tinham muita disposição assinalar, não se esgota em sua face mais miserável e conhecida.
para o trabalho, eram mais capazes São muito sérios e profundos os vínculos implicados nas rela-
de aprender os ofícios mecânicos, ções dos povos africanos, europeus e índios. Certo é que, apesar
mostravam-se eficientes com as de todas as desigualdades, os recém-chegados fortaleceram, com
atividades urbanas e tanto percebiam suas qualidades de dignidade, altivez e coragem, a nova ordem
como falavam nossa língua com mais social brasileira.
facilidade do que os escravos de
outras etnias. A resistência
Com efeito, são as línguas faladas nos Tudo indica que o escravo agrícola teve bem mais liberdade
territórios de Angola – o kimbundo que o escravo das minas. Mas não há dúvida de que era bem
(tribos ambundos de Luanda e Norte), menos livre do que o escravo urbano. Os chamados “negros de
o umbundo (povo ovibundo do baixo ganho” nem moravam em casa de seus senhores. Estavam, por
Cubango ou sul de Angola) e o kicongo assim dizer, “à mão”; porém, já pelo século XVIII, tratavam
(povos bacongos da foz do rio Congo, de empreender as próprias conquistas nos campos da cultura, do
do baixo Zaire e do sul da República comércio e das religiões.
do Congo) – as mais incorporadas a Trazido para o Brasil como força de trabalho, o negro nada
nosso léxico; ressalte-se também a mais era do que mercadoria sujeita às leis da mais-valia. Do pon-
existência de diversos outros dialetos to de vista europeu, não deveria ter outra função além de laborar.
bantos que, por certo, influenciaram Sua energia era admirável, de modo que dentro e fora das casas,
o português falado, bem como as nos campos e nas cidades, nada se fazia sem o negro.
matrizes religiosas no Brasil. Mas, vencendo todas as adversidades, o negro foi, desde o iní-
É sobretudo em torno da religião que cio, um contestador da ordem geral. Para ele, o inimigo concreto
surpreendemos a larga intervenção de e imediato era a escravidão, não o sistema colonial. A prova disso
bantos nos costumes brasileiros. São é que, depois de extinto o regime colonial, os negros africanos
de origem banta as festas religiosas continuaram se rebelando.
promovidas pelos negros naquela
época. O sincretismo religioso dos
bantos logo se verificou nos cultos a
São Benedito e a Nossa Senhora do
Rosário. Sob a invocação desses santos
católicos, surgiram as “irmandades”,
que viriam a proliferar na Bahia, em
Pernambuco, em Minas e no Rio.
Os folguedos dos bantos em muito
lembravam Angola com danças,
cantos (tirados no idioma de Angola) e
mascarados. Vêm daí os calundus, os
batuques, as cheganças, os reisados ou
congadas (ver p. 35), as festas de São
Gonçalo, os tambores do candomblé e
as marujadas.

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E, como onde havia escravidão havia revolta contra a escra-


Não podemos deixar de mencionar vidão, datam do século XVI os primeiros núcleos de refúgio de
os ritmos, as danças e os jogos escravos: os quilombos. Mais adiante, dentro dos limites senho-
trazidos para cá com esses africanos. riais das cidades, entre os séculos XVIII e XIX, foram esses ne-
Para se ter ideia, o samba de roda, gros (cativos ou libertos) que procuraram acabar com a relação
a capoeira (ver p. 10), o makulelê, escravista, promovendo os levantes urbanos.
o lundu, a umbigada (ver p. 38), o Na verdade, em sua sujeição mais asfixiante, o escravo continua-
jongo são alguns acontecimentos va o mesmo. É possível identificar uma continuidade histórica entre
lúdicos dos povos bantos, aos quais se Palmares (ver p. 47) e o Levante dos Malês (ver p. 25). Contudo,
entregava com prazer um contingente falemos antes das “pequenas sedições do cotidiano”, que denunciam
considerável de brancos e mulatos. a permanente revolta dos negros contra o escravismo.
Também contribuíram com a cuíca, o Seja como tenha sido, tanto o trabalho benfeito como o mal-
pandeiro, o atabaque, o ganzá, feito serviam aos propósitos da resistência. Em vista dos bons
o reco-reco, a malimba, o berimbau, frutos obtidos, o primeiro modo refletia num relaxamento da
entre outros instrumentos, vigilância senhorial. Já o segundo visava prejudicar e, sobretudo,
proporcionando uma sonoridade irritar as elites escravocratas dos trópicos.
especial a nossa música popular. A mentira, o engodo, o fingimento eram apenas algumas manei-
ras possíveis de falsear informações e de, ao mesmo tempo, afirmar
Produtos genuinamente africanos,
uma verdade própria. Outro modo de insubordinação era a prática
como dendê (ver p. 12),
voluntária do aborto. A mãe padecia, mas feria o regime. O envene-
pimenta-malagueta, rapadura,
namento de senhores e o suicídio também atiçaram fogo às foguei-
banana e galinha-d’angola (ver
ras do protesto. Havia um sentido social nessas atitudes: impedir o
p. 16), incluídos em tantos cardápios
aumento da mão de obra escrava. O furto, como a fuga, e até o uso
nacionais, fixaram-se no Nordeste
da magia foram igualmente reações contra a escravidão.
brasileiro por essa época.
Acontece que os negros fugitivos se encontravam pelos mor-
ros e pelos campos em seus caminhos. Esses africanos eram ar-
gutos guerrilheiros; não raro assaltavam vilas e cidades. Daí, cla-
ro, o surgimento dos quilombos. Atravessando toda a história
O ciclo da Mina | século XVIII da escravidão nas Américas, os quilombos apareceram como um
Na segunda metade desse século, misto de acampamento guerreiro e comunidade rural e, ainda
assistimos a um avanço marcante do hoje, representam projetos de vida comunitária alternativa. Nes-
tráfico para a Costa da Mina. Dentre as se ponto, a complexa situação de Palmares figurou como o extre-
causas determinantes da variação na mo da organização quilombola.
rota, devemos assinalar: o progresso Se os negros provocavam assim a reação de autoridades colo-
das culturas do tabaco na Bahia e niais, então sua insubordinação ao cativeiro devia ser mesmo um
em Pernambuco, do algodão no problema público. Em zonas recuadas, onde ensaiavam novos
Maranhão, do café em São Paulo e no modos de viver, esses africanos conheceram as primeiras liber-
Rio, a descoberta do ouro em Minas dades e puderam assentar as heranças trazidas dentro de si.
Gerais, as guerras internas na Costa da Realmente, o que houve no Brasil foi uma maré de mocam-
Mina, e, talvez, a epidemia de bexiga bos e quilombos. Das matas e mangues pernambucanos às caa-
(varíola) em Angola, ou não teríamos tingas sertanejas de Minas e da Bahia, chamavam a atenção os
como explicar o fato de os traficantes numerosos ajuntamentos de negros. Essa agitação popular logo
portugueses terem abandonado um chegaria às cidades. É quando vão ganhar corpo, entre outros em-
mercado mais próximo e já conhecido preendimentos, a Inconfidência Mineira, a Revolta dos Alfaiates,
para se irem abastecer em portos de a Sabinada, a Cabanagem, a Balaiada e o Levante dos Malês (ver
acesso dificultoso. Outro fator de p. 25). Lembramos o episódio do Levante neste guia pelo sentido

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de igualdade que propunham aqueles rebeldes islamizados para


relevante importância eram os menores além das fronteiras da Bahia e porque foi aquela a última e mais
preços dos escravos vendidos naquela séria insurreição de negros e mulatos ocorrida antes da abolição.
costa. Vê-se, portanto, que as relações O que fica para nós de tudo isso é o triunfo do sonho sobre
entre os negociantes brasileiros e a a dura realidade; o sonho transformador que viria a se opor às
Costa da Mina assentaram-se, desde o bárbaras desumanidades e livrar para sempre o negro do cativei-
início, em sólidas bases econômicas. ro em que o destino lhe havia colocado.
Para as minas e mesmo para as É evidente que, mesmo após a abolição, a resistência do povo ne-
lavouras brasileiras, já não bastavam gro continuou, uma vez que a liberdade amparada pelas leis de 1888
os mercados de Angola. Era preciso não conferia a esses indivíduos sua integração na sociedade brasileira
ir buscar escravos alhures. Mas a em termos igualitários aos demais cidadãos de outras classes e raças.
Colônia carecia de um produto que Na luta pela plena cidadania, a população negra teve de imple-
servisse imediatamente à demanda mentar uma série de ações empenhada em garantir sua inclusão nos
dos negreiros da referida costa. diversos setores sociais. É nesse contexto que se devem apreciar a
Foi aí que o tabaco entrou em constituição dos Congressos afro-brasileiros de Pernambuco e da
cena. Enquanto ingleses, franceses, Bahia, a formação do umbandismo, o surgimento da Frente Negra
holandeses, dinamarqueses levavam em São Paulo e na Bahia, o desenvolvimento de uma imprensa ne-
outras mercadorias, fumo apenas era gra, a criação do (TEN) Teatro Experimental do Negro e do Museu
o que levavam os portugueses. E por de Arte Negra, a organização dos afoxés, maracatus, blocos afro, o
causa dele Bahia e Pernambuco quase tombamento de terreiros de candomblé e a consolidação do (MNU)
tiveram o monopólio do comércio com Movimento Negro Unificado, que culminaria na recente apropria-
a Costa da Mina. Nenhuma mercadoria ção do dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra.
levada pelo tráfico se comparava ao Se não colocarmos esses fatos no centro de nossas reflexões,
tabaco, na opinião dos negros dessa não chegaremos a nos aproximar de um entendimento da traje-
região. “Escravo tinha quem fumo tória negro-mestiça na transformação da realidade brasileira. No
levava.” Era a lei do comércio na Costa entanto, é preciso muito ainda aprender a cumprimentar o pen-
da Mina. Por ele, regulava-se o tráfico samento crítico dessa gente em seus caminhos e descaminhos, se
entre os cabos Lopo e Monte. quisermos avançar no sentido verdadeiro da democracia.
Convém observar que, se o tabaco
gozava de tamanha reputação nos
mercados superequatoriais, o mesmo
não se verificava nos portos da costa
subequatorial, que dava maior valor a
ouro, baralhos, aguardentes, tecidos
e quinquilharias. Essas preferências
concorreram diretamente para que o
tráfico viesse a se desenhar por duas
rotas distintas, fazendo-se pelas linhas
Lisboa-Angola-Rio e Costa da
Mina-Bahia-Pernambuco.
Eram tais as vantagens que o comércio
baiano retirava do fumo que, em pouco
tempo, a Bahia passou a abastecer de
negros novos mercados intracoloniais
que surgiam. O comércio da Bahia

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recebia ainda navios oriundos do


ATIVIDADES EM SALA DE AULA
Oriente e para aquele Oriente tinha
Uma diversidade de projetos ecológicos e humanísticos pode
também seus próprios produtos. Naves
ser criada a partir da leitura do ABC afro-brasileiro. Seja qual for
de Macau, de Goa eram frequentes e
a abordagem, recomendamos que o professor leve os alunos a
bem-vindas. Para o Rio Grande do Sul,
procurar elementos que indicam nossas origens africanas e por
por exemplo, a Bahia
que meios chegaram até nós.
levava sal, açúcar, produtos
No âmbito cultural, é interessante ressaltar o desempenho das
trazidos das Índias e da Europa e,
tradições orais, que vêm sendo cada vez mais utilizadas nos esfor-
principalmente, escravos. Para se ter
ços de reconstrução historiográfica, como registro do passado e das
noção da grandeza desse comércio
proezas ancestrais. Não com rara fidelidade, é um privilégio que te-
entre províncias, vejamos os números
nham sido transmitidas através das gerações até nossos dias.
de embarcações que frequentaram os
Seguem algumas propostas de atividades:
portos baianos entre os anos 1798 e
• Averiguar, em dicionários especializados, palavras de origem
1807: foram 304 navios enviados de
africana dos diversos grupos linguísticos (banto, nupe, ibô,
Lisboa e 464 enviados do Rio Grande
akan, fon, yorubá etc.) que foram assimiladas pelo idioma por-
do Sul. Em contrapartida, Lisboa
tuguês brasileiro é um modo de ampliar a compreensão dos
recebeu 258 naves baianas e o Rio
alunos sobre um vocabulário afro-brasileiro.
Grande do Sul, 459. Assim foi por cem
• Os vocábulos usados no Brasil variam de linhagem ao infinito
anos. Mas, por enquanto, o que nos
e foram fonicamente aclimatados, sobretudo nos templos re-
interessa é outra coisa.
ligiosos de origem fon e yorubá. Na concepção yorubana, por
Dispondo da matéria-prima essencial exemplo, os signos linguísticos são excepcionalmente melódi-
para o comércio de escravos, Bahia e cos e estão carregados de força mágica. Nesse sentido, o pro-
Pernambuco desbancavam qualquer fessor pode enfatizar o poder da palavra, motivando o grupo a
concorrência, inclusive a dos pensar em seus diferentes usos, destacando, por exemplo, que,
portugueses, que não tinham forças
para enfrentar a competição.
E, como todos precisavam de escravos
e só o Brasil possuía o tão estimado
fumo, rapidamente a composição
social brasileira ganhou novo rol
de personagens.
Assim, os negros que aqui ou nas
Índias Ocidentais e também na
América do Norte aportaram, vindos
não da Costa do Ouro (império do
Mali), mas da Costa dos Escravos
(Nigéria, Benin, Togo, Gana e Costa do
Marfim), serem chamados de mina foi
mera questão de situação geográfica.
Esses escravos eram obtidos nos portos
de Grande Popo, Ajudá ou Wydah (ver
p. 41), Jaquim e Apá, situados a leste
da costa do Daomé; mas o principal
portal de saída era, sem dúvida, o

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ABC afro-brasileiro Carolina Cunha

entre os yorubás, a palavra é sagrada, dotada de axé (ver p. 7).


Castelo de São Jorge da Mina. A A partir dessa reflexão, os alunos podem fazer um reconheci-
história do Forte da Mina é longa mento dos tipos de comunicação (a voz, os búzios, os ataba-
e complicada, envolvendo lutas entre ques, os ebós) e das diversas formas de linguagem (saudação,
europeus e africanos, tendo, por fundo, provérbio, cantiga, poesia, sotaque) encontrados no livro.
seguramente, o maior depósito de ouro • Trazer representantes de alguma comunidade afrodescendente,
do planeta – Gana, hoje sem ouro e situada nas proximidades da escola ou da cidade, para conversar,
em grandes dificuldades financeiras. contar histórias, e até programar um trabalho de estudo do meio,
Se alguém se der ao trabalho de levando a turma a visitar comunidades quilombolas, são maneiras
olhar a atual lista telefônica de Accra de ajudar os alunos a perceber a importância da oralidade para a
(capital de Gana), certamente se sobrevivência dos africanos, suas religiões e culturas.
surpreenderá com a quantidade • Promover pesquisas e debates voltados ao tema dos sincretis-
de “da Rocha”, “da Silva”, mos com outras religiões trazidas para o Brasil e para outros
“Silva”, “Silveira”, “Oliveira” e, lugares da América Latina, o que, geralmente, é motivo de ani-
naturalmente, “da Costa” nela madas discussões. Depois, para tratar da influência dessas cul-
registrados. Este último teria sido, turas na formação de nossa espiritualidade, pode-se sugerir aos
aliás, o sobrenome preferido pelos alunos que tragam mais informações sobre os mitos dos povos
mercadores brasileiros para batizar jeje e nagô, referentes aos elementos da natureza.
os negros vindos da Costa dos • O livro também favorece uma reflexão sobre os conflitos ideo-
Escravos. E a história é singela: lógicos que ocorrem entre os povos e entre as pessoas no mun-
os que conseguiram voltar para a do contemporâneo, acionados pela intolerância. A partir daí,
África continuaram com seus nomes pode-se empreender um estudo dirigido, do ponto de vista
abrasileirados. Mas também é verdade historiográfico, sobre as guerras ocorridas entre os povos jeje e
que muitos ficaram por aqui. yorubá, e suas repercussões nos territórios africano e brasilei-
Alguns tradicionais produtos da Costa ro. Recomenda-se mostrar no mapa a localização dos conflitos.
da Mina tornaram-se populares no É importante explicar que há continuidade histórica no Brasil
Brasil. São conhecidos como “da decorrente dessas lutas.
Costa”: o inhame, o quiabo, o azeite, • Relacionar alguns exemplos de resistência no processo de
o feijão-fradinho, o pano (ver p. 30), o aculturação dos povos africanos no Brasil a fim de desmistifi-
sabão, a palha e os búzios (ver p. 20). car a ideia de que após a abolição a situação do negro tornou-
-se digna.

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• Incentivar a leitura de biografias de personagens importan-


O ciclo da baía de Benin | tes do universo afro-brasileiro. Luís Gama (1830-1882), Cas-
século XIX
tro Alves (1847-1871), Lima Barreto (1881-1922), Joel Rufino
Com as pequenas guerras que
dos Santos (1941), Carolina de Jesus (1914-1977), Benedita
hostilizavam as várias nações da Costa
da Silva (1942), Abdias do Nascimento (1914), Chica da Silva
da Mina e, principalmente, com o
(c. 1732-1796), Manuel Querino (1921-1953), Solano Trinda-
aparecimento de certo rei poderoso e
de (1908-1974), Mãe Menininha (1894-1986), Mestre Pastinha
temido, o reino do Daomé se faria o
(1889-1981), Milton Santos (1926-2001) são apenas alguns
mais importante aliado de Portugal na
nomes entre tantos. Recomenda-se, excepcionalmente, a leitu-
exploração do tráfico dessa época.
ra da carta autobiográfica de Luís Gama, datada de 25 de ju-
Para a abundância do mercado em
lho de 1880, não só pela beleza do texto, mas por sua clareza e
que se ia abastecer de escravos, os
relevância, como um exemplo da postura revolucionária que
daomeanos expandiam território,
caracterizou a intelectualidade negra no Brasil.
impondo-se aos vizinhos com
ferocidade (ver p. 22). Os portugueses,
• Exibir trechos de filmes documentários durante a aula também
pode suscitar uma série de observações.
por sua vez, voltavam a se fortalecer
Abdias do Nascimento: memória negra, de Antonio Olavo, Bra-
no tráfico com essa parceria. Só que
o prestígio do novo Senhor de Ajudá
sil, 2008, 95 min.;
era enorme e, já agora, o temiam até
Atlântico Negro: na rota dos orixás, de Renato Barbieri, Brasil,
os lusos, que, diante das investidas 1998, 54 min.;
inglesas, francesas e holandesas, Barravento, de Glauber Rocha, Brasil, 1961, 80 min.
procuravam apaziguar os ânimos do Família Alcântara, de Daniel Solá Santiago e Lilian Solá Santia-
novo aliado, providenciando tabaco, go, Brasil, 2007, 56 min.;
e muito, que era o produto mais Memórias do Recôncavo: Besouro e outros capoeiras, de Pedro
apreciado e escasso naquele reino. Abib, Brasil, 2008, 54 min.;
Assim, se é possível dizer que a
Mestre Bimba: a capoeira iluminada, de Luiz Fernando Goulart,
mineração foi o motor principal do Brasil, 2007, 70 min.;
tráfico de escravos no ciclo anterior, Pierre Verger: o mensageiro entre dois mundos, de Lula Buarque
constitui o fumo o verdadeiro negócio de Holanda, Brasil, 1998, 84 min.;
do ciclo da baía de Benin. O fato Quilombos da Bahia, de Antonio Olavo, Brasil, 2006, 98 min.;
exprime bem o que veio a acontecer Ilê Aiyé: the house of life, de David Byrne, Brasil, 1989, 51 min.;
no quadro social do Brasil do final do Todos eles dedicam-se à íntima e imensa relação de nosso povo
século XVIII, quando aproximadamente com os costumes africanos.
70% dos negros importados pela • E nunca é demais ouvir canções de nossa música popular que
Bahia foram sudaneses. Ou seja, à exaltam elementos culturais africanos. Citamos algumas: “Ben-
predominância dos bantos, substituiria guelê” (Pixinguinha e João da Baiana); “África Brasil” (Zumbi);
a concentração maciça dos grupos jeje “Xica da Silva” (Jorge Ben Jor); “Filhos de Gandhi”, “Ilê Ayê”,
(pertencentes aos grupos linguísticos “Babá Alapalá”, “Jubiabá”, “Serafim”, “Yá Olokum”, “Kaô” (Gil-
ewe-fon), nagô (yorubás da Nigéria, berto Gil); “Tatamiro”, “Meu pai Oxalá” (Vinicius de Moraes e
embora o termo se estenda a outras Toquinho); “Canto de Ossanha”, “Berimbau” (Vinicius de Mo-
etnias), tapa (ver p. 37), bornu, galinha raes e Baden Powell); “Sim/Não”, “Ia Omin Bum”, “13 de maio”
e haussá (povo do noroeste da Nigéria, (Caetano Veloso); “São Salvador”, “Bahia” (Paulo da Cunha);
de influência muçulmana). “Upa neguinho” (Edu Lobo); “Festa para um rei negro: samba
Somente a abolição do tráfico, em reisado” (Zuzuca, na voz de Jair Rodrigues); “Afoxé”, “A preta do
1830, viria a interromper essas acarajé”, “Vatapá”, “Dois de fevereiro”, “Retirantes”, “Oração de
relações que se faziam cada vez Mãe Menininha” (Dorival Caymmi); “Oiá” (Danilo Caymmi);
mais estreitas entre as províncias de “San Vicente”, “Os tambores de Minas” (Milton Nascimento).

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• Organizar trabalhos de equipe dividindo os alunos em grupos


Pernambuco, Bahia e a Costa dos por temas específicos, como música (do samba ao funk), dan-
Escravos. Foi assim, mas não de uma ça (do samba de roda ao carnaval), jogos e lutas (da capoeira
vez. Em 1851, um ano depois de
angola à capoeira regional), poesia (da trova popular à poesia
promulgada a Lei Eusébio de Queirós,
contemporânea), artes plásticas (da religiosa à popular), indu-
dois desembarques clandestinos ainda
mentária e adornos (das roupas aos penteados afro), culinária
foram repreendidos na Bahia.
etc., possibilita um diálogo amplo ao final das apresentações e
Por essa altura, o germe da república a abordagem de diversos aspectos estudados.
já estaria se formando dentro da nova
• Para amarrar os temas tratados no livro, o professor pode ainda
sociedade, cujos bens econômicos
promover um ciclo de oficinas. Assim, os alunos terão contato di-
continuavam a ascender à custa do
reto com a confecção de instrumentos musicais e de máscaras (a
trabalho escravo imigrado do Norte e
partir de lixo reciclado); ritmos africanos encontrados em nossa
Nordeste, das lavouras e jazidas em
música popular; danças, explorando os significados dos movimen-
extinção, para as plantações de café
tos corporais estabelecidos para cada ritmo; jogos teatrais e lutas;
e para a produção de charque nas
culinária e tantas outras manifestações culturais afro-brasileiras.
fazendas do eixo centro-sul.
Entre os sudaneses originários da Costa
dos Escravos (na baía de Benin), a
presença massiva dos yorubás talvez
SUGESTÕES DE LEITURA
explique a sobrepujança de elementos
dessa cultura em nossa religiosidade e Infantojuvenil
em nossa linguagem nas épocas Asare, Meshack. O chamado de Sosu. São Paulo: Edições SM, 2005.
mais recentes. Badoe, Adwoa. Histórias de Ananse. São Paulo: Edições SM,
Temos notícias do poderio yorubá 2006.
já na própria África, estendendo-se Costa e Silva, Alberto da. Um passeio pela África. Rio de Janeiro:
desde a região do golfo da Guiné até o Nova Fronteira.
interior do Sudão. Sua civilização mais Cunha, Carolina. Aguemon. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
adiantada surpreendeu os primeiros _____. Caminhos de Exu. São Paulo: Edições SM, 2005.
europeus pelos trabalhos em bronze _____. Eleguá. São Paulo: Edições SM, 2007.
que faziam no reino do Benin. A _____. Yemanjá. São Paulo: Edições SM, 2007.
religião, a organização política e os Lody, Raul. Atlas brasileiro de cultura popular. Salvador: Edições
costumes sociais desses povos ditavam Maianga, 2006.
modelo a uma vasta zona. Eles eram Munanga, Kabengele; Gomes, Nilma Lino. O negro no Brasil de
sobretudo agricultores, mas seus hoje. São Paulo: Global, 2006.
tecelões, ferreiros, artistas do cobre, Mwangi, Meja. Mzungu. São Paulo: Edições SM, 2006.
do ouro e da madeira, comerciantes, Verger, Pierre Fatumbi; Carybé. Lendas africanas dos orixás. São
guerreiros e intelectuais já gozavam de
Paulo: Corrupio, 1983.
merecida reputação.
Em território brasileiro, os pertencentes
à nação Ketu (ver p. 22), termo que Adultos e para pesquisa
designa o grupo linguístico yorubá, Buarque de Holanda, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Compa-
tem sua origem como bem definiu nhia das Letras, 2003.
Pierre Verger (1996): “o termo ‘yorùbá’ Carneiro, Édison. Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro:
aplica-se a um grupo linguístico de Agir, 2005.
vários milhões de indivíduos”. Ele Castro, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um vocabulá-
acrescenta que, “além da linguagem rio afro-brasileiro. Rio de Janeiro: TopBooks, 2001.

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ABC afro-brasileiro Carolina Cunha

Freire, Gilberto. Sobrados e mocambos: decadência do patriarca-


comum, os yorùbá estão unidos por do rural e desenvolvimento do urbano. Rio de Janeiro: José
uma mesma cultura e tradições de Olympio, 1968.
origem comum, na cidade de Ifé, Mattoso, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Bra-
mas não parece que tenham jamais siliense, 1990.
constituído uma única entidade Ramos, Arthur. O folclore negro do Brasil. São Paulo: WMF; Mar-
política e também é duvidoso tins Fontes, 2007.
que, antes do século XIX, eles se Reis, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante
chamassem uns aos outros por um dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
mesmo nome”. Ribeiro, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova
O segundo grupo linguístico, o fon, Fronteira, 1984.
é falado nas comunidades religiosas Santos, Joel Rufino dos. O dia em que o povo ganhou. Rio de Ja-
afro-brasileiras da chamada nação neiro: Civilização Brasileira, 1979.
jeje, descendente dos povos ewe. Verger, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo
Proveniente do grupo kwa das do Benin e a Baía de Todos os Santos do século XVII a XIX. São
famílias de línguas do Níger-Congo, Paulo: Corrupio, 1987.
principalmente do Togo, e com sua _____. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos
variante dialética mais popular, o mina, os Santos, no Brasil, e na antiga Costa dos Escravos, na África.
constitui uma língua difundida em São Paulo: Edusp, 1999.
todo o golfo. _____. Notícias da Bahia – 1850. Salvador: Corrupio, 1982.
Tudo leva a crer que foi no Brasil que Vianna Filho, Luiz. O negro na Bahia: um ensaio clássico sobre a
o sintagma jeje-nagô entrou em uso escravidão. Salvador: Edufba, 2008. (Edição comemorativa ao
corrente. Nesse ABC afro-brasileiro, estão centenário de nascimento do autor).
destacados padrões culturais dos grupos
ewe-fon e nagô-yorubá mais ou menos Outros títulos da coleção ABC
comuns na vida tradicional da África, mas Barbieri, Stela. ABC do Japão. São Paulo: Edições SM, 2008.
que, mesmo modificados, aparecem aqui Barbosa, Rogério Andrade. ABC do continente africano. São Pau-
e ali em nossos candomblés. lo: Edições SM, 2008.
A alta personalidade dessas culturas Farah, Paulo. ABC do mundo árabe. São Paulo: Edições SM, 2006.
manifesta-se em aspectos peculiares. Por Machado, Ana Maria. ABC do Brasil. São Paulo: Edições SM, 2009.
exemplo, na coexistência de monoteísmo Scliar, Moacyr. ABC do mundo judaico. São Paulo: Edições SM,
e politeísmo; no antropocentrismo; no 2007.
vínculo estreito entre religião e natureza;
nas vibrações e forças sobrenaturais Elaboração do guia Carolina Cunha; Preparação Gislaine Maria da
(ver p. 7); no uso da palavra como fonte Silva; Revisão Carla Mello Moreira e Márcia Menin
sagrada de transmissão do saber.
A adoração aos deuses dos povos jeje
e nagô é, acima de tudo, pragmática. p. 30), Omolu distribui moléstias, Xangô ruge trovões (ver
Voduns (ver p. 40) e orixás (ver p. 9) p. 42), Dan se encanta em arco-íris, Oxóssi caça e Yemanjá
não param de intervir nos assuntos canta seu canto doce (ver p. 45).
terrenos cotidianos. É aqui que Oxalá Essas culturas vieram dar um sentido mais humano à vida
se lava com águas novas, Exu faz arder brasileira. Com grande êxito e não tão poucas dificuldades,
a savana, Ogum forja o facão, Oyá assentaram os candomblés, projetaram as quitandas, recriaram
dança com corpo de vento e neblina, sabores e aromas, nacionalizaram o samba, mundializaram
os santos gêmeos se esbaldam (ver as capoeiras, abraçaram todos os santos, inclusive no meio
p. 13), Oxum guarda suas joias (ver católico, com a multiplicação das agremiações e irmandades.

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