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Indígenas “empossam” a deputada Célia Xakriabá

Leandro Aguiar
colaboração para o TAB, de Brasília

Era sexta-feira, 27 de janeiro, quando a nova legislatura da Câmara dos Deputados recebeu
as credências de entrada no prédio, já na preparação para a posse em 1 o de fevereiro. O momento
teve um gosto especial para Célia Xakriabá (PSOL), 33, primeira indígena eleita deputada federal
por Minas Gerais, onde conquistou mais de 100 mil votos. À sua colega de partido, a ministra dos
Povos Indígenas Sônia Guajajara, Célia comentou: “finalmente podemos entrar no Congresso
Nacional sem medo de sermos recebidas com spray de pimenta.”
Célia tem uma longa lista de coisas a fazer em seus primeiros dias na Câmara: ajudar na
formação da frente parlamentar em defesa dos povos indígenas, reunir-se com o ministério da
Educação para apresentar suas ideias de uma escola que considere os contextos territoriais dos
alunos, e, objetivo imediato, pressionar para que seus colegas, o deputado Ricardo Salles (PL) e a
senadora Damares Alves (Republicanos), sejam investigados pelo colapso humanitário no território
Yanomami.
Como a chamada bancada ruralista, que conta com cerca de 280 congressistas, é muito mais
numerosa que a recém-chegada “bancada do cocar”, que têm Célia na Câmara e indígenas no alto
escalão do Executivo, como a ministra Sônia Guajajara, Joenia Wapichana, presidente da Funai, e
Weibe Tapeba, Secretário Especial de Saúde Indígena, estas tarefas não serão fáceis. Cientes disso,
indígenas de todo o país foram até Brasília para abençoar os caminhos da deputada dos Xakriabás
no dia de sua posse.
Na Esplanada dos Ministérios, antes da cerimônia oficial, realizaram a “posse ancestral” de
Célia – que contou com um ritual de limpeza, força e proteção, invocações conduzidas por pajés e
rezadeiras ao poderoso deus Tupã, muitos cantos, defumações com ervas e incensos e rodas de
dança. Ao fim, caminharam todas juntas em direção ao Congresso – fortemente protegido por
militares, ao contrário do que se viu no início da tarde de 8 de janeiro, quando os bolsonaristas
vandalizaram o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto.
Trajando um longo vestido amarelo rajado de pintas negras e grafismos azulados e com seu
tradicional cocar, inspirados nas águas, onças e matas do Cerrado, e já devidamente protegida pelo
rito, só então Célia adentrou a chapelaria da Câmara, rumo a sua outra posse.

Uma adolescente entre os caciques


Natural da Terra Indígena Xakriabá, em São João das Missões, norte de Minas Gerais, a
deputada não terá as dificuldades costumeiras em transitar pelas intrincadas superquadras
brasilienses. Foi na Universidade de Brasília que ela alcançou o grau de mestra em
desenvolvimento sustentável, e a militância nas causas indígenas diversas vezes a levou à capital
federal. Na primeira visita, tinha 13 anos de idade – e comunicou um duro recado à classe política.
“Desde criança ela presenciou o que é a luta de um povo”, contou ao TAB o líder indígena
Hilário Xakriabá, 61 anos, pai da deputada. Curiosa, ela ouvia com atenção as narrativas dos mais
velhos sobre as marchas indígenas em Brasília. De tanto perguntar, um dia um grupo de caciques
que iria até a cidade convidou-a a ir junto. Chegando ao Congresso, a surpreenderam com o pedido
de que falasse a plateia, que incluía o então deputado Jair Bolsonaro (PL).
Célia não se intimidou. “Falei que, ao destruírem nossas florestas, eles não estavam matando
apenas a nós indígenas, mas matavam também o futuro dos filhos deles próprios”, lembra a
deputada. Na volta para Minas, foi elogiada pelos caciques, que lhe disseram que um dia ela os
representaria em Brasília. Célia deu risada e voltou às suas ocupações de adolescente.
De lá pra cá, ela se graduou na primeira turma de ensino médio pensada especificamente
para o povo Xakriabá, tornou-se a primeira Xakriabá a ingressar no doutorado pela UFMG, a
primeira de seu povo a ocupar um cargo na Secretaria de Educação de Minas Gerais, a primeira
indígena a apresentar um podcast no Globoplay – o “Papo de Parente” – e, agora, figura como a
primeira deputada federal indígena de Minas.
Transitar, sempre como pioneira, por lugares que no imaginário reacionário não
correspondem aos indígenas é desgastante as vezes, conta Célia. “Quando não somos vítimas da
política de ausência, somos vítimas da política da solidão. Mas foi muito importante romper com
essa ausência na política. Isso aumenta o compromisso do nosso mandato, não só com o norte de
Minas, mas com todos indígenas do Brasil”.

Breve descanso no Cerrado

Os últimos meses de Célia foram de pura correria. Durante a campanha, chegou a ministrar
60 palestras a estudantes num único mês, em todas as regiões de Minas. No dia da apuração do
primeiro turno, que acompanhou no Território Xakriabá, a ansiedade atingiu o cume: seus parentes
comemoravam sua votação desde os 20, 30 mil votos, mas Célia mantinha a cautela. Quando já não
restavam dúvidas de que ela estava eleita, foi uma explosão de alegria, acompanhada de gritos,
apitos e atabaques. Uma carreata que reuniu três mil indígenas percorreu a região, numa
comemoração que só terminaria dali a dois dias.
Mas a correria estava só começando. Eleita, a deputada engajou-se na campanha petista pelo
2o turno, e viajou o Brasil em uma série de “escutações” com diferentes povos indígenas – o termo
“oitiva” lhe parece demasiado carrancudo. Poucos dias após o fim da disputa presidencial, foi
convidada a tomar parte na comitiva do presidente Lula e da ministra do Meio Ambiente Marina
Silva (Rede) na COP27, no Egito. Lá, ouviu do bem-humorado presidente: “você ainda vai dar
muito trabalho para a oposição no Congresso Nacional”.
Terminada a COP, nada de descanso. Foi convocada por Marina a compor o grupo de
transição do governo. Novamente, foram semanas intensas. “Estudamos muito, esmiuçamos os
problemas, e fizemos diversas recomendações para descolonizar a saúde e a educação indígena, o
trato com o meio ambiente e a gestão do Fundo Amazônia”, conta a deputada.
Enfim sobrou uma brecha em sua agenda, e Célia não pensou duas vezes sobre o que faria
para espairecer: correu de volta ao Cerrado do norte de Minas para plantar abóboras e se reconectar
com a terra. Por sorte, o imenso Cerrado a fará companhia também no Planalto Central do país. “O
Cerrado é o meu livro, eu só consegui me formar e ser quem eu sou porque tenho muito firme os
pés no chão do meu território”, conclui a deputada.

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