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ANAIS DO V SECAMPO

GT 1:

Mamanguape – PB, de 10, 11 e 12 de novembro de 2016.

1
GT 1:
Educação,
Democracia, etnias
e relações
étnicoraciais.

2
A IDENTIDADE NEGRA DA FAMÍLIA SILA

Ana Valéria Ubaldo da Silva


Mestranda do PROFLETRAS – UFRPE- UAG
ana-valéria-20@hotmail.com

Resumo: Durante o período escravista, os negros fugiam do trabalho forçado e


desumano nas fazendas e engenhos, e se refugiavam nos quilombos. Na região
do Sertão de Pernambuco, muitos deles refugiavam-se nas Ilhas do São Francisco.
Essa descendência africana é notadamente percebida nas feições e nos costumes
dos ilhéus e na população urbana de Belém do São Francisco. Porém, após
pesquisas realizadas, foi constatado que grande parte da população belemita não
se reconhece ou se identifica como negra. A hipótese é a falta de referências
étnicas positivas que possam servir de modelo para a valorização da cultura negra
no município. Este trabalho se propõe a investigar a existência e registrar a história
de pessoas no município que preservem, cultivem e valorizem suas raízes e
tradições étnicas. Neste artigo, as pesquisas realizadas são de cunho etnográfico
com o auxílio de análises documentais, entrevistas e observações. Esta pesquisa
está embasada teoricamente segundo os pressupostos de Campos (2008), Bobbio
(1992), Damata (1986), Hampâté Bâ (1981), Muganga (1994), Oliveira (2004) e
Laplatine (2003). Espera-se contribuir para evidenciar representações positivas
que sejam associadas à valorização da cultura negra no município, diminuam as
concepções sobre a inferioridade racial existentes e possam auxiliar na afirmação
da identidade étnica desta população. A noção de identidade de um povo é muito
importante para a formação e o reconhecimento dos sujeitos sociais e para a
aquisição de cidadania, reconhecimento de valores, crenças e raízes. Esta
pesquisa investigou os usos e costumes da família dos ―Silas‖, conhecidos
regionalmente por sua união, caráter comunitário e seus valores culturais e
religiosos que são tradicionalmente transmitidos através do convívio de geração
em geração.

Palavras-chave: 1. Identidade. 2. Religião. 3. Cultura negra.

Introdução

A cidade de Belém do São Francisco, segundo dados do IBGE, possui


atualmente cerca de 20.253 habitantes e está situada no sertão de Pernambuco.
Belém fica nas proximidades de cidades como: Cabrobó, Floresta, Ibimirim,
Tacaratu e Petrolândia e Rodelas na Bahia, as quais possuem tribos indígenas
reconhecidas, e também fica próximo às cidades de Salgueiro e Itacuruba,
municípios com comunidades negras conhecidas nacionalmente como Conceição
das Crioulas. O município possui um arquipélago com aproximadamente 88 ilhas,
situadas entre os estados de Pernambuco e Bahia.
Durante o período escravista os negros fugiam do trabalho escravo e desumano
nas fazendas e se refugiavam nos quilombos. Na região do Sertão de Pernambuco
3
muitos deles refugiavam-se nas Ilhas do São Francisco. Essa descendência africana é
notadamente percebida nas feições e costumes dos ilhéus, assim como em grande
parte da população urbana de Belém. Segundo a pesquisadora Carla Siqueira Campos
as Ilhas do São Francisco ―[...] apontam alguns indícios históricos e a tradição oral
das comunidades lá situadas, indicando a região como propícia a presença de escravos
fugidos de outras regiões ou vindos para trabalhar nos empreendimentos agrícolas e
pastoris‖. (CAMPOS, 2008, p.3).
Este ensaio-artigo surgiu de uma inquietação, como professora, ao
constatar por meio de observações realizadas no cotidiano escolar e
posteriormente através de pesquisas, que a maioria dos alunos não reconhecia ou
identificava suas características étnicas. De um número de 150 jovens do 6º ao 9º
ano do ensino fundamental II e do 1º ano do Ensino Médio que participaram da
pesquisa, apenas 4% deles reconheceram-se como negros. Alunos, filhos de pais
negros, não reconheciam a sua etnia e denominavam-se como brancos, amarelos,
pardos, morenos, e até cores como cor de jambo e cor de canela foram citadas.
Assumir-se negro ainda é um grande empecilho social e psicológico para muitos
deles. A hipótese da causa deste problema é a falta de referências positivas negras
que possam servir de modelo para a valorização da cultura negra no município.
Autodenominar-se negro pode representar diferentes sentidos para cada pessoa.
Para alguns, é ter de assumir toda uma carga semântica negativa e estigmatizada
do termo: algo pejorativo, inferior e marginalizado socialmente. Mas para outros,
pode representar o reconhecimento e a valorização de toda uma história de lutas
e de resistência de um povo.
Diante do problema apresentado, o Prof. Dr. Jorge Miranda de Almeida
durante o curso de pós-graduação Latu Senso Ética e Educação para uma Cultura
de Paz da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), propôs a
investigação da existência de pessoas, na cidade de Belém do São Francisco, que
mesmo cultivassem e valorizassem suas tradições culturais e étnicas para
fomentar e divulgar os valores culturais, sociais e culturais da população
negra. A identificação da identidade étnica é um elemento decisivo na luta contra
a discriminação, o preconceito e pela valorização social.
A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros
(identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da
unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos
externos, as manipulações ideológicas por interesses
4
econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA 1994, p. 177-
178)

Assumir-se negro é identificar-se com um conjunto de referenciais sócio-


históricos e culturais, característicos das matrizes africanas. As referências étnicas
fundamentam a identidade de cada um e são refletidas no modo de agir, de se
vestir e de se organizar socialmente. A ausência de uma identidade étnica gera a
indefinição da identidade e a desvalorização de uma cultura. A noção de identidade
de um povo é muito importante para a formação e o reconhecimento dos sujeitos
sociais e para a aquisição de cidadania, reconhecimento de valores, crenças e
raízes.
Neste trabalho, as pesquisas realizadas são de cunho etnográfico e foram
realizadas uma análise documental, entrevistas e observações. Este ensaio-artigo
está embasado teoricamente segundo Campos (2008), Bobbio (1992), Damata
(1986), Hampâté Bâ (1981), Muganga (1994), Oliveira (2004) e Laplatine (2003).
Com esta pesquisa espera-se contribuir para mostrar representações positivas que
sejam associadas a valorização da cultura negra no município e que diminuam as
concepções sobre a inferioridade racial existentes.

A rua dos Silas

A família dos ―Silas‖ é conhecida regionalmente devido a sua união


familiar. A maioria dos integrantes dessa família reside ou já residiu em uma
mesma rua, que também recebe esse nome, chamada popularmente de
―Rua dos Silas‖. Oficialmente essa rua chama-se Acelina Mª da Conceição, em
homenagem à matriarca da família. Durante a realização do trabalho buscou-se
conhecer o máximo possível sobre a origem, crenças, usos, linguagem e costumes
característicos da família dos ―Silas‖.
Segundo relatos colhidos durante entrevistas realizadas durante os meses
de agosto e setembro de 2011constatamos que essa família é originária da Ilha do
Meio situada no estado da Bahia. O nome ―Sila‖ era o apelido da matriarca
Acelina Maria da Conceição. Sila casou-se com Teodoro Moreno da Silva, natural
da cidade de Itacuruba em Pernambuco. O casal teve nove filhos: José Teodoro
da Silva (Zé de Sila), Altino Teodoro da Silva (falecido), Mª Ercina Nunes (Mª de
Sila, falecida) Teodoro Filho da Silva (Teodorinho, falecido), Mª do Patrocínio da

5
Silva (Patu), Cláudio Teodoro da Silva, Mª das Dores da Silva (Dora), Josefa
Acelina da Silva (Zefinha) e Francisca Acelina da Silva.

Para este trabalho antropológico realizamos entrevistas orais com Maria do


Patrocínio (Patu) no dia treze de agosto de 2011, José Teodoro (primogênito de
Sila) no dia vinte e um de agosto, João Ubaldo Sobrinho (primogênito de Mª de
Sila) em sete de setembro do mesmo ano e Mª Albertina Ubaldo da Silva (Nininha,
ex-mulher de João Ubaldo). Nininha nos acompanhou durante todos os processos
de realização dos trabalhos para garantir a sequência cronológica dos fatos, sua
veracidade e um maior acesso aos entrevistados, e às informações necessárias
para a realização deste ensaio. Mediante audição de relatos orais, pesquisas
bibliográficas e a análise de fotos antigas pudemos identificar alguns vestígios
étnicos e religiosos característicos, os quais marcam a singularidade dessa família.
A família dos Silas é descendente de africanos, mas pratica o catolicismo
tradicional popular 1 . Suas práticas religiosas antigas foram provavelmente
sobrepostas em favor da religião católica.

Africanos no Brasil

Os negros vieram da África (Guiné, Sudão, Nigéria, Angola, Moçambique)


para o Brasil forçadamente para atender à necessidade de mão-de-obra barata de
trabalho nas lavouras e foram submetidos a um terrível processo de escravização.
Durante três séculos e meio eles foram torturados, inferiorizados, massacrados e
vendidos como objetos. Eles foram forçados a deixar de lado sua cultura, crenças,
valores, língua e costumes originários da África para se adaptar à cultura do povo
europeu. Os africanos não eram considerados seres humanos dotados de história
e cultura, o reconhecimento desses legados os caracterizaria como seres humanos
dotados de direitos, e isso atrapalharia os interesses econômicos europeus no
processo de escravização. O negro poderia ser vendido quando e quantas vezes

1
No catolicismo popular não encontramos um culto especial para Deus, a não ser quando ele é
representado como o Divino Pai Eterno, o Divino espírito Santo, o Senhor Bom Jesus etc. A capela
é o espaço sagrado. Construída, quase sempre, em mutirão, é propriedade e objeto de devoção
comum. É ali que o povo faz suas rezas, organiza novenas, faz orações e espera o padre, quando
ele vem celebrar a missa e dar os sacramentos. Nessa capela, existe a imagem do padroeiro, o
santo de maior devoção. Para os devotos, os Santos são aliados do homem, pois são por meio
deles que eles têm acesso a Deus.
6
o seu ―senhor ‖ desejasse, independentemente do fato de possuir familiares ou
não.
Mães eram separadas de seus filhos, maridos de suas
esposas, isso resultou na separação e dispersão de
inúmeros integrantes das famílias africanas. Essa prática de
desmembramento familiar gerou a perda dos vínculos
afetivos e consanguíneos entre suas etnias, termo
conceituado como "grupo social cuja identidade se define
pela comunidade de língua, cultura, tradição, monumentos
históricos e territórios" (BOBBIO, 1992, p.449).
Os escravos fugiam do trabalho escravo nas fazendas e engenhos
pernambucanos. Alguns iam para os quilombos e outros escolhiam as ilhas do rio
São Francisco, locais afastados que serviam de proteção e resistência à
escravidão. Lá viviam da agricultura de subsistência, da pesca e da caça. A partir
do surgimento dos quilombos, os negros tiveram as suas primeiras oportunidades,
desde que vieram da África, para construir um núcleo familiar fixo, mesmo que de
uma forma tão precária e frágil, pois os negros viviam temerosos em meio à
insegurança de serem recapturados por seus senhores. Mesmo assim, foi sobre
esta base frágil que os descendentes africanos reconstruíram suas famílias e
resgataram o sentimento de pertencimento familiar perdido durante a escravidão.
Foi das margens do Rio São Francisco que esse povo extraía os recursos
necessários para a sua sobrevivência no sertão em meio à aridez característica
das áreas de caatinga composta por árvores xerófilas, arbustos espinhosos e
cactáceos.

Início da Rua dos Silas

Na Ilha do Meio, Sila e Teodoro trabalhavam na agricultura e também


obtinham alimentos por meio da caça e da pesca. Em 1919 devido a uma enchente
que inundou a ilha, Sila, o marido e os três filhos nascidos na época: Zé, Altino e
Maria mudaram-se para Belém do São Francisco, onde residiram na Rua
Itacuruba. A família plantava arroz, batata, mandioca e faziam farinha. Criavam e
engordavam galinhas e porcos para se alimentar. Teodoro além de agricultor
também trabalhou como marchante 2. Segundo Patu nos dias de ―[...] sexta e no
sábado tinha carne bastante. Porque meu pai era marchante, matava gado, matava

2
É a pessoa encarregada de abater os animais nos
7
boi para os outros e bode para ele. ‖ Era diferente de hoje, pois antes ―Tinha
quantidade, mas não tinha variedade‖ (DA SILVA, 2011, p. 4).

Em 18 de agosto de 1959 falece Teodoro Moreno deixando nove filhos. A


pequena casa de Acelina era de taipa3 com chão de barro socado e, quando chovia,
tudo desmoronava. Segundo o relato de Zé de Sila, o filho mais velho, isso
acontecia porque ―o barro não dava liga4‖ (DA SILVA, 2011, p.1). Na ausência
do pai, ao chegar do trabalho, Zé tinha que reconstruir a casa todas às vezes que
chovia. Inconformado com a situação, Zé de Sila em 1961, resolve construir outra
casa para a sua mãe na antiga Rua Rodelas, próxima ao Riachão5. O terreno foi
comprado a Beto, escrivão da comarca de Belém do são Francisco.
Segundo a lei nº. 270/1996 da Câmara Municipal de Belém do São
Francisco que modificou o nome da Rua Rodelas para Acelina Mª da Conceição
em 1996, a casa de Sila foi ―a 1ª residência construída na referida artéria6‖. Nessa
época, Belém ainda não possuía água encanada em todas as ruas e para ter
acesso à água do chafariz, situada na Rua Rodelas, as pessoas tinham de comprar
fichas. Também não havia energia elétrica no período e, durante a noite, utilizavam-
se candeeiros à base de querosene para iluminar as casas. Os moradores da rua
e das imediações tomavam banho e pescavam no extinto Riachão7 que cortava a
cidade transversalmente desde a Vila da COHAB8 até a Igreja Nossa Senhora do
Patrocínio indo desaguar no Rio São Francisco. Nesse riacho havia vários peixes
como o dourado que atualmente está em processo de extinção em várias regiões
da Bacia do São Francisco.
Segundo Patu, com o passar do tempo um a um os filhos foram comprando
terrenos e construindo suas casas na Rua Rodelas com o objetivo de ficarem juntos
e perto da mãe. Mª de Sila foi a primeira a construir sua casa do lado esquerdo da
casa de Sila, Patu do lado direito, Zé de Sila ao lado da casa de Maria, Altino
morava e trabalhava em uma oficina na mesma rua. Dôra, Zefinha e Francisca

3
Parede de construções rústicas, feita de barro (a que se misturam às vezes areia e cal) comprimido
numa estrutura entretecida de varas ou taquaras; pau-a-pique: casa de taipa.
4
Boa qualidade, colar, agregar;
5
Antigo córrego, pequeno riacho;
6
Rua;
7
O Riachão devido ao assoreamento cedeu lugar a um canal de
esgoto; 8 Conjunto Habitacional.
8
sempre moraram com a mãe. Teodorinho e Cláudio não chegaram a morar na rua,
mas possuíam casas em ruas bem próximas. Atualmente filhos, netos, bisnetos e
trisnetos, moram ou já moraram em uma mesma rua, a Rua dos ―Silas‖. Existem
cinco casas na Rua Acelina Mª da Conceição e outras oito situadas em ruas vicinais
habitadas por integrantes de uma mesma família.
A ideia de residência é um fato social, totalizante, conforme diria
Márcio Mauss. Ou seja, quando falamos da ―casa‖ não estamos
nos referindo simplesmente a um local onde dormimos, comemos
ou usamos para estar abrigados do vento, do frio ou da chuva. Mas
isto sim- estamos referindo a um espaço profundamente totalizado
numa forte moral. Uma dimensão da vida social permeada de
valores e realidades múltiplas. [...] Não se trata de um lugar físico,
mas de um lugar moral: esfera onde nos realizamos basicamente
como seres humanos que tem corpo físico, e também uma
dimensão moral e social. Assim, em casa, somos únicos e
insubstituíveis. Temos um lugar singular numa teia de relações
marcadas por muitas dimensões sociais importantes, como a
divisão de sexo e de idade. (MAUSS, apud DAMATTA 1981, p.16)

Para os integrantes entrevistados da família ―Sila‖, o fato da maior parte


dos familiares estarem morando em uma mesma rua, a rua dos ―Silas‖ é motivo
de grande orgulho. Isso evidencia a vontade de permanecerem unidos, em contato
com os seus, preservando e partilhando os costumes tradicionais familiares. Esse
sentimento é expresso nas palavras de Patu quando se refere à possibilidade de
suas irmãs e sobrinhas deixarem as casas da rua:
Estão todas aí e nem vão sair, porque ninguém vai consentir elas
fazerem casa pra sair daí, nem Juliana também vai sair da Casa
de Maria, vai não! Porque se sair a casa fecha, aí a dor é maior,
separa a família, não é não? Deus me livre fechar essas casas,
aqui era tão animado! Nessa rua tinha muita gente! A família toda
estava aqui, por isso o povo achou que podia chamar a ―rua dos
Sila‖, porque só era Sila mesmo! Só tínhamos nós mesmos e os
outros parentes e amigos vinham das casas deles, passavam os
domingos por aqui, só dava Sila. (DA SILVA, 2011, p. 8)

Nota-se que para os ―Silas‖ o significado da palavra casa ultrapassa a


dimensão material de morada. O afastamento dos parentes representa a
possibilidade de perda dos vínculos afetivos e culturais. A permanência dos
familiares na rua representa para eles a perpetuação dos valores éticos, religiosos
e culturais da família.

Costumes e tradições dos Silas

9
Um traço cultural bem marcante dessa família é o seu caráter coletivo,
comunitário e a sua integração ao catolicismo tradicional popular. Zé, o filho mais
velho de Sila, durante mais de trinta anos foi decurião 9 da ordem dos penitentes10
em Belém do São Francisco seguindo a tradição de seu pai Teodoro. Alguns de
seus filhos e sobrinhos também seguiram a tradição da família. Os penitentes,
através dos sacrifícios e do sofrimento, buscam a purificação e o arrependimento
dos pecados durante o período da quaresma.11A penitência faz parte da cultura
dos Silas. Em Claxton (apud OLIVEIRA, 2004, p.3) obtemos o que seria para a
UNESCO o conceito de cultura:
[...] el conjunto de los rasgos distintivos, espirituales y materiales,
intelectuales y afectivos que caracterizan a una sociedad o grupo
social. Engloba no solo lãs artes y lãs letras, sino también los
modos de vida, los derechos fundamentales del ser humano, los
sistemas de valores, lãs tradiciones y lãs creencias.

A cultura influencia os comportamentos individuais e coletivos de um grupo.


Ela repercute diretamente na visão de mundo dos indivíduos que a transmitem para
seus descendentes que se não os praticam ao menos estão conscientes da
relevância de tais preceitos.

9 Chefe dos penitentes;


10 Aquele que pratica a penitência através da oração e da autoflagelação. Durante os rituais e
peregrinações os penitentes de Belém do São Francisco não podem mostrar o rosto nem ficar de costas
para o altar. Eles utilizam capuzes e túnicas pretas com cruz branca. A penitência é representada
em ―atos como: jejuns, vigílias, peregrinações que os fiéis — ou a Igreja — oferecem à Deus ao Pai
Criador, como provas de que estão arrependidos dos seus pecados; praticados dentre os diversos ramos
do cristianismo — de diferentes formas — com a finalidade de expiação dos pecados; tendo o significado
de um sacrifício pessoal do fiel, pagando um pecado cometido, ou agradecendo uma graça recebida. (...)
Antigamente, acreditavam que, com flagelações no próprio corpo, a alma seria libertada. Essa atitude
demonstrava que a alma era mais importante do que o corpo humano.‖ (Wikipédia, 2011)
11―A Quaresma – ‗coresma‘, como às vezes nos sertões do lugar se pronuncia – serve à espera:
quarenta dias para o que há de vir, todos os anos. Provação que atesta a fé, ela é a medida do
devoto. A Quaresma torna visível uma qualidade de ser fiel que aos antigos era a regra – os mais
velhos lembram com pesar – e que agora é a rara exceção, cada vez mais. Serve para dizer no
corpo, na contenção pública dos gestos, na ostentação mansa e persistente do que não se faz
‗nela‘, a vontade de submeter o desejo de tudo à norma de preceito. Por isso serve para atestar
aos próprios olhos da alma, aos da família, aos dos vizinhos, quem ainda é cristão católico, quem
não o é ‗muito‘ e quem já não o é. Serve para mostrar quem ‗cumpre‘ (...) mas a Quaresma deve
ser vivida com intenções e sinais de uma pesarosa espera: um deus que nasceu homem faz muitos
anos vai morrer daqui a alguns dias. A Quaresma é uma restrição dos sentidos para que a memória
não deixe de lembrar isto... In: BRANDÃO, C.R. A cultura na rua. Campinas, SP: Papirus, 1989.
p.121-122;
10
Mª do Patrocínio, popularmente conhecida como Patu, desde 1973, coordena os
trabalhos e celebrações na Capelinha do Deserto Senhor do Bonfim lhe confiada
pelo senhor Manuel Jacinto Filho (Manoel Carpina12), fundador dos penitentes em
Belém. Na época, a capelinha ainda estava inacabada, Manoel Carpina havia
ficado doente e confiou a responsabilidade da continuação dos trabalhos a Zé de
Sila, decurião dos penitentes na época, e a sua irmã Patu que integrava o grupo
de mulheres que acompanhava a penitência. A origem da capelinha é contada por
Patu:

O dono dela, seu Manoel, recebeu um aviso, de uma santa em


sonho, pediu que construísse uma capela, chamasse os
homens para rezar, quando eles não pudessem chamassem
as mulheres. Ali ele ficou impressionado. No outro dia o
mesmo sonho contando com mais detalhes o que devia fazer,
deu a metragem, o nome: Capelinha do deserto do Senhor do
Bonfim, o altar como devia fazer, colocar o padroeiro Senhor
do Bonfim. (DA SILVA, 2011, p.6)

Essa capela deu origem ao bairro do Bom Jesus. Ela foi a primeira
construção daquele local. A capelinha é mantida até hoje através de doações e
festas religiosas em homenagem ao padroeiro Senhor do Bonfim. De acordo com
Patu, as doações são arrecadadas por um grupo de parentes e amigos que saem
em cortejo anualmente pela cidade de Belém do São Francisco entoando cantos
antigos e rezas. O Cruzeiro que há vários anos é carregado por Ditão, fiel
colaborador dos festejos, vai à frente da multidão até as casas escolhidas. Os
moradores que recebem a visita do Cruzeiro seguem o ritual de beijar a cruz e
segurá-la enquanto percorrem os cômodos da casa. Os cantos entoados durante
a mendicância13 não estão escritos em nenhum livro. A letra, o ritmo e a melodia
são guardados na memória dos mais velhos e fazem parte da tradição oral passada
de pai para filho. As memórias e os rituais estão atrelados às experiências, como
afirma Hampâté Bâ:

12 Devido ao ofício de carpinteiro; Manuel Jacinto é também o nome de uma escola municipal situada no bairro Bom Jesus;

13 Aos domingos, eles saem pelas casas pedindo donativos para realizar as celebrações do Cruzeiro

11
A tradição oral é a grande escola da vida, e todos os seus aspectos são cobertos
e afetados por ela. É ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural,
aprendizado em um ofício, história, entretenimento e recreação [...] Uma vez que
se liga ao comportamento cotidiano do homem e da comunidade, a ―cultura‖
africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve
uma visão particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença particular no
mundo – um mundo concebido como um onde todas as coisas se religam e
interagem. (HAMPÂTÉ BÂ, 1981, p.168).

Para Nininha que recebe o Cruzeiro em sua casa há mais de vinte anos, o
Cruzeiro ― é uma representação da presença de Jesus Cristo. Recebê-lo em casa
é uma demonstração de fé, respeito e alegria por estar diante da representação do
Senhor.‖ (DA SILVA, 2011, p.11).
Aqueles que recebem o Cruzeiro em casa, tradicionalmente fazem doações
em dinheiro ou alimentos em prol do tríduo 14 do Senhor do Bonfim. A festa inicia-
se em 30 de abril e a partir dessa data diariamente a população belemita15
é despertada por hinos religiosos transmitidos através de um carro de som
seguidos por fogos de artifício. Os festejos encerram-se em 3 de maio Dia da Santa
Cruz com a realização de uma Missa solene. Nesse dia as crianças do bairro do
Bom Jesus são batizadas e é oferecido um almoço à comunidade com os itens
arrecadados durante todo o mês de abril durante as visitas do Cruzeiro. Depois os
participantes saem em procissão pelas ruas da cidade acompanhada pela
filarmônica Dionon Pires e pela banda de pífano local.
O Dia de Nossa Senhora das Dores em 15 de Setembro, o Dia de Santa
Luzia em 13 de Dezembro, a penitência no período da quaresma e as celebrações
da comunidade no segundo sábado de cada mês também integram o calendário
religioso na Capelinha do deserto Senhor do Bonfim.

Características comuns entre os integrantes da Família

14 Festa com duração de três dias, em que são realizadas orações e celebrações religiosas, em devoção
a uma entidade pertencente a qualquer religião ou credo.
15 Pessoa natural de Belém do São Francisco;

12
Os integrantes da família dos ―Silas‖ comungam várias características que
possuem raízes africanas, indígenas e nordestinas. Esses costumes são
transmitidos de pai para filho. Alguns se perderam com o tempo e com a chegada
da modernidade, mas outros são preservados até hoje.
As casas são bastante semelhantes entre si. Elas foram construídas em
regime de mutirão, onde cada familiar ajudava a construir a casa um do outro. Os
quintais dessas casas são bastante amplos e repletos de árvores frutíferas
regionais como: cirigueleiras, laranjeiras e romanzeiras. Nesses locais, também
são cultivadas ervas medicinais como: Capim Santo, Erva-Cidreira, Erva-Doce
e Malva-santa.
Segundo o depoimento de João Ubaldo Sobrinho, filho mais velho de Maria
de Sila, os Silas sempre ―utilizavam plantas em chás para curar doenças tais
como: Canela, Hortelã, Coentro, Umburana, Boldo e Cabelo de milho‖.
A alimentação da família, segundo João Ubaldo continha itens como
―Feijão- de-corda, quiabo, angu16, pirão17, carne-seca, abóbora, pão-de-crueira18,
amendoim, mungunzá branco19, arroz-doce, beiju20, pamonha de milho e farinha
de mandioca‖ (SOBRINHO, 2011, p. 11).

13
Décadas atrás, os muros21 das casas eram delimitados por cercas de
algaroba22. Os familiares mais antigos possuíam balaios23 distribuídos pelos
cômodos da casa, utilizavam potes de barro para armazenar água e mantê-la
fresca, e também usavam a cabaça24 como moringa25. Fumavam pitos26, usavam
guias27 ou rosários para a proteção do corpo e do espírito, acreditavam em
quebranto28 que poderia atingir as crianças pagãs, mas também as crianças
batizadas e aos adultos. As mulheres mais antigas, como Patu e Mª de Sila,
executavam atividades manuais como bordados em ponto rococó29 e costuras à
mão e à máquina com o intuito de vestir seus filhos, sobrinhos e também
confeccionavam roupas para vender. Mª de Sila ganhou fama na cidade devido aos
belos vestidos de noiva que produzia de modo artesanal. Elas também preparavam
doces, bolos e frutas em conserva para o consumo da família e dos agregados.
De fato, na casa ou em casa, somos membros e uma família
e de um grupo fechado com fronteiras e limites bem
definidos. Seu núcleo é constituído de pessoas que
possuem a mesma substância – a mesma carne, o mesmo
sangue e consequentemente, as mesmas tendências. Tal
substância física se projeta em propriedades e muitas
outras coisas comuns. A ideia de um destino em conjunto e

16 Polenta; Papa feita com farinha de mandioca ou de milho;


17
Papa de farinha de mandioca feita quando se mistura esta com água ou caldo quente;
18 Cuscuz de farinha de mandioca;
19 Mungunzá doce; Alimento preparado com milho em grão e servido doce (com leite ou leite de coco);
20 Um tipo de bolo feito com a goma da tapioca ou da massa de mandioca assada;
21 Regionalismo: quintais;
22 A algaroba é uma espécie vegetal nativa das regiões áridas e semi-áridas como a África;
23 Cestos trançados de fibras como palha;
24 Fruto do cabaceiro;
25 Pequeno recipiente para armazenar água;
26 Cachimbos ou cigarros de palha;
27 Colares ritualísticos e protetores feitos com miçangas;

28 Estado mórbido atribuído pelo mau-olhado. Abatimento, enfraquecimento, prostração, fraqueza.


29 Utilizado em Bordado e Costura é o nome dado a uma espécie de rosinha feita de fitilho ou em bordado, em
ponto de canutilho, usada como enfeite de roupa infantil, de roupa branca feminina, etc .

14
de objetos, relações, valores (as chamadas ―tradições de
família‖) que todos do grupo sabem que importa resguardar e
preservar. Disso que isso se chamava ―tradição‖, e é assim que
normalmente falamos desses símbolos coletivos que distinguem
uma residência, dando-lhe certo estilo e certa maneira de ser e
estar [...] (DAMATTA,
1986, p.16-17).

A família ―Sila‖ é muito conhecida no cenário social belemita, não somente


pela preservação dos costumes religiosos, mas também pelo espírito coletivo,
pacífico e solidário no cuidado com o outro. Valores esses que tradicionalmente
são ensinados aos mais jovens. É bastante comum notar nas mulheres da família
um apurado instinto maternal e protetor. São mulheres de muita fibra, que na
ausência de seus maridos, assumem o papel de chefes de família. Isso ficou
evidenciado nos relatos orais colhidos em entrevistas, quando elas descreviam
suas práticas cotidianas: o modo como educavam e sustentavam os filhos,
cuidavam dos parentes mais idosos ou doentes e o seu engajamento em atividades
comunitárias religiosas.
Seguindo a tradição familiar, os padrinhos e madrinhas durante o batismo
são encarregados de proteger e ajudar seus afilhados, na presença ou na falta dos
pais até o final da vida. Para a família Sila, são considerados parentes além dos
filhos, netos, primos, tios e outros que possuem laços consanguíneos, também
os afilhados. Todos estes devem obediência e respeito aos mais velhos.
O respeito às tradições é expresso através da benção diária. Os jovens são
ensinados desde crianças a pedir a benção aos mais velhos, sejam eles parentes
ou apenas amigos da família. Nessa família, segundo Nininha ―antigamente a
benção era pedida de joelhos. Isso reflete o respeito pela cultura, tradição e
sabedoria das pessoas mais antigas e a preocupação pelo bem-estar espiritual dos
mais novos.‖ (DA SILVA, 2011, p. 11). Nesse ritual, os jovens devem beijar a mão
dos mais velhos e, posteriormente, os mais velhos beijam a mão dos mais novos,
como um sinal de benção concedida. O gesto do beijo na mão acompanhado das
palavras
―Deus lhe abençoe‖ expressam o desejo sincero por uma vida abençoada e

próspera para as futuras gerações.‖

15
A cultura é o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-fazer
característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada,
sendo essas atividades adquiridas através de um processo de
aprendizagem, e transmitida ao conjunto de seus membros.
LAPLATINE (2003, p.96).

Conclusão

Essas pessoas marcaram o seu lugar na história, mesmo com o estigma


herdado do tempo da escravidão, eles preservaram a sua cultura e sua identidade,
permeadas por traços negros, africanos e brasileiros. A memória e a valorização
da cultura negra não podem permanecer escamoteadas nos livros e registros
oficiais. A história da família ―Sila‖, um grupo familiar tão unido e com tradições
religiosas tão marcantes no cenário cultural belemita, após a realização deste
trabalho está registrada, eternizada e servirá como referência para os jovens
de hoje, para estudos posteriores e para as futuras gerações. Os valores
que esse grupo transmite a seus descendentes são raridade nos dias atuais.
Valores afetivos, éticos, sociais, religiosos e comportamentais que os distinguem e
os particularizam dentre os demais indivíduos da sociedade.
O homem deixa sua marca no meio em que vive. O fenômeno da cultura é
responsável por caracterizá-lo, por demarcá-lo, mas no momento em que esses
valores comportamentais e saberes não são apreendidos pelas gerações
mais novas, eles podem se perder no tempo e serem apagados da memória. Eles
se vão juntamente com os mais velhos. Daí a relevância do registro documental
antropológico.

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16
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de um ensaio antropológico;

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e culturais da família “Sila”. Belém do São Francisco. 13 ago. 2011. Depoimento
concedido para a realização de um ensaio antropológico;

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concedido para a realização de um ensaio antropológico;

SOBRINHO, João. As tradições culturais da família “Sila”. Belém de São


Francisco. 7 set.2011.Depoimento concedido para a realização de um ensaio
antropológico;

17
A LUTA PELA TERRA: UM SÍMBOLO DE RESISTÊNCIA E DE ESPIRITUALIDADE DO
POVO POTIGUARA DA PARAÍBA

Iranilza Cinesio Gomes Felix


Mestranda em Ciências das Religiões / PPGCR/UFPB
iranilzacinesio@gmail.com

Eliane Silva de Farias


Doutoranda em Educação / UNINI/México
eliafariass@gmail.com

Iracilda Cinesio Gomes


Bacharel em Ecologia / CCAE/UFPB
iracildaecologia@gmail.com

Lusiva Antonio Barcellos


Doutor em Educação / PPGCR/GEPeeeS/UFPB
lusivalb@gmail.com

Resumo
O presente ensaio discute o processo de luta pela terra iniciada pelos Potiguara, desde a
chegada dos europeus ao Brasil, até os dias de hoje. Tem como objetivo apresentar as
implicações causadas pelos povos invasores no território Potiguara e como isso reflete
atualmente na cultura, na vida, na questão social, espiritual e de resistência dessa etnia. Um
dos aspectos centrais do trabalho é o valor da Mãe Terra para os Potiguara, na construção de
sua identidade étnica e na luta pelo reconhecimento e conquista de seus direitos como povo
e como cidadãos, a fim de serem reconhecidos e respeitados, não apenas pelos órgãos
governamentais, mas por toda sociedade. Ainda persiste o preconceito, a intolerância, a
marginalização, o silenciamento, a invisibilidade, a falta de entendimento e valorização dessa
cultura de valor. Autores com Barcellos e Farias (2014; 2015), Boff (2001; 2004), dentre
outros, dão um arcabouço teórico a este ensaio etnográfico, com abordagem qualitativa.
Esperamos que as discussões sobre essa temática contribua para fortalecer e modificar o
imaginário das pessoas com relação aos povos originários da Paraíba.

Palavras-chave: Indígena. Território Potiguara. Mãe terra.

1 INTRODUÇÃO

A Mãe Terra é o bem mais precioso para os povos originários e para os Potiguara não
é diferente, uma vez que carregam em sua trajetória histórica uma luta para reconquistar o
território, espaço sagrado8 de sobrevivência. Lutar pela terra é lutar pela vida, pelo direito de

8
Convencionou-se entender a categoria de sagrado com o algo estrita e estreitamente ligado ao ético, ao
moral e à bondade (OTTO, 2011, p.11).

18
existir e de praticar seus costumes, suas tradições e de perpetuar a herança de seus
antepassados. Não podemos falar da luta dos Potiguara pela terra sem recorrer a um passado
remoto, permeado por uma trágica história de repressão e de violência contra essa etnia.
A batalha pela terra é uma forma de garantir melhores condições de vida e a certeza
de ter um lugar para se viver porque é através da terra que podemos ter uma vida mais digna,
ter um espaço de liberdade para produzir nossa subsistência, aproveitando o que a terra tem
de melhor para oferecer, aconchego, refúgio, sustentação e gratuidade.
A terra é o nosso sustento e nosso alimento espiritual, é o bem mais valioso que Tupã
nos deixou, não por sermos os primeiros habitantes, mas por sermos herdeiros e responsáveis
por cuidar deste patrimônio milenar. A luta pela terra envolve não apenas o diálogo entre o
poder público contra a ameaça constante dos inimigos, mas também o litígio de identidade e
alteridade étnica de um povo, de reconhecimento de seus valores e de seus costumes.

2 PROCESSO DE LUTA PELA DEMARCAÇÃO DO TERRITÓRIO POTIGUARA

O território Potiguara possui atualmente uma área contigua, no Litoral Norte paraibano,
de 33.757 hectares, distribuídos em três municípios: Rio Tinto, Marcação e Baía da Traição,
ocupando três Terras Indígenas (TI´s): TI Potiguara, situada nos três municípios, com 21.238
hectares, demarcada e homologada; TI Jacaré de São Domingos, situada no município de
Marcação, possui 5.032 hectares (em processo de homologação); TI Monte-Mór, localizada
nos municípios de Marcação e Rio Tinto, tem uma área de 7.100 hectares que está declarada.
Os Potiguara passaram por um processo de luta, incerteza e expiação desde a chegada dos
invasores europeus, em 1501 (MOONEN; MAIA, 2008). Todavia a resistência não acabou por
aí, uma vez que foram muitos inimigos que cobiçaram e querem a qualquer custo apropriar-se
ainda hoje das suas riquezas, especialmente da terra.
Segundo Baumann (1981 apud BARCELLOS, 2014), os Potiguara no século XVI,
habitavam o território da Baía da Traição e estavam distribuídos em 50 aldeias. Neste estudo
faremos apenas um recorte histórico do processo de demarcação e expropriação do território,
a partir do século passado.
Em 1918, foi a instalação da Companhia de Tecidos Rio Tinto (CTRT) no Vale do
Mamanguape-PB. A partir de então, intensificou a perseguição para com os povos indígenas
da região (BARCELLOS, 2014), resultando na execução de centenas de indígenas, espoliação
da terra referenciada9 sem falar da violência para com o meio ambiente. O desmatamento da

9
Entende-se por local referenciado aqueles que fazem parte do território tradicional. (GARLET, 1997, p. 18).
19
madeira causou a extinção da fauna e prejudicou à proteção das nascentes e de todo bioma
da região. (AMORIM, 1970).
A CTRT teve seu auge na década de 1950 e nos anos 1970, com o incentivo do governo
federal pelo PROÁLCOOL (BARCELLOS 2014), houve uma corrida para a implantação das
usinas de álcool na região, acentuando a devastação das matas nativas e dos tabuleiros
Potiguara, destinadas ao plantio da monocultura da cana-de-açúcar. Essa prática danosa,
também atingiu a colheita da mangaba e do caju que existia na região.
No início da década de 80 começou o processo de luta pela retomada e demarcação
do território Potiguara. Tudo ocorreu porque a situação estava ficando tensa e fora do controle
no momento em que os indígenas perceberem que suas terras estavam sendo invadidas e
usurpadas pelas oligarquias e grandes grupos econômicos. Estava sendo violados os direitos
constitucionais do art. 231 que dispõe “[...] aos índios [...] os direitos originários sobre as terras
que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar
todos os seus bens.” (BRASIL, 1988).
A partir de 1983, foi demarcada a primeira Terra Indígena (TI) Potiguara, porém só foi
homologada em 1991; a segunda a ser homologada foi a TI de Jacaré de São Domingos
(1993); já a terceira TI, de Monte-Mór, foi demarcada em 2003, mas até agora não foi
homologada.
É constante a luta que os Potiguara travam até os dias hodiernos, em relação aos atos
inaceitáveis de injustiça e impunidade movidos pelos nãos indígenas quando se trata da terra.
Esta permanência na terra continua sendo, mesmo hoje, um grande desafio por
causa da cobiça de grandes proprietários de terra: latifundiários, usineiros.
Além disso, no senso comum, popularmente se diz que ‘índio é vagabundo’,
‘não gosta de trabalhar’, ‘não precisa de terra’. Nas escolas, ainda se estuda
que índio existiu no passado, bem distante de nós, até pintam as crianças para
lembrar o ‘dia do índio’, numa maneira de folclorizar, transformar em brincadeira
a existência do índio. Essa ideologia permeia não só o imaginário das crianças,
isso também acontece, entre os adultos, mesmo entre pessoas com instrução
superior. [...]. Quando o assunto é índio, o desconhecimento é total, parece que
índio não é um ser humano, mas obra de ficção, coisa para ser vista nos
cinemas ou na televisão. (BACELLOS, 2014, p. 34).

Mesmo com todas as ameaças os Potiguara continuam resistindo e lutando pelo direito
e permanência em seu território. A sociedade brasileira sempre teve uma visão etnocêntrica
em relação aos povos indígenas. Rocha (1988, p. 4), define etnocêntrico, “como um caminho
lógico mais ou menos assim: Como aquele mundo de doído pode funcionar? [...] Como é que

20
eles fazem? [...] Não, a vida deles não presta, é selvagem, bárbara, primitiva! [...]”. A falta de
conhecimento e aceitação da sociedade perante o diferente necessita de um ato urgente de
reafirmação étnica por parte desses povos, para que sejam reconhecidos e respeitados. Ainda
de acordo com Rocha (1988, p. 5):

O grupo do “eu” faz então da sua visão a única possível [...], a melhor, a natural,
a superior, a certa. O grupo do “outro” fica, nessa lógica, como sendo
engraçado, absurdo, anormal ou inteligível. [...] De qualquer forma, a sociedade
do “eu” é a melhor, superior. É representada como o espaço da cultura e da
civilização por excelência. É onde existe o saber, o trabalho, o progresso. A
sociedade do “outro” é atrasada. É o espaço da natureza. São os selvagens, os
bárbaros. São qualquer coisa menos humanos, pois estes somos nós. Os
barbarismo evoca a confusão, a desarticulação, desordem. O selvagem é o que
vem da floresta, da selva que lembra, de alguma maneira, a vida animal. O
“outro” é o “aquém” ou o “além”, nunca o “igual” ao “eu”.

A construção de uma sociedade com pessoas menos etnocêntricas edifica-se no ver e


no ouvir do outro, num aprendizado de respeito à diferença, de acolher a diversidade, de deixar
fluir crenças significativas, sensíveis e as vezes, imperceptíveis, de valorizar o universo
mítico/simbólico dos indígenas.

2. 1 A TERRA COMO SÍMBOLO DE IDENTIDADE PARA OS POTIGUARA

O processo de invasão no território Potiguara foi também uma violência brutal de identidade
cultural, pois a identidade está ligada a ideia de reconhecimento, de importância e de
liberdade. Para Taylor (1994, p. 41-42), identidade,

[...] designa algo que se assemelha à percepção à que as pessoas têm de si mesmas e das
características fundamentais que as definem como seres humanos. A tese é
que nossa identidade é parcialmente formada pelo reconhecimento ou pela
ausência dele, ou ainda pela má percepção que os outros têm dela [...] O não-
reconhecimento ou o reconhecimento inadequado pode prejudicar e constituir
uma forma de opressão, aprisionando certas pessoas em um modo de ser falso,
deformado ou reduzido.

Os invasores proibiram a realização das práticas culturais e os rituais sagrados Potiguara,


elementos essenciais para perpetuação da cultura. Mesmo assim sabiamente conservaram
suas tradições na clandestinidade.

Por sua vez, a Antropologia, mesmo tendo a cultura como caracterizadora da


identidade étnica, não a toma como característica primária e imutável, mas sim
como traços que se modificam ao longo do tempo, a partir de novas situações
vivenciadas e do contato com o “outro”. Os traços culturais de um grupo
transformam-se “conforme a situação ecológica e social, adaptando-se às
21
condições naturais e as oportunidades sociais que provêm da interação com
outros grupos, sem perder sua identidade própria.” (ABA, 1983, p. 37).

O uso da língua nativa também foi coibida de ser praticada pelos indígenas. No entanto, no
processo de ressignificação dos seus elementos tradicionais, Barcellos (2014, p. 67) afirma
que:

Através de um convênio com a Universidade de São Paulo, os Potiguara


iniciaram um curso de Tupi Antigo. Após o período de formação, 14 professores
foram capacitados e estão ensinando a língua tupi para as terceiras e quartas
séries do Ensino Fundamental, em mais uma busca de recuperação de sua
identidade. Em algumas aldeias, os adultos também estão aprendendo o tupi
antigo e muito se orgulham da língua mãe potiguara.

A sociedade em geral, tem uma concepção distorcida e preconceituosa em relação


ao indígena constituindo uma imagem de incapacidade e de inferioridade do significado do ser
indígena.

Os indígenas [...], precisam ser pensados como atores sociais, que vêm se
organizando e dialogando com diversos outros atores. Isso os insere na
dinâmica societária de estabelecimento de relações de dependência,
reciprocidade e negociações. Além disso, a sua própria identidade étnica é
também construída a partir das relações que estabelecem e das influências que
sofrem, nas quais há um constante processo de reelaboração. (SOARES, 2009,
p. 47).

Os Potiguara continuam lutando pelo seu território e pela reafirmação de sua identidade buscando o
reconhecimento e valorização almejada. “Os Potiguara estão, cada vez mais, buscando reafirmar sua identidade
étnica e cultural, dentro do atual momento histórico em que estão vivendo. Novos tempos vão possibilitando a
criação e ressignificação de novos rituais, em função da necessidade que vai sendo construída.” (BARCELLOS,
2014, p. 317).

Diante das definições do que é ser indígena, é preciso destacar que a sociedade tem
dificuldade de reconhecer os direitos e de deveres dos Potiguara. Persiste ainda
generalização de um único estereótipo indígena.

Durante muito tempo os povos indígenas do Nordeste foram vistos como


resíduos de antigas nações, outrora numerosas, plenas e soberanas. Sua
história era tida como o desenrolar de perdas demográficas, econômicas e
culturais que os transformavam em remanescentes a ponto de darem o último
passo em direção à assimilação completa na nossa sociedade: o abandono
inevitável da consciência de uma identidade étnica diferencial em favor da
integração como camponeses proletarizados. (PALITOT, 2005, p. 6).

22
Na nossa concepção, ser indígena, é fazer parte da natureza, assumir cuidado e amor
pela nossa Mãe Terra, respeitando o meio ambiente e os encantados, pois é dela que provém
a nossa subsistência. (BARCELLOS; FARIAS, 2014; 2015). É viver, praticar e procurar
alcançar cada vez mais a nossa espiritualidade indígena.

3 A TERRA COMO SÍMBOLO DE ESPIRITUALIDADE PARA O POVO POTIGUARA

A terra é nossa fonte de alimento, de renda e moradia, para nós Potiguara ela
representa muito além, constitui a espiritualidade, é nela que encontramos a fonte para nossa
vida. Essa conexão com a terra, vinculada à espiritualidade10, tem um sentido extremamente
transcendental, o material pede o valor - vai além do sentido de posse, de mercado e de lucro,
para o de pertencimento e de intenso envolvimento espiritual. Conforme Boff (2001, p. 11),
“Espiritualidade, é um tema recorrente em nossa cultura, não só no âmbito das religiões, [...],
mas também no das buscas humanas, tanto de jovens quanto dos intelectuais, de famosos
cientistas [...]”. Nesse envolvimento, a terra é elemento de sagrado, manancial de liberdade e
bem viver.
Tudo o que fere a terra, fere também os filhos da terra. O índio é filho da terra.
A terra é a nossa vida e a nossa liberdade. Os grandes senhores da terra não
compreendem o povo índio. Porque os grandes senhores da terra escravizam
a terra. São estranhos que chegaram de noite, roubam da terra tudo quanto
querem. Para eles um torrão de terra é igual a outro. A terra não é sua irmã, é
sua inimiga. Eles a destroem e vão embora. Deixam para trás o túmulo de seus
pais, roubam a terra dos seus filhos. Sua ganância empobrecerá a terra e eles
deixarão atrás de si só a areia cansada dos desertos. Ela é de todos os homens.
Quem tem direito de vender a mãe de todos os homens? A terra é a nossa vida
e nossa liberdade. Índio sem terra é como tronco sem raízes à beira do
caminho. Tudo que fere a terra fere também os filhos da terra. (CARVALHO,
1980, p. 89).

É na terra o locus sagrado onde encontramos os elementos emblemáticos de


envolvimento com o numinoso11: as matas, onde moram os encantados e os espíritos dos
nossos ancestrais, as águas consideradas como fonte de criação e renovação espiritual, e
ainda as furnas, que representa a corrente espiritual entre nossos ancestrais. (BARCELLOS,
2014). Barcellos e Silva (2012, p. 25), afirmam que:

10
É aquilo que produz no ser humano uma mudança interior. (BOFF, 2001, p. 16).
11
O termo foi cunhado pelo teólogo e filósofo da religião Rudolf Otto, para designar aquele elemento místico e
transcendental que é encontrado em todas as religiões constituindo-se no seu mais íntimo do seu cerne.
(OTTO, 2011, p. 38)
23
A espiritualidade indígena está no ar, na chuva, no vento, na cachoeira, nas
furnas e em tudo o que se vê, sente, ouve, concebidos pela natureza ou criado
pelo homem. A religiosidade indígena está latente na intimidade com o mundo
“mágico” sobrenatural que é repassado de geração em geração pelos anciões
Potiguara.

Barcellos e Nascimento (2012, p. 22), assinala que a Mãe Terra é venerada pelos
Potiguara nos rituais sagrados, pois segundo eles, o contato com a natureza revigora a vida
espiritual indígena. Ainda segundo ele “a preocupação com a natureza contribui para a ação
de proteção do ecossistema”. Os Potiguara fazem parte da natureza - cuidar da Mãe Terra é
cuidar de si mesmo e de sua herança natural. (MENDONÇA, 2014). Para Boff (2004, apud
Nascimento, 2012, p. 62), “[...] os povos indígenas nos ofertam grande exemplo das maneiras
de escutar e sentir a natureza, isto porque ela costuma falar com os seres humanos e
denunciar quando sofre violência.” Portanto, a natureza e seus elementos são sagrados,
merecem respeito e veneração por serem fontes vitais para sobrevivência humana. A
terra é o principal sentido da existência dos Potiguara, pois sem a terra não existiríamos. Para
(BARCELLOS, 2014, p. 105), “[...] o índio precisa da terra para ter saúde, educação, moradia,
roçado, lugar de fazer seus rituais sagrados, enfim, é condição essencial da etnia.” Ao passo
que, Boff (2004, p. 72), contempla essa dimensão proferindo que “Pertencemos à Terra; somos
filhos da Terra; somos Terra, Daí que homem vem de húmus. Viemos da Terra e a ela
voltaremos. A Terra não está à nossa frente como algo distinto de nós mesmos. Temos a Terra
dentro de nós. Somos a própria Terra.”
A Mãe terra somos todos nós, envolvidos na espiritualidade e nesse entrelaçamento
renovamos nossas forças e nossas energias. Essa experiência é responsável pela nossa
mudança interior. Boff (2001, p. 17-18), contempla essa dimensão dizendo que:

[...] Há mudanças que são interiores. São verdadeiras transformações


alquímicas, capazes de dar um novo sentido à vida ou de abrir novos campos
de experiência e de profundidade rumo ao próprio coração e ao mistério de
todas as coisas [...]. Hoje a singularidade de nosso tempo reside no fato de que
a espiritualidade vem sendo descoberta como dimensão profunda do humano,
como o momento necessário para o desabrochar pleno de nossa individuação
e como espaço de paz no meio dos conflitos e desolações sócias e existenciais.

A magia da experiência espiritual com a mãe terra pode proporcionar uma


transformação interior aos Potiguara. O segredo é se deixar permitir e vivenciar toda
espiritualidade que ela pode oferecer.

24
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não podemos negar que a luta pela terra é a nossa principal forma de resistência, pois
não se trata apenas de um processo político, como muitos pensam, mas sim do processo de
resistir diante de toda opressão já sofrida, de ressignificação diante de uma sociedade
egocêntrica, etnocêntrica e preconceituosa. A peleja pela terra é uma forma de garantir nossos
direitos, pois é o ponto de partida para qualquer coisa que se quer alcançar enquanto
Povo.
É possível observar que durante muitos anos o Povo Potiguara sofreu influência de outros
povos, porém não perderam suas características e tradições. Assim, continuam e ainda hoje
preservam seus costumes e origens - Por tanto, para que a essência herdada pelos nossos
ancestrais não sejam esquecidas, é necessário lutar cada vez mais pelo fortalecimento das
nossas raízes, cultivando as características da identidade indígena Potiguara, repassada de
geração em geração ao longo do tempo.
Não importa quanto tempo vai durar, quantas duelos ainda iremos enfrentar, o
mais importante é temos a certeza que a terra é nossa Mãe defendê-la nunca será em vão -
ela é nossa protetora e em todos os embates seremos emanados por sua energia vital.
.

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Ciências Jurídicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009.

TAYLOR, Charles. Multiculturalismo. Différence et démocratie.Paris: Flammarion, 1994.


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APRENDENDO A GOSTAR DE LER NO PROJETO LÁ LI GIBI E A PROMOÇÃO DA
IGUALDADE RACIAL
Autora: Judy Mauria Gueiros Rosas (doutora)
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
judyrosas@superig.com.br

RESUMO
Partimos da compreensão de que a leitura possui um caráter civilizatório e é ferramenta
indispensável à emancipação dos sujeitos. Articular a formação de leitores à promoção da
igualdade racial foi resultado do nosso entendimento de que as maiorias não leitoras,
comprovadamente, também possuem outra característica comum: a condição de ser negras e
pardas, um expressivo indicador do inacabado ciclo escravista no Brasil. A ação aconteceu,
no ano de 2015, em duas escolas públicas municipais da cidade de João Pessoa/PB , e em
duas escolas municipais de Piranhas, município do sertão alagoano. Objetivamos valorizar o
protagonismo dos negros para a formação da sociedade brasileira, destacar as HQs como
gênero textual que favorece o desenvolvimento do hábito da leitura, reforçar o entendimento
da leitura como algo prazeroso e necessário. Durante as ações realizadas em João Pessoa
emprestamos obras do acervo da Biblioteca Popular Riacho do Navio, localizada fisicamente
em Piranhas. Com isso, pomos em prática a proposição de que a biblioteca deve extrapolar
os seus limites físicos e ir onde estão pessoas não leitoras. Disponibilizamos cerca de 700
histórias em quadrinhos (HQs) para leitura, realizamos sessões de contação de histórias que
abordaram a temática da valorização da identidade negra, realizamos oficinas de produção de
HQs e brincamos de ler e escrever com pessoas adultas, e, especialmente, crianças e jovens
do ensino fundamental.

PALAVRAS CHAVE: Leitura. Biblioteca. Igualdade Racial.

INTRODUÇÃO

A experiência de ver com olhos apurados o quão dramático é não saber ler e escrever
num modelo de sociabilidade que, antes mesmo de se consolidar, produziu a bandeira de
educação para todos, encontra outra forma extrema de estranhamento: saber ler e escrever e
assumir não gostar ou não utilizar estas habilidades construídas.
Porém, que população é esta? Que outros aspectos podem ser identificados como
comuns à generalidade dos sujeitos não leitores?
Para responder a tal questão é necessário compreender, inicialmente, que, no Brasil,
há problemas quanto à taxa de cobertura da oferta à educação escolar, que,
comprovadamente, aponta para o fato de ainda não termos universalizado o acesso da
população à escola na ‘idade certa’, e, especialmente, a sua permanência.
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Com o intuito de ilustrar tais afirmações informamos que, de acordo com o IBGE (2015),
existem ainda no Brasil cerca quase 4 milhões de crianças entre 7 e 14 anos fora da escola.
Importante indicador de que a plena universalização do acesso à escola não foi concluída.
Também o dramatismo desta situação pode ser identificado quando da abordagem do
eleitorado brasileiro. De acordo, com pesquisa realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral,
divulgada em dezembro de 2015 (TSE, 2015), sobre o nível de escolarização do eleitorado
brasileiro, juntando os eleitores analfabetos absolutos, os que não concluíram o ensino
fundamental e os que afirmam apenas que sabem ler e escrever, estes representam o
percentual de 54,6% do eleitorado brasileiro. Na Região Nordeste corresponde a 56,6%. Em
João Pessoa, capital do estado da Paraíba, somam 25,7%, e em Piranhas-AL 67,9%.
Acrescenta-se que a região Nordeste, sozinha, responde pela existência de 52% do total das
pessoas analfabetas absolutas, com 15 anos e mais (IBGE, CENSO 2010).
No entanto, o analfabetismo e a subescolarização não podem ser explicados apenas
como expressões de insuficiência de aprendizagens e de parco desenvolvimento das
habilidades de ler e escrever. Além disso, é necessário considerar que estes não são aspectos
meramente conceituais; são concretamente produzidos na esteira de relações de poder
historicamente construídas, que têm na desigualdade o seu fundamento.
Portanto, ao lado e intrínsecos a estes fenômenos estão a pobreza, característica
comum às pessoas que carregam algum tipo de analfabetismo (absoluto ou funcional) e o
ainda não concluído ciclo escravista no Brasil, cujo maior obstáculo para o seu reconhecimento
reside no falso argumento da existência de uma “democracia racial” no Brasil, termo cunhado
por Gilberto Freyre, em 1933, na obra ‘Casa grande e senzala’.
Senão vejamos. De acordo com o Mapa da Violência 2015 “Alagoas, Paraíba, Espírito
Santo e Distrito Federal são as unidades com as maiores taxas de homicídio de negros por
armas de fogo no país” (WAISELFISZ, 2015, p.80), sendo que em Alagoas e na Paraíba “há
uma seletividade racial nos homicídios por armas de fogo (...) para cada branco vítima de arma
de fogo, morrem mais de 10 negros” (p.81).
De acordo com o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas
(ONU), o mito da democracia racial mais esconde que possibilita o reconhecimento do
problema do racismo no Brasil, visto que 80% dos analfabetos brasileiros são negros, 64%
das pessoas autodeclaradas afro-brasileiras não concluíram a educação básica e das 16, 2
milhões de pessoas que vivem em situação de extrema pobreza no Brasil, 70,8% são
afrobrasileiras (UOL, 2016).

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Um dado curioso é que apesar do sistemático afastamento da população negra ao gozo
dos benefícios resultantes da produção material de riqueza e de suas correspondentes
expressões sociais, culturais, políticas e educacionais, a palavra gibi, segundo dicionários da
língua portuguesa, é uma gíria que significa “meninote preto; negrinho”, e também se refere
ao gênero textual que propusemos trabalhar (FERREIRA, 1986, p.849).
Faz-se, neste momento, oportuno informar que o interesse central à ação Lá Li Gibi foi
justamente propiciar uma experiência de estímulo à leitura a partir das várias formas de
histórias em quadrinhos. Esta decisão decorreu do entendimento sobre a necessidade de
incluir, para a formação do leitor iniciante, recursos outros além do mero texto escrito, pois,
desenhos e figuras também podem exprimir um texto e um contexto, assim como podem
contribuir para a ampliação da compreensão do mundo que circunda o leitor.
Hila (2009) observa que compreender “significa ter a capacidade de confrontar e
entender as informações do texto somadas às informações trazidas pelo leitor para a produção
de uma nova informação” (p.23). E foi esta a nossa pretensão: expor as pessoas que ainda
não desenvolveram o hábito da leitura a um gênero textual que pudesse facilitar a síntese
necessária à leitura significativa.
Sobre o alcance das histórias em quadrinhos, Lovetro (1995) informa que “o encanto
do desenho (...). O impacto visual é sempre a ‘mola’ que move a vontade de ler. (...) Os sons
transformados em palavras são mágicos e dão a acústica da ação” (p.95).
Daí a nossa proposição em apresentar ao público alvo das ações as histórias em quadrinhos.
Por fim, e não menos importante, há a necessidade de discutir o papel da biblioteca e
a situação deste tipo de equipamento de disseminação de informação e conhecimento no
Brasil.
Na terceira edição da pesquisa intitulada Retratos da Leitura no Brasil, Pansa (2011)
afirma que “não basta investir em bibliotecas se o leitor não for cativado” (p.9).
No entanto, existe uma quantidade reduzida de bibliotecas no Brasil, que se expressa
na média de bibliotecas por habitantes. A média nacional, em 2014, segundo o Sistema
Nacional de Bibliotecas Públicas, órgão vinculado ao Ministério da Cultura, era de uma
biblioteca para 33 mil habitantes. Em Alagoas havia uma biblioteca para 29.000 habitantes, e
na Paraíba havia uma para 17.000 (SNBP, 2014).
Hoje, esta situação pouco mudou e merece destaque a baixa frequência de pessoas às
bibliotecas que funcionam, em sua maioria, no horário comercial e não permanecem abertas
nos fins de semana e feriados.

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Diante de tal situação inferimos que uma biblioteca no Brasil, país em que o hábito da
leitura ainda não foi democratizado e universalizado por motivos anteriormente elencados, só
alcançará pleno funcionamento se for capaz de deflagrar um movimento que tenha início com
o ir além do seu próprio espaço físico para buscar aproximação com pessoas não leitoras.
Por fim, devemos neste momento apresentar os objetivos que propusemos atingir.
Objetivo Geral: desenvolver o hábito da leitura como instrumento de promoção de igualdade
racial, através da ressignificação do papel da biblioteca. Objetivos específicos: I- compreender
a igualdade racial enquanto fundamento para a construção de uma identidade negra positiva;
II- ressignificar o papel da biblioteca que em múltiplos espaços instaura situações de leitura e
escrita; III- fomentar o reconhecimento da leitura como atividade prazerosa e necessária, a
partir do gênero textual histórias em quadrinhos.

DESENVOLVIMENTO
Apesar de termos iniciado os nossos estudos, planejamento das ações e preparação
de material desde o mês de fevereiro de 2015, foi a partir da primeira semana do mês de maio
que passamos a realizar as ações quinzenais na comunidade praieira da Penha, localizada no
subúrbio da cidade de João Pessoa. O movimento grevista dos docentes e servidores das
universidades federais, dentre as quais a UFPB, iniciado em fins do mês de maio, nos levou a
decidir por levar o projeto a outras pessoas e lugares.
Foi neste momento que tomamos conhecimento, através de uma das discentes
participantes do projeto, que a Escola Municipal de Ensino Fundamental Virgínius da Gama e
Melo, também localizada em João Pessoa, e que oferece exclusivamente turmas de ensino
fundamental II, convivia com violência, questões relacionadas a uso de drogas entre alunos e
baixo aproveitamento, no que se refere à aprendizagem dos discentes.
Decidimos procurar a gestão da escola e passamos a realizar a ação a partir do mês
de julho, também com periodicidade quinzenal.
A constatação dos baixos indicadores de proficiência em leitura e escrita dos alunos
matriculados nas escolas públicas municipais de Piranhas e o fato de a Biblioteca Popular
Riacho do Navio estar localizada neste município, nos levaram a estreitar relações com a
Secretaria Municipal de Educação, que indicou duas escolas para que realizássemos as
ações, já previstas no projeto Lá Li Gibi, aprovado no edital PROEXT 2015. Neste município,
passamos a realizar as ações, com periodicidade mensal, a partir do mês de setembro.

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Nas escolas, em cada ação Lá Li Gibi atingimos em torno de 250 crianças e jovens
matriculados especialmente em anos do ensino fundamental. Na EMEF Antonio Santos
Coelho Neto, localizada na comunidade da Penha, trabalhamos principalmente com
estudantes do ensino fundamental 1. Na EMEF Virgínius da Gama e Melo atendemos
estudantes do ensino fundamental 2. Na Escola Municipais Ivan Fernandes de Lima e na
Escola Municipal Nossa Senhora da Saúde, ambas localizadas em Piranhas-AL, trabalhamos
com crianças e jovens do ensino fundamental 1.
Executamos o projeto ‘Lá Li Gibi’ em espaços abertos e áreas de recreação das
escolas, como forma de mostrar que a prática da leitura não é exclusividade da sala de aula.
Nestes lugares montamos 3 tendas, que dão um ar de informalidade ao espaço.
Em 2015, iniciamos o projeto Lá Li Gibi com um insipiente conjunto de atividades de
estímulo à leitura. Propúnhamos, naquele momento, disponibilizar o acervo de gibis e obras
de literatura infantil e infanto-juvenil, realizar sessões de contação de histórias e garantir um
espaço em que as pessoas participantes pudessem desenhar e, quiçá, produzirem tirinhas e
pequenas histórias em quadrinhos.
Entretanto, logo percebemos que o tempo proposto e a quantidade de atividades
entravam em descompasso. Foi quando passamos a pesquisar materiais e outras atividades
que pudessem explorar o desenvolvimento das habilidades de leitura, escrita e interpretação
de textos. Deste movimento incluímos as atividades que seguem.
Atividade I- Leitura de histórias em quadrinhos (HQs): numa tenda colocamos um tapete
e dispomos aproximadamente 400 gibis, mangás e livros, em cestas e varais, para serem
manuseados pelos alunos. Sempre há pessoas do grupo observando se alguém precisa de
ajuda para ler. Interessa-nos demonstrar que mesmo pessoas que ainda não sabem ler podem
se envolver em situações de leitura. Pode-se ler sentado, deitado, com amigos. Escolhemos
os gibis pelo fato de utilizarem textos curtos e que contam com o recurso da imagem,
elementos que chamam a atenção do leitor iniciante e estimulam o gosto pela leitura.
Atividade II- Contação de histórias: em outra tenda são organizadas sessões de
contação de histórias que abordem temas geradores das ações. Os temas geradores sempre
estão relacionados a alguma data comemorativa ou a algum aspecto que precisa ser pensado
pelos alunos como direitos e deveres das crianças e adolescentes, a igualdade e a tolerância
como princípios fundamentais à convivência, etc. Todas as Contações de histórias são
baseadas em textos que existem no acervo da Biblioteca e que são disponibilizados para
leitura e manuseio. Após a contação de histórias disponibilizamos várias ‘brincadeiras’,

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baseadas na história contada. Nas contações problematiza-se o real e estimula-se a
imaginação.
Atividade III- Sussurrador de textos: esta ferramenta de leitura é feita com um cano de
PVC de 50 mm de largura e um metro de comprimento. Junto a eles colocamos textos que
abordem o tema a ser trabalhado na ação. Numa extremidade do cano uma criança lê um
texto e na outra extremidade uma criança ouve o texto sussurrado. Há textos curtos e mais
longos. Fazemos isto para atender àqueles alunos que dizem ‘não gostarem de ler’ ou ‘não
saberem ler bem’ e também aos alunos leitores. O sussurrador, além de ferramenta
interessante de leitura, também educa a voz das crianças que falam gritando e promovem
interação entre as pessoas. É sempre uma brincadeira de leitura compartilhada.
Atividade IV- Palavrices: nesta brincadeira as crianças e jovens formam palavras e
textos com macarrão de letrinhas. Produzimos suportes de madeira cobertos com feltro para
que os macarrões não deslizem. Sempre um membro da equipe executora propõe desafios
como, por exemplo, quem escreve palavras ou frases mais rápidos. Estas brincadeiras tanto
acontecem individualmente como em grupos.
Atividade V- Bingo: elaboramos cartelas quadriculadas e em cada quadrícula é inserida
uma letra ou pontuação. Usamos em cada cartela estrofes de cordel, artigos de leis como o
Estatuto da Criança e do adolescente, a Declaração dos Direitos Humanos, o Estatuto da
Igualdade Racial, poesias. Sempre obedecemos à temática desenvolvida na ação. O prêmio
para quem completa primeiro o preenchimento da cartela é ler em voz alta o conteúdo da sua
cartela para as demais pessoas. Parece mentira, mas todos adoram brincar no bingo.
Atividade VI- Ludo e Jogo de tabuleiro: elaboramos dois tipos de jogos de tabuleiro. Um
mais simples e rápido (ludo) e outro mais longo. Nestes jogos usam-se dados que definem
quantas casas cada jogador avançará. Entretanto, há obstáculos que são apresentados em
cartelas que contêm perguntas sobre a contação de histórias. É uma ótima brincadeira que
envolve leitura e interpretação de texto.
Atividade VII- Forca: produzimos bonecos em papelão fracionados em 8 partes (cabelo,
cabeça, tronco, calça, 2 braços, 2 pernas), que vão sendo montadas num suporte, uma a uma,
cada vez que um jogador erra a letra da palavra proposta. As palavras usadas na forca devem
estar relacionadas ao texto da contação de histórias. O grupo executor do projeto escolhe
palavras, digita-as em letras grandes e oferece para cada jogador escolher a que servirá de
desafio. A forca é uma ótima brincadeira para crianças em processo de alfabetização.
Atividade VIII- Jogo da memória: este jogo é produzido de acordo com o nível de
escolarização das crianças. Produzimos, sempre com palavras do texto da contação de
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histórias, cartelas com palavras sinônimas (para ampliar o universo vocabular do aluno), com
palavras escritas em letra de forma e letra cursiva (para a criança discriminar e identificar cada
letra), dentre muitas outras possibilidades. Podemos trabalhar qualquer conteúdo escolar com
o jogo da memória.
Atividade IX- Área de grafitagem: utilizamos papel 40 kg e colamos seis folhas uma na
outra, para que se forme um grande papel com cerca de 4 metros de comprimento. Colamos
na parede, disponibilizamos canetas hidrográficas, lápis cera e lápis de cor para que os alunos
desenhem, escrevam, expressem as suas vontades, inspirações, expectativas e afetos. Nesta
brincadeira não separamos grafiteiros ‘artistas’ e ‘iniciantes’. Este é o local de livre expressão
de cada pessoa e funciona como elemento redutor de tensões.
Atividade X- Oficina de produção de histórias em quadrinhos (HQs): em uma tenda
específica para este fim, disponibilizamos materiais necessários a esta finalidade, orientada
por um discente do curso de Artes Visuais que dá dicas e informações sobre técnicas de
desenho e de produção de HQs. Este é um momento em que as crianças e jovens são
estimulados a criar e expressar suas experiências na forma de histórias em quadrinhos.
No fim do ano de 2015, passamos a receber convites para realizar a ação Lá Li Gibi em
locais e situações que muito contribuíram para o estreitamento dos vínculos com as
comunidades a que atendíamos em João Pessoa. Quando os convites para realizar a ação Lá
Li Gibi começaram a aparecer, percebemos que as pessoas começavam a olhá-lo como uma
boa experiência de estímulo à leitura. É importante afirmar que muitas vezes precisamos
rejeitar certos convites, que propunham o projeto como um momento festivo, uma ação
pontual. Entretanto, é condição do Lá Li Gibi, a continuidade, a regularidade da ação, para que
o hábito da leitura possa, de fato, ser desenvolvido.
No mês de outubro, para comemorar o dia das crianças, fomos convidados a realizar a
ação na Unidade de Saúde da Família (USF) da Penha. Em novembro, ampliamos a parceria
com a USF da Penha, quando fomos convidados pela Área Técnica de Saúde da População
Negra, setor da Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa, a realizar o Lá Li Gibi nas
comemorações do Novembro Negro nesta mesma comunidade.
Aceitamos o convite do Grupo de Jovens da Paróquia de Nossa Senhora da Penha
para realizar a ação durante as festividades de 272 anos da histórica romaria da Penha, no
mês de novembro.
Ainda no mês de novembro, fomos convidados a apresentar a ação Lá Li Gibi numa
capacitação destinada a 140 professores do Projovem Urbano de João Pessoa, momento em

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que repetimos as atividades que realizamos com crianças e jovens e percebemos o mesmo
envolvimento e entusiasmo dos adultos.
Por fim, fomos convidados pela gestão da PRAC/UFPB a apresentar o nosso projeto
durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia. Durante um dia inteiro, uma grande
tenda foi armada e lá recebemos, no período da manhã, 25 alunos da EMEF Virgínius da
Gama e Melo. À tarde contamos com a participação de 25 crianças matriculadas numa turma
de 5º ano da EMEF Antônio Santos Coelho Neto. Consideramos este um momento da maior
importância, visto que pudemos levar para a universidade pessoas com quem
sistematicamente nos encontrávamos em suas escolas e comunidades.
Outro marco no reconhecimento da qualidade do projeto foi a premiação nacional
recebida projeto Lá Li Gibi, em concurso promovido pela Editora do Brasil (Concurso Jardim
da Educação), que o incluiu como um dos 5 melhores e mais inspiradores projetos do Brasil.
Foi no ano de 2015 que qualificamos e ampliamos a nossa comunicação virtual, com o
fortalecimento e a dinamização do blog vinculado à Biblioteca Popular Riacho do Navio
(bpriachodonavio.blogspot.com.br). Tanto a mencionada biblioteca como o blog, hoje, são
administrados pelo grupo executor do projeto Lá Li Gibi. Nele podem ser vistas fotografias,
vídeos com entrevistas dos participantes e das principais contações de histórias realizadas
durante as ações, textos acadêmicos relacionados às problemáticas abrangidas pelo projeto,
há também uma pequena biblioteca virtual, exposição de desenhos, etc. Presentemente, o
blog conta com mais de 9.000 visualizações.
É da natureza de um projeto de estímulo à leitura, com as características do Lá Li Gibi,
a articulação com o ensino. Não apenas porque entramos nas escolas, mas, principalmente
porque o nosso propósito era fazer com que as pessoas atendidas aprendessem a gostar de
ler.
É importante destacar que todas as ações do projeto aconteceram em áreas abertas de
convivência e recreação. Ocupamos calçadas, refeitórios, quadras, praças. No interior das
escolas ocupamos os lugares em que as pessoas descansavam das atividades próprias das
salas de aula. Com isto procuramos demonstrar que processos de aprendizagem podem e
devem ser instaurados em quaisquer lugares.
Ao nos distanciarmos dos procedimentos engessados e tradicionais próprios à prática
pedagógica vigente nas escolas, especialmente as escolas públicas, demonstramos que para
gostar de ler não era necessário, por exemplo, ser alfabetizado.
As leituras e as escritas dos desenhos produzidos, das imagens gravadas nos gibis,
do compartilhamento mútuo que juntou pessoas alfabetizadas e não alfabetizadas numa
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mesma brincadeira de ler e escrever, tudo isto aconteceu obedecendo a um critério fundante:
a regularidade.
Aprender a gostar de ler, descobrir o prazer que há em ler exige que seja posto à
disposição do leitor em formação um repertório de atividades que só atingem, de fato, o
objetivo, se tais situações se repetirem até que a leitura seja incorporada à prática cotidiana
da pessoa leitora que se forjou.
E foi isto que fizemos. Nas escolas de João Pessoa, principalmente, as crianças e
jovens já sabiam quando receberiam a visita do pessoal do ‘Lá Li Gibi’. Para os discentes da
UFPB que participaram do projeto ficou marcada a certeza de que ensinar combina com
brinquedos e brincadeiras, desde que a criatividade se pratique.
Ao lado do ensinar a gostar de ler havia a necessidade de realizar um conjunto de
registros que, ao final, pudessem estar disponíveis para que fosse possível tirar conclusões a
respeito da efetividade da proposição inicial. Para tanto, elaboramos um questionário que
denominamos “Importância da leitura”. Com ele observamos o comportamento inicial do
público alvo das nossas ações. Era importante compreender se havia uma correlação entre
‘gostar de ler’ e ‘achar que ler é importante’. Neste instrumento não só perguntamos sobre as
questões levantadas acima, mas também registramos o sexo, a idade, o ano escolar que a
pessoa cursava ou que havia cursado (para as pessoas que haviam deixado de estudar) e o
nome de cada pessoa. A partir das informações obtidas era possível identificar quem
apresentava distorção entre idade e série, quem não sabia ler, no universo de pessoas com
idades a partir dos 9 anos. Além disso, de posse dessas informações, sempre que
chegávamos aos lugares onde regularmente o Lá Li Gibi acontecia, procurávamos estimular
as crianças e jovens com maiores dificuldades de ler.
Também elaboramos um questionário mais longo e completo que denominamos
“Informação sócio-educacional”. Tal ferramenta era composta por 3 módulos: 1- identificação;
2- educação; 3- impressões sobre a execução do projeto.
No primeiro módulo, quando solicitávamos que as pessoas informassem qual era a sua
cor, uma variedade de expressões era utilizada para declarar a negritude. Exemplificamos:
‘queimadinho do sol’, ‘marrom meio clarinho’, ‘moreninho’, ‘marrom escuro’, etc. Tais
declarações confirmaram a necessidade de colocar em debate a questão do negro no Brasil,
a sua importância histórica, o seu protagonismo e a necessidade de superar o racismo e
recuperar a autoestima.

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No módulo sobre educação incluímos questões a respeito das impressões sobre
biblioteca (se frequentavam, se conheciam, se a escola tinha). Procuramos com isto colocar
em destaque a importância da biblioteca, ao mesmo tempo em que mostrávamos que aquela
ação era produzida a partir de uma biblioteca. Isto aconteceu, principalmente, quando
passamos a cadastrar os participantes das ações como usuários da Biblioteca Popular Riacho
do Navio e, com isto, inauguramos o serviço de empréstimo de obras de literatura infantil e
infanto-juvenil e gibis.
Tal serviço foi tão bem sucedido que a cada ação em João Pessoa cerca de 40 obras
eram emprestadas. Cada usuário podia levar para casa até três obras e a devolução acontecia
quinze dias após o empréstimo, quando voltávamos para realizar uma nova ação.
Para nós, cada livro ou gibi que as crianças e jovens levavam para casa tinha um poder
de atingir não apenas o usuário, mas sua família, amigos e vizinhos. Devemos acrescentar
que quando uma pessoa levava uma obra, a sua casa passava a ter um objeto que até então
se limitava, quando muito, aos livros didáticos. Reconhecemos que proporcionar a introdução
de livros nas casas implica na inauguração de nova prática promotora do hábito da leitura e
ressignificadora do papel da biblioteca.
As impressões sobre o projeto (módulo 3) constituiu no momento em que o público alvo,
sujeito das ações do projeto Lá Li Gibi, nos orientava sobre como deveriam ser as ações
seguintes, indicava os seus interesses e, obviamente, nos dizia sobre o prazer que sentiam
em brincar de ler. Muitos foram os depoimentos e avaliações dos participantes. Ouvimos, por
exemplo, um garoto de 7 anos de idade dizer que o Lá Li Gibi era “melhor que festa de
aniversário”.
Além dos questionários, também gravamos em vídeo depoimentos de muitas pessoas:
crianças, professoras, gestoras, mães de alunos, funcionárias, etc. Tais depoimentos
constituem um rico documento sobre a importância do projeto. Além disso, certamente deverá
nortear as nossas ações durante o ano de 2016 e serviu de fonte de informação para as
investigações em curso.
Também deve ser considerado o aspecto interdisciplinar intrínseco ao projeto Lá Li Gibi.
Não apenas com a intenção de demonstrar a articulação entre categorias teóricas cujas
afinidades não se expressam imediatamente, mas também para demonstrar que para ser
entendido e adequadamente executado, foi necessária a concorrência de saberes pertinentes
a várias áreas de conhecimento, o que tornou possível e necessária a participação de pessoas
de vários cursos de graduação.

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Para tanto, partimos da consideração de que a leitura é, desde o período iluminista,
ferramenta indispensável para ampliar a compreensão do mundo e base de processos
comunicativos que vão além da mera oralidade.
Quando iniciamos o processo de formulação e desenvolvimento do projeto Lá Li Gibi
acreditávamos que ele se destinava a pessoas que cursassem Letras e Pedagogia. Logo
percebemos que os saberes fornecidos no curso de Biblioteconomia nos eram indispensáveis.
Também percebemos que o processo de produção de histórias em quadrinhos e de grafite
exigiam um conjunto de técnicas e conhecimentos pertinentes à área das Artes Visuais.
Inauguramos o blog, percebemos a necessidade de registrar imagens das nossas ações em
fotos e vídeo, além de divulgá-las. Daí nos aproximamos dos cursos de Mídias Digitais e
Jornalismo.
Hoje, entendemos que uma ação extensionista de estímulo à leitura se torna mais rica
quando muitos saberes e interesses se somam num objetivo comum: demonstrar que ler é
bom e necessário. Esta é a perspectiva interdisciplinar intrínseca ao processo de formação de
pessoas leitoras.
A leitura da palavra, privilegiada auxiliar da leitura do mundo, não exige um conteúdo
específico. O conteúdo é o mundo, o conhecimento acumulado, o diálogo com a imaginação
de outrem, que estimula a capacidade de construir cenários e emoções onde o protagonista é
o leitor. Hoje sabemos que o critério para participar deste projeto é a compreensão da
importância do ato de ler, com vista à inauguração de processos civilizatórios que tenham a
emancipação como objetivo.
CONCLUSÕES
Reconhecemos os ganhos auferidos às pessoas que participaram do grupo executor
do projeto Lá Li Gibi, marcadamente a aprendizagem de aspectos relevantes sobre processo
de letramento (e neste o imprescindível papel das histórias em quadrinhos), bem como um
aprofundamento dos conhecimentos referentes aos processos históricos, sociais e ideológicos
que configuram o problema da questão racial no Brasil. Também conseguimos incorporar um
sentido diverso ao que é propagado tradicionalmente acerca do papel da biblioteca.
Com a experiência que acumulamos, não temos dúvidas sobre a eficiência e a eficácia
da proposta pedagógica e sua correspondente prática, acerca da nossa proposição para
formação de pessoas leitoras.

Não esqueçamos, entretanto, que o sucesso do projeto se deve: 1- ao fato de que dos
18 discentes participantes, apenas 3 não foram bolsistas. Visto que este projeto também foi

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aprovado nos editais PROEXT e PROLICEN; 2- à disponibilidade de tempo extra para realizar
estudos, planejar ações e ampliar a quantidade de pessoas atendidas; 3- ao ineditismo da
proposição, que surtiu um efeito motivador para que realizássemos o nosso trabalho com
competência e compromisso.

REFERÊNCIAS

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http://7a12.ibge.gov.br/vamosconhecer-o-brasil/nosso-povo/educacao.html. Acesso em: 15
mar. 2016.
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2010. Brasília: 2011. Disponível em:
ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Resultados_Gerais_da_Amostra/resu
ltados_gerais_amostra.pdf. Acesso em: 12 ago. 2016.
3. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa.
2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
4. HILA, Cláudia Valéria Doná. Ressignificando a aula de leitura a partir dos gêneros
textuais. In: NASCIMENTO, E.L. (Org.). Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos
de ensino. 1.ed. São Carlos: Editora Claraluz, 2009, p.151-194. Disponível em:
http://www.escrita.uem.br/adm/arquivos/artigos/publicacoes/leitura_e_ensino/Claudia_Ressi
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5. LOVETRO, José Alberto. Quadrinhos – a linguagem completa. Comunicação e
Educação. São Paulo, jan./abr.1995. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/comueduc/article/view/36141/38861. Acesso em: 26 fev.2015.
6. PANSA, Karine. Prefácio. Pesquisa retratos da leitura no Brasil. 3.ed. 2012.
Disponível em: http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/2834_10.pdf . Acesso
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7. SISTEMA NACIONAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS. Dados das bibliotecas
públicas no Brasil. Disponível em: http://snbp.culturadigital.br/informacao/dados-
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8. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Estatística do eleitorado por sexo e grau de
instrução. Brasília, 2015. Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-

38
deeleitorado/estatistica-do-eleitorado-por-sexo-e-grau-de-instrucao. Acesso em: 9 jan. 2016.
9. UOL. Políticas de igualdade racial fracassaram no Brasil, afirma ONU. Genebra. 14
mar. 2016. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-
noticias/agenciaestado/2016/03/14/politicas-de-igualdade-racial-fracassaram-no-brasil-
afirma-onu.htm.
Acesso em: 15 mar. 2016.
10. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência: mortes matadas por arma de fogo.
Brasília, 2015. Disponível em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf. Acesso em: 17 nov.
2015.

39
OS CURUMINS POTIGUARA DA BAÍA DA TRAIÇÃO: PERPETUADORES DA IDENTI-
DADE?

SILVA, Maria do Socorro de Araujo Sousa e


Integrante do GEPeeeS-CCAE – UFPB - CNPq
msasousasilva@hotmail.com

RESUMO: Este artigo pretende apresentar as abordagens contidas no projeto de pesquisa


que pretendemos desenvolver: A IDENTIDADE DOS CURUMINS POTIGUARA DA BAÍA DA
TRAIÇÃO, o qual toma por amostragem os curumins na faixa etária de 06 a 12 anos de idade,
moradores das aldeias Forte, Galego e São Francisco, localizadas no município da Baía da
Traição/PB, litoral Norte da Paraíba, focalizando as atividades cotidianas dessas crianças,
para se perceber como se dão as práticas culturais das mesmas nos seios de suas aldeias,
de modo a se verificar se elas, com suas práticas participativas de convi- vências vão contribuir
para a continuidade das tradições Potiguara, identificando-as como seres socioculturais e
ainda apontando para a importância do tema, por ser relevante para a academia, uma vez que
vai analisar as discussões sobre etnia e educação, tema em voga, inclusive no Vale do
Mamanguape, por este ser contemplado por abranger diversas aldeias indígenas, e apesar
disto este tema ainda é porco explorado. O projeto objetiva analisar os elementos que
constituem a identidade do curumim Potiguara, tais como sua língua, sua cultura e suas
tradições, e foi elaborado com o intuito de ser aproveitado em curso de Mestrado, o que se
assim for feito, irá deixar uma grande contribuição para futu- ras investigações acadêmicas
que abordem o tema.

PALAVRAS-CHAVE: Etnia. Curumins Potiguara. Cotidiano.

UM PANORAMA

Este artigo pretende abordar a identidade dos curumins Potiguara da Baía da


Traição/PB, temática abordada no Projeto de Pesquisa que elaboramos, o qual visa tomar por
amostragem as ações das crianças na faixa etária de 06 a 12 anos de idade, das al- deias
Forte, Galego e São Francisco, daquele município, tendo por finalidade observar o cotidiano
de suas crianças, para analisarmos as atuações das mesmas nas diversas atividades dos
seus grupos e a importâncias dessas atuações para a continuidade das tradições indígenas
Potiguara, das quais fazem parte, porque, como pontua NUNES (2002, p. 257 e 258), a criança
é a depositária de toda uma expectativa de continuidade, envolvendo todas as instâncias da
vida social [...] a criança simboliza a renovação e a afirmação da vida, não apenas a biológica,
mas a social, cultura e espiritual.

O interesse em pesquisar este tema ocorreu em face de ser membro do GEPEE- ES


– Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Etnias e Economia Solidária, da UFPB,
Campus IV, localizada em Mamanguape, Litoral Norte da Paraíba, e da emergente
necessidade de se investigar mais sobre o índio Potiguara, que há muito vem mudando sua
40
história e seu cenário social, povo que vem resistindo diante de grandes persegui- ções,
como afirma MOONEN (2008, p. 6): [...] Milhares de Potiguara foram escravizados e
massacrados pelos colonizadores. Os sobreviventes foram reunidos em aldeamentos,
separados entre si, para dificultar qualquer futura resistência.
FARIAS & BARCELLOS (2012, p. 75) relatam que [...] desde o século XVI, a histó-
ria tem registrado muitas lutas entre indígenas e brancos, portugueses, franceses e ho-
landeses, que guerreavam entre si pela posse da costa nordestina brasileira.
NASCIMENTO & BARCELLOS (2012, p. 11), afirmam que o povo Potiguara, du-
rante quinhentos anos foi massacrado e perseguido por questões puramente religiosas e
fundiárias, por habitarem terras cobiçadas pelas missões jesuíticas, por donos de enge-
nhos, de usinas e de fábrica têxtil, citando Cunha (1992, p. 133) que diz que “[...] a ques-
tão indígena deixou de ser essencialmente uma questão de mão de obra para se tornar uma
questão de terras”, em face das apropriações ditas legais e também das ilegais reali- zadas
por políticos fazendeiros e magistrados, descaracterizando assim o território indí-gena.
Na década de 1980, a etnia inaugura um movimento de emergência étnica (AR-
RUTI, 1995) e luta pelo fortalecimento de suas tradições e identidade. Esse processo de
emergência étnica pode ser definido como necessidade de revitalização ou de reconhe-
cimento de um grupo social que ficou escondido por um grande período histórico, relega- do
à discriminação e à extinção (NASCIMENTO & BARCELLOS, 2012, p. 11).
Hoje em dia os índios Potiguara são mais livres, mais conhecedores dos seus di-
reitos e têm cultivado contributos para a afirmação da etnicidade, recuperando suas tradi-
ções através das pessoas idosas e mais experientes das aldeias, os chamados “troncos
velhos”, tais como a língua Tupi, o artesanato, o ritual Toré, o valor da jurema, a culinária,
entre outros (NASCIMENTO & BARCELLOS 2012, p. 12).
A pesquisa tem por foco o estudo da criança (curumim) Potiguara da Baía da Trai-
ção, visando delinear sua identidade nas aldeias e como a atuação desta pode desempe-
nhar papel fundamental para a continuidade das tradições indígenas, vendo-a como um ser
sociocultural, porque, como afirma a nativa Nathalia Galdino, 10 anos (2011, p. 24), ela faz
parte de [...] um povo histórico, povo sofrido, mas que vem aprendendo buscar seu lugar na
sociedade [...] “somos povo guerreiro e não desistimos dos nossos ideais”.
Sustenta também PIERRE LÉVY (1999, p. 133), que a identidade é construída a
partir da relação entre pais e filhos através da triangulação edipiana. “Da psicanálise ao
romance burguês, a raiz da identidade situa-se na infância, no recôndito da casa”, onde a
família é o núcleo restrito da parentela.
41
Já NASCIMENTO & SILVA (2012, p. 75), enfatizam que os curumins aprendem desde
pequenos, com a parentela, as atitudes de preservação da natureza, tendo as ma- tas, as
furnas, os mananciais como lugares sagrados porque guardam os espíritos dos ancestrais,
aprendendo ainda que preservar os recursos naturais significa cuidar de si mesmo, uma vez
que o povo indígena sente-se parte integrante da fauna e da flora, dos rios e mares, dos
vales e montanhas.

NASCIMENTO (2012, p. 133) diz que

No seio das aldeias Potiguara, os curumins têm assumido importância no


processo de emergência étnica porque são socializadas as práticas
culturais de forma vivencial. Na etnia Potiguara, a infância tem lugar
primordial no ritual Torè e nas celebrações comunitárias como a festa do
bejú nas casas de farinha. Ocorrem, então, cada vez mais investi- mentos
nas ações que favorecem essa transmissão cultural e que ele- gem a
infância indígena como agente protagonista na tarefa de perpe- tuação
das heranças sócio-históricas e culturais dos ancestrais.

Para os Potiguara, o ritual Toré é uma dança sagrada que pode ser dançada em
momentos especiais pelos índios e é o símbolo marcador de suas lutas e resistências,
porque apresenta-se como principal legado cultural que permite a reafirmação identitária de
seu povo e representa uma ponte de diálogo com seus ancestrais, tendo as crianças lugar
de destaque na dança, e desde cedo assimilam artefatos de sua cultura indígena, como as
músicas, as pinturas e os adereços utilizados nos rituais (NASCIMENTO & BARCELLOS,
2012, p. 129/130).
E assim, buscaremos conhecer os elementos que constituem a identidade dos
curumins Potiguara, tais como sua língua, sua cultura, suas tradições, de modo que pos-
samos observar in loco, com visitas que faremos às aldeias selecionadas, o cotidiano da-
quelas crianças. Trabalho semelhante foi apresentado por Clarice Cohn (2005), na obra
Antropologia da Criança, na qual a mesma retrata novas formulações para conceitos cen-
trados ao debate antropológico, incluindo que se estude o conceito de ação social da cri-
ança, marcada pela reprodução social e transmissão cultural (p.19). No dizer da mesma
autora (p. 35), as crianças não apenas produzidas pelas culturas, mas também produtoras
de culturas. Elas elaboram sentidos para o mundo e suas experiências, compartilhando
plenamente de uma cultura.

42
Nessa perspectiva, a criança é vista como ator social de uma maneira inteiramente
nova, encenando papéis sociais enquanto são socializadas, e adquirindo competências,
passam a ter um papel ativo na sua própria condição de ser social.

BROSTOLIN & CRUZ (2011, p. 157/179), IN: Criança Indígena: diversidade cultu- ral,
educação e representações sociais, no ensaio Criança Terena – algumas considera- ções
a respeito de suas representações identitárias e culturais, também enfatizam uma reflexão
sobre as representações simbólicas e transformações culturais das identidades indígenas.

TORÉ POTIGUARA

Foto 1: Toré Potiguara.

Fonte: Imagem de cumunins e adultos Indígenas Potiguara dançando o Toré.


Baia da Traição – Paraíba - Brasil
A EMERGÊNCIA ÉTNICA E POVO POTIGUARA DA BAÍA DA TRAIÇÃO

43
No século XVI habitavam o litoral do Nordeste brasileiro os índios Potiguara, entre
João Pessoa, na Paraíba, e São Luís, no Maranhão, vivendo hoje seus remanescentes nos
municípios de Baía da Traição e Rio Tinto, no litoral da Paraíba.
Não se conhece exatamente a população Potiguara do século XVI, porém documento
de 1601 atesta 14.000 Potiguara assistidos pelos franciscanos na Paraíba. (MOONEN,
2008, p. 3). Contudo, nem todos Potiguara moravam na Paraíba, pois alguns não foram
catequizados e outros foram vitimados na guerra contra os portugueses. Mesmo assim,
era enorme a população de índios Potiguara na região Nordeste do Brasil e que hoje não é
a mesma, face constantes massacres realizados pelos portugueses, no afã de conquistar a
Paraíba (MOONEN, 2008, p. 4).
Em 1586 voltaram para a Baía da Traição sete navios franceses "com muita gente e
munição, determinados a se juntarem aos Potiguara para combaterem e assolarem o forte
do (rio) Paraíba". Juntos atacaram uma aldeia de índios aliados dos portugueses e mataram
mais de 50 deles.
Comenta BARCELLOS (2005, p. 43) que os Potiguara se denominam até hoje como
índios guerreiros, verdadeiros heróis nacionais, muito temidos pelos portugueses, porque
além de guerrearem contra os invasores, conseguiram vencer as doenças trazidas pelos
colonizadores europeus, tais como a gripe e o sarampo, as quais causaram grandes
tragédias para a população indígena.
Em alguns estados do Nordeste, os povos indígenas foram massacrados e extintos,
mas a partir da década de 1980 ressurgiram, voltaram à tona no momento em que se sen-
tiram mais seguros para se declararem índios, com seus direitos resguardados pela Cons-
tituição Brasileira. O gene da cultura, podemos assim dizer, não tinha morrido, mas foi
abafado, escondido. E assegurado pela lei, esse grupo começou a declarar-se índio, ou
seja, reassumiu sua identidade.
O termo emergência ética ou ressurgimento, como fenômeno histórico regional, é
atribuído especificamente para os índios do Nordeste do Brasil e é histórico porque o lito-
ral brasileiro teve a maior incidência de invasões, de colonização (ARRUTI, 2005).
O processo de emergência étnica, portanto, aconteceu naturalmente a partir do
processo histórico, porque na verdade, os índios não foram extintos, mas reprimidos, si-
lenciados por questões políticas, reassumindo suas identidades a partir de 1980, como já
abordado.

44
O povo Potiguara, neste século XXI, envolveu-se no movimento de emergência
étnica, o que provocou o reconhecimento da etnia e um significativo aumento de sua po-
pulação, visto que novas aldeias foram surgindo a partir de famílias que resolveram morar
em áreas separadas, e assim, novas famílias foram se formando, os filhos se casando, os
netos aparecendo e o povo aumentando.
As aldeias Forte, Galego e São Francisco, hoje em dia, possuem aldeados que
mantêm firme sua identidade cultural, e em especial valorizam a contribuição das
crianças, vistas como sujeitos históricos, para a perpetuação da identidade. Segundo
CALLEFI (2003, p. 34), “as identidades indígenas têm se mantido porque justamente suas
culturas estão vivas e re-significam novas realidades, novos objetos e se adaptam a novas
condições de vida”, e COHN (2001, p.41) complementa afirmando que “a continuidade das
culturas indígenas consiste nos modos específicos pelos quais elas se transformam”.
Nesse sentido, a integração do universo infantil à comunidade estabelece mudança
no processo de transmissão do conhecimento de uma geração à outra, consolidando ainda
a autonomia desse universo infantil à transmissão da cultura para gerações futuras.
NASCIMENTO (2012, p. 125) assevera que:

No interior do movimento de emergência étnica Potiguara, as crianças


indígenas constituem patrimônio sociocultural como garantia de
perpetuação das tradições e crenças de um povo perseguido, mas
que resistiu durante os últimos quinhentos anos no Litoral Norte da
Paraíba.

Deste modo, a formação dos curumins é ampliada por uma pedagogia da existência
que considera as possibilidades de aprendizagens múltiplas e variadas, onde o curumim
Potiguara encontra-se envolvido pelos laços familiares desde o seu nascimento e a
própria comunidade indígena o acolhe pelos costumes e pela essência de ser índio dentro
do contexto de interculturalidade (NASCIMENTO & BARCELLOS, 2012, p. 129). E
asseguram:

[...] Ser criança Potiguara é acreditar no fortalecimento da etnia, no


reconhecimento de si mesmo como indígena. No projeto de
etnicidade, a infância torna-se fator essencial. Ela é convidada a

45
protagonizar as práticas, a continuar construindo a sua própria história
(NASCIMENTO & BARCELOS, 2012, p. 129)

Assim, a teorização da cultura e do social é um eixo adequado para se discutir a.


questão indígena, porque essas teorias focalizam o indivíduo e as relações que
estabelecem ou intercambiam com o outro, não sendo, portanto, sujeito isolado, visto que
os indivíduos influenciam e são influenciados nos processos interativos dos quais fazem
parte. Daí, conceber a criança indígena Potiguara como um sujeito histórico, reflexo de suas
relações com o meio em que vive, e assim, ao conhecê-lo, percebe-se que a identidade
também é assunto relevante dos estudos culturais
Nessa perspectiva, buscaremos confrontar a realidade dos Potiguara naquelas aldeias,
para analisarmos quais instrumentos eles utilizam para manterem viva a sua identidade, a
partir da valorização da criança como ser sociocultural.
Com este trabalho, objetivamos analisar os elementos que constituem a identidade dos
curumins Potiguara mencionados, tais como sua língua, sua cultura, suas tradições;
identificar os elementos da língua Potiguara e mapear os principais elementos culturais dos
curumins Potiguara; levantar principais tradições e relacionar os elementos da língua,
cultura e tradições no contexto das aldeias a serem investigadas.

Como metodologia, o Projeto desenvolverá uma pesquisa qualitativa, fazendo-se um


levantamento etnográfico, cuja pesquisa consiste na descrição e análise do fenômeno
histórico e etnográfico, dando ênfase à história oral, em face da escassez de documentos
escritos, visto que se dará através de pesquisa in loco, nas aldeias Forte, Galego e São
Francisco, na Baía da Traição/PB, uma vez que esse tipo de pesquisa considera que há
uma relação dinâmica entre o sujeito, objeto do estudo, e seu mundo real.

No saber da antropologia social e cultural, a etnografia desempenha um papel


metodológico central, pois está na base da identidade disciplinar e é entendida por deter-
minados autores como a observação e análise de grupos humanos considerados em suas
particularidades (CLINFFORD, 1998, p. 9).

Quanto à metodologia, a pesquisa que pretendemos realizar far-se-á por meio da


observação participante e do trabalho de campo etnográfico.

46
A mesma optará pelo método indutivo, que obtém conclusões gerais a partir de
premissas individuais, vez que a análise dos dados dar-se-á nessa perspectiva. Esta op- ção
se justifica porque a análise indutiva possibilita a interpretação dos fenômenos, que não pode
ser traduzida em números.
Neste trabalho, enquanto técnica, realizado por meio da observação direta, parti- cipante,
lançaremos mão do diário de campo e da câmera fotográfica/filmadora, cujas fer- ramentas
permitirão levantar dados e informações para a presente pesquisa.
DEMO (In NETO, 2001, p. 51/52), observa que em sua tarefa de ouvir e criar, o cientista
precisa, antes, questionar, para assim ultrapassar a simples descoberta para produzir
conhecimentos através de sua criatividade, e é justamente nesse ponto de vista que
pretendemos trabalhar nesta investigação.
O material documentado, inclusive fotografias, com suas respectivas análises,
possibilitarão a sistematização e organização dos resultados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim, busca-se nesse projeto investigativo resgatar os efeitos da participação do


Curumim Potiguara dentro das aldeias, na visão de que o mesmo é capaz de transmi- tir
para as gerações futuras a cultura do índio Potiguara, sem prejuízo para si e para o seu
povo, que luta por transformações e pelo fortalecimento de suas raízes, consideran- do o
que sustentam RUFINO & BRENNAND, citando Kathryn Woodward (2015, p. 43), “pensar
a identidade é iluminar o particular, que não obstante, sempre está aberto, pro- penso a
ser definido por uma marcação simbólica que atribui sentido às suas práticas e relações”.
Realizando essa pesquisa, iremos deixar uma contribuição sobre o conhecimento
acerca do modo de vida dos curumins Potiguara das aldeias Forte, Galego e São Francis-
co, da Baía da Traição/PB e verificarmos se isto vai contribuir para a identificação dos
mesmos como seres socioculturais no seio de seu povo.

47
TORÉ POTIGUARA – PRESENÇA DOS CURUMINS

Foto 2: Toré Potiguara. Foto 3: Toré Potiguara.

Fonte: Imagem na roda do Toré de cumunins e adultos Fonte: Imagem na dança Toré de cumunins e adultos
Indígenas Potiguara dançando o Toré. Indígenas Potiguara dançando o Toré.
Baia da Traição – Paraíba – Brasil, 2015. Baia da Traição – Paraíba – Brasil, 2015.
Foto 4: Toré Potiguara.

Fonte: Imagem na dança Toré de cumunins e adultos Indígenas Potiguara dançando o Toré.
Baia da Traição – Paraíba – Brasil, 2015.

REFERÊNCIAS:

ARRUTI, José Maurício. “Etnogêneses Indígenas”. In: RICARDO, Beto; RICARDO,


Fany (Editores). Povos Indígenas no Brasil: 2001-2005. São Paulo: Instituto Socio-
ambiental.
BARCELLOS, Lusival Antonio. Práticas Educativas Religiosas do Povo Potiguara.

Dissertação (Doutorado em Educação). Natal: UFRN, 2005;

BROSTOLIN, Marta Regina; CRUZ, Simone de Figueiredo. “Criança Terana – algumas


considerações a respeito de suas representações identitárias e culturais.” In:
NASCIMENTO, Adir Casaro do (Organizadora). Criança Indígena: Diversidade
Cultural, Educação e Representações Sociais. Brasília: Liber Livro, 2011;
CLINFFORD, James. A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século

XX, organizado por José Reginaldo Santos Gonçalves. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
1998;

COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2005;

FARIAS, Eliane Silva de. BARCELLOS, Lusival A. Memória Tabajara: manifestação de fé e


identidade étnica. João Pessoa: Editora UFPB, 2012;
GALDINO, Nathália. In: Índios na Visão dos Índios Potiguara. Salvador: Thy- Dêwá,
1ª ed., 2011;
LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. São Paulo: Edições Loyola, 2ª ed., 1999:

MOONEN, Frans. Os índios Potiguara da Paraíba. 2ª edição. Recife: 2008 (Artigo publi-
cado na web);
NASCIMENTO, José Mateus do (Org).BARCELLOS, Lusival Antônio.O curumim Poti-
guara: o perpetuador da cultura indígena no Vale do Mamanguape-PB. IN: Etno-
educação Potiguara: pedagogia da experiência e das tradições. João Pessoa: Ideia,
2012;

NASCIMENTO, José Mateus do (Org). BARCELLOS, Lusival Antônio. O povo Potiguara e


a luta pela etnicidade. IN: Etnoeducação Potiguara: pedagogia da experiência e das
tradições. João Pessoa: Ideia, 2012;
NASCIMENTO, José Mateus do (Org). SILVA, Paulo Roberto Palhano. Educação escolar
indígena Potiguara. IN: Etnoeducação Potiguara: pedagogia da experiência e das
tradições. João Pessoa, Ideia, 2012.
RUFINO, Emmanuel de Almeida. BRENNAND, Edna Gusmão de Góes. Estudos cultu- rais
da educação: um movimento (pós-)moderno? IN: GONÇALVES, Catarina Carneiro.
ANDRADE, Fernando Cézar Bezerra de. Estudos culturais da educação: questões
abertas. Curitiba: Editora CRV, 2015.

51
O PAPEL DA MATRIARCA NA PRESERVAÇÃO E MANUTENÇÃO DAS TRADIÇÕES
AFRICANAS NO TERREIRO MANZO KAIANGO

Ana Beatriz Marques Silva


Maria Clara Oliveira Brandão da Rocha12

1. INTRODUÇÃO

O estudo a seguir trata de um paralelo entre a construção histórica e social de um


quilombo com o papel da oralidade dentro do mesmo, já que e notório o papel da
oralidade na preservação cultural, principalmente nas culturas que nasceram por meio
de povos cuja a tradição escrita não era usual ou em alguns casos até mesmo proibida.
Tendo como estudo de caso o terreiro Manzo Kaingo e sua matriarca e fundadora
Dona Efigênia ou Mãe-de-santo Mametu Muandé, dona de uma espiritualidade desde
do seu nascimento e Mãe-de-santo a quase 50 anos está senhora conquistou em sua
vida uma sabedoria religiosa e curativa que poucas pessoas podem ter, sendo
reconhecida por pais-de-santo em todo o Brasil.
Além de ser fundadora de um dos maiores quilombos de Belo Horizonte, Dona
Efigênia conquistou 192 filhos de santo que seguem cegamente seus conselhos e
ensinamentos. Sabendo assim da sua importância buscamos por meio de um estudo
empírico entender quem seria essa mulher e qual a sua importância na sociedade
brasileira e na religiosidade afrodescendente.
Com o decorrer do estudo percebemos que a matriarca tem uma importância de griot,
ou seja da pessoa que retém o conhecimento tradicional que lhe foi passado por algum
sábio e por entidades religiosas e passa esse conhecimento para outras pessoas,
através de curas, historias, rezas e celebrações. Graças a esse papel que o terreiro
ganhou não so importância mas sentido, mãe Mametu Muandé leva o candomblé de
forma intensa para as pessoas que tem contato com ela, além de preservar a cultura
afro-brasileira através da religião e das tradições orais.

2. CAPITULO 1: A CULTURA AFRO-BRASILEIRA E SUAS FACES


2.1 Do quilombo ao terreiro

Historicamente falando os quilombos foram marginalizados pela cultura


tradicional da sociedade brasileira e pelo governo em todas as suas instancias. Na
primeira Lei de Terras datada e lavrada no Brasil em 1850 o negro não só era excluído
do direito de ter uma propriedade privada como o mesmo era caracterizado como uma.
Anos mais tarde mesmo após a abolição da escravatura ‘’ Os negros(...) enfrentaram
muitos questionamentos sobre a legitimidade de apropriarem-se de um lugar, cujo
espaço pudesse ser organizado conforme suas condições, valores e práticas
culturais.’’ (LEITE,2000) junto a isso os afrodescendentes enfrentaram a repressão
policial e a segregação social.

12
Jornalista e pesquisadora das culturas africanas e quilombolas e Graduanda de Relações Internacionais na
Universidade Católica de Minas Gerais ( PUC MINAS) , respectivamente

52
Entretanto na constituição de 1988 graças ao Art.68 das Disposições Transitórias os
quilombos ganham a caracterização normativa de organização que luta e garante o
direito de um espaço territorial que foi conquistado e mantido através de gerações, o
que aflora o caráter de resistência negra dentro de um território ‘’ como embrião
revolucionário em busca de uma mudança social’’ 13

‘’ O quilombo constitui questão relevante desde os primeiros focos de


resistência dos africanos ao escravismo colonial, reaparece no
Brasil/república com a Frente Negra Brasileira (1930/40) e retorna à cena
política no final dos anos 70, durante a redemocratização do país. Trata-se,
portanto, de uma questão persistente, tendo na atualidade importante
dimensão na luta dos afro-descendentes. Falar dos quilombos no cenário
político atual é, portanto, falar de uma luta política e, consequentemente, uma
reflexão científica em processo de construção.’’ ( LEITE,2000)

A construção social sobre o que é um quilombo se deu durante séculos no Brasil e no


mundo, se tornando uma moeda de dois lados, o quilombo ou era sinônimo de A)
praticas pecaminosas, pessoas que não tem um lugar na sociedade e ficam a margem
dela, uma comunidade sem organização ou B) uma organização de resistência e luta
negra, que preserva as culturas afro-brasileiras. No seguinte trabalho vamos
vislumbrar o segundo conceito social de quilombos e o conceito de patrimônio cultural
brasileiro desenvolvido por remanescentes das comunidades dos quilombos e lavrado
no Art. 68.
Como o quilombo se tornou um lugar onde por direito as culturas das comunidades
afro-americanas poderiam se manifestar muitos terreiros de santos, principalmente do
candomblé e da umbanda, buscando sua proteção da intolerância religiosa, entram
com o pedido de reconhecimento como quilombos, tal reconhecimento é possível
desde de 2003 no decreto No. 4.887 a onde se regulamentou o processo de
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras
ocupadas por renascentes das comunidades dos quilombos pré definidas no Art.68.

2.2 Do Terreiro as suas origens: Candomblé, orixás, tradições e costumes

Como demonstrado anteriormente a cultura africana chegou ao Brasil por meio


dos escravos mas se adequou linearmente a sociedade brasileira e sua cultura sem
se separar das tradições. Nesse ponto os quilombos foram fundamentais como um
território de proteção e é nesse espaço que os praticantes de religiões afro-brasileiras
encontraram seu refúgio, sendo assim muitos terreiros entraram no processo de
reconhecimento quanto quilombos.
Nesse contexto encontramos o Candomblé que é um culto ou religião de origem
africana, segundo alguns historiadores a origem da religião se deu por meio de
escravos oriundos da atual Nigéria e Republica de Benim; por ter sido o Estado da
Bahia que mais recebeu escravos de tais regiões foi lá que o Candomblé acabou tendo
uma maior adesão originalmente, mas já se espalhou por todo o Brasil. A Federação
Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Fenatrab) estima que haja 70 milhões
de brasileiros ligados de alguma forma a terreiros, cultuando de alguma maneira os

13
Lipes,Siqueira e Nascimento 1987;15 (apud LEITE)

53
orixás, que são deuses africanos que representam a natureza e sua força.
(CANDOMBLÉ NO BRASIL ...1995)
As religiões de origem africana se misturaram com a cultura religiosa católica e
indígena, tendo certos pontos em comum, como os rituais, a adoração do divino, os
santos, e a questão da magia tão representativa quanto a Hóstia sendo o corpo de
cristo no catolicismo por exemplo.

‘’ Perceberemos ao longo da História brasileira que foram esses pontos em


comum nas estruturas entre a forma de culto do catolicismo popular e das
religiões de origem africana e indígena, especialmente no que tange a
devoção aos santos e deuses titulares, que possibilitaram o sincretismo e a
síntese da qual se originaram as religiões afro-brasileiras.’’ ( NASCIMENTO ,
2010)

Mesmo com essas semelhanças o Candomblé passou e passa por uma grande
marginalização, principalmente graças ao aspecto magico da religião africana como a
crença em deuses que incorporam em seus filhos, o sacrifício de animais, e as ervas
combinadas com rezas para tratar doenças físicas e da alma, além de serem uma
ferramenta para a transformação do futuro. Em seu livro O animismo Fetichista dos
negros bahianos (1896/1900) Nina Rodrigues por meio de um estudo empírico em
terreiros na Bahia defendeu que além do preconceito da sociedade tradicional
brasileira pelos ritos afrobrasileiros como o calundu14, as religiões africanas sofreria
por serem , em sua maioria, religiões politeísta o que por motivos culturais católicos
seria visto como uma religião inferior, tal preposição em conjunto com a ideia de que
os negros seriam inferiores reforçava a marginalização religiosa.
(NASCIMENTO,2010)

‘’ É neste contexto que dentre as manifestações da religiosidade de matriz


africana no Brasil destaca-se o Candomblé, culto dos orixás de origem familiar
e totêmica8 (...). A religião que tem por base a “anima” (alma) da natureza,
sendo portanto chamada de anímica, foi desenvolvida no Brasil a partir do
conhecimento de sacerdotes africanos que foram escravizados e trazidos da
África para o Brasil juntamente com seus orixás, sua cultura e seus dialetos
entre 1549 e 1888. O candomblé é uma religião monoteísta, o deus único para
a Nação ketu é Olorum, para a Nação Bantu é Zambi, para a nação jeje é
Mawu, que são nações independentes na prática diária e em virtude de
sincretismo existente no Brasil a maioria consideram como sendo o mesmo
Deus da Igreja Católica.
A palavra candomblé é de origem Bantu (do Kimbundu) e vem de uma junção
das palavras KANDOMBE-MBELE que tem o significado de: Pequena casa
de iniciação dos negros.(...). Ressaltamos que este culto da forma como aqui
é praticado não existe na África, o que existe lá é o que chamamos de culto à
orisá, ou seja cada região africana cultua um orisá, portanto a palavra
candomblé foi uma forma de denominar as reuniões feitas pelos escravos
para cultuar seus deuses, pois também era comum no Brasil chamar as festas
ou reuniões de negros de Candomblé, devido seu significado em iorubá.’’
(NASCIMENTO,2010)

14
Termo que designa as danças coletivas com cantos e instrumentos de percussão para a invocação de
espíritos. 8 ‘’ É qualquer objeto, animal ou planta que seja cultuado como Deus ou equivalente por uma
sociedade organizada em torno de um símbolo ou por uma religião’’ (NACIMENTO,2010)

54
Cada terreiro de Candomblé terá uma organização social (egbes), essa estrutura se
dá com base nas famílias-de-santo e com uma hierarquia de cada família. Sabendo
que cada um tem um papel fundamental dentro dessa hierarquia há a adoção de um
nome religioso africano quando se inicia na religião, o que faz com que o fiel tenha um
compromisso com seu deus pessoal e ao mesmo tempo com seu pai ou sua mãe-de-
santo, essa organização social é fundamental para se manter viva as tradições
africanas. (NASCIMENTO,2010) Assim como o candomblé temos a umbanda quanto
religião de matriz africana que também tem nos terreiros e quilombos o seu lugar
sagrado. Está religião incorpora praticas do catolicismo, candomblé e espiritismo
kardecista, se caracterizando assim um culto mais brasileiro e popular do que o próprio
candomblé, já que a mesma tem como idioma o português e não dialetos da língua
africana.

‘’Para a umbanda, o universo está povoado de entidades espirituais que são


chamadas guias e se comunicam através de uma pessoa iniciada, o médium.
As guias se apresentam como pomba-gira, caboclo ou preto-velho. O caboclo
é a representação do índio brasileiro e o preto-velho representa o negro no
cativeiro. Existem muitas diferenças na maneira como a religião é praticada
nos diversos templos e terreiros de umbanda e nas diversas regiões do
Brasil.’’ (STRECKER, 2016, p. 1)

Nesse contexto encontramos os líderes religiosos e sociais de terreiros e quilombos,


que são pais ou mães-de-santo que somam no seu status hierárquico social o fato de
serem, na maioria dos casos, griots 15 Essa ligação entre a religião e a cultura é
demonstrada na relação Espaço-Tempo, mas tal conexões só são possíveis graças a
preservação de tal cultura e de resistência por tal religião, essa tradição oral que
permitiu a manutenção da cultura afro-brasileira que será trabalhada a seguir.

2.3 O Griot e a fala do candomblé


Na tradição ocidental é necessário que o conhecimento seja passado por vias
escritas, o que confere apenas as civilizações letradas o conhecimento, tal vertente foi
muito disseminada pelo etnocentrismo europeu. Entretanto no seguinte artigo percebe-
se que a oralidade é a forma mais primitiva de se passar o conhecimento,
principalmente o conhecimento tradicional.

‘’ Tudo que uma geração pratica em costumes, adquiridos e reinventados,


através da comunicação oral, por meio de rituais, usos e mitos passados de
uma para outra, contextualizado para uma civilização, é chamado de tradição.
É a transferência da herança cultural. Por meio da fala, a sabedoria ancestral
é resguardada e tributada a uma enunciação pontual, que podemos
denominar “tradição oral”.’’ (ARAUJO, 2016)

Em seu livro Os Africanos no Brasil, Nina Rodrigues trata os africanos como um povo
que não mais existe no Brasil já que se fundiram com os crioulos, os índios e os

15
Os Griots são guardiães socialmente reconhecidos de um conhecimento proveniente de uma memória
tradicional, cujo o seu meio veículo de comunicação é a oralidade. (WALDMAN, 1998)

55
portugueses, mas que a sua cultura sobreviveu principalmente por conta da resistência
cultural da oralidade ‘’ As grandes construções espirituais coletivas ou populares estão
sobre sólidos alicerces(...). Nelas, O idioma (...). Em seguida a língua há as religiões’’.
É inegável a importância da expressão oral da cultura e dos costumes para preservar
tradições, principalmente nos núcleos históricos a onde a tradição escrita se tornou
dispensável em certa medida.
Nos quilombos encontramos a cultura afro-brasileira que se manifesta através da
oralidade da mãe ou pai-de-santo, o que transforma o mesmo em um Griot. O griot
tem origem na narrativa tradicional africana transmitida na África Ocidental pelos
contadores de historias, nessa época foi a ‘’memoria viva’’ dessa tradição milenar que
permitiu que a cultura negro-africana sobrevivesse em uma África islâmica.
(WALDMAN,1998)

‘’ Com base nestes pressupostos, pode-se aquilatar o perfil e a importância


dos gritos no cenário social africano. Personagem inseparável da paisagem
da África d’Oeste, os gritos (ou ‘’dieli’’ no idioma Bambará), constituem um dos
grandes vertedouros da tradição oral, não se confundindo com os ‘’Doma’’ (
ou ‘’Soma), os ‘’Grandes Detentores da Palavra’’, que possuem um
conhecimento iniciático. Os gritos possuem um status social especial,
conferido pela Tradição. Eventualmente, caso suas aptidões os habilitem a
tanto, os gritos podem ( como no caso daqueles aos quais recorreu Djibril
Tamsir Niane) tornarem-se ‘’Tradicionalistas-Doma’’, grandes conhecedores
das genealogias e das narrativas históricas tradicionais. Sua atuação se
reveste de especial importância nos ternos de uma ‘’memoria profunda’’,
responsável pelo entendimento sensível do Tempo Histórico em seu
entrelaçamento inelutável com o Espaço. Foi através de sucessivas gerações
de gritos que a memória africana foi fixada, remontando muitas vezes a um
passado imemorial’’ (WALDMAN,1998)

Entendemos assim a importância do griot não apenas como uma figura social,
mas também como uma figura religiosa. O griot tem o papel de repassar para as
gerações os conhecimentos, na história da sociedade esse papel configurou o griot
como um status social de sábio, da pessoa que ‘’porta o conhecimento’’. Entretanto na
configuração histórica brasileira o griot veio a se fixar nos quilombos que estão
diretamente ligados as religiões de origem africana.
Desta forma o griot na maioria dos casos se tornou essa personalidade social e
religiosa já que parte dos seus conhecimentos seriam passado para as gerações
através de rituais de incorporação dos santos.
Tal fala permitiu que a tradição religiosa e cultural africana fosse reciclada dentro da
sociedade brasileira, se tornando a ferramenta de manutenção de cultura mais
presente. Quando uma mãe-de-santo faz um ritual curativo ela está passando seu
conhecimento das ervas, quando uma oferenda é preparada para algum santo a
tradição está sendo renovada, e essas ações através dos anos se mesclaram com a
religião e a cultura. O que é o caso da Dona Efigênia que se tornou uma personalidade
tanto pela sua história de vida, quanto pela configuração social que o seu papel dentro
do Terreiro Manzo Kaiango trouxe para Minas Gerais e sendo reconhecida em terreiros
e quilombos em todo o Brasil, no próximo capitulo vamos entender essa configuração
social e hierárquica que Dona Efigênia ocupa na sociedade, por meio do relato da
vivencia e de estudos feitos sobre o terreiro.

56
3. CAPITULO 2: O TERREIRO E QUILOMBO MANZO KAIANGO
3.1 O terreiro e sua historico

Localizado atualmente na região leste de Belo Horizonte, no bairro Santa Efigênia,


o quilombo Manzo Kaiango se originou na década de 70 pelas mãos da matriarca
Efigênia que nasceu na cidade de Ouro Preto no ano de 1946. Aos 24 anos com suas
economias Dona Efigênia compra o terreno que viria a se tornar o terreiro Kaiango,
com o apoio de seus familiares, aos poucos o terreno foi se solidificando quanto
quilombo da Senzala de Pai Benedito a ser reconhecido pela Fundação Palmares no
ano de 2009.
Originalmente o terreiro Manzo Ngunzo Kaiango era uma casa que tocava para
a umbanda, entretanto a matriarca que sempre tocou para as duas maiores religiões
de matrizes africanas atualmente faz a transição para o candomblé, caracterizando
assim tal religião quanto diretriz para este artigo.
Mesmo sendo um terreiro solidificado na cidade de Belo Horizonte, Kaiango
durante a sua história não esteve imune a intolerância religiosa. Durante seus quase
50 anos de resistência os filhos de Dona Efigênia (tanto os de origem sanguínea
quanto os de origem religiosa) assim quanto a própria matriarca passaram por diversos
episódios de intolerância, sendo o último dia 26 de março deste ano onde o vizinho
chamou filhos de santo de ‘’ macumbeiras’’, ‘’ feiticeiros’’ dentre outras palavras de
cunho social pejorativo. Entretanto o acontecimento que mais marcou a história da
Senzala de Pai Benedito foi quando em 2011, a defesa civil esbulha o local sagrado
que e dilapidado de, forma degradante que em última análise corresponde a eclipse
democrática.

Segundo os relatos da principal liderança na linha de sucessão Cassia Cristina


da Silva, mais conhecida pelo seu nome de santo Makota Kidoiala, Mãe Efigênia alem
da sua representatividade religiosa é a figura politica e institucional do Manzo Ngunzo
Kaiango. A mesma insiste que as refeições de seus filhos sejam feitas no terreiro, além
de que alguns filhos morem na insituição. Nota-se que há uma singularidade no
quilombo e tudo que envolve as praticas diárias do mesmo, já que são estabelecidas
pelo sagrado por meio das falas da griot.

O território do Manzo se constituiu e se constitui nos princípios religiosos, e tem


sua consolidação atrelada à cultura de matriz africana, mais precisamente ao
candomblé.

3.2 A religião e a dinâmica do terreiro

O quilombo é nesse trabalho refletido pelas tradições orais da comunidade, com


intuito de compreender o modo de vida a luz da fé e da família quanto manifestações
dos costumes africanos passados pelo griot de geração a geração como uma
resistência a contemporaneidade.
O contato com a comunidade se deu na casa de Cássia (que se encontra no
terreiro), a onde nos recebeu com um café em sua sala, de maneira informal nos
contou sobre sua infância e como foi ser criada pela religião ‘’ Mãe vivia incorporada o

57
dia todo, e ele nos educou... nossa referência era Pai Benedito’’. Descemos o terreno
adentrando mais no quilombo, podendo assim sentir a dinâmica da família e das
pessoas que ali visitam para atendimentos espirituais.
A existência do sagrado sempre foi presente no cotidiano, relata Cássia, não
possuíam referência masculina, a referência era a entidade Pai Benedito. Segundo
Cássia, as crianças tinham o costume de fazer bonecas e bolas de retalho, passavam
o dia inteiro dentro do quilombo, escutavam e obedeciam ao que Pai Benedito falava.
Desde as orientações, bênçãos, até curas realizadas por meio de plantas, todos esses
saberes eram transmitidos por Mãe Efigênia.
O terreiro é o lugar de encontro, a onde acontecem as festas, as celebrações,
as recepções e os encontros familiares, assim como as rodas de capoeira, ou seja o
terreiro é um templo para todas as manifestações culturais e sociais. O natural do ‘’
viver no terreiro’’ é uma constante do sagrado, toda a constituição do terreiro segundo
Cássia exige uma preparação, desde da escolha pelo terreiro – designada
espiritualmente -, até os assentamentos dos Inkisises, o banheiro ritualístico, o salão,
a sala de jogos, a bandeira, a cozinha, a comunheira, o intoto e todos os outros
espaços do terreiro, tudo é definido pela vontade das entidades que se manifestam
através da mãe Efigênia (cujo o nome de santo é Mametu Muandé).
Percebe-se assim que todo o modo de vida dessas pessoas e todo o
funcionamento do território está atrelado a religião, as práticas por mas rotineiras são
estabelecidas pelo sagrado e pelo respeito ao mesmo, a comunhão do coletivo é
configurada pelo candomblé.

4. CAPITULO 3: DONA EFIGENIA: A MATRIARCA, O GRIOT

4.1 Mametu Muandé e sua historia

Efigênia Maria da Conceição, nascida em 2 de janeiro de 1946 na cidade de Ouro


Preto é conhecida pelos seus entes queridos como Dona Efigênia. Mãe Efigênia conta
de forma simples e clara sobre a sua infância no Morro da Queimada, sua bisavó Babiu
ex escrava foi determinante na sua criação, desde dos 11 anos Efigênia iria com sua
mentora aprender os saberes da floresta e como utilizar as ervas para a cura e para
benzer. Por mais que não tenha o estudo tradicional desde de cedo ela foi se
transformando em um griot com um conhecimento que poucos tem a oportunidade de
ter.
Dona Efigênia acredita que sua missão foi deixada pelo preto velho: Pai Benedito
,que foi a sua entidade que a ensinou a fazer pomadas, chás com as ervas colhidas (
de ‘’maneira correta’’) de sua horta e da mata. Para ela as curas não são aprendidas
e sim um dom dado pelas entidades por isso as rezas não podem ser cobradas, ‘’
Aprendi que na vida e muito importante a sabedoria, a humildade, simplicidade, força
e coragem de lutar e obedecer.’’
Segundo Mãe Efigênia por volta dos seus 11 anos de vida os primeiros sinais de
sua espiritualidade começaram a se manifestar:

‘’ Eu tinha muitas visões dentro de casa, via sempre uma mulher. Essa
mulher parecia comigo, uma mulher suspensa no chão, mas eu não conseguia
ver o rosto dela, de tão claro que era o rosto dela, o foco de luz... eu não

58
conseguia ver o rosto dela. Ai eu saia correndo, gritando e desmaiava, mas
eu não desmaiava, eu bolava. Era minha Mãe Iansã, mas eu não sabia que
era ela. Com 11 anos, desmaiei na rua, minha mãe me levou para a igreja e
para o pronto socorro. Eu não falava, imobilizada, incorporada. Não comia...
Minha mãe achava que eu estava epilética, que era epilepsia, pois não
conhecíamos o espiritismo.’’ ( CONCEIÇÃO, 2016)

Sabendo da sua espiritualidade aos 24 anos ela se mudou para Belo Horizonte,
trabalhou e começou a juntar dinheiro pois sentia que tinha que comprar o terreno que
hoje é o terreiro Manzo Kaiango.

4.2 A matriarca e o Manzo

Na vivencia dentro do terreiro o que se percebe e que todo o funcionamento do terreiro


depende da mediadora social, mãe Efigênia tem 187 filhos de santo mais 5 filhos de
sangue e todos não fazem nenhuma decisão importante sem a autorização da
matriarca. Quando a mesma sai do terreiro tudo ‘’ morre’’ tudo ‘’ acaba’’, os filhos vão
dormir, não há mais celebrações ou curas, e quando ela chega todos os filhos vão
para o terreiro esperar as diretrizes que serão dadas por ela.
Aos poucos ela vai passando para a filha Cassia todos os ensinamentos,
transformando a mesma na próxima griot, entretanto o papel de Mãe Efigênia nunca
será substituído. Em algumas vivencias vimos como que com a chegada dela todos
os filhos se reúnem no terreiro, e esperam as diretrizes para a preparação das comidas
de santo, ao mesmo tempo que eles esperam ansiosos pela paz que atrás, a sensação
que se tem e que sem ela a conexão com o sagrado não existe de forma palpável no
terreiro.
Ela não se coloca como melhor que nenhuma das pessoas que a procuram, apenas
como mais sabia e como a pessoa que tem o dever de repassar essa sabedoria que
lhe foi dada. O Manzo em certa medida é uma escola a onde ela é a professora, uma
professora generosa que busca sempre fazer o bem de acordo com suas crenças.

4.3 A mãe da oralidade

Em todo nosso estudo buscamos entender não apenas a construção histórica do


quilombo e terreiro estudado, mas a constituição social do mesmo. Percebemos assim
que a oralidade é fundamental em todas as instâncias do mesmo, foi graças a
oralidade de sua bisavó que Efigênia ainda criança teve os primeiros contatos com a
espiritualidade que ao longo dos anos foi se desenvolvendo. Quando sentiu a
necessidade ela lutou para construir o seu terreiro que seria o lugar a onde que pela
hierarquia ela iria ocupar o assento de griot para passar aos outros esses
conhecimentos para tentar ao máximo ajudar as pessoas. Com isso ela foi criando
um lugar para auxiliar as pessoas por meio das curas do candomblé:
‘’O candomblé é movido pela natureza. As folhas (inçabas) são muito
importantes em nossa religião. A maza (água) e as pedras que são os otás
também. Sem estas três coisas não conseguimos fazer santo. Por este motivo
que nós candomblecistas temos muita necessidade de preservar a natureza.
Nós precisamos muito de preservar a natureza, a água e as plantas.’’ (
CONCEIÇÃO, 2016)

59
Na vivencia foi percebido que ela sente a necessidade de passar conhecimento por
meio da oralidade, afinal foi dessa maneira que toda a sua cultura foi preservada por
séculos. Dona Efigênia acredita que esse lado dela da oralidade foi um dom dado para
ela, assim como a religiosidade, é um dom natural

5. BIBLIOGRAFIA

LEITE, Ilka. Os quilombos no Brasil: Questões conceituais e normativas. Os Quilombos


no Brasil. Santa Cataria: Etnográfica, Vol IV (2), 2000 PP. 333-354

CAMPOLIM, Sílvia (1995, Janeiro) Candomblé no Brasil: orixás, tradições, festas e


costumes.
Super Interessante, 88. Recuperado a partir de <
http://super.abril.com.br/historia/candomble-no-brasil-orixas-tradicoes-festas-
ecostumes >

NASCIMENTO, Alessandra. Candomblé e Umbanda: Práticas Religiosas da


Identidade Negra no Brasil. RBSE, 9 (27):923 a 944. ISSN 1676-8965, dezembro de
2010. Recuperado a partir de < http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html>

ARAUJO, Leandro. As marcas da disporá negra na oralidade do candomblé baiano.


Pernambuco: Revista de Estudos Linguísticos, Literários, Culturais e da
Contemporaneidade, Número Especial 18b – 03/2016 – Com artigos, resumos e
comunicações do CONEAB-2015.
ISSN: 2236-1499, fevereiro de 2016. Recuperado a partir de <
http://www.revistadialogos.com.br/Coneab/Leandro_Alves_Araujo.pdf >

CASTILLO, Lisa Earl. Entre a oralidade e a escrita: a etnografia nos candomblés da


Bahia. Salvador: Edufba, 2008. 231p.

RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Madras, Vol I, 2008 PP. 113-
235
WALDMARN, Maurício. Africanidade, espaço e tradição: A Topologia do imaginário espacial tradicional
africano na fala ‘’Griot’’ sobre Sundiata Keita do Mali. S,Paulo: África: Revista do Centro de Estudos
Africanos. USP, 20-21:219-268 PP, 1997/1998.

STRECHER, Heidi. ,Candomblé e umbanda: Religiões africanas e sincretismo


religioso. COMENTE Heidi Strecker, Especial para Página 3 Pedagogia &
Comunicação 16/01/200612h47... Ver:
https://educacao.uol.com.br/disciplinas/culturabrasileira/candomble-e-umbanda-religioes-
africanas-e-sincretismoreligioso.htm?cmpid=copiaecola e
https://educacao.uol.com.br/disciplinas/culturabrasileira/candomble-e-umbanda-religioes-
africanas-e-sincretismo-religioso.htm

60
“O VERDADEIRO CARANGUEJEIRO NÃO USA LUVA”: Constituição social da categoria
caranguejeiro entre os potiguara do Litoral Norte da Paraíba.

Marianna de Queiroz Araújo, Mestranda PPGA/UFPB

mariannaqueirozaraujo@gmail.com

Dra. Alexandra Barbosa da Silva, UFPB

Alexandrabar01@gmail.com

RESUMO

O presente artigo pretende analisar os significados sociais da categoria auto atributiva


(Barth 2000) caranguejeiro. Entre os Potiguara do Litoral Norte da Paraíba,
caranguejeiro é assim conhecido o indivíduo que coleta caranguejo ao longo de todo
o ano no mangue, região entre o rio e o mar que está sujeita ao regime das marés. Os
caranguejeiros detêm o conhecimento da técnica de captura do crustáceo e conhecem
o território assim como o funcionamento das marés. Os atores sociais da pesquisa
consideram que sua identidade caranguejeiro não é definida apenas pela prática da
coleta, ou seja, não são inscritos apenas meros critérios econômicos, para além deles
estão os saberes, fazeres e moralidades, que dizem respeito às maneiras de se
comportar no ambiente. Esse conjunto de elementos que constituem a categoria
caranguejeiro se relaciona ao campo da transmissão de conhecimentos, passada por
meio de processos educacionais de pai para filho, ou seja, são elementos
compartilhados e construídos socialmente no interior do grupo doméstico e que os
fazem se auto definirem caranguejeiros. Essas reflexões são importantes por
permitirem investigar a produção e a transmissão de saberes, assim como os modos
de construir e apreender as complexas e diversas relações existentes entre os
Potiguara.
PALAVRAS-CHAVE: ambiente, “caranguejeiro”, Potiguara.

61
INTRODUÇÃO
Para Moonen (2008) são denominados de potiguara os índios que habitavam
durante o Século XVI parte do litoral do Nordeste brasileiro. Tomando como base o
mapa geográfico atual do Brasil, esses índios se localizavam aproximadamente entre
a atual cidade de João Pessoa, capital da Paraíba e a atual cidade de São Luís, capital
do Maranhão. Entretanto devido a diversos fatores históricos, boa parte dessa
população indígena foi dizimada, e hoje segundo Palitot (2005), eles se encontram
distribuídos em apenas 26 aldeias pertencentes as cidades de Baía da Traição (PB),
Marcação (PB) e Rio Tinto (PB). Além de apresentarem alguns contingentes habitando
outros municípios como Mamanguape (PB), João Pessoa (PB), Cabedelo (PB), Vila
Flor (RN), Canguaretama (PB) e até mesmo o Rio de Janeiro (RJ).

Conforme nos afirma Palitot (2005), a vegetação dessa região é acentuada por
uma diversidade de biomas, esses variam de acordo com os tipos de solos, índices
pluviométricos e proximidade com o mar, podendo se encontrar portanto: formações
de restingas (terrenos próximos ao mar e com solos arenosos com alto índice de
salinidade), manguezais (ao longo dos estuários, esse tipo de vegetação sofre grande
influência da maré), terrenos alagadiços, mata atlântica (áreas de encosta e do topo
dos tabuleiros) e caatingas litorâneas (áreas de tabuleiros mais altas e distanciadas
do mar).

Nesse sentido a terra, entendida como espaço físico e geográfico, assume um


lugar central para os Potiguara, constituindo a principal condição da sua subsistência.
A discussão dos territórios tradicionais indígenas vem acompanhada de uma defesa
das narrativas e saberes tradicionais que criam significados. Nesse sentido, o acesso
ao território possibilita a reprodução social nos moldes “tradicionais”, uma vez que no
território estão impressos os acontecimentos e os fatos históricos que mantem viva a
memória do grupo. Deste modo o território determina o modo de vida e a visão de
mundo dos indivíduos, conformando identidades baseadas em saberes que são
apreendidos e vivenciados a partir dos sistemas de conhecimento locais. Uma dessas
identidades que será descrita no decorrer deste artigo se refere aos caranguejeiros.

O significado dessa categoria caranguejeiros abrange os trabalhadores que


coletam caranguejos, podendo ser homens e mulheres adultos e até mesmo crianças.

62
Muitos caranguejeiros são também indígenas Potiguara, o que explicita um duplo
pertencimento.

Tomarei como referência empírica a dinâmica dos grupos domésticos da aldeia


potiguara Jaraguá pertencente à terra indígena de Monte-Mor.

63
Fonte: FUNAI, 2012.

Aldeia Jaraguá vista de satélite, 2015.

A categoria á qual me refiro constitui-se enquanto um saber que possui um


significado para a vida social dos indivíduos. Essa categoria identitária, é acionada
conforme o contexto, o que confirma algumas das colocações de Barth (2000). Neste
seu trabalho fundamental para a análise das relações entre indivíduos e grupos, na
conformação de suas identidades, Barth afirma que os grupos étnicos são categorias
atributivas e identificadoras que organizam a interação entre as pessoas. Cada grupo
étnico pode variar tanto o seu modo de organização social quanto às formas de
articulação interétnica, dependendo do contexto em que se encontrem. Por essa razão
é preciso entender o grupo não na sua origem, mas no processo, como nos indica
Barth (op. cit), através de sinais como memória, organização política que são
consequências elaboradas no tempo e no espaço.
Os catadores de caranguejo, autodefinidos caranguejeiros realizam suas
atividades ao longo de todo o ano no mangue, região entre o rio e o mar que está
sujeita aos regimes das marés. Essa atividade que será descrita abaixo é desenvolvida
em um ambiente específico e por essa razão se relaciona a diversos níveis de

64
mobilidade. O uso que faço da categoria de ambiente, muito relevante em minha
argumentação aqui, é a formulada por Barbosa da Silva, que parte de um

“sentido sociológico, compreendendo uma infraestrutura material (as


instalações físicas: construções, caminhos, cercas, árvores,
pastagens, ruas, praças etc) específica, pondo à disposição dos
sujeitos determinados recursos e permitindo o desenvolvimento de
determinadas atividades, as quais, embora características, podem
não ser exclusivas. Assim, o ambiente é um espaço físico de relações,
unidade constituinte de um território” (2009, p.88).

Portanto, seguindo essa autora, essa noção de ambiente não leva em


consideração apenas as características ecológicas, mas também as infraestruturais,
assumindo um caráter abrangente.
A cata do caranguejo enquanto atividade “tradicional” e elemento
constitutivo da categoria caranguejeiro
A aldeia Jaraguá está imersa em uma área de várzea, que apresenta uma
vasta extensão de manguezal, com pequenos resquícios de mata atlântica. Devido a
uma grande abundância de água doce e salgada na região a pesca e a coleta de
crustáceos se torna a principal atividade econômica. É certamente devido a isso que
os caranguejeiros têm um conhecimento tão grande e rico em relação a essa prática
e ao ambiente em que ela é desenvolvida.
Os caranguejeiros possuem um conhecimento muito apurado do território, por
essa razão são capazes de localizar os animais aquáticos e desenvolver técnicas
eficientes para capturá-los.
Tomando as afirmações de um de meus interlocutores que se autodefine
caranguejeiro, tem-se a seguinte definição:
Caranguejeiro é quem cata caranguejo. É quem sabe catar com a mão, o
verdadeiro caranguejeiro não usa luva. (Silvinha. Fevereiro de 2013).

Os critérios de competência e saber aparecem como critério desse significado.


Os atores sociais que se autodefinem caranguejeiros são aqueles que detêm o
conhecimento da técnica de captura do crustáceo e que conhece o território e o
funcionamento das marés. Os moradores da aldeia Jaraguá percebem a variação das

65
marés ao longo de um ciclo mensal e diário, compreendendo que esta variação se dá
em relação à força da lua, observando que em um período de quinze dias, a maré
volta ao seu ciclo, e isto coincide com o período entre a lua cheia e a lua nova. As
luas são denominadas de nova, crescente, cheia e minguante. Estas fases da lua
estão associadas aos fenômenos cíclicos mensais da maré, denominados de maré
grande, quando a lua é nova ou cheia; e maré morta, quando a lua está na fase
crescente ou minguante.

Existe a “maré de quebramento” e “maré de lançamento”, quando a lua está na


fase crescente, a maré “vem lançando”, ou seja, começa a crescer, até ficar “maré
cheia”. Quando a lua entra na fase minguante, ela começa a voltar (maré de
quebramento), até chegar na “maré morta”. Ainda existe a “maré de mosquito”; essa
é uma maré que não serve pra pescar, pois como o próprio nome já diz, a região da
maré apresenta muitos mosquitos.
O caranguejo uçá (Ucides cordatus ) assim como o goiamum(Cardisoma
guanhumi) é capturado no mangue e na maré durante o ano todo. No entanto, na
época de andada período reprodutivo em que os caranguejos machos e fêmeas saem
de suas tocas para o acasalamento e andam pelo manguezal, a frequência deles é
maior em razão da reprodução principalmente do caranguejo uça. No discurso de
Silvinha,
“O caranguejo anda, ele anda uns quatro dias, a andada é grande... qualquer
um pode pega.

M.: Como vocês sabem que é época de andada?

“A gente sabe mesmo quando chega o tempo do caranguejo andar,


desde de menino a gente na maré a gente sabe. Tem três andada,
janeiro, fevereiro e março. Ele já andou uma em Janeiro... a de
fevereiro é a mais forte, é essa agora que o caranguejo vai lavar as
ovas... que eles anda por cima da croa pra o caranguejo lavar as ova,
ela vai lavar pra produzir, essa última andada não deu muito não,
porque não foi de produção, foi só pra emprenhar ela pro caranguejo
cruzar com ela, essa andada já é pra desova que ele pega agora é
pro outro ano já fica dentro dela... a que não lavar agora na outra lava,
a outra andada ninguém pega muito, é fraca, é andada escondida”.

66
Como pude observar no momento da captura os caranguejeiros pegavam os
caranguejos pelas costas, assim, as pinças não alcançam a mão, essa é a técnica
utilizada que é passada ao longo dos séculos de pai para filho. O caranguejeiro não
realiza esse trabalho apenas com sua força física, mas, sobretudo a partir das técnicas
corporais que permite ter o corpo como principal instrumento de trabalho. Seja ao se
baixar para pegar o caranguejo na croa ou caso esteja no mangue capturar o
caranguejo que fica escondido nos buracos na lama, os caranguejeiros enfiam a mão
no buraco procurando as raízes, eles sabem que o caranguejo fica de lado, e assim
vão o apalpando até encontrar as costas para puxa-los pelas patas traseiras, o
caranguejo quando está no buraco tem seus movimentos comprometidos por isso fica
mais difícil dele se defender.

67
Silvinha na cata do caranguejo guaiamum.2013.

68
Silvinha e os integrantes do seu grupo doméstico. 2013.

Croa, 2013.

Trata-se de um saber específico e que requer um conhecimento do território,


pois Silvinha durante a andada do caranguejo vai de canoa até a croa uma área do
mangue onde há uma concentração de areia e serve como área de pesca, ele conhece
bem o território sem precisar usar GPS para localização, além de designar os diversos
mangues por nominações características.
Durante o trabalho de campo, Silvinha me mostrou muitos lugares no mangue,
áreas de pesca, me dizendo os nomes de cada lugar e o destino dos rios. De dia ou
de noite ele conhecia todo o território, demonstrando um conhecimento que foi
aprendido, e que de certa maneira, acaba sendo um critério importante para a
constituição da categoria de caranguejeiro.
As atividades de cata do caranguejo podem ocorrer o ano inteiro, como já
mencionado, no entanto, o regime de trabalho não é de dedicação exclusiva, Silvinha,
por exemplo, além da cata do caranguejo, realiza a pesca com redes e planta na horta

69
do seu grupo doméstico16. Portanto há um revezamento da atividade de coleta do
caranguejo com outras atividades econômicas que complementam a renda familiar,
como a pesca, a agricultura, construção (trabalho como pedreiro), dentre outros “bicos”
como eles chamam.
De acordo com Silvinha as oportunidades ocupacionais são poucas no
município de Rio Tinto, as pessoas têm como opções a Prefeitura, Estado e
estabelecimentos comerciais, mas para a grande maioria dessas ocupações é exigido
ter escolaridade, portanto aqueles que não tiveram oportunidade de estudar, só
contam com o trabalho no corte da cana e na maré. Portanto se auto definir
caranguejeiro não implica necessariamente em somente saber catar caranguejo.
Como os atores sociais em questão não são donos dos meios de produção para
sua subsistência, eles então precisam vender sua força de trabalho. Quando não há
quem compre essa força de trabalho eles vão para a maré, trabalhar na pesca e/ou na
coleta de crustáceos.
Mesmo aqueles indivíduos que trabalham para as usinas canavieiras no corte
da cana de açúcar precisam parar de trabalhar quando termina o período de moagem
tendo que recorrer ao trabalho no mangue. O trabalho nas usinas nesse sentido é
sazonal, pois, ocorre em algumas épocas do ano; isso faz com que haja um
revezamento entre as atividades voltadas ao interior do grupo e ao trabalho nas
usinas. O trabalho na usina geralmente começa em Santana (Julho) e se estende até
final de março, daí as pessoas ficam Abril, Maio e Junho sem trabalhar nas usinas,
neste período, os homens se dedicam a pesca e a coleta de crustáceos, ou a
empregos informais para obterem recursos.
Trabalhar no mangue aparece como alternativa em relação à falta de
oportunidades de emprego. No entanto é preciso ressaltar que a atividade de cata de
caranguejo não é meramente econômica, esses crustáceos não são apenas vendidos
eles também podem ser doados a vizinhos, amigos e a parentes o que indica uma
rede de reciprocidade. Se não houver a doação, as pessoas passam a ser malvistas
por seus familiares e vizinhos, portanto se trata de uma moralidade, uma obrigação.
Esses círculos de cooperação tanto dentro quanto fora dos grupos domésticos são os

16
Família de até três gerações.

70
mesmos desenvolvido por Mauss em seu livro “Ensaio sobre a dádiva” (2003) na sua
análise da obrigação de dar, receber e retribuir em função das relações sociais.
Nos depoimentos aparece à noção de sofrimento, onde viver da maré é uma
tarefa muito trabalhosa. Antigos pescadores e caranguejeiros contaram que por conta
da vida na maré adquiriram problemas de saúde, e por essa razão muitos deles não
querem que seus filhos passem por isso, preferem que eles estudem para possuírem
uma profissão menos árdua.

A denominação de legitimidade “verdadeiro caranguejeiro”

Essa designação “verdadeiro caranguejeiro” surge como um fator de


legitimidade em relação àqueles indivíduos que não dominam a técnica de captura
nem os conhecimentos do território. Portanto essa expressão “verdadeiro
caranguejeiro” se relaciona a pessoa que realmente trabalha na cata de caranguejo,
enquanto que o falso caranguejeiro seria aquele que aparece no mangue que é um
local de uso comum só na época de grande incidência do crustáceo, que é justamente
o período de reprodução, onde aparecem pessoas de vários lugares para pegar
caranguejo seja para a venda ou para consumo.

Outra referência é a de preservação e respeito aos recursos naturais, “o


verdadeiro caranguejeiro” evita capturar as fêmeas, pois se preocupam com o futuro
e temem a extinção dos animais o que acarretaria um grande prejuízo para o
ecossistema, enquanto que aqueles que não são caranguejeiros não selecionam os
animais nem por tamanho nem por sexo.
Caranguejeiro é aquele que vive no mangue e sabe respeitar o ambiente, bem
como o “pai do mangue”, que como o próprio nome diz é quem reina no mangue. De
acordo com os relatos de alguns de meus interlocutores o “Pai do Mangue” é um
homem de pele escura que fuma um cachimbo, navega e pesca em sua canoa.
Algumas pessoas têm devoção pelos “encantados”, e fazem oferendas, como
cachaça, fumo, mel, entre outros, para que dessa maneira toda atividade que for
realizada naquele ambiente seja protegida e por consequência bem-sucedida. No
entanto, caso alguém faça alguma coisa que contrarie esses seres, os mesmos podem
castigá-lo de diversas maneiras. Essa visão dá a entender que há comportamentos

71
morais importantes para os entrevistados, e que esses devem ser seguidos pelas
pessoas.
Portanto as atividades realizadas pelos caranguejeiros estão intimamente
relacionadas com o ambiente, não apenas no que respeita à produção, mas também
a quadros morais de referência, onde se encontram questões relativas ao modo de se
comportar, bem como de utilizar os recursos disponíveis. Entende-se assim que não
está em questão aqui apenas o aspecto que é comumente chamado de “natural”. O
dualismo cultura versus natureza não dar conta de explicar os diversos modos das
pessoas se relacionarem com os ambientes, seguindo os termos postos por Ingold
(1986) e de Mura (2010 e 2011).
Conclusão

Por meio dos relatos obtidos durante o trabalho de campo, a categoria


caranguejeiro aparece relacionada a uma atividade econômica que requer um
conhecimento territorial. De acordo com Barth (2000) é preciso entender o processo,
ou seja, o contexto em que as categorias identitárias são acionadas e porque elas são
acionadas nesse contexto e não em outro, seguindo este autor pude identificar que
esses trabalhadores “caranguejeiros” acionam essa categoria no momento de acesso
aos recursos e para legitimarem um saber fazer que se relaciona com a tradição que
foi transmitida ao longo de séculos de ocupação do espaço e que reforça uma outra
identidade que é étnica, a de Potiguara. Pois é preciso levar em conta os sentidos que
os próprios atores sociais atribuem para seus saberes, no contexto em que se
encontram o que não impede o acionamento de outras identidades, dependendo dos
interesses em questão (Barth 2000, op. cit).
Desta maneira, apreender as falas e perceber de onde elas vêm é fundamental
para compreensão dos fenômenos sociais. Considerando que esta atividade não é
definida apenas por uma prática econômica, mas também por moralidades e maneiras
de se comportar no ambiente, que se relacionam ao campo da transmissão de
conhecimentos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTH, Fredrik. “Os grupos étnicos e suas fronteiras”. In LASK, Tomke (Org.), O guru,
o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.
2000.

72
CARDOSO, T. et al.“Etnomapeamento Potiguara da Paraíba”. Funai. Brasília, 2012.

INGOLD, Tim. “The appropriation of nature: essays on human ecology and social
relations”. Manchester: Manchester University Press, 1986.

PALITOT, Estevão Martins. “Os Potiguara da Baia da Traição e Mont-Mor:história,


etnicidade e cultura”. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal
da Paraíba, João Pessoa. 2005.
SILVA, Alexandra Barbosa da. “Entre a aldeia, a fazenda e a cidade: ocupação e uso
do território entre os Guaraní de Mato Grosso do Sul”. Tellus, Campo Grande, ano
9,n.16, jan/jun, PP.81-104,2009.

MOONEN, Frans. “Os índios potiguaras da paraíba”. Recife, 2008.

MURA, Fabio. “A trejetória dos chiru na construção da tradição de conhecimento


Kaiowa”. Mana, Rio de Janeiro, Vol.16, n.1, p. 123-50, Abr. 2010, pp. 123-150. 2010.

_______. “De sujeitos e objetos: um ensaio crítico de Antropologia da técnica e da


tecnologia”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n.36, jul/dez. pp. 95-125, 2011

73
SER NEGRO(A): PRECONCEITOS VISÍVEIS E INVISÍVEIS VIVENCIADOS POR
DISCENTES DO CURSO GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA17

Ana Paula dos Santos Silva


Doutoranda em Educação/UFPB. Integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e
Ação sobre Mulher e Relações de Sexo e Gênero - NIPAM/UFPB. Prof. Substituta do
Departamento de Educação/UFPB/CAMPUS IV. E-mail: paulinha.ufpb@hotmail.com

Érica Jaqueline Soares Pinto


Doutoranda em Educação/UFPB. Integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação
sobre Mulher e Relações de Sexo e Gênero - NIPAM/UFPB. E-mail: ericajsp@gmail.com

Jackeline Susann Souza da Silva


Doutoranda em Educação. Universidade de Salamanca/USAL. Integrante do Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisa e Ação sobre Mulher e Relações de Sexo e Gênero -
NIPAM/UFPB. E-mail: jackeline-susann@hotmail.com

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar as experiências de preconceito relacionadas ao


racismo vivenciado por estudantes do curso de especialização Gênero e Diversidade na Escola
(GDE) promovido pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação sobre Mulher e Relações de
Sexo e Gênero (NIPAM), do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba
(CE/UFPB), na modalidade de ensino à distância. A partir de uma abordagem exploratória
identificamos e caracterizamos as narrativas de cinco cursistas do GDE-Especialização sobre
preconceitos e discriminações racistas, apresentadas na forma de memoriais. Os resultados
demonstram a vivência do racismo pelos estudantes nas relações familiares, escolares e de
trabalho através de atitudes preconceituosas e discriminatórias de pais, mães, estudantes,
professores/as e outros profissionais. Para os/as cursistas, as atitudes e ações discriminatórias,
marcadas em suas memórias, são nocivas, mesmo quando revestidas de ‘brincadeira’ ou ‘dito
popular’, porque produzem violência simbólica e física, minam a autoestima e impedem o
desenvolvimento pessoal, escolar e profissional. Concluímos que a escola tem um papel
relevante na desconstrução desses preconceitos e discriminações e deve incluir em seu
currículo práticas pedagógicas efetivas de intervenção sobre as relações étnico-raciais para
que professores/as, gestores/as e demais profissionais da educação repensem e avaliem suas
práticas pedagógicas numa perspectiva inter/multicultural, reconhecendo as diferentes
identidades, dentre elas a identidade negra.

Palavras-chaves: Preconceito. Discriminação. Racismo. Escola.

17
Trabalho orientado pela Prof. Dra Maria Eulina Pessoa de Carvalho; professora do curso de Pedagogia e do PPGE/CE/UFPB;
pesquisadora CNPq; coordenadora do GDE-Especialização, NIPAM/UFPB. E-mail:
mepcarv@terra.com.br

74
Introdução
Analisamos neste texto as experiências de preconceito e discriminação relacionados à
“raça”/etnia vivenciadas por estudantes do curso de especialização Gênero e Diversidade na
Escola (GDE)18, ofertado em 2014/2015 pelo Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação sobre
Mulher e Relações de Sexo e Gênero (NIPAM), do Centro de Educação da Universidade
Federal da Paraíba (CE/UFPB), na modalidade de ensino à distância. Nossa análise é norteada
pelo seguinte questionamento: que experiências de preconceito e discriminação são narradas
pelas/os cursistas do GDE em razão de marcas identitárias por ser negro/a?

As experiências das/os discentes foram descritas em forma de memoriais, em


cumprimento a uma das atividades do módulo Diversidade presente na grade curricular do
curso. Os memoriais caracterizam-se por ser uma interessante ferramenta de investigação
científica por basear-se em discurso sobre identidades (OLIVEIRA et al., 2006). As narrativas
autobiográficas possibilitam à pessoa que narra se tornar protagonista de sua própria escrita e
com isso produzir significados sobre as situações por ela vividas e por aqueles/as que são
pertencentes a seu grupo social.

A atividade de elaboração do memorial possibilitou a recuperação de situações de


preconceito e discriminação que marcaram a história de vida das/os cursistas; situações que
são, muitas vezes, naturalizadas quando expressas na forma de brincadeiras, apelidos e
exclusão ‘silenciosa’ que pode ser percebida como uma forma de violência simbólica (Bourdieu,
1975). Nesse sentido, observamos que o memorial é um valioso instrumento para investigar o
preconceito e a discriminação experimentados pelas/os cursistas, porque permite refletir sobre
aquilo que acontece no cotidiano.

Este artigo está organizado na seguinte sequência: inicialmente conceituamos


preconceito e discriminação; em seguida, apresentamos os procedimentos de coleta e análise
dos dados; depois, analisamos os relatos das/os cursistas organizados considerando seus
autorrelatos escritos sobre racismo vivenciados aos longo de suas vidas; por último, trazemos
nossas conclusões acerca do papel da escola na prevenção do preconceito e discriminação
nas relações interpessoais.

18
O Curso “Gênero e Diversidade na Escola” (GDE) é fruto de uma iniciativa conjunta da Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres (SPM/PR), Secretaria Especial de Políticas de Igualdade Racial (SEPPIR/PR), Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI/MEC) e do Conselho Britânico; integra a Rede de Educação para
a Diversidade (RED) e responde às recentes políticas de inclusão de gênero, orientação sexual e raça/etnia na formação
docente continuada, sendo ofertado por várias universidades públicas

75
Caracterizando preconceito e discriminação a partir das diferenças identitárias

O preconceito e a discriminação retratam dois estados humanos distintos, porém inter-


relacionados. Rios (2007, p. 27) destaca que o preconceito se caracteriza pela negatividade de
percepções mentais com relação à determinada pessoa ou grupo, já a discriminação se
caracteriza pela “materialização, no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias,
comissivas ou omissivas relacionadas ao preconceito, que produzem violação de direitos dos
indivíduos e dos grupos”. Farias (2011) considera que ambos são ‘ações corrosivas’ porque
desestruturam a autoestima e a força individual nas relações sociais.

A necessidade de identificação entre pessoas com características semelhantes constitui


uma forma de se sentir pertencente a um grupo, bem como aceito e valorizado.
Consequentemente, aqueles/as que são diferentes de nós acabam sendo excluídos das
relações entre iguais (WOODWARD, 2000).

Sentir-se diferente dos pares se torna um grave problema humano porque a “diferença,
ao lado da identidade, é uma categoria lógica muito usada pelas pessoas para organizar suas
experiências” (CARVALHO, ANDRADE, JUNQUEIRA, 2009, p. 10). Assim, estando a diferença
– de classe, de raça/etnia, de gênero, de habilidade, de aparência física, de nacionalidade... –
na base da norma cultural, ela gera discriminação, exclusão e desigualdade nos diferentes
espaços (SILVA, 2014).

A educação, como um direito humano fundamental de todas as pessoas (BRASIL, 1988;


BRASIL, 1996) necessita construir novos valores baseados em uma cultura de paz, equidade
e aceitação da diferença. Para isso, as questões do sexismo, machismo, heterossexismo,
xenofobia, racismo e capacitismo precisam ser discutidas pela comunidade escolar, como uma
via importante para a desnaturalização e prevenção das diferentes formas de discriminação e
preconceito produzidas nas relações cotidianas.

Procedimento metodológico
A investigação seguiu uma abordagem exploratória para identificar e caracterizar as
narrativas das/os cursistas do GDE-Especialização sobre preconceito e discriminação
apresentadas na forma de memoriais. Os memoriais foram elaborados em julho de 2014, como
atividade inicial do módulo Diversidade. A professora da disciplina propôs a construção de um

76
texto de cunho pessoal sobre como as/os cursistas perceberam e/ou vivenciaram ao longo de
sua vida preconceitos e discriminações envolvendo questões de gênero, orientação sexual e
racismo.

Foram lidos 286 memoriais disponibilizados no Ambiente Virtual de Aprendizagem que


descreviam diferentes tipos de preconceitos e discriminações: 1) ser mulher, referindo-se ao
sexismo, machismo e androcentrismo; (2) ser identificado como homossexual, apontando-se o
heterossexismo; (3) ser negro ou negra, assinalando-se o racismo.

A análise dos memoriais ocorreu em três momentos: leitura analítica: leitura dos
memoriais e escolha dos relatos de vivências das/os cursistas como “vítimas” de preconceito e
discriminação; cruzamento dos pontos de vista das investigadoras: reflexão coletiva acerca das
situações apresentadas pelas/os cursistas; e diálogo com a literatura: análise dos dados à luz
dos referenciais relações de gênero, diversidade sexual e etnicorraciais.

Observou-se que dos 286, apenas 27 cursistas, correspondente a 11,2%, apresentaram


memoriais destacando suas próprias vivências. A maioria optou por descrever cenas
experienciadas por outras pessoas, como alunos/as, familiares ou colegas. A pouca atenção
das/os cursistas à própria experiência nos memoriais pode estar relacionada à naturalização
do preconceito e da discriminação (BORGES, PEIXOTO, 2011), que invisibiliza o machismo,
racismo e a homofobia. Além disso, parece ser mais difícil relatar as próprias vivências de
discriminação e preconceito porque elas podem trazer à tona lembranças e emoções dolorosas
e sentimentos de rejeição e inferioridade (FERNANDES, 2008).
Dos 27 cursistas que apresentaram suas experiências como vítimas de preconceito e
discriminação, 5 destacaram as vivências de racismo; 9 falaram sobre dificuldades enfrentadas
em relação as questões de gênero; e 13 depuseram sobre diversidade sexual e homofobia.
Neste artigo, optamos em apresentar relatos dos 5 cursistas que destacaram o sofrimento com
o racismo em diferentes contextos sociais: escola, família, trabalho grupo de pares, dentre
outros. Usamos nomes fictícios para resguardar a identidade deles/as.

“Enfrentei preconceito e discriminação por ser negro/a”

O preconceito e discriminação atingem grupos e pessoas em razão de características


etnicorraciais. Cinco cursistas negros/as relataram experiências de racismo no ambiente

77
familiar, na escola, na universidade e no trabalho. Carlos traz a situação de discriminação que
sofreu com um parente:

Presenciei situações de discriminação na minha própria família, como


uma cena que não esqueço, quando um parente de meu pai perguntou
se eu era filho dele e disse: esse aí não é um Chianca não, é Vavá?
(apelido de meu pai). Pois sou moreno e meus irmãos são brancos.
(Carlos)

Carlos foi discriminado pelo parente porque não foi visto como ‘gente como a gente’
(WOODWARD, 2000) e, assim, não foi considerado pertencente à família. O racismo é uma
discriminação consequente de um conjunto de estereótipos que
“instaura, ao mesmo tempo, uma visibilidade distorcida em relação ao grupo (pois ‘essa gente
é assim’) e uma invisibilidade do indivíduo (pois ‘são todos iguais’)” (CARVALHO, ANDRADE,
JUNQUEIRA, 2009, p. 15). Aponta-se aquilo que desqualifica o grupo ou o indivíduo e nega-se
sua humanidade.

Leandro também foi discriminado pela família por ser negro e destaca como isto atingiu
a sua autoestima:

Enquanto negro posso sentir os olhares, provocações e piadas que há,


inclusive, nas relações com familiares. Estar numa família composta em
sua maioria por pessoas de pele mais clara me fez passar ao longo da
vida por momentos de grandes indagações a respeito de minha
identidade: “Tinha que ser negro, quando não caga na entrada é na
saída”, ou “só podia ser negro”, essas foram frases com certa frequência
escutadas por mim. Algumas vezes pensei em nunca ter filhos para que
eles não pudessem escutar, sendo negros, o que toda vida escutei.
(Leandro)

Essas frases marcaram a vida de Leandro muito profundamente de forma


negativamente. De acordo com Cavalheiro (2001), os ditos populares representam o elevado
grau de preconceito racial e se reproduzem de forma naturalizada, por exemplo, na mídia,
família, escola e igreja. Silva e Teixeira (2009) afirmam que a análise linguística desses ditos
populares mostra que eles se apoiam na crença de que a etnia negra é inferior à branca
dominante. Assim, os ditos populares estereotipam a imagem do/a negro/a e perpetuam a
crença em sua subordinação natural.

78
A discriminação sofrida por Carlos e Leandro demonstra que o racismo, muitas vezes,
supera sentimentos afetivos intrafamiliares, levando ao sofrimento de negros/as dentro de seus
próprios lares. Espaços que deveriam ser de acolhimento e de contribuições na formação
identitária do/a negro/a, funcionam também como lugares de repressão e de exclusão.

O racismo tem como base valores que são construídos arbitrariamente, mas conotados
como biológicos (GUIMARÃES, 1995). Fleuri (2006, p. 498) enfatiza que as vivências de
discriminação racial, como as vividas pelas/os cursistas, são atos destinados “a inferiorizar um
indivíduo ou um grupo, por ter uma determinada proveniência étnica” que não corresponde à
marca valorizada.

Os cabelos de Andreia foram motivo de chacota: “sempre fui alvo de brincadeiras de


mau gosto. Recordo que me entristecia demasiadamente ser chamada de ‘Medusa’, ser
mitológico feminino que trazia na cabeça, em vez de cabelos, várias cobras”. Franciele também
diz que “a cor de sua pele sempre era motivo de zombaria entre os colegas”. Os apelidos,
chacotas, zombarias, ‘brincadeiras’ são uma tentativa de mascarar uma atitude discriminatória,
visto que “são colocadas sempre como brincadeiras inocentes, sem caráter ofensivo” (SILVA,
2013, p. 221).

Mais uma vez, a escola negligenciou seu papel inclusivo, propiciando um ambiente para
a circulação de preconceitos, estereótipos, discriminações e agressões, como explicita Laís:

Sou a filha mais velha de um casal interracial e como minha mãe tem a
pele clara e os olhos verdes, meu tom de pele é o que as pessoas gostam
de chamar de morena. Vivenciei nos meus primeiros anos na escola muito
preconceito, velado ou não, por conta da cor da minha pele. Desde
brincadeiras maldosas com meu ‘cabelo pixaim’ e até mesmo em sala
quando me comportava mal ou tirava notas baixas eu ouvia piadas: “tinha
que ser preta”. (Laís)

Os preconceitos e discriminações vividos por muitas crianças, jovens e adultos por causa
de uma suposta inferioridade racial corroem sua autoestima (FARIAS, 2011) e diminuem as
oportunidades de aprendizagem. Nesta perspectiva, a escola (re)produz relações de poder que
colocam a população negra em posição de inferioridade; consequentemente, o racismo tem
impedido que negros e negras tenham acesso a níveis mais elevados de escolaridade. Prova
disso, são os dados do IBGE (2014) que relevam uma grande diferença entre estudantes
negros/as e brancos/as: “Os jovens de 15 a 17 anos de idade brancos possuíam uma taxa de

79
frequência escolar líquida 14,4% pontos percentuais maior do que a dos jovens pretos ou
pardos, com 49,3%” (p.105).
Em relação à distorção idade/série, “a proporção desses estudantes com atraso no ensino
fundamental era mais elevada entre estudantes da rede de ensino pública, homens, residentes
em área rural e de cor preta ou parda” (p.105). Já no ensino superior, “enquanto do total de
estudantes brancos de 18 a 24 anos 69,4% frequentavam o ensino superior, apenas 40,7% dos
jovens estudantes pretos ou pardos cursavam o mesmo nível. Essa proporção ainda é menor
do que o patamar alcançado pelos jovens brancos em 2004 (47,2%)”. (p.109)

Ana conta que se sentiu discriminada através de práticas cotidianas sutis de seleção e
valorização de atributos físicos e status social, principalmente quando entrou pelo sistema de
cotas em uma faculdade paraibana. Essas práticas são despercebidas pelas pessoas, mas
para ela tiveram um significado nocivo:

Eu sempre me destaquei na sala de aula. (...) Fiz o ENEM e obtive uma


nota boa, então ganhei uma bolsa de estudo integral por meio de cotas
para negros e pardos em uma faculdade renomada de João Pessoa. (...)
Quando iniciaram as aulas, a realidade se tornava distante das minhas
expectativas. Pude perceber que era a única negra da sala e também uma
das poucas que não possuía carro. O pior foi o olhar de muitas pessoas
de superioridade, creio que perceberam que eu deveria estar ali como
bolsista, o que acho que causava incômodo. Naquele primeiro instante,
confesso que tudo me fez sentir inferiorizada, não foi um preconceito
descarado, foi um preconceito disfarçado e isto é o que a sociedade faz.
A maioria das pessoas diz não ser preconceituosa, mas sempre se abrem
para amizades com pessoas superiores, (...) buscam para o círculo de
amizades pessoas com poder aquisitivo e excluem de maneira sutil as
pessoas com poder aquisitivo menor. Isso me faz pensar que de certa
forma é um preconceito (Ana).

O racismo ganha mais força quando se articula com classe social, assim como Ana
revelou que os relacionamentos entre os/as estudantes na faculdade baseavam-se em critérios
de status socioeconômico. Na condição de negra e pobre (bolsista), ela teve que superar
diferentes barreiras atitudinais para conseguir concluir a formação superior. Conta em seu
memorial que sua reação contra o preconceito e a discriminação foi a tentativa de ignorar os
olhares de desaprovação e desprezo de seus/suas colegas de sala.

80
Diferentemente de Ana, que sofreu racismo mascarado e preconceito de classe, Kaline
protagonizou uma situação de racismo descarado, de um pai que a rejeitou como professora
de seu filho, por ser negra:

Fui a protagonista de uma discriminação dolorosa, mas hoje superada.


Na época com 15 anos fui convidada a lecionar em turma de Pré-escola.
Ali eu estava dando os primeiros passos como alfabetizadora. (...)
Deparei-me com um pai pedindo para a diretora que transferisse um aluno
da turma, pois não queria que uma professora negra ensinasse seu filho.
Foi marcante, pois até então não sabia que pessoas assim existissem.
Hoje tenho convicção que sim, e muitas. A diretora orientou o pai em
relação ao seu pedido e o deixou a vontade para matricular seu filho em
outra escola. (Kaline)

A função social da escola é problematizar as diversas manifestações de discriminação,


dentre elas o racismo, incluindo em suas atividades pedagógicas pais, mães e familiares.
Aparentemente, pelo relato de Kaline, a diretora tomou um posicionamento contrário à
discriminação, quando não cedeu à solicitação do pai, deixando-o à vontade para retirar o filho
da escola.

A escola tem um papel relevante na transmissão de valores, contudo, sobretudo antes


das Leis 10639/2003 e 11.645/2008, reforçava um modelo ‘branco’ de sucesso e a
invisibilidade das pessoas negras, conforme Lidia percebeu: “Os livros que chegavam à
escola não faziam nenhuma menção aos negros, os textos que falavam de história quase
nunca tocavam no nome de Zumbi”. Os memoriais ilustram que mesmo nos dias atuais não
há um ambiente acolhedor, livre de preconceito e discriminação para os/as negros/as na
escola. Segundo Abromovay e Castro (2006), as escolas brasileiras não estão atentas a
práticas sutis de racismo. Há invisibilidade dos/as negros/as, que não aparecem nos cartazes
da escola, nos livros didáticos, nas histórias e nas posições sociais prestigiadas; ou sua
visibilidade se dá apenas no trabalho braçal ou subserviente, em figuras carnavalescas
caricaturadas, ou como ‘marginais’, representatividade que se torna barreira simbólica que
impede o desenvolvimento afetivo, educacional, profissional e econômico dos/as estudantes
negros/as.

81
Conclusões

Este texto objetivou identificar e caracterizar as vivências de preconceito e discriminação


em relação aos negros e negras de cursistas do curso de especialização “Gênero e Diversidade
na Escola”, narradas em memoriais. Ao falar sobre suas experiências, os/as cursistas refletiram
sobre os estereótipos e estigmas direcionados a grupos e pessoas em razão de sua identidade
negra e demonstraram criticidade frente às situações que, muitas vezes, são naturalizadas, ao
mesmo tempo em que revelaram seu sofrimento.

O racismo apareceu nas relações familiares, escolares e de trabalho através de atitudes


preconceituosos e discriminatórias de pais, mães, estudantes, professores/as e outros
profissionais. Segundo os/as cursistas, as atitudes e ações discriminatórias, marcadas em suas
memórias, são nocivas, mesmo quando revestidas de ‘brincadeira’ ou ‘dito popular’, porque
produzem violência simbólica e física, minam a autoestima e impedem o desenvolvimento
pessoal, escolar e profissional.

Alunos e alunas são frequentemente abusados/as, ridicularizados/as, afetados


emocionalmente e excluídos/as em virtude da cor da pele (negros/as) na escola, lugar de
educação e formação cidadã formal, lugar em que o preconceito e discriminação devem ser
conbatidos e não reproduzidos. Para por um fim a essas situações, a escola deve desconstruir
preconceitos e discriminações em seu currículo e práticas pedagógicas. A inclusão efetiva das
temáticas das relações étnico-raciais proposta pela Lei 10.639/2003 nos currículos escolares é
relevante nesse sentido, mas precisa adentrar de fato nos projetos pedagógicos das escolas
para que professores/as, gestores/as e demais profissionais da educação repensem e avaliem
suas práticas pedagógicas para um aspecto mais interventivo . Assim, concluímos com um
convite à reflexão em torno de algumas questões e desafios:

• Como contribuir para a eliminação de atitudes preconceituosas e discriminatórias na


comunidade escolar?

• Como promover um currículo multicultural que favoreça a convivência com as diferenças


culturais na escola e fora dela?

• Que situações de aprendizagem oportunizar aos/às estudantes para que eles e elas
critiquem as relações de poder e analisem como o preconceito e a discriminação são
nocivos nas relações humanas?

82
• Como os/as estudantes podem se tornar protagonistas na construção de valores
inclusivos e antidiscriminatórios na escola?

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84
NOVOS ESPAÇOS E OPORTUNIDADES:
A CIRCULAÇÃO E INTERAÇÃO DE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS
INDÍGENAS POTIGUARA NA REGIÃO METROPOLITANA DE JOÃO PESSOA

Jamerson Bezerra Lucena1


Graduando de Licenciatura em Ciências Sociais-UFPB
jamerosn_lucena3@hotmail.com
Bruno Rodrigues da Silva
Graduando de Ecologia-UFPB
brunopotiguara@gmail.com
Estêvão Martins Palitot
Professor Efetivo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB.
epalitot@yahoo.com.br

RESUMO

O presente artigo apresenta histórias de vida de seis estudantes universitários indígenas


Potiguara que vivem num fluxo entre a aldeia e a região metropolitana de João Pessoa,
capital do estado da Paraíba. A circulação desses jovens por esses espaços demonstra ao
longo do tempo a construção de redes de relações sociais que foram entremeadas nas
aldeias e cidades, tais como Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto, contíguas as Terras
Indígenas (TI) Potiguara. Essa dinâmica territorial ocasiona contatos interétnicos com os mais
diversos atores sociais, instituições de ensino e órgãos indigenistas, tais como a Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Nesses fluxos
de estudantes entre a aldeia e a cidade, os Potiguara deslocam-se de um lugar a outro de
forma dinâmica, criando na espacialidade urbana uma rede de solidariedade como forma
estratégica para também poder enfrentar preconceitos raciais e processo discriminatório na
capital, principalmente na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). As redes intensificam os
laços de amizade e parentesco entre aqueles que residem na cidade e os que permaneceram
na aldeia em consonância aos seus sentimentos de pertencimento étnico, sendo as fronteiras
étnicas acentuadas em situações específicas. O objetivo deste trabalho foi compreender
as redes de relações sociais construídas por esses jovens indígenas Potiguara na região
metropolitana da capital paraibana, com o intuito de interação na espacialidade urbana que
envolve as cidades de Santa Rita e João Pessoa. Este estudo que fez parte da minha
dissertação em Antropologia Social intitulada “índio é índio onde quer que ele more”: uma
etnografia sobre índios Potiguara que vivem na região metropolitana de João Pessoa. A
pesquisa é permeada com a literatura científica de Barth (2000), Ericksen (2010), Goffman

85
(1983), Hannerz, Simmel (1996) e Velho (1994), além de outros autores que dão sustentação
teórica a esse trabalho.

Introdução

Em 2010 quando fiz meu estágio curricular na FUNAI de João Pessoa tive o primeiro
contato com os indígenas Potiguara na cidade e que foram se fortalecendo nesse órgão
indigenista até o ano de 2011 quando chegou ao fim a minha permanência naquela unidade.
Mas em 2014, ingressando nos meus estudos de mestrado em Antropologia Social no
campus I da UFPB comecei a ter contato e me aproximar dos jovens estudantes Potiguara
que estudavam nesse mesmo espaço acadêmico, inclusive no curso de Licenciatura em
Ciências Sociais2 que estava fazendo à noite e em seguida com outros jovens que
participavam de reuniões no Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares
(SEAMPO).
Nesse curso de Ciências Sociais tive a oportunidade fazer amizade com a jovem
indígena, Jaine Azevedo (22 anos), que mora na Aldeia Três Rios localizada no município de
Marcação, que contribuiu muito com minha pesquisa, indicando alguns indígenas Potiguara
que vivem na cidade, até uma de suas tias, irmã de sua mãe, que mora na cidade de Bayeux,
região metropolitana da capital paraibana, porém ela [Jaine] disse que não costumava visitá-
la,e com isso, indicou um amigo, Antonio Altino (23 anos), da Aldeia Tramataia, localizada
em Marcação. Jaine falou que ele certamente teria mais informações sobre índios na cidade,
uma vez que é considerado líder dos estudantes indígenas no Campus I da universidade, e
reside em João Pessoa há uns dois anos no bairro do Castelo Branco, situado bem
próximo a UFPB. Foi justamente o jovem Antonio Altino que começou a indicar o “caminho
das pedras”, ou melhor, um possível “caminho dos jovens indígenas” que vivem nesse fluxo
entre a cidade e aldeia. É preciso deixar claro que não podemos levar isso como um roteiro
generalizante, mas partindo do princípio de que se trata de um norteamento para que eu
pudesse chegar aos indígenas Potiguara que estão vivendo na cidade. Altino faz parte do
SEAMPO e numa tarde de dezembro de 2014 na Universidade revelou que existem vários
estudantes indígenas Potiguara vivendo em João Pessoa e que muitos deles estão aqui
porque tem o apoio de familiares que já estava morando na cidade, enquanto outros moravam
em uma espécie de “república” como é o caso dele que divide uma casa num bairro próximo

86
da UFPB com mais três estudantes indígenas: ele, sua irmã [Jaqueline Oliveira] que
faz Biologia, um primo [Madeirinho] e um amigo que ele considera como primo.
Segundo Altino, ele é “primo por afetividade”. Mas adiante aprofundarei um pouco mais sobre
relações de parentesco e afinidade entre os jovens indígenas Potiguara.
A partir das minhas observações no SEAMPO constatei que esses jovens indígenas
Potiguara trouxeram suas mochilas carregadas, preenchidas com cadernos, lápis e canetas,
mas também (algumas vezes) com maracás, cocares, potes de tinta à base de jenipapo e
urucum, assim como suas bagagens experienciais da aldeia e, desse modo, circulam pelas
cidades, produzindo suas redes a partir das interações vicinais, conforme relatos de Jaqueline
Oliveira e seu irmão, Antonio Altino, e de amizade proporcionada por ações de gentileza,
solidariedade num campo de ajuda mútua que aos poucos vai sendo construído no espaço
acadêmico e por parentes consanguíneos ou de afinidade que dão assistência a esses
universitários na região metropolitana de João Pessoa. E nessa circulação dos estudantes
indígenas, os laços de parentesco e amizade vão se fortalecendo e produzindo ramificações
que extrapolam os limites da espacialidade urbana. Desse modo, nas interações construídas
pelas redes de relações sociais, a reciprocidade constitui-se como um elo que aproxima
amigos indígenas e não- indígenas, assim como os parentes, criando um processo contínuo
de produção e reprodução dos materiais culturais que manifestam seus sentimentos de
pertencimento, principalmente quando esses jovens estão reunidos no SEAMPO na UFPB
para participarem de projetos de extensão e grupo de trabalho indígena - GT Indígena, que
tem como objetivo desenvolver atividades referentes à formação de jovens indígenas que
ingressaram na UFPB e que atualmente estão frequentando diferentes cursos dos Campi I e
IV da referida Instituição Pública de Ensino. Neste ambiente extra-campi também pude
perceber como ele é propício ao debate sobre identidade étnica indígena, pertencimento
étnico, etnicidade, contatos interétnicos e também assuntos pertinentes ao Movimento de
Política Indígena no Nordeste. Posto isso, entrei em contato com o coordenador do SEAMPO,
Antonio Mendes, e fui conhecendo, tendo um contato mais próximo com os estudantes
indígenas Potiguara, tais como Bruno Rodrigues, Tamara Rodrigues, Adriana Gabriel, Neto,
Jaqueline e Altino, juntamente com Capitão (líder indígena Potiguara) que fazem parte desse
trabalho e que estão dispostos a aprender cada vez mais sobre o seu Povo Indígena, assim
como procuram entender melhor como funciona o sistema de acionamento de programas ou
assistências destinados aos jovens estudante

87
indígenas universitários da UFPB. Por exemplo, como, onde e quando o estudante universitário
indígena pode solicitar informações para se cadastrar e ter acesso ao Restaurante Universitário
(R.U.) e outro ponto de destaque está relacionado ao Auxílio
Moradia, vaga na Casa do Estudante para as jovens indígenas ou a Residência Universitária.
Estes são alguns exemplos simples, mas que podem se tornar complexos para quem não
conhece um pouco como funciona o sistema burocrático da administração de uma
universidade pública federal. A partir do entendimento desse processo administrativo da UFPB
alguns estudantes indígenas hoje são capazes de repassar as informações precisas para os
jovens indígenas que estão ingressando recentemente no âmbito acadêmico. Isto só foi
possível após um período de agruras que alguns passaram (e ainda passam) durante a sua
graduação de ensino superior. Vale ressaltar que em alguns casos vivenciados por esses
jovens indígenas Potiguara não poderão ser solucionados a base de uma “cartilha informativa”
sobre como e quais os caminhos eficazes para reivindicar seus direitos estudantis numa
universidade pública. Requer também um maior traquejo, sociabilidade, arranjos e alianças
produzidas nas relações sociais realizadas por eles no espaço universitário. Em suma, este
estudo está focado nas vivências e construção de redes de seis jovens indígenas Potiguara
que estudam na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). No estudo desses seis casos
buscou-se compreender os entrelaçamentos de uma rede de solidariedade que foi sendo
construída na capital, intensificando, quando necessário, a pertença étnica.
A universidade e a própria aldeia funcionam como um campo social e de ações sociais
que muitos jovens indígenas se relacionam e se apropriam interagindo, através do seu
conjunto de saberes. A acessibilidade oferecida pela universidade faz uma ponte para unir as
relações sociais entre docentes e estudantes. Essa troca de experiências entre esses
dois sujeitos acaba engendrando e fortalecendo laços de amizades, companheirismo
advindo das relações humanas possibilita a criação de um campo de oportunidades
muito profícuo para os jovens Potiguara.
A relação desses jovens estudantes indígenas com a universidade também está
relacionada com as interações construídas com professores da UFPB, através de cursinhos
pré-vestibulares e pesquisas acadêmicas, além da presença de pesquisadores de várias
universidades e faculdades da Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Essa rede pode
ser estendida por outros atores externos/internos que vivem também nesse fluxo entre aldeia
e cidade e, sendo assim, mantém uma inter-relação quase que constante com eles, tais como
comerciantes, participação em campeonatos de futebol, surf e outros esportes, além das

88
relações de parentesco que podem servir de ponte para contatos, interações, amizades com
outros indígenas que vivem num espaço urbano, por exemplo, no intuito de conseguir
algum apoio logístico ou moradia, possibilitando o estudo na cidade e consequentemente a
construção de redes nessa espacialidade.

Os novos caminhos dos jovens indígenas Potiguara

O objetivo desse estudo foi demonstrar como foram construídas as redes de relações
sociais desses jovens indígenas Potiguara na região metropolitana da capital paraibana
no intuito de interagir, criar uma sociabilidade no espaço urbano que envolve as cidades de
Santa Rita e João Pessoa.
A tessitura metodológica dessa pesquisa foi construída seguindo um caráter etnográfico
com critérios relacionados à pesquisa descritiva com enfoque qualitativo que tem como
objetivo descrever dados etnográficos sobre jovens indígenas da etnia Potiguara que vivem
numa circulação entre a aldeia e a região metropolitana de João Pessoa, Paraíba. Seguindo
esse direcionamento, pensamos a partir de noções como as de fluxos, redes e processos.
Neste sentido, deve-se imaginar a cidade como um cenário de múltiplas articulações e que os
atores sociais estão buscando adaptar-se, mover-se num fluxo de interações constante,
dinâmico e que sempre está ocorrendo numa atmosfera espacial urbana, como veremos mais
adiante. Segui com rigor o Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia

(ABA) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Parecer nº

695/2008/CONEP), e com isso, apresentei e entreguei uma cópia do meu projeto de pesquisa
para o público presente, associação ou famílias, e expliquei o objetivo da pesquisa, além disso
informei os procedimentos metodológicos que foram adotados ao longo da investigação. Após
essa explanação e de algumas perguntas (que surgiram naturalmente) acerca da pesquisa,
expliquei os procedimentos necessários para a técnica de coleta de dados prevista para a
primeira etapa do trabalho de campo e utilizei, quando se fez necessário e propício, o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

89
A observação participante supõe a interação pesquisador/pesquisado. As informações
que obtém, as respostas que são dadas às suas indagações, dependeram, ao final das contas,
do seu comportamento e das relações que desenvolve com o grupo estudado. Uma
autoanálise faz-se, portanto, necessária e convém ser inserida na própria história da pesquisa.
A presença do pesquisador tem que ser justificada (WHYTE, 2005, p. 301).
As Entrevistas Narrativas (EN) foram realizadas com lideranças indígenas diretamente
envolvidas no processo de organização social e política, tais como membros da UFPB,
professores, estudantes indígenas universitários e anciãos de famílias que vivem em João
Pessoa há muito tempo. Destarte, utilizei quando foi necessário e conveniente, o gravador de
voz para registro das informações, desde que permitido pelos índios, após o devido
esclarecimento feito pela minha parte com leitura e entrega do TCLE. Segundo Guber (2005,
p. 167) “o investigador pode realizar o registro durante a entrevista [...] por meio de um
gravador, o que assegura uma fidelidade quase total (quase porque podem aparecer
problemas técnicos de
nitidez na gravação ou na dicção) do verbalizado”19.

Outra fonte de obtenção de dados que merece destaque é o uso das tecnologias de
comunicação. Além de telefonemas, a troca de mensagens instantâneas no ambiente virtual,
tais como e-mail, facebook e whatsapp, favoreceu o acompanhamento contínuo das ações
desse jovens indígenas e o conhecimento das dinâmicas sociais em curso. Esses recursos
tecnológicos expandem a definição da pesquisa de campo, complexificam a delimitação do
estar lá e do estar aqui (GEERTZ, 1978) e constituem novas possibilidades de acesso a
informações para a pesquisa.
Os fatos sociais relevantes foram anotados no diário de campo e também com o auxílio
de um aplicativo do meu celular smartphone que tem a função do bloco de notas. Estas
anotações constituíram reflexões iniciais, esboços preliminares de ensaios interpretativos
que integraram a minha dissertação. Isto porque “o diário, parte dele, quando você não registra
apenas datas e o que você fez no dia, quando você põe o material etnográfico dentro dele,
passa a ser muitas vezes um pré-texto. E um pretexto para um artigo, como sugere a
homofonia das palavras...” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 197).

19
Tradução de “El investigador puede realizar el registro durante la entrevista [...] por medio de un
grabador, lo que le asegura una fidelidad casi total (casi, porque pueden aparecer problemas técnicos de nitidez
en la grabación o en la dicción) de lo verbalizado”.

90
A opção que adotei e os caminhos que percorri nessa direção foram permeados pela
atenção a um elemento decisivo na minha pesquisa: trata-se do exercício antropológico na
cidade e aldeia. Esse, dado pela relevância que possui na análise da etnicidade dos
indígenas Potiguara de João Pessoa e região metropolitana merece algumas
considerações. Por meio das reflexões que seguem, evidenciamos os princípios que
nortearam a prática etnográfica desenvolvida.
No que se refere ao método de análise preferi optar pelo o estudo de caso detalhado,
tendo pontos norteadores os estudos de Max Gluckman e Van Velsen, pois considero serem
os mais propícios e eficazes para o estudo analítico dessa pesquisa etnográfica.
De acordo com Van Velsen (1967, pp. 439-440), “À medida que a pesquisa de campo
tornou-se aceita como método de coleta de material antropológico, a ênfase, que antes se
concentrava no estudo das sociedades como um todo, foi gradualmente deslocada
para comunidades específicas ou segmentos de sociedades”. Deste modo, o autor demonstra
que para aqueles antropólogos com enfoque estruturalista era necessário que houvesse uma
delimitação para que o estudo etnográfico, a investigação, fosse realizada levando em
consideração a “perspectiva estruturalista de referência” citada por Fortes (1953, p.39 apud
VAN VELSEN, 1963, p. 440):

[...] o procedimento para a investigação e análise por meio do qual o sistema


social pode ser percebido como uma unidade feita por partes e processos, que estão
vinculados uns aos outros por um número limitado de princípios de ampla validade em
sociedades homogêneas e relativamente estáveis.

Ao citar Fortes, Van Velsen demonstra que as análises estruturais estã interessadas
nas relações sociais entre posições sociais ou de status e não nas relações reais. Pode-se
verificar isso com mais clareza no ensaio citado acima de Max Gluckman sobre a Zululândia
moderna onde ele consegue identificar toda rede de relações sociais, status, relação de
interdependência que sedimentará e dará forma a estrutura social daquela região da
zululândia a partir da inauguração da ponte naquela região.
Gluckman (1958) define uma situação social da seguinte forma:

[...] em algumas ocasiões, o comportamento de indivíduos como membros de uma


comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras ocasiões.
Dessa forma, a análise revela o sistema de relações subjacente entre a estrutura social
da comunidade, as partes da estrutura social, o meio ambiente físico e a vida fisiológica
dos membros da comunidade (GLUCKMAN, 1958, p. 252).

91
Posto isso, percebe-se de forma nítida que houve uma transformação porque ao invés
de seguir uma metodologia genealógica o autor sugere o foco na análise situacional ou estudo
de caso detalhado buscando a análise de redes de relações sociais.
Busco agora demonstrar o desenvolvimento dessa pesquisa a partir dos casos
empíricos desses seis jovens estudantes indígenas universitários que fizeram parte do meu
trabalho de campo que, nesse caso, constituem o meu objeto de estudo.
O fato do indígena estar vivendo na cidade não apaga a sua identidade indígena, pelo
contrário, em algumas situações a reforça, porque pelo que percebi na cidade muitas vezes
a identidade étnica indígena torna-se mais intensa por existir, por exemplo, entre os
estudantes indígenas Potiguara uma solidariedade indígena, um sentimento de pertencimento
engendrado sob a égide de defesa do seu grupo étnico diante de algumas dificuldades
impostas por uma “sociedade branca” universitária na capital paraibana. Nesta perspectiva,
constatei em meu trabalho de campo que a solidariedade entre os indígenas que estão na
cidade é muito forte, pois eles buscam uma interação social, por exemplo, através de uma
visitação a um parente que vive na cidade vizinha, uma hospedagem a um estudante,
demonstrando gestos de generosidade e consideração pela família, participando de eventos
culturais e sociais, tais como conferências indígenas, aniversários, casamentos, batizados,
pontos de encontro na universidade para
estudar, enfim, situações sociais específicas que ocorrem na cidade e que tem objetivo de
interagir, manter contato com seus parentes, amigos e estreitar os laços de parentesco por
intermédio dessas estratégias construídas por redes de solidariedade.
Os estudantes indígenas que vivem na cidade, sempre que possível, fazem questão de
participar desses eventos, principalmente aqueles de cunho cultural numa tentativa de
reafirmar e valorizar mais ainda a sua identidade étnica, mesmo vivendo numa espacialidade
urbana carregada de preconceitos e discriminação.

Teve um grupo (indígenas Potiguara) que vieram se apresentar aqui (na universidade)...
aí eu fui falar da minha cultura. Teve outro movimento (indígena) lá no centro (da
cidade) e depois outro na Assembleia (Legislativa). Aí eu estava de vez em quando
nesses eventos aí. Eu acho que você precisa mesmo valorizar essa questão de ser
indígena na cidade porque se você não valorizar e acreditar que é uma coisa banal e
que não tem valor, você vai se passar como um não-indígena. Ser indígena na cidade
é um pouco complicado, né?!” (Adriana, João Pessoa, 18/12/2015).

92
Ao questioná-la sobre o por que ela acha complicado, Adriana responde da seguinte
forma: “Porque tem a questão do preconceito. E pra você que viveu na aldeia que participou
dos costumes e que sabe que sua família também é indígena...aí você fica meio
acanhado...fica meio desmotivado. Mas aí hoje em dia eu já respondo e começo a falar, né?!
De sua história e que aquela pessoa precisa conhecer melhor a história [da etnia indígena
Potiguara]” (Adriana, João Pessoa, 18/12/2015).

Tentando esclarecer melhor esse entendimento sobre o acionamento da identidade


étnica indígena se, por exemplo, é em todo lugar na cidade que ela [Adriana] afirma que é
indígena, a jovem estudante relata que “Não. Não é em todo canto não. Porque tem canto que
você vê, percebe que aquela pessoa não vai te discriminar que ela não tem preconceito...que
diz: Ah, você é índia? Que legal!te aceita, né?!” (Adriana, João Pessoa, 18/12/2015).
Nesses casos, como destaca Bourdieu (1989, p. 125) quando se refere que a identidade
étnica heterogênea que está em jogo não é “[...] a conquista ou a reconquista de uma
identidade, mas a reapropriação coletiva deste poder sobre os princípios de construção e de
avaliação de sua própria identidade [...]”. E para reforçar esse argumento, o autor (1989, p.
126) discorre sobre a “estigmatização que produz o território”, onde poderíamos contextualizar
para nossa discussão sobre indígenas na cidade e demonstrar que pelo fato dele estar
vivendo no espaç urbano não implica necessariamente que ele deixou ou está se
distanciando da sua etnia, por exemplo, mas o que acontece com quem está na cidade pode
ser uma “valorização de sua identidade étnica” e que, neste caso, apresenta-se de forma
positiva.
Como no caso de Adriana Gabriel que, segundo ela, o fato de estar morando na cidade
faz com que ela busque, participe de eventos de movimentos indígena e de reuniões no
SEAMPO. “Quando eu fui pegar uma declaração de que sou indígena para poder
comprovar na UFPB o cacique ressaltou a importância de participar de eventos, reuniões
dos movimentos indígena para manter próxima desses eventos” (Adriana, João Pessoa,
18/12/2015)
Seguindo o pensamento de Bourdieu (1989) é preciso que haja uma valorização e
sentimento de pertença étnica resistente para que os indígenas que vivem em centros urbanos
possam “inverter o sentido e o valor das características estigmatizadas” (idem). Com relação

93
à estigmatização ocorrida na cidade, como afirma a estudante indígena Potiguara, Adriana
Gabriel20:

Tenho orgulho de fazer parte de uma família indígena não nego que sou pra ninguém...
apesar de que em muitos momentos passar por situações desagradáveis...então é você
se adequar ao ritmo da cidade mesmo não pertencendo a ela...Mas é também saber
driblar o preconceito...Um índio na cidade acaba tendo uma vida diferente da vida que
poderia ter na comunidade em questões de comportamento modo de falar e se
relacionar com as pessoas...dependendo da cultura no modo de vestir de pensar.
(Adriana, João Pessoa, 27/05/2015)

A fala da jovem Adriana ressoa pela descoberta do autorrespeito, isto é, reconhecer o


fato de assumir a sua identidade étnica indígena é algo que parece ser dignificante para si e
também para sua família num processo de pertencimento étnico que, segundo Cardoso de
Oliveira (2006, p.55), “É quando a busca pelo respeito de si pelos outros começa pela
descoberta do autorrespeito, encontrando nele a dignidade e a honra indígena tão vilipendiada
no passado, e hoje, ao que tudo vem indicando encontra-se em pleno processo de
recuperação”.
Ao mencionar “ritmo da cidade” e enfatizar a situação de “driblar o preconceito”, a
estudante indígena Potiguara pode estar moldando uma máscara social, mas antes desse
processo de moldagem, deve haver uma preparação que ocorre através da interação que a
jovem indígena adquiriu na sociedade e, send assim, esse contato interétnico constante
possibilitará um ganho de experiência durante a sua vivência no espaço urbano. Nesta
perspectiva, o conceito de etnicidade apresenta-se aqui de modo bastante oportuno e eficaz
para esse caso quando a jovem refere-se que deve “entrar no ritmo da cidade”, ou seja,
moldar-se socialmente para poder conviver, manter relações sociais numa estrutura
organizacional distinta da aldeia onde vivia e mesmo assim não perder a sua identidade étnica,
o elo parental com a sua rede de relações étnicas indígena e práticas culturais afirmadas
desde a sua infância na aldeia. Neste contexto, “etnicidade provou ser um conceito muito útil,
uma vez que sugere uma situação dinâmica da variável de contato, conflito e competição, mas
também acomodação mútua entre os grupos21”. (ERIKSEN, 2010, p. 13)

20
Informação obtida via WhatsApp no dia 27 de maio de 2015.
21
Tradução livre “ethnicity has proven a highly useful concept, since in suggest a dynamic situation of variable
contact, conflict and competition, but also mutual accommodation between groups”.
(ERKSEN, 2010, p. 13).

94
Nesse sentido, podemos perceber que no espaço urbano existe um leque abrangente
de relações sociais, onde muitas vezes presenciamos uma convivência multiétnica, como por
exemplo, judeus, muçulmanos, indígenas, ciganos etc. em que a identidade étnica pode ser
ativada a partir do momento que o indivíduo sinta necessidade. A partir daí ele de forma
individual ou junto com seu grupo étnico poderá reivindicar seus direitos que são recorrentes
de sua identidade étnica indígena.
Eriksen (2010, p. 14), ainda reforça expressando que “o conceito de etnicidade
pode ser dito para unir duas lacunas importantes na antropologia social: ela implica um foco
na dinâmica ao invés de estática, e relativiza as fronteiras entre
‘nós’ e ‘eles’, entre os modernos e tribais22”.

Então, nesse caso, como demonstra Eriksen (2010, pp. 16-17), a “Etnicidade é um aspecto da
relação social entre pessoas que se consideram como essencialmente distintas dos membros
de outros grupos dos quais eles estão conscientes e com o qual eles entram em
relacionamentos23”. Neste sentido, o indivíduo sabe que grupo étnico ele pertence, mas para
poder entrar em contato, por exemplo, com outra organização social deverá manter uma
interação social, respeitando os aspectos políticos, econômicos, culturais daquela sociedade,
porém sem perder a sua identidade étnica indígena. Desta forma, o indígena vive num jogo
identitário, mantendo relações num contato interétnico, interagindo, estabelecendo redes de
relações sociais para que possa dar sustentação a sua identidade social naquele ambiente
citadino, por exemplo. A construção de rede de amigos no seu bairro, a sua vizinhança,
sindicato de associação de moradores, rede social dos amigos da empresa onde trabalha
etc. são alguns exemplos significativos que muitos indivíduos que pertence a um grupo
étnico poderia utilizar. Então, quando a relação social tem um “diferencial étnico”, como um
elemento étnico, é porque a identidade étnica foi ativada numa situação específica, onde
surgiu a necessidade de acioná-la. Sendo assim, “o conceito de etnicidade não só pode nos
ensinar algo sobre similaridade, mas sobre as diferenças” (ERIKSEN, 2010, p. 18).
Baseado nisso, ao ser inserido num contexto urbano o jovem indígena busca meios de
se ajustar, conviver naquele espaço citadino e nesses casos alguns antropólogos interpretam

22
Tradução livre de “the concepts of ethnicity can be said to bridge two important gaps in social anthrpology: it
entails a focus on dynamics rather than statics, and it relativises the boundaries between ‘Us’ and ‘Them’,
between moderns and tribals” (ERIKSEN, 2010, p.14).
23
Tradução livre de “Ethnicity is an aspect of social relationship between persons who consider themselves as
essentially distinctive from members of other groups of whom they are with whom they enter into relationships”
(ERIKSEN, 2010, 16-17).

95
essa ação a um inevitável processo de aculturação, perda daquilo que caracteriza um
indivíduo ou um grupo como indígena, o que não procede, porque segundo Eriksen (2010,
p.24) “Por aculturação, eles significam a adaptação dos imigrantes ao seu novo contexto
cultural. Poderia, mas não tem que,
eventualmente, levar toda assimilação ou perda de distinção étnica24”. Desta forma, é preciso
compreender que o espaço urbano tem uma configuração, ou seja, uma organização social
que produz seu próprio mecanismo de ordem social numa dinamicidade intensa impulsionada
por fatores sociopolíticos e econômicos advindos do capitalismo.
Após esse entendimento sobre o processo de preparação, evidenciado nesse caso pela
etnicidade, do qual a jovem indígena Potigura supostamente passou para entrar no “ritmo da
cidade”, alcançando em seguida um estágio da construção da “representação” no intuito de
conseguir desvencilhar-se das teias do preconceito e do processo discriminatório que estão
difundidos e eivados na espacialidade urbana. Neste caso, Goffman (1996, p. 27) diz que “a
concepção que temos de nosso papel torna-se uma segunda natureza e parte integral de
nossa personalidade. Entramos

no mundo como indivíduos, adquirimos um caráter e nos tornamos pessoas”. Acentuando


ainda mais essa relação vivida num contexto urbano o autor expõe sua reflexão teórica sobre
“fachada” ou utilizando, de modo mais adequado, o termo “representação” para se referir a
“toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença
contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre este alguma
influência”. O autor (1996, p. 29) então incute a denominação “fachada” para designar um
“equipamento expressivo de tipo padronizado intencional (o “ritmo da cidade”) ou
inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação”. Esta representação
social é construída não apenas por essa jovem indígena, mas por todos os outros jovens
Potiguara que tive contato na cidade.
Vale ressaltar também que além do fato de estar num ambiente novo, temos que
procurar compreender que o jovem indígena tenta viver sua vida no espaço urbano como
qualquer outro indivíduo, mantendo relações sociais, fazendo amizades na universidade,

24
Tradução livre de “By acculturation, they meant the adaptation of immigrants to their new cultural context. It
could, but did not have to, eventually lead to total assimilation or loss os ethnic distinctiveness”.

96
eventos religiosos, culturais, enfim, buscando interações sociais que acabam criando uma
sociabilidade. De acordo com Simmel (2006), discorrendo sua análise sociológica a respeito
do conceito de sociabilidade, compreendendo que a sociedade pode ser definida como o
somatório dos indivíduos em interação, onde nesse agrupamento haverá uma separação
baseada em duas diferenciações básicas: forma e conteúdo. Baseado nisso, decorre outra
caracterização que é o fato de a interação se constituir a partir de dois objetivos centrais, a
saber:
[...] determinados impulsos ou da busca de certas finalidades, tais como instintos
eróticos, interesses objetivos, impulsos religiosos, objetivos de defesa, ataque, jogo,
conquista, ajuda, doutrinação e inúmeros outros fazem com que o ser humano entre,
com os outros, em uma relação de convívio, de atuação com referência ao outro, com
o outro e contra o outro, em um estado de correlação com os outros. (SIMMEL, 2006,
pp. 59-60).

Nesse sentido, a sociabilidade também se faz presente naquele ambiente citadino


convivendo com outros cidadãos onde busca interagir, criar vínculos afetivos com seus
vizinhos, construir laços de amizade, enfim, produzindo hábitos característicos da socialização
que são fundamentais para o indivíduo viver numa sociedade.
Durante o meu trabalho de campo verifiquei durante minhas entrevistas e também
quando estive presente nas aldeias, acompanhado muitas vezes por esses jovens indígenas
que vivem na tambem região metropolitana de João Pessoa, que os Potiguara estão
arraigados ao sentimento de pertencimento étnico, independente das circunstâncias em que
vivem no espaço urbano. Este sentimento de pertencimento está relacionado à fonte de sua
identidade étnica indígena, que mantém a permanência e a continuidade.
Segundo Roberto Cardoso de Oliveira (2006, pp. 27-28), onde diz que:

Quer a identidade seja pensada no âmbito dos estudos de etnicidade, como bem
ilustram as ideias de Cohen; quer ela se insira em contextos relacionais, não obstante
passíveis de observação e de registro etnográfico, como no caso de interações
socioculturais envolvendo relações contrastantes, a nos basearmos nas pesquisas
de Barth e de seus colaboradores, o certo é que para as investigações realizadas por
muitos de nós, antropólogos, o conceito de identidade étnica tem sido de inegável
eficácia (grifo nosso).

De acordo com João Pacheco de Oliveira (2004, pp. 32-33, grifos meus):

A etnicidade supõe necessariamente uma trajetória (histórica e determinada por


múltiplos fatores) e uma origem (uma experiência primária, individual, mas que
também está traduzida em saberes e narrativas aos quais vem se acoplar). O que
seria própria das identidades étnicas é que nelas a atualização histórica não anula o

97
sentimento de referência a origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica
e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade.

Outro fato relevante no contexto urbano, é que a identidade torna-se situacional, pois
em um determinado momento o indígena pode reivindicar os seus direitos que estão
resguardados no Estatuto do Índio e na Carta Magna brasileira de
1988, porém em outra situação ele pode omitir sua identidade étnica indígena para
restabelecer outro contato envolvendo demandas e interações, por exemplo, com outros
atores externos e, dessa forma, estabelecer um jogo identitário provocado por diferentes
circunstâncias sociais no intuito de alcançar seus direitos estabelecidos por lei. E em outro
momento ele poderá acionar sua identidade social.
Vale ressaltar que a identidade étnica surge de forma situacional não apenas no espaço
urbano, pois no território étnico ela também é situacional, por exemplo, quando o indígena
necessita ir ao posto de saúde na aldeia para tomar vacina; para matricular o seu filho ou filha
na escola indígena; para receber cesta básica de alimentos; na solicitação de uma ajuda de
custo para a produção agrícola e para a vacinação de um bovino contra a febre aftosa, por
exemplo, ou até mesmo quando ocorre censo populacional promovido por lideranças
indígenas ou pelo IBGE. Estes são alguns casos em que a identidade indígena pode ser
acionada no território étnico dos Potiguara. Pegando gancho nessa questão sobre identidade
social sigo o rastro do pensamento de Barth (1995, p. 2), que foi transcrito por David Maybury-
Lewis “ser uma pessoa indígena não significa carregar uma cultura indígena em separado. Ao
contrario, isso significa que, provavelmente, em certas ocasiões você diz ‘essa é minha
identidade étnica, esse é o grupo ao qual eu pertenço’”25.
Nessa perspectiva que envolve uma abordagem em torno da identidade

étnica indígena, etnicidade e construção de redes de relações sociais num contexto urbano
tracei uma pequena análise baseada em entrevistas concedidas por seis estudantes indígenas
Potiguara que estão cursando em diversas áreas de ensino superior distintas na UFPB e
que participam do SEAMPO, a saber: Jaqueline Oliveira (22 anos) que estuda Biologia;
Antonio Altino (23 anos) Administração;
Bruno Rodrigues (24 anos) Ecologia; Tamara Rodrigues (25 anos) Comunicação em Mídias
Digitais; Adriana Gabriel (27 anos) Serviço Social e Neto (19 anos) Licenciatura em Física.

25
Tradução de “Being an indigenous person does not mean that you carry a separate, indigenous culture. Instead,
it probably means that at some times, at some occasions, you say, this is my ethnic identity. This is the group to
which I wish to belong”.

98
Esses estudantes indígenas universitários acabam apresentando situações de discriminação
racial vivenciados na UFPB que, muitas vezes, eclode de forma acentuada na sala de aula a
partir do momento em que o jovem indígena expõe sua identidade étnica, e a partir daí ocorre
à segregação, ficando de um lado “os de cor” como destaca o estudante indígena Bruno
Rodrigues quando sofreu discriminação em sala de aula e acabou se juntando a outros
estudantes que também passaram por esse processo. Ao perguntar-lhe como foi sua
sociabilidade nos primeiros dias na universidade ele conta que,

Então, ao chegar no curso a primeira coisa que senti foi a exclusão...e acabou que até
o processo de inclusão na turma...digo em partes da turma isso gerou, demorou uns
dois meses, dois meses e meio até esse processo de inclusão. Porque quando
começou o curso a turma foi logo se dividindo, né?! Se subdividindo em grupos. E aí
acabou ficando eu um amigo de Cabo Verde
(país da África) e outro amigo que era esposo de Vaval todos eram de cor (refere-se a
cor negra) (Bruno, Aldeia Galego, 12/12/2015).

Pautado nesse diálogo, podemos inferir que o fato de ter a pele mais escura
aproximando-se de um tom de pele negra ele [Bruno] foi de imediato aproximando- se dos
estudantes cabo verdeanos por ser excluído do grupo social “branco”, onde ficam aqueles
jovens estudantes que, muitas vezes, se consideram de classe dominante, ostentando
ainda um “status quo” herdado por uma geração que se

supõe aristocrática que, às vezes, só possui o sobrenome da família como potencial agregador
de relações na sociedade, além da aparência de burguês como diferenciador de classes
sociais, aspectos que podem ser considerados suficientes para se manter um status
diferenciado na sociedade paraibana.
De acordo com Jaqueline Oliveira, o fator primordial para o seu ingresso juntamente
com o de seu irmão, Altino Oliveira, foi o cursinho Pré-Vestibular ofertado pela UFPB no
Campus IV, em Rio Tinto, no ano de 2010. Ao ingressar na Universidade a jovem estudante
confessa que estava um pouco apreensiva porque conhecia quase ninguém na capital e
também sabia que a questão financeira poderia dificultar os estudos. “Eu só conhecia o
Douglas, que tá fazendo doutorado aqui na região (T.I. Potiguara)” (Jaqueline, Aldeia
Tramataia, 15/12/2015). Segundo a jovem estudante, ela conheceu o Douglas (não-indígena)
desde quando ele estava cursando a sua graduação em etnobiologia no ano de 2007. Durante
aquele período em que o pai de Jaqueline Oliveira, seu Nato, junto com ela auxiliava o jovem
graduando, mostrando-o com toda sua experiência os tipos de manguezais e épocas de

99
reprodução dos caranguejos existentes naquela área das T.I. Potiguara. Isto, no meu
entendimento, possivelmente fez com que o Douglas ficasse impressionado com as suas
habilidades na pesca, coleta de caranguejos, além de seus conhecimentos sobre os
manguezais e estuário.
Diante dessa amizade construída por Douglas e Jaqueline Oliveira foi possível
moldar seus caminhos no estudo, pois através da sua pesquisa acadêmica sobre o
caranguejo-uçá113 e sua época de reprodução ela [Jaqueline] foi se interessando pelo o
estudo de etnobiologia e com o incentivo e apoio do jovem pesquisador acabou escolhendo o
curso de Biologia da UFPB. Existe aqui uma relação de reciprocidade, de amizade que, pelo
o que eu pude observar durante minhas visitas a aldeia Tramataia e por alguns diálogos114
que mantive com o Douglas, foi produzida no decorrer do tempo, onde construíram laços de
amizade muito fortes entre ele [Douglas] e a família de Jaqueline Oliveira, onde por várias
vezes ficou hospedado na casa dos seus pais na aldeia Tramataia.
De acordo com Sahlins (1983), a reciprocidade incorpora interesse e desinteresse
concomitantemente, assim como indivíduos, objetos, sentimentos e relação social. Sendo
assim, a reciprocidade pode ser interpretada como algo bastante complexo e assimétrico, e
não necessariamente uma relação simétrica, equilibrada entre doador e recebedor, porque
nestes casos apresentam variações e
assimetrias, tal qual a cultura, a história e a tradição de um povo. Deste modo, o autor propõe
um quadro analítico seguindo uma tipologia que se tornou referência para muitas análises
contemporâneas sobre o papel da reciprocidade na conduta individual e coletiva dos atores
sociais na contemporaneidade.
No ano de 2012 quem ingressou na academia foi Bruno Rodrigues (24 anos) que
escolheu o curso de Engenharia Ambiental, pois segundo ele tem “uma vocação voltada para
o meio ambiente e quem sabe por um lado ser ambientalista na área, né?!” (Bruno, Aldeia
Galego, 12/12/2015). Quando soube do resultado da aprovação ele afirma que ficou pensando
nesse novo desafio a enfrentar longe de casa:

Primeiramente quando decidi sair da comunidade (Aldeia Galego) e ir pra faculdade


(UFPB) eu já fui fazendo aquela preparação psicológica, porque você entende que vai
encontrar apoios e não-apoios...achar que as portas vão bater na sua cara. Mas aí eu
já tinha parceiros...Rafael, amigo nosso [...] conheci ele num campeonato de futebol
juntos no mesmo time e aí criamos laços de amizade e dali ele se dispôs em receber
na casa dele (em João Pessoa). E também amigos que já moravam em João Pessoa e
que se dispuseram a me acolher na chegada (na Capital). Então, foi assim aquela coisa
meio louca... você vai para um local, onde você não conhece nada, mas mesmo assim
você se lança, se joga a esse local. É tanto que os apoios chegaram, mas de forma...eu

100
falo assim, até mesmo de forma não pequena, mas na proporção em que me lançou
também a conhecer novos horizontes, a me locomover, a conversar e a procurar uma
forma de viver fora das comunidades. De se adaptar ao mundo que você não está
acostumado (Bruno, Aldeia Galego, 12/12/2015).

Ao chegar à capital paraibana Bruno Rodrigues estava certo que teria o apoio do seu
amigo Rafael (professor de História do cursinho Pré-Vestibular) que conheceu em Rio
Tinto, participando de um campeonato de futebol, assim como também poderia contar com
a ajuda de Capitão, líder indígena Potiguara que trabalha na UFPB. Esse amparo
proporcionado por amigos e parentes deram-lhe a princípio uma sustentação, um apoio moral
que foi fundamental, servindo de fio condutor para que ele a partir daí começasse a criar sua
rede de relações sociais na capital e se sentisse motivado e determinado a enfrentar esse
desafio de viver fora de casa num lugar desconhecido sem parentes por perto.
Vale ressaltar aqui a importância da comunicação exercida pelo o estudante indígena
de Engenharia Florestal da UnB, Tanielson Rodrigues, mais conhecido em sua aldeia Galego
[T.I. Potiguara] por Poran Potiguara (irmão de Bruno e Tamara), que está em Brasília desde o
ano de 2009. Segundo Poran, atualmente ele ocupa em Brasília a vice-presidência da
Associação dos Acadêmicos Indígenas da UnB (AAIUnB) 26 . Também foi um dos jovens
idealizadores e criadores da Organização de Jovens Indígenas Potiguara da Paraíba
(OJIP/PB) e nos anos de 2007-2009 atuou como membro do conselho estadual de juventude
da Paraíba, na qual representava o segmento étnico racial. Hoje, ele faz parte da Comissão
Nacional dos Acadêmicos Indígenas e participa da Comissão Nacional de Acompanhamento
da Lei de Cotas.
Segundo Tamara Rodrigues, Bruno e Jaqueline foram fundamentais para que ela
mantivesse um bom relacionamento na universidade porque eles “faziam as pontes” no
sentido de fazer com que Tamara se entrosasse mais com outros colegas que eles
conheceram no curso. Ela [Tâmara] também diz que assim que chegou lá fizeram uma
comemoração surpresa em que ela acabou conhecendo uma pessoa que faria uma amizade
muito forte que perdura ate os dias de hoje na cidade. “Esse meu amigo [Douglas] é mesmo
que um anjo! Toda vez que preciso ficar lá (na capital) eu falo pra ele e ele me diz: Vem! Aí
fico com ele lá nos Bancários (bairro de João Pessoa)... na principal (Avenida). Ele é de Natal
(Rio Grande do Norte), só que ele faz doutorado120·... tá concluindo. Termina agora em
fevereiro (2016). Aí, quando eu cheguei lá eles [Bruno e Douglas] fizeram um jantar pra mim.

26
Informações fornecidas via e-mail por Tanielson Rodrigues. 29/02/2016.

101
Fui eu e uma amiga que mora aqui (na aldeia Galego) e faz um curso em...(não lembra) faz
um curso na área de saúde. Na época morávamos todos juntos eu, ela (essa amiga), Bruno e
uma menina que faz arquivologia” (Tamara, Aldeia Galego, 11/12/2015).
Pelo que podemos perceber nesse diálogo “as pontes” como disse Tamara vão sendo
realizadas pelos indígenas que já estão aqui na cidade, ou seja, quem já está tecendo sua
rede de relações sociais no espaço urbano faz com que o indígena que desembarcou na
cidade sinta-se imediatamente conectado a essa rede social construída pelo grupo para que
o “indígena novato” consiga fazer seus enleios, construir suas articulações no intuito de facilitar
e melhorar sua convivência na universidade, assim como na capital que muitas vezes poderá
parecer pra ela [Tamara] como um espaço social heterogêneo e complexo. Vale destacar que
o Douglas que a Tamara fez uma grande amizade logo que chegou à capital é o mesmo que
construiu amizade com a Jaqueline e sua família na Aldeia Tramataia.
No ano de 2014 quem ingressou na universidade foi o indígena Potiguara

Neto (19 anos) que fez vestibular para o curso de Licenciatura em Física. E assim que chegou
à capital já sabia para onde iria, a casa do seu tio no bairro de Mangabeira.

Fiquei na casa de um tio (tio-avô) meu...no início foi um pouco ruim porque eu estava
saindo da aldeia (Caieira) de um ambiente totalmente diferente pra viver numa cidade
grande. Já tinha ido várias vezes à capital, mas só que de passagem...não pra passar
a semana inteira. Então, no começo foi um pouco chato cheguei a chorar quase desisti.
Mas a vida é assim tem alguns atropelos, mas vamos pra frente (Neto, Aldeia Galego,
12/12/2015).

Apesar de ser muito jovem Neto demonstra ter uma persistência e determinação em
suas atitudes, pois ao longo dessa trajetória acadêmica ele já enfrentou diversas agruras, mas
continuou na sua caminhada. “Então, no começo foi um pouco chato cheguei a chorar quase
desisti. Mas a vida é assim tem alguns atropelos, mas vamos pra frente. Eu superei isso, né?!
No dia-a-dia me adaptar e me dedicar de uma forma mais forte...porque se realmente era
aquilo que eu queria...né isso que eu quero? Então, vou lutar. Independente do que venha”
(Neto, Aldeia Galego, 12/12/2015).

Considerações finais

102
Ao tecer essas considerações percebemos que os entrelaçamentos das redes de
relações sociais construídas por esses jovens indígenas Potiguara, guardada as devidas
distinções que cada configuração apresenta, estão baseados na relação de parentesco e
amizade. E dessa forma, eles conseguem fortalecer e usar seus “laços pessoais de parentesco
e amizade” (BARNES, 1969, p. 173). Sendo assim, os enleios das redes sociais estão
relacionados às suas peculiaridades, pois cada rede constitui uma forma específica e dinâmica
de estratégias de ação para poder dar continuidade no cenário em que foi produzida.
Segundo J. A. Barnes (1969, p. 175), “A noção de rede social está sendo desenvolvida
na Antropologia Social tendo em vista a análise e a descrição dos processos sociais que
envolvem conexões que transpassam os limites de grupos e categorias”. Neste sentido, a rede
de relações sociais não pode ser vista como constituída apenas por relações de parentesco,
pois muitos dos contatos desses indígenas Potiguara tem suas “amarras” construídas por
amizades e ciclos de reciprocidade. A construção de redes de relações sociais dos jovens
indígenas e o “campo de possibilidades” (VELHO, 1994) gerado a partir dessas interações
com atores externos e internos e as políticas públicas que oferecem oportunidades para que
os indígenas ingressem na universidade. As oportunidades surgem por um “campo de
possibilidades como dimensão sociocultural, espaço para formulação e implementação de
projetos” (VELHO, 1994, p. 40). Sendo assim, os projetos individuais estão associados a um
conjunto de ações que foram proporcionados por um campo de possibilidades que pôde ser
engendrado, no caso dos jovens estudantes indígenas Potiguara, por uma inter-relação entre
atores externos e internos que vivem num fluxo constante entre a aldeia e a cidade.

REFERÊNCIAS

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guru, o iniciador e outras variações antropológicas, Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria,
2000a [1969], pp. 25-67.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Caminhos da identidade: ensaios sobre etnicidade e


multiculturalismo. São Paulo: Edunesp, 2006, pp. 27-28.

ERIKSEN, T. H. Ethnicity and Nationalism. Third Edition. London, Pluto Press, 2010.

GOFFMAN, E. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópoles: Ed. Vozes, 1996.

103
. Estigma: la identidad deteriorada. 5. ed. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1993, p.
172.

HANNERZ, U. Cultural Complexity: Studies in the Social Organization of Meaning. 1992

LUCENA, Jamerson B. “índio é índio onde quer que ele more”: uma etnografia sobre índios
Potiguara que vivem na região metropolitana de João Pessoa. Dissertação.
Paraíba/UFPB/PPGA.

OLIVEIRA, João Pacheco. Uma etnologia dos “índios misturados”? IN: OLIVEIRA,
João Pacheco de (org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no
Nordeste indígena. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2004.

PALITOT, Estêvão Martins. Quem são os Potiguara? IN: . Os Potiguara da Baía


daTraição e Monte-Mór: História, Etnicidade e Cultura. 2005. Introdução, p. 4. Dissertação
(Mestrado em Sociologia) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal de Campina Grande, 2005.

SAHLINS, M.

SIMMEL, G. A sociabilidade (Exemplo de sociologia pura ou formal). In: . Questões


fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Trad. Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006, pp.59-82.

VELHO, Gilberto. “Trajetória individual e Campo de possibilidades”. In: Projeto e


metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro, Editora Jorge
Zahar, 1994.

104
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DOS POVOS POTIGUARA: cultura e
afirmação da identidade na Educação de Jovens e Adultos do Município de Baía
da Traição-PB

Andréa Bezerra Falcão


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
falcao_andrea@hotmail.com

Sidnei Felipe da Silva


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia
Universidade de Brasília (UnB)
prof.sidnei.eageo@gmail.com

Eduardo Jorge Lopes da Silva


Orientador
Doutor em Educação
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
eduardojorgels@gmail.com

Resumo
A caminhada de luta pela defesa dos direitos dos povos indígenas, em especial o
direito à Educação, no Brasil, essa luta se faz a partir da criação do Serviço de
Proteção aos Índios no ano de 1910 e mais tarde com a criação da FUNAI em
1967. No campo da Educação Indígena, desde 1996 com a Lei de Diretrizes e
Bases (LDB), em 1997 com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), em 1999
com o Estatuto da Escola Indígena, vem se expressando a importância de uma
educação voltada também para os direitos educacionais dos povos indígenas. Esta
pesquisa tem o objetivo de analisar, a partir dos olhares dos educandos indígenas,
da modalidade EJA, como a escola no seu cotidiano, promove a valorização da sua
cultura e afirmação da sua identidade. Este estudo busca também entender, à luz dos
dispositivos legais que regulamentam essa especificidade, e a partir da trajetória de
Instituições responsáveis pela proteção aos direitos dos indígenas, como se dá o
processo de construção de uma educação voltada a atender as particularidades
desse povo de forma a garantir a preservação de sua cultura. Para fazermos uma
relação entre o que está proposto nos dispositivos legais e a realidade encontrada
nas escolas, optamos por realizar uma pesquisa de campo/estudo de caso em duas
escolas do município de Baía da Traição, analisando os seus Projetos Político-
Pedagógicos e realizando entrevistas

105
com os educandos indígenas, que posteriormente serão transcritas e transformadas
em documentos para que possamos a partir do cumprimento das etapas propostas
por Bardin (2011) na análise de conteúdo, entender os dados coletados e
apresentar os resultados, que, por hipótese, deverá ser a constatação de que esses
educandos realmente se sentem representados nessa escola e o que vivenciam nas
mesmas fortalece as suas identidades indígenas.
Palavras-chave: Educação Escolar Indígena. Identidade. Educação de Jovens e
Adultos.

Introdução

Observamos em nossa sociedade, em virtude do avanço das tecnologias da


informação e comunicação, a exemplo dos computadores e de sua rede mundial de
ligação - a internet - os processos de tentativa de homogeneização cultural, uma das
características da Globalização, que tendem, cada vez mais, a desprivilegiar as
culturas locais. Observamos isso na medida em que percebemos que as pessoas
anseiam por certa igualdade e/ou uma necessidade de pertencimento àquilo que é
popular, que atinge a grande massa, os grandes grupos. Assim, presenciamos esses
grupos, suas culturas e modos de vida serem evidenciados em detrimento das
culturas locais e seus não menos importantes sistemas de preservação.
Caso exemplar se apresenta na preservação da cultura indígena que, por
exemplo, não tem recebido a devida importância enquanto objeto pedagógico na
modalidade de Educação de Jovens e Adultos, espaço que deve ser considerado
enquanto oportunidade de formação de pessoas que desejam superar as diversas
formas de exclusão do processo educacional formal. Esse fenômeno é perceptível
nos municípios paraibanos de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto, cidades
historicamente constituídas a partir de aldeias indígenas (GONÇALVES, 2008),
onde percebemos a priori, a ausência de material didático apropriado à temática, a
falta de formação específica dos professores, a aparente fragilidade das
identidades indígenas decorrente dos processos de trocas culturais estabelecidas
desde os primeiros contatos desta comunidade com a cultura ocidental, bem como a
antiga estrutura escolar que não permite – ou permite de maneira superficial – a
participação de toda a comunidade escolar indígena na estruturação da grade
curricular da instituição ou não atenta para as suas necessidades educacionais no
momento em que vão construir suas propostas ou realizá-las.

106
A escola, neste sentido, deve ser um espaço de construção de conhecimento
e oferecer as ferramentas necessárias para isso, pois, segundo Levi-Strauss (1989)
esses povos são movidos por um desejo de compreender o mundo que os envolve,
sua natureza e a sociedade em que vivem e, para atingir esse objetivo, agem por
meios intelectuais exatamente como faz um filósofo ou um cientista. Partindo deste
princípio, e entendendo que esse povo necessita ser ouvido para que essa mesma
escola se transforme nesse lugar de reconhecimento de saberes por eles trazidos e
de construção de novos conhecimentos, como proposta do nosso estudo,
procuramos perceber os lugares dos jovens e adultos envolvidos no processo
escolar, como eles se veem neste espaço e, se sentem-se representados a partir de
elementos da sua cultura, nas práticas pedagógicas desenvolvidas com turmas do
primeiro segmento da EJA (Ciclos I, II e III), e qual a relação desse processo com a
preservação da memória e identidade social desses povos, pois, segundo Hall (2006,
p.38):

[...] a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo,


através de processos inconscientes, e não algo inato,
existente na consciência no momento do nascimento. Existe
sempre algo no “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade.
Ela permanece sempre incompleta, está sempre em “processo”,
sempre sendo “formada”. (p.38)

Esse processo de constante “formação” da identidade é também perceptível


nos povos de etnia indígena. Constatamos, por exemplo, a partir dos escritos nos
livros de história, que elementos que antes compunham a identidade do povo
indígena foram sendo substituídos por outros (como o uso de vestimentas do
homem branco, a mudança no tipo de habitação), porém, alguns elementos
permaneceram ou foram se perdendo, mas foram regatados (como o manejo com a
terra ou o uso dos elementos naturais na vida cotidiana) e esse caminho de perdas e
resgates forja a identidade de um povo. E, o contato com outros povos, de outras
etnias imprime também algum valor nesse processo. Entendemos que atividades
e/ou momentos de construção do conhecimento com os educandos que, se
baseiem na contextualização da cultura indígena e do processo de construção das
identidades históricas e culturais locais, devem ser, a partir das orientações presentes

107
nas proposituras legais da Educação Indígena, elementos relevantes do corpo
estrutural das escolas – o Projeto Político-Pedagógico.

Desenvolvimento

Para entender a composição de uma determinada identidade cultural,


precisamos compreender que ela é composta por diversos elementos. A etimologia
da palavra “etno”, segundo Scandiuzzi (2009) se refere a grupos culturalmente
identificáveis e inclui memória cultural, códigos, símbolos, mitos e até maneiras
específicas de raciocinar e inferir. Porém, as pessoas que fazem parte desses grupos
também são diferentes entre si, o que nos leva a entender que muitas vezes, a união
de algumas etnias compõem uma determinada identidade. No caso da identidade
indígena, nosso objeto de estudo, segundo dados do Censo do IBGE realizado no
ano de 2010, são 305 etnias distintas 27 , e cerca de 274 línguas diferentes.
Na história do Brasil, desde a conquista do nosso continente em busca de
novos territórios para exploração, os portugueses se utilizaram de diversos métodos
para conseguir sua instalação e permanência no Brasil. A força infinitamente superior
produzida pelas armas de fogo em seu poder contra as armas artesanais em posse
dos índios, promoveu uma disputa desigual e com um “vitorioso” antecipadamente
declarado: o invasor (GONÇALVES, 2007).
Encontramos registrados a partir dos escritos nos livros de história - a
dizimação de grande parte da população indígena, bem como o processo de
aculturação vivido pelos índios. À época da conquista do nosso continente, chegando
e se instalando pela força, os portugueses precisavam de ações que deixassem os
índios cada vez mais frágeis e vulneráveis. E, uma forma ideologicamente eficaz de
alcançar esse intento, era enfraquecer esse povo, fazendo com que eles perdessem
elementos de sua cultura e identidade. Esse processo começou a ser realizado pela
Igreja através da catequese. Ela aldeava os
índios com o “propósito” de “protegê-los” e “educá-los” e, ao impor sua religião

quase como um método de alfabetização - dado que utilizava a Bíblia como


material didático, fazia com que, aos poucos, sua cultura europeia/ocidental fosse

27
A etnia Potiguara - raiz étnica do povo indígena da Baía da Traição – lócus da nossa pesquisa.

108
absorvida e, elementos culturais da sociedade local fossem perdidos (MOONEN e
MAIA, 1992).
Segundo a FUNAI, essa população sofreu gradativa diminuição entre os anos
de 1500 e 1957 e, só a partir de 1980, começa a apresentar aumento de seu
contingente, conforme dados do gráfico abaixo:

Fonte: <www.faunai.gov.br>. Acesso em: 11/11/2015.

Ainda segundo a FUNAI, apenas a partir de 1991, o Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística (IBGE) incluiu na categoria “cor ou raça”, o indígena no Censo
Demográfico nacional. Nessa pesquisa, os pesquisados, dentre as muitas perguntas
a que respondem, se classificam segundo a sua própria percepção, a que
etnia/raça/cor pertencem e, não mais, o pesquisador sob a sua ótica, responde a esse
quesito presente na pesquisa, classificando o entrevistado a partir das
características físicas perceptíveis. Acreditamos ser esta mudança na maneira de
abordagem para classificação, um dos responsáveis por este aumento na
população indígena, haja visto que diante de toda a luta por afirmação desta
identidade, não existe mais o preconceito/vergonha de se assumir como índio e essa
classificação ultrapassa as barreiras das características físicas e passa a depender
da ideia de pertencimento do sujeito pesquisado ao povo indígena. Sobre isso
disserta Luciano (2006, p.28)

Desde a última década do século passado vem ocorrendo no


Brasil um fenômeno conhecido como “etnogênese” ou
“reetinização”. Nele, povos indígenas que, por pressões

109
políticas, econômicas e religiosas ou por terem sido
despojados de suas terras e estigmatizados em função dos
seus costumes tradicionais, foram forçados a esconder e a
negar suas identidades tribais como estratégia de sobrevivência
– assim amenizando as agruras do preconceito e da
discriminação – estão reassumindo e recriando as suas
tradições indígenas.

Porém, ainda falando sobre o período de dizimação/diminuição dos povos


indígenas, é sabido que grupos oprimidos também se rebelam – caso exemplar se
apresenta em grupos de negros e mulheres - e criam formas de manter suas
tradições e costumes por mais distantes que pareçam estar (GRAMSCI, 1988). Esses
grupos, dentre tantos outros, também são fontes de resgate e “perpetuação” de suas
histórias.
A educação deve ser um dos meios e a escola deve ser um dos locais onde
os sujeitos dessas comunidades se apoderem de informações que lhe são
necessárias para que preservem suas memórias e identidades e, compreendam sua
história, sua vida, seu lugar social e, assim, completamente inserido nesse contexto,
ele seja capaz de atuar criticamente.
A história local se faz necessária nesse processo, pois segundo Mendes

(2008, s.p.)

A história local, trazendo à tona acontecimentos, atores e


lugares comuns ao estudante faz com que este se aproxime da
disciplina, percebendo a relação dialética entre o passado
desconhecido e o presente, tão próximo. Pode-se, a partir
desse ponto, estabelecer uma problematização que estimule o
aluno a sair da curiosidade ingênua, conduzindo-o a um
conhecimento crítico da realidade, contribuindo para a
construção de sua consciência histórica e o amadurecimento de
sua cidadania.

Esse processo de construção de um ser social é capaz de produzir cidadãos


cada vez mais críticos e participativos em seu território. Iniciativas como essas são
capazes de envolver os alunos no conhecimento de histórias de gerações passadas
que muitas vezes explicam suas próprias histórias. Isso para os alunos da
Educação de Jovens, especialmente a indígena, e Adultos é ainda mais relevante,

110
haja vista que, muitas dessas histórias têm elementos de suas próprias vidas
tornando-a ainda mais significativo para a aprendizagem.
O município de Baía da Traição, lócus da nossa pesquisa, inserido na região
que hoje é a segunda maior população autodeclarada indígena, com 208.691
indígenas, segundo o Censo Demográfico realizado pelo IBGE no ano de 2010,
possui uma história de lutas e resistência desse povo cada dia mais esquecida por
seus próprios habitantes.
Os costumes, a língua materna os enfrentamentos sociais e políticos e as
tradições vão ficando para trás diante desse mundo globalizado que insiste em
classificá-lo como homogêneo e de uma só cultura. Não fazemos aqui uma ode ao
isolamento ou a ausência da mudança, pois, segundo Moonem e Maia (1992), a
mudança em si não é um mal a ser combatido, na medida em que ela permite a
evolução espontânea dos povos. O que, segundo os autores deve ser condenado,
“são todos aqueles processos que tornam as culturas tradicionais inviáveis e que
impõem a um outro povo uma cultura alheia, contra a sua vontade.” (MOONEM e
MAIA, 1992, p.37)
Habitantes em geral, estudantes e professores por desconhecerem essa
história têm na educação uma oportunidade de retomá-la, assim, a escola deve ter
como uma de suas propostas pedagógicas a inserção desta história local de modo a
tornar significativa a aprendizagem, a partir do próprio contexto dos educandos.
Alunos e professores em seus papéis sociais assumem uma função de
multiplicadores para a população indígena como um todo. Acreditamos que reforçar
a identidade social de um indivíduo através da preservação de suas memórias,
entendendo que ele está inserido em uma comunidade e que, essa comunidade tem
uma história que é sua, compartilhamos da ideia de Barbosa (2005) quando ela
propõe a história local como instrumento metodológico para a EJA capaz de, a partir
dela se fazer um intercâmbio entre as várias dimensões socioculturais. Ainda
segundo a autora, cabe a História local, por definição, buscar colocar na discussão
as dimensões socioculturais das pessoas que vivenciam aquela experiência histórica.

Alguns elementos da cultura do povo indígena eventualmente são


partilhados no nosso cotidiano. O “beju”, iguaria feita a partir de uma massa de
mandioca; o “toré”, dança tradicional ritualística dos povos potiguara; histórias –

111
muitas vezes nem tão verídicas assim – sobre a presença dos “invasores”. Porém,
também presenciamos a perda ou o esquecimento gradativo desses elementos. Hoje,
como parte integrante dessa escola, exercendo a função de professora, nos sentimos
convidadas e intimadas a participarmos do processo de (re)significação dessa
identidade, cultura e história local e assim, entendermos como o processo de
conscientização e empoderamento por parte dos alunos que compõem as escolas
pesquisadas se dá, através das lutas muitas vezes silenciosas travadas no
cotidiano escolar. .
Entendemos que toda a afirmação de uma minoria, seja ela de mulheres,
negros ou povos indígenas, é construída em processos de lutas e embates entre
lados distintos que medem suas forças e que muitas vezes tem no grupo maioritário
a vitória e perpetuação do seu ideal. Entretanto, esses grupos minoritários, quando
organizados e conscientes de seu poder, conseguem se fortalecer e também
transformar este cenário. Para então entender como esse processo se desvela,
acreditamos ser em algumas bases do pensamento marxiano que vamos pautar a
nossa pesquisa, pois, em linhas gerais, é uma corrente que, através de seu
enfoque teórico, contribui para desvelar essas realidades, na busca por “apreender o
real a partir de suas contradições e relações entre singularidade, particularidade e
universalidade” (MASSON, 2012, p.2).
Assim, a realidade vai ser apreendida a partir do seu processo histórico e de
todas as nuances que a compõem. E é, portanto, na observação das práticas
escolares cotidianas e em conversas com os alunos que dela fazem parte, que vamos
buscar perceber essas contradições e como elas constroem e refletem essa
realidade, respeitando assim, alguns dos princípios da pesquisa dialética que são: a
contradição, a historicidade e a totalidade. Segundo um Dicionário do Pensamento
Marxista, o conceito de contradição pode ser usado para qualquer tipo de divergência,
oposição ou tensão. No entanto, ele assume significado particular no caso da ação
humana, em que especifica qualquer situação que permita a
satisfação de um fim unicamente às expensas de um outro. Em nossa realidade
escolar, observamos quase que cotidianamente as contradições existentes entre o
discurso e a prática desenvolvida nas mais diversas ações. Buscaremos perceber
essas contradições ao analisarmos o documento base da proposta que rege a escola
– que fundamentalmente é o discurso da mesma – comparadas às impressões

112
trazidas à tona pelas falas dos educandos pesquisados. Essas duas últimas
categorias, segundo Lukács (2010), devem permear toda a pesquisa, pois, é preciso
compreender que essa historicidade, os processos históricos dos quais os sujeitos
fazem parte, tem relevante impacto sobre a sua realidade, a sua “totalidade concreta”.
Segundo Konder (1981, p. 161), “a totalidade é mais do que a soma das partes que
a constituem.” Precisamos compreender como cada parte se articula para compor a
totalidade e como esses elementos assumem características que não as teria se não
fizesse parte desse conjunto. É entendendo que os muitos eventos históricos dos
quais fazemos parte durante toda a nossa vida, tem relevante contribuição
naquilo que nos transformamos que, buscaremos perceber como a escola influencia
a visão dos educandos em relação as suas identidades indígenas.
Neste sentido, o pesquisador precisa ir a campo entendendo que a dialética
oriunda do pensamento marxiano, ainda segundo o dicionário anteriormente citado,
é capaz de explicar as contradições do pensamento e é um agente de mudança nas
relações que descreve. E, segundo Chizzotti (2009, p.80):

[...] também insiste na relação dinâmica entre o sujeito e o


objeto, no processo de conhecimento. [...] Valoriza a
contradição dinâmica do fato observado e a atividade criadora
do sujeito que observa, as oposições contraditórias entre o todo
e a parte e os vínculos do saber e do agir com a vida social dos
homens.

Assim, ele vai analisando essas contradições nos fatos e falas que observa em
seu processo de pesquisa e percebe a importância desse movimento na construção
dos conhecimentos de seus sujeitos, e como eles são capazes de, neste processo,
tomarem consciência de suas realidades e a partir dela, encontrarem mecanismos
para a superação das mesmas.

113
Essa tomada de consciência, segundo Freire (2000) é essencial para a conquista da
autonomia dos sujeitos e, é parte fundamental dos princípios e objetivos de uma educação
transformadora. Para ele, a educação e a pedagogia sempre estiveram carregadas de
politicidade, ou seja, a prática educativa e a reflexão sobre ela constituem atos políticos: as
escolhas, as decisões e principalmente a conquista da cidadania negada (SCOCUGLIA,
2006)
Nessa educação que tem como uma de suas finalidades a conquista de autonomia
e cidadania, segundo Brandão (2002, p.68):
(...) a pessoa é educada para exercer a crítica pessoal da ordem do
mundo em que vive, e para reconhecer-se no direito e no
dever de participar de maneira ativa e responsável em cenários
múltiplos e abertos a todo tipo de diálogo criador de ações sociais de
teor político destinados a sua transformação.

Compartilhamos do pensamento de Brandão e acreditamos que cidadãos críticos e


participativos poderão dialogar em diversos cenários e se posicionar perante as mais
diversas situações decidindo e opinando sobre seus caminhos e optando pela
possibilidade ou não de transformação. Conseguirão analisar as coisas de forma mais
crítica e poderão assim perceber quando seus direitos estão sendo respeitados ou violados
para lutar por eles.
Corroborando com o pensamento de Freire (1987, p. 105) onde ele afirma
que

Os homens [...] ao terem consciência de sua atividade e do mundo


em que estão, ao atuarem em função de finalidades que propõem e
se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em
suas relações com o mundo [...] não somente vivem, mas existem, e
sua existência é histórica.

Observamos que esse processo de tomada de consciência só é validado quando se


dá voz aos sujeitos e, eles são capazes de aliar essa consciência à tomada de decisões.
Portanto, pensando na importância de escutar a voz dos sujeitos, vamo buscar
observar, se os educandos indígenas da EJA que compõem essa escola, reconhecem, nas

114
suas mais variadas práticas, o fortalecimento de suas identidades indígenas. Para isso,
vamos também identificar as orientações oficiais para a educação indígena e para a
Educação de Jovens e Adultos, e, perceber como essas orientações estão presentes no
cotidiano da escola a partir da análise de seus Projetos Políticos-Pedagógicos bem como,
conhecer a constituição histórica da comunidade indígena da Baía da Traição.
A rede municipal de ensino no município de Baia da Traição, sofreu alterações em
sua demanda e estrutura, no que diz respeito as turmas de EJA. Como Professora,
recolocada para o quadro técnico da Secretaria de Educação nos últimos sete anos,
observamos essas mudanças de muito perto. Em anos anteriores, cada aldeia tinha ao
menos uma turma em sua unidade escolar. Durante o ano letivo de 2016, ano da nossa
pesquisa, por problemas estruturais, essa oferta só foi mantida na Escola Municipal de
Ensino Fundamental Antonio Azevedo, localizada no centro da cidade, com turmas dos
ciclos III e IV. Para não limitarmos a nossa pesquisa à apenas uma escola, e aumentar a
nossa amostragem, buscamos uma escola da rede estadual com as mesmas
características de atendimento ao público da EJA. A Escola Estadual de Ensino
Fundamental e Médio Matias Freire, localizada também no centro da cidade, atende
igualmente, turmas dos Ciclos III e IV, e uma turma do 1º ano do Ensino Médio com alunos
indígenas moradores do centro e das Aldeias que compõem o município. Essa oferta
normalmente é atendida mediante a procura do público que define uma variação no número
de matrículas em turmas da EJA. É esta a realidade tratada como universo de nossa
pesquisa e que nos fornece elementos para proceder a investigação bibliográfica,
legislativa e documental sobre a história do município, bem como sobre as
necessidades/particularidades de uma educação diferenciada para jovens e adultos
indígenas.
O presente estudo tem como referenciais metodológicos, a pesquisa qualitativa, que,
de acordo com Minayo (2007, p. 21), “responde a questões muito particulares. Ela se ocupa,
nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ou não deveria ser
quantificado”.

Repensando a difícil tarefa de estabelecer com amadurecimento, um caminho


metodológico possível que atenda a necessidade do rigor e da qualidade propostos por
André (2001) entendemos ser necessário reafirmar a necessidade deste estudo apresentar

115
como referenciais metodológicos, a pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental e o
estudo de campo/estudo de caso.
A pesquisa bibliográfica é caracterizada, segundo Gil (2008), pela possibilidade de
inserir o pesquisador na análise de dados bibliográficos referenciais em livros e
demais produções acadêmicas, com a finalidade de apreender o estado da arte sobre
temas do objeto pesquisado. Assim sendo, ela permeará todo o processo na medida em
que realizaremos leituras de autores pertinentes ao nosso tema e na qual buscaremos
conceitos, definições e princípios de cada categoria utilizada.
Como a nossa temática discorre sobre a questão da Educação de Jovens e Adultos
em comunidades indígenas, recorreremos a referências que contemplem os princípios, as
definições e práticas nessa modalidade de ensino.
A etapa documental também será contemplada ao analisarmos a Legislação,
Resoluções e Parâmetros acerca dos direitos educacionais indígenas, da Educação de
Jovens e Adultos e da Educação Indígena, os Projetos Político – Pedagógicos das escolas.
A pesquisa de campo/estudo de caso segundo o pensamento de Yin (2005) é o tipo
de pesquisa que pretende buscar a informação diretamente com os sujeitos pesquisados
considerando os elementos que apresentam uma significativa amostragem para o
desenvolvimento de um fenômeno que se configura em um objeto de estudo – que em
nosso caso são escolas que oferecem EJA no município paraibano de Baía da Traição. Ela
será realizada em um total de 2 escolas, sendo uma da rede municipal e a outra da rede
estadual, ambas com turmas dos ciclos III e IV da EJA, tendo como sujeitos da mesma,
educandos indígenas dessa modalidade de ensino.
Inicialmente o estudo de caso contemplará essas turmas de EJA das escolas da
Baía da Traição, e não se fará necessário, ao nosso ver, destacar as classe que são
destinadas para educandos de procedência indígena, haja vista que, durante o
processo de levantamento da realidade dessas turmas, percebemos que, mesmo
funcionando no centro da cidade, elas atendem educandos com essa procedência.
Iniciaremos a pesquisa com observações de aulas e realização de entrevistas com os
educandos indígenas da EJA, sendo o projeto previamente submetido ao Comitê de Ética
em Pesquisa em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da
Paraíba, conforme preceitua os procedimentos necessários à pesquisa com seres
humanos. A escolha por entrevistas semiestruturadas se apoia na definição de Minayo
(2007, p. 64): “são as entrevistas que combinam perguntas fechadas e abertas, em que o

116
entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender a
indagação formulada”. Acreditamos ser a mais adequada para atender aos nossos
objetivos. Esse caminho metodológico, segundo Richardson (1999), se configura por suas
características, em uma pesquisa de abordagem qualitativa.

Entendemos assim que, essa metodologia da pesquisa inicialmente, dá conta dos


princípios básicos da pesquisa social em educação. No entanto, temos claro que esse
percurso é longo e que, para que seja realmente satisfatório é preciso que todo o processo
da pesquisa seja norteado pelas indicações de André (2001, p.57) quando diz:

Que o trabalho de pesquisa seja devidamente planejado, que os


dados sejam coletados mediante procedimentos rigorosos, que a
análise seja densa e fundamentada e que o relatório descreva
claramente o processo seguido e os resultados alcançados.

Sabendo da necessidade do rigor e dessa análise densa e fundamentada de que


trata a autora acima citada, como metodologia de análise dos documentos, recorreremos
aos procedimentos estabelecidos por Bardin (2011) na análise de conteúdo, por entender
que essa técnica é capaz de nos possibilitar ir além das aparências, respeitando as etapas
por ela propostas para conseguir extrair, com rigor e exaustão, as verdades por trás do que
foi dito, escrito ou silenciado.

Dentre as etapas que são essenciais para uma boa pesquisa, segundo a análise
de conteúdo, estão a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados
que, vão resultar na inferência e na interpretação dos dados.
A pré-análise é considerada a fase de organização propriamente dita, capaz de conduzir
a um esquema de desenvolvimento das operações sucessivas na análise. Segundo Bardin
(2011, p.125) “esta primeira fase possui três missões: a escolha dos documentos a serem
submetidos à análise, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a elaboração de
indicadores que fundamentem a interpretação final”, porém não necessariamente precisam
obedecer a essa ordem embora estejam estreitamente ligadas umas as outras.
A etapa de exploração do material consiste na análise propriamente dita, é uma espécie
de aplicação sistemática das decisões tomadas. Nesta fase, o pesquisador deve proceder
a operações de codificação, decomposição ou enumeração – de acordo com as regras

117
estabelecidas para cada uma – da maneira como melhor responda/atenda aos seus
objetivos. A operação de codificação segundo Bardin (2011, p.133):

Corresponde a uma transformação – efetuada segundo regras


precisas – dos dados brutos do texto, transformação esta que, por
recorte, agregação e enumeração, permite atingir uma representação
do conteúdo ou da sua expressão

Esse processo de codificação resulta na identificação de unidades que podem


ser de registro e de contexto. Na nossa pesquisa, vamos trabalhar com as unidades de
registro executadas a partir de recortes a nível semântico, onde vamos analisar através das
falas, “o tema” presente ou ausente, buscando entender essa condição. E, a unidade de
contexto, servindo de unidade de compreensão para a unidade de registro, nos fará
entender os porquês das presenças e/ou ausências da unidade de registro em cada fala.
Vencida esta etapa, o pesquisador deve avançar para a fase de enumeração aonde ele
vai, segundo regras estabelecidas que variam de acordo com a presença (ou ausência),
frequência ou concorrência da unidades de registro, estabelecer o seu modo de contagem.

A fase de tratamento dos resultados obtidos funciona como uma espécie de lapidação.
Segundo a autora, os resultados são tratados de maneira a se tornarem significativos e
válidos e devem ser submetidos, para um maior rigor – a provas estatísticas ou testes de
validação. Com esses resultados significativos, o pesquisador pode então, propor
inferências e interpretações acerca de seus objetivos prévios ou apontar para outras
descobertas surgidas no processo.
O processo da feitura da pesquisa, bem como a sua interpretação e escrita é um
processo longo de leitura, questionamentos e até embates pessoais onde, devem ser
levados em consideração também, o tempo destinado a mesma e se ele é suficiente para
o cumprimento daquilo a que o pesquisador se dispôs a fazer, o que nos leva muitas vezes
a pensar e (re)pensar os nossos objetivos de pesquisa, nosso percurso metodológico e
especialmente a nossa função social enquanto pesquisador.

Conclusão

O desenho de nosso trabalho foi pensado primeiramente com a possibilidade de se fazer


um levantamento de como o direito à Educação Escolar Indígena vem se desenvolvendo –

118
e especialmente – aparecendo nos dispositivos legais que regem ou ao menos influenciam
o regimento da Educação no Brasil, bem como os seus desdobramentos e possibilidades
para a EJA, e como esses dispositivos e diretrizes trazem, em via de seu cumprimento,
um caminho para o fortalecimento das identidades indígenas.
Como seres humanos – independentemente da raça ou etnia – os índios devem ter
seus direitos respeitados, dentre eles o acesso e a permanência a uma educação
de qualidade e que atenda as especificidades do seu povo, de sua cultura.
A Educação Escolar Indígena é um processo ainda em construção e, como todo
processo, está permeado de lutas e conquistas, avanços e retrocessos protagonizados por
índios, grupos de estudiosos, militantes da causa indígena e governantes. Neste capítulo,
abordaremos a contribuição dos diferentes dispositivos elaborados nacionalmente,
como a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB), o Estatuto da Escola Indígena (EEI), destacando a educação como direito
conquistado a partir destes.
É pensando na participação dos sujeitos através de seus olhares e falas nos processos
educativos ocorridos na escola, que decidimos desenvolver a nossa pesquisa com os
estudantes indígenas da EJA no município de Baía da Traição - PB. Buscamos entender
como eles enxergam a escola e como se sentem representados, pois assim como
Scandiuzzi (2009, p.25), “reconhecemos que são eles, os povos indígenas, que devem
decidir seu futuro, segundo um projeto que parta de seus interesses e aspirações”, e se, a
escola, através de suas atividades e, norteada pelo seu Projeto Político Pedagógico, atende
– de acordo com a visão de seus alunos - a umas de suas principais funções: o
fortalecimento das identidades étnicoraciais e a promoção de cidadania que vem junto com
esse fortalecimento.

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POTIGUARA DA PARAÍBA

Iracilda Cinésio Gomes


Bacharelado em Ecologia, Licenciatura em Biologia pela UFPB
iracildaecologia@yahoo.com.br

Iranilza Cinésio Gomes Felix


Mestranda em Ciência da Religião / PPGCR/UFPB
iranilzacinesio@gmail.com

Adriano da Silva Ramos


Conselheiro Tutelar, Escola de Formação Missionária / Curso de Teologia
adrianoindiopotiguara@gmail.com

Orientador: Prof. Jan Linhart


Doutorando, Universidade Europeia Viadrina (Frankfurt Oder, Alemanha)
jan.linhart@yahoo.de

Resumo

Nosso trabalho tem o objetivo de explorar alguns aspectos da mangaba como fonte de renda para os
Potiguara, destacando suas formas de aproveitamento na aldeia Caieira no litoral norte do Estado da
Paraíba. O estudo foi realizado através de revisão bibliográfica sobre o tema abordado e com
experiências do dia a dia dos moradores. O artigo aborda algumas caraterísticas gerais do uso e da
importância econômica da mangaba para as famílias Potiguara a partir do exemplo da aldeia Caieira.
Observam-se também alguns problemas ecológicos relacionados às praticas do extrativismo dentro
do contexto mercadológico ao qual a região está submetida. Perante os gravíssimos impactos sociais,
culturais e ambientais da monocultura da cana de açúcar, que domina a região, a nossa pesquisa
aponta que o cultivo da mangaba tem o potencial de oferecer novas alternativas econômicas e ambientais
no contexto local.

Palavras-chaves: Mangaba, látex, recursos naturais.

Introdução

A mangaba é um fruto, delicioso, nutritivo, medicinal e alimentício. É por isso que os


indígenas deram esse nome a ela: Mangaba, o que na língua tupi significa “coisa boa de
comer”. A mangaba hoje é, muito importante para o consumo e a produção da polpa para

122
sucos, coquetéis, doces em calda, geleias, picolés e sorvetes, licores e vinhos, xaropes,
além da sua aplicabilidade na medicina popular, onde o látex da Mangaba é empregado
contra pancadas, inflamações, diarreia, tuberculose e para o tratamento de úlceras
(FERREIRA, 1997, 2007).
Nosso trabalho tem o objetivo de descrever alguns aspectos da mangaba como fonte
de renda para os Potiguara, destacando sua forma de aproveitamento na aldeia Caieira.
O estudo foi realizado através de revisão bibliográfica sobre o tema abordado e com
experiências do dia a dia dos moradores1, das aldeias na Microrregião Marcação e na
Mesorregião Mata Paraibana do Estado da Paraíba.
O litoral paraibano é banhado por grandes pomares nativos em área indígena. As
famílias locais são grandes consumidores da fruta, pois os mesmos também sobrevivem do
comercio nas feiras livre das regiões, como Rio Tinto, Mamanguape, Marcação, vende- se
também de porta em porta nessas cidades citadas.
No seguinte vamos abordar algumas caraterísticas gerais do uso e da importância
econômica da mangaba para as famílias Potiguara a partir do exemplo da aldeia Caieira.
Observam-se também alguns problemas ecológicos relacionados às praticas do
extrativismo dentro do contexto mercadológico ao qual a região está submetida.

A Mangaba

A mangaba é o fruto da mangabeira da família das Apocynaceae à espécie


Hancornia speciosa Gomes. É uma arvore nativa do Brasil (FERREIRA,1973).

1 Os autores são indígenas potiguara e moradores da


aldeia Caieira.

123
Fonte: http://jmeioambiente.blogspot.com.br/2011/02/mangaba---hancornia-
--speciosa.html

Fonte: http://jmeioambiente.blogspot.com.br/2011/02/mangaba---hancornia-
--speciosa.html
A árvore de porte mediano, abrangendo de 5 a 15 m de altura, Possui galhos
numerosos e suas folhas são compridas e pouco largas. Suas flores de tonalidade branca
tem cheiro suave. O fruto em seu exterior possui aspecto arredondado ou comprido e cor
verde amarelada ou verde com manchas avermelhadas, em seu interior possui
característica de cor branca, carnuda com sementes marrons, compridas e espalmadas.
Sua floração acontece quase o ano todo, do mês de outubro a abril e de abril a
agosto. Sua frutificação é de novembro a abril e de abril a agosto, sendo que terminando
uma safra já começa a próxima. Nos meses de novembro a março a sofra da mangaba é
em grande proporção, já nos meses de abril a agosto a safra é menor.
Quando a cor muda de tonalidade verde para amarelo, com mudança no brilho da
casca, o fruto está “de vez”. Nesta fase, o fruto apresenta-se ligeiramente mole. Um bom
indicativo para o início desse processo é a presença dos primeiros frutos caídos no solo
(LIMA e SCARIOT, 2010, p. 41).

124
Quando a mangaba esta verde ela tem um gosto insuportávelmente amargo, não
tem doçura e no próprio fruto contem látex, conhecido como “leite”, com uma cor branca e
de sabor muito amargo. O “leite” é pegajoso e em conato ar a cor muda aos pouco de branco
vai para uma cor mais escura, na medida que o leite vai mudando-se em latex/borracha.
A fruta madura fica molinha e muito gostosa, o sabor é uma mistura de doçura com
azedinho no final da degustação, pois além de ser usada na medicina popular, ela serve
muito bem na gastronomia nordestina.
Quando a mangaba está verde ou “de vez” é fácil de ser transportada para
qualquer lugar; já quando madura, tem que ser transportada com muito cuidado porque ela
fica muito sensível e perecível.

O clima ideal para a mangaba é do tipo tropical chuvoso com verão seco. No caso
da Mata Paraibana, o período chuvoso inicia no outono contendo início no mês de
fevereiro e termina em outubro.
A mangaba tem muita facilidade de desenvolver-se neste tipo de clima tropical, tem
certo período do ano, que o clima esta muito seco por falta de chuva. No Nordeste o verão
é muito quente e é neste período que os pés de mangabeira carregam mais. No verão a
safra da fruteira e intensa e os frutos grandes.
Em anos em que o inverno é mas chuvoso a mangabeira carrega pouco, ou seja,
floresce muito, mas as flores não sustentam nos galhos e terminam caindo por causa da
chuva, pois a mangaba não se adapta bem com o clima muito úmido. Esta oscilação na
temperatura mexe muito na produção, pois adoecem muitas frutas verdes e elas ficam de
vez muito rápido.
A pobreza caraterística do solo dos tabuleiros não diminui a produção, já a mangabeira
tem facilidade de adaptar-se bem, tendo uma boa drenagem, mesmo com baixo teor de
nutriente no solo. Além de a mangaba ter muitos beneficio, ela é facil de cultivar por ser
bem adaptada ao clima na região.

125
A Região e a sua População

Fonte: CARDOSO & GIMARÃES, 2012.

A presente pesquisa foca na região do litoral norte da Paraíba, localizada em relativa


proximidade á capital de João Pessoa (cerca de 80 km), que está habitado pelos Potiguara
a mais de 500 anos. A população indígena da região mede aproximadamente
20.000 mil indivíduos que vivem distribuídos em 33 aldeias dentro das suas terras
indígenas, atualmente cobrindo mais de 33.000 hectares, localizadas nos municípios de
Baia da Traição, Marcação e Rio Tinto. (BARCELLOS; SOLLER, 2012).

126
A aldeia Caieira é composta por 168 famílias sua população mede mais de 500
habitantes, sendo a maioria Potiguara, pertencendo ao município da cidade de Marcação-
PB, está localizada as margem da PB 040 e cortado pelo rio Cinibu, que nasce perto da BR
101, no litoral norte da zona da marta paraibana e vai desembocar no oceano atlântico.
A vida econômica dos moradores de Caieira, como também dos habitantes das demais
aldeias, depende na sua maior parte do extrativismo de frutos do tabuleiro, dos caranguejos
dos manguezais, do marisco, da pesca e da plantação de cana de açúcar, além de serviços
públicos.

A Importância da Mangaba para a População Local

Antigamente a mangaba não tinha nenhum valor comercial, mas hoje existe um
mercado bem consolidado para a comercialização da mangaba. Para a população da aldeia
Caieira, a mangaba tem uma importância bastante grande, tanto por ser um fruto nativo com
uso tradicional na região, como também como fonte de renda para muitas famílias que
trabalham com essa fruta. No período da colheita de mangaba, uma parte da população
sobrevive da mesma, tornando a mangaba fundamental para a subsistência da população
local.

A Comercialização da Mangaba

A economia da aldeia Caieira, na sua maioria, baseia-se no extrativismo, na


agricultura, na pecuária e na pesca. As famílias que trabalham com o extrativismo da
mangabeira dependem desta pratica para a própria sobrevivência.
Na aldeia Caieira é comum ver pessoas que vendem a mangaba e outros frutos (caju,
manga, etc.) na lateral da pista onde o fluxo de transporte é grande por causa do turismo
local, e assim, a venda para os turistas torna-se um fator importante. As mangabas
vendidas na beira da pista geralmente são maduras e caídas do pé.
Muitos Potiguara trabalham catando mangaba para os atravessadores. As famílias que
trabalham com atravessadores vão catar a mangaba nos tabuleiros e somente trabalham

127
quando tem muita mangaba. A mangabeira de tabuleiro não tem dono e pode ser colhida por
quem quiser.
O número dos catadores é bem maior, comparado com os donos de pomares de
mangaba. As famílias donas de pomares não somente cultivam a mangabeira, pois o espaço
é dividido com outras fruteira, cajueiro, mangueira, coqueiro, pitombeira, jaqueira oliveira,
entre outros. A terra da região é muito boa para o cultivo da mangabeira, e assim tem famílias
que colhem a mangaba a semana toda, outras somente duas ou três vezes na semana.
As famílias que trabalham nas feiras livres, na sua maioria, são donas de pequenos
pomares.
Chama a atenção o fato que os donos de pomares dificilmente vendem o produto para atravessadores,
pois os mesmos tem facilidade de fazer o escoamento do seu produto nas feiras e na beira
da pista. Essas famílias já tem certa autonomia financeira. Até mesmo as famílias que
trabalham com o extrativismo tem a mangaba como uma fonte de renda, porém ela não
representa a única fonte de renda destas famílias, pois as mesmas famílias cultivam outras
culturas nos seus sítios.
Quem trabalha na feira vende-se atacado ou no varejo. Os donos de lanchonetes e
restaurantes compram mais atacado, enquanto o varejo é realizado na feira livre onde já
existe uma pequena clientela que compra a mangaba para uso domestico.
A fruta é vendida madura, porém, é colhido “de vez”. Para vender a fruta ela precisa
ser “empacada” durante alguns dias. Durante esse processo a fruta recém colhida,
ainda dura, leitosa e amarga, é colocada em caixas forradas com folhas de bananeira ou
outras plantas regionais até madurecer. As pessoas trabalham na feira principalmente no
sábado, empacam a mangaba na quinta feira à tarde e desempaca no sábado pela manhã.
Quem vende a fruta ao atravessador vende em caixas de madeira ou de plástico. O
atravessador fica com a maior parte do lucro e compra a preço muito inferior ao preço de
varejo. Os colhedores coletam por semana entre 4 a 15 caixas, dependendo muito do
tamanho da família e da safra.

Problemas Ecológicos Relacionados

Os catadores de mangaba saem de casa muito cedo para encontrar as mangabas


antes dos outros catadores e, portanto, tem muito pressa na coleta das frutas. E como as
mangabeiras do tabuleiro não tem dono, alguns catadores não tem o devido cuidado com as

128
fruteiras, as vezes danificando as plantas, ou seja, a maneira de cuidar da arvore “sem dono”
é bem diferente do cuidado com as mangabeiras nos sítios.

Monoculturas Açucareiras, Desmatamento e Queimadas

A mangabeira, além de ser nativa, tem uma capacidade tremenda de regeneração. No


nordeste, entre outubro a dezembro, ocorrem muitas queimadas no tabuleiro que queimam
as matas nativas incluindo a mangabeira. Além disso, ocorrem também o desmatamento de
mata nativa para a implantação da monocultura da cana de açúcar. Com isso, áreas inteiras
são devastadas, diminuindo cada vez os tabuleiros, e consequentemente, o número de
mangabeiras. Nascimento, aponta que, “historicamente a mata sofreu com a derrubada das
árvores nativas (Mata Atlântica). Vários espécies da vegetação entraram em extinsão, devido
ação violenta da Companhia de Técidos Rio Tinto, das usinas e dos produtores de carvão”
(NASCIMENTO, 2012, p. 22).
Na aldeia Caieira, as famílias que tem pomareiro são poucas, e a população vive
sufocada e arrodeada de cana de açúcar. Devido às exigências do mercado e ao poder das
usinas, o cultivo da cana de açúcar continua sendo uma das principais fontes de renda na
região. Quem planta a cana de açúcar para as usinas, desmata as arvores, incluindo as
mangabeiras, para o cultivo da cana. Quando a cana esta pronta para ser consumida, é
colocado fogo nos canaviais, e muitas vezes o fogo passa para a vegetação vizinha,
queimando também as mangabeiras. Na área dos tabuleiros, as queimadas ocorrem no
período do verão, quando o clima esta seco, aumentando o risco de atingir todo matagal
incluindo as matas nativas. Sem considerar os impactos ambientais devido ao uso excessivo
de agrotóxicos e fertilizantes nas monoculturas da cana de açúcar que atinge principalmente
os biótopos dos manguezais que representam outra fonte de renda de grande importância
para os Potiguara que, em grande parte, dependem da pesca e do caranguejo.
Essa situação força muitas famílias a desistirem do extrativismo e procurar trabalho
nas plantações de cana das usinas.
No Brasil, o desmatamento e a devastação de grandes áreas pelas monoculturas
representam um desafio enorme. A mangabeira é adaptada aos solos secos e arenosos do
Nordeste cujas sementes são levadas pelos animais e as aves ao consumir o fruto,
dispersando-as em lugares distantes da planta mãe, caraterísticas que fazem da
mangabeira um típica planta pioneira, ideal para o reflorestamento de áreas degradadas.
Diante deste contexto, Barcellos e Nascimento apontam que:

129
Gradativamente, as matas estão sendo recompostas. Os indígenas
denominam esta ação de renovar as matas pela plantação de mudas de
vegetação nativa. Nas aldeias de Jacaré de São Domingos e em Grupiuna
encontra-se uma extensão de dezenas de hectares de mata recuperada, graças
a ação de reflorestamento, que recupera o habitat da biodiversidade que
somente se encontra no litoral do nordeste brasileiro (BARCELLOS e
NASCIMENTO, 2012, p. 22).

A mangabeira poderá ser utilizada na recuperação de áreas degradadas ou até mesmo


para o enriquecimento da vegetação nativa da qual a mesma faz parte, permitindo o manejo
sustentável desta vegetação, e ainda contribuindo na economia local (VIEIRA NETO et al.,
2002, p. 8).

Considerações Finais

Podemos observar que o uso da mangaba é muito enraizada na cultura Potiguara,


tanto no seu uso culinário e medicinal, quanto como fonte de rende.
Porem, a nossa pesquisa mostra que há duas formas diferentes de manejo das
mangabeiras, cada uma relacionada com uma forma especifica de comercialização.
Enquanto os catadores, que fazem uso das mangabeiras naturalmente existentes no
tabuleiro, dependem na venda da sua safra de atravessadores, os donos de pomares de
mangabeiras tem acesso direto ao mercado local, assim, atingindo uma renda melhor quando
comparado com os catadores. Além disso podemos constatar impactos ambientais
causados pelo extrativismo praticado pelos catadores de mangaba, na danificação das
mangabeiras dos tabuleiros, que não se apresentam no caso dos pomares.
Em termos conjunturais é importante apontar o papel destruidor das monoculturas de
cana de açúcar e das usinas, tanto na vida dos Potiguara (PALITOT, 2005) quanto em termos
ambientais. De modo geral, as monoculturas são responsáveis pelo desmatamento
e pela degradação de grandes áreas de tabuleiro e manguezal, afetando gravemente as
várias formas de extrativismo tradicionalmente praticadas pela população local.

Visto que o cultivo da mangabeira em pomares representa uma fonte de renda


confiável para uma parte da população e além disso engloba o potencial da recuperação de
áreas degradadas pela plantação de cana de açúcar, o cultivo da mangaba surge como uma

130
oportunidade de criar novas perspectivas econômicas e ambientais para as comunidades
locais.

Referencia Bibliográfica

BARCELLOS, Lusival; SOLER, Juan. Paraíba Potiguara. João Pessoa: Editora da UFPB,
2012.

; NASCIMENTO, José Mateus do. O povo Potiguara e a luta pela etnicidade.


In: NASCIMENTO, José mateus do (Org.). Etnoeducação Potiguara: pedagogia da
existência e das tradições. João Pessoa: Ideia, 2012.
CARDOSO, T.M. & GIMARÃES, G.C. (Orgs.). Etnomapeamento dos Potiguara da Paraíba.
Brasília: FUNAI/CGMT/CGETNO/CGGAM, 2012.

FERREIRA, E.G.; MARINHO S. J. Onofre. Produção de frutos da mangabeira para


consumo in natura e industrialização. Tecnologia & Ciência Agropecuaria, João
Pessoa, v.1, n.1, p.9-14, set. 2007.

FERREIRA, E.G. Características biométricas, física de frutos e diagnose em folhas e


ramos de mangabeira (Hancornia speciosa, Gomes), proveniente de pomar nativo e
cultivado. Areia: UFPB/CCA, 1997. Dissertação (Mestrado em Produção Vegetal),
Universidade Federal da Paraíba, Areia, PB.
FERREIRA, M.B. Frutos comestíveis do Distrito Federal III. Pequi, mangaba, marolo e
mamãozinho. Cerrado. Brasília, DF, v. 5, n.20, p. 22-25, 1973.
LIMA, I.L.P.; Scariot, A.. Boas práticas de manejo para o extrativismo sustentável da
Mangaba Brasília: Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, 2010.
PALITOT, Estévão M. Os Potiguara da Baía da Traição e Monte-Mór: história, etnicidade
e cultura. João Pessoa, 2005.
VIEIRA NETO, R.D. et a.. Sistema de produção de mangaba para os tabuleiros
costeiros e baixada litorânea. Aracaju: Embrapa Tabuleiros Costeiros, 2002, (Embrapa
Tabuleiros Costeiros. Sistemas de Produção, 02). Disponível em http//www.cpatc.embrapa.br

131
O COLETIVO DE PESQUISA PELA VALORIZAÇÃO DOS SABERES
POTIGUARA: Apropriação do Espaço Acadêmico pelos Indígenas
Potiguara

Profa. Ms. Maika Bueque Zampier


Departamento de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal da
Paraíba prof.maikazampier@gmail.com

Pedro Eduardo Pereira “Kaaguasu”


Secretaria de Educação do Município de Marcação
kaaguasupotiguara@hotmail.com

Dr. Antônio Pessoa Gomes “Caboquinho”


Cacique Potiguara e Doutor Honoris Causas pela UFPB
caboquinhopoti@yahoo.com.br
Jan Linhart Doutorando,
Universidade Europeia Viadrina (Frankfurt Oder, Alemanha) jan.linhart@yahoo.de

Resumo
Paulo Roberto Palhano SIlva
PhD – GEPeeeS-CCAE-UFPB
Ppalhano1@gmail.com

O Coletivo de Pesquisa pela Valorização dos Saberes Potiguara é resultado de uma


pesquisa-ação participante entre acadêmicos Potiguara e não-indígenas. Inicialmente
focando somente o problema da deslegitimação dos conhecimentos indígenas por parte das
ciências modernas, o Coletivo começou a desenvolver outros projetos como a realização de
uma auto-etnografia e a construção de uma biblioteca Potiguara para reunir todas as fontes
disponíveis sobre o seu povo, com acesso aberto para toda a comunidade Potiguara.
Começando com uma breve introdução ao contexto Potiguara, o presente artigo oferece uma
discussão teórica da problemática da deslegitimação e do universalismo científico seguido
por uma apresentação da experiência recente do Coletivo de Pesquisa pela Valorização dos
Saberes Potiguara. Concluímos que embora a experiência do Coletivo ainda seja nova
de mais para poder prever os seus futuros impactos, a sua mera existência já é um grande
sucesso e indicador para a força do povo Potiguara e a sua habilidade de se adaptar às novas
exigências sem deixar de ser Potiguara.

Palavras-chave: Potiguara, pesquisa-ação, universalismo científico, saberes indígenas.

Abstract

The Research Group for the Recognition of Potiguara Knowledge (Coletivo de Pesquisa pela
Valorização dos Saberes Potiguara) resulted from an action research experience involving

132
Potiguara and non-indigenous academics. Initially focussing only on the deligitimation
problem indigenous knowledge is facing from scientific universalism, the Potiguara Research
Group started to develop further projects as the realization of an auto- ethnography and the
construction of its own Potiguara library joining all available sources on its people at a single
place with open access for the whole Potiguara community. Starting with a brief introduction
on the Potiguara context, this article offers a theoretic discussion on the deligitimation problem
and scientific universalism, followed by a presentation of the still very recent experience of the
Research Group for the Recognition of Potiguara Knowledge. Although the Groups
experience is still too young to predict its future impacts, its mere existence already can be
seen as a success and as an indicator for Potiguara peoples power and ability to adopt
themselves to todays worlds new demands while continuing their fight for Potiguara identity.

Keywords: Potiguara, action research, scientific universalism, indigenous knowledge.

1 Introdução

Uma das caraterísticas mais marcantes do vale de Mamanguape é de ser habitado


pelo maior povo indígena do nordeste brasileiro, os Potiguara. Como inúmeros outros povos,
os Potiguara tiveram que enfrentar fortíssimas imposições da parte da sociedade dominante,
desde a invasão europeia a mais de 500 anos atrás, até hoje. Uma das imposições
mais fortes foi a hegemonia do saber dominante e a negação sistemática dos seus saberes
originários, da sua língua, da sua religião, da sua cultura, da sua maneira de ser. Apesar da
retórica humanista, a episteme moderna que veio substituir a hegemonia católica, junto à
entrada do capital e da indústria no vale do Mamanguape, somente agravou a situação
do povo Potiguara.

Preocupados com a deslegitimação dos conhecimentos e valores do povo Potiguara,


e com o desafio de dar continuidade cultural nas futuras gerações, formamos um grupo de
acadêmicos indígenas e não-indígenas para pesquisar e compreender melhor a
complexidade dos atuais desafios e construir fundamentos para possíveis soluções. O
Coletivo de Pesquisa pela Valorização dos Saberes Potiguara conta atualmente com dez
pesquisadores indígenas acompanhado por dois professores não indígenas e é vinculado ao
GEPeeeS/UFPB28.

Dentro desse trabalho coletivo elaboramos projetos de pesquisa focando as inter-


relações desiguais entre os conhecimentos indígenas e as ciências modernas que

28
Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Etnia e Educação Solidaria vinculado à UFPB.
133
identificamos como uma das principais causas da deslegitimação e desvalorização tanto da
herança cultural quanto das demandas dos povos originários.

As ciências modernas representam uma parte integral da conjuntura sócio- epistêmica


(MORIN, 2005; BOURDIEU, 1992; LYOTARD, 1986) chamada “modernidade” ou
“modernidade/colonialidade” (ESCOBAR, 2003) onde funcionam como aparelho de produção
e legitimação de um saber-poder (FOUCAULT, 1978) hegemônico. Essa hegemonia é
legitimada pelo enorme sucesso do método científico em gerar conhecimentos
aptos para dominar tecnicamente o mundo físico (WEBER, 2002) e produzir tecnologias que
geram lucro. Sem dúvida, as ciências modernas geram mais conhecimentos que
qualquer outra proposta epistemológica na história humana, e segunda a sua lógica
universalista, esse conhecimento será o suficiente e o único conhecimento valido para
descrever e explicar o universo. Porém, as ciências modernas demonstram dificuldades em
explicar certos fenômenos 29 de forma coerente, e de integrar outros conhecimentos
culturalmente distintos 30 para fazê-los acessíveis a uma compreensão científica mais
ampla e profunda (LINHART, 2008, 2012; FEYERABEND, 1977; LYOTARD, 1986; HUIZER,
1989). Visto como “crenças”, os conhecimentos indígenas são reinterpretados dentro da
paradigmática científica, desconsiderando os modelos êmicos4 (próprios) de explanação e
todo tipo de conhecimento oral de forma geral. A ciência não nega, por exemplo, a potência
de certas plantas medicinais utilizadas pela medicina tradicional. Porém, a sua potência é
explicada como efeito dos seus componente químicos, e não da sua força vital ou espiritual.
Efeitos positivos de rituais de cura são tomados como efeitos “placebo”, desconsiderando
(HUIZE, 1989; STOLLER & OLKES, 1987; CUNHA, 2007.), assim, os modelos explanatórios
apresentados pelos conhecimentos orais e performativos dos próprios povos originários.

Esta situação é problemática porque, deslegitimando conhecimentos culturalmente


diferentes a nível epistemológico como "não-científicos", também desvaloriza as demandas
políticas enquanto povos indígenas por autonomia cultural, que são baseadas nos seus
conhecimentos e valores (LINHART, 2008 e 2012; HORNBACHER, 2005). Ou seja, enquanto
os saberes indígenas continuarem desqualificados como “não científicos” de fato não existe

29
Por ex. o fenômeno da consciência e da subjetividade, o efeito placebo, homeopatia e outras terapias alternativas, rituais de cura,
e outros fenômenos “não-causais” (STILLFRIED, 2010).
30
Por ex. saberes performativos e narrativos como os mitos e rituais em tradições orais, ou a medicina tradicional. 4
Uma descrição êmica parte do ponto de vista, dos conceitos e definições dos pesquisados .
134
um verdadeiro reconhecimento das culturas indígenas como equivalentes à cultura
dominante, e assim permaneceremos numa postura eurocentrista.
O projeto de pesquisa elaborado pelo Coletivo de Pesquisa pela Valorização dos
Saberes Potiguara visa consolidar o conhecimento auto-etnográfico do povo Potiguara e
construir métodos de integração dos saberes Potiguara e do saber chamado científico, para
um reconhecimento pleno das culturas indígenas enquanto sistemas de saber. Deste modo
espera-se contribuir ao trabalho na área da educação indígena para dar continuidade nas
futuras gerações, e trazer efeitos positivos em relação à valorização dos conhecimento
indígenas, e consequentemente, fortalecer as reivindicações políticas do povo Potiguara.

No seguinte apresentaremos a experiência recente do trabalho do Coletivo de


Pesquisa pela Valorização dos Saberes Potiguara que, embora ainda em estado embrional,
exemplifica o potencial e a necessidade de uma cooperação entre a academia e a sociedade
civil, neste caso representado pelos militantes do movimento indígena Potiguara.

Começaremos com um breve esboço do contexto etno-histórico do povo Potiguara,


seguido por um resumo caleidoscópico do discurso sobre o universalismo científico e a
relação entre a ciência moderna e conhecimentos indígenas. Uma vez pincelado o
contexto, segue um relato de experiência do trabalho do Coletivo de Pesquisa pela
Valorização dos Saberes Potiguara, da sua origem, dos objetivos e métodos, e do atual
andamento do projeto em questão.

2 Breve histórico sobre os Potiguara

Os Potiguara estão localizados no litoral norte da Paraíba em relativa proximidade á


capital de João Pessoa (somente uma hora de viagem). A sua população de
aproximadamente 20.000 mil indivíduos vive distribuída em 32 aldeias dentro das suas terras
indígenas, atualmente cobrindo mais de 33.000 hectares, localizadas nos municípios de Baia
da Traição, Marcação e Rio Tinto.
Sua organização política é composta por um Cacique em cada aldeia, auxiliados pelo
Cacique Geral. Os Caciques das aldeias são escolhidos pelos próprios indígenas da referida
aldeia para representá-los nos movimentos indígenas e só sairão quando aquela comunidade
achar que o Cacique não mais a represente nas reuniões para discussão dos direitos
coletivos em melhoria da sobrevivência daquela aldeia.
135
Na Baia da Traição temos treze aldeias, sendo elas: Akajutibiró, São Miguel,
Laranjeiras, Santa Rita, Tracoeiras, Benfica, São Francisco, Cumaru, Lagoa do Mato, Alto do
Tambá, Forte, Silva e Bento. No município de Marcação temos quinze aldeias, que são:
Jacaré de São Domingos, Lagoa Grande, Ybykuara, Três Rios, Brejinho, Tramataia,
Camurupim, Val, Caieiras, Jacaré de Cezar, Carneiras, Estiva Velha, Grupiuna,
Coqueirinho e os Cândidos. Já no município de Rio Tinto temos apenas quatro aldeias sendo
elas: Monte Mor, Jaraguá, Silva de Belém e Mata Escura.
Essas aldeias ficam dentro de três Terras Indígenas (TI). Sendo elas TI Potiguara de
São Miguel, tendo sua situação homologada e registrada. TI de Jacaré de São Domingos,
também homologa de registrada e a TI de Monte mor que foi Declarada e hoje encontra-se
em processo de homologação.
Os Potiguara também tem sua ramificação familiar em outros estados. No estado do
Ceará é onde encontramos um grande contingente de Potiguara bem representativo com
uma longa história de luta pelos seus ideais.
Não se pode falar na Paraíba sem mencionar o nome dos Potiguara. Esse Povo
Indígena lutou bravamente contra os europeus pela Conquista desse estado. Foi nas
margens do rio Sanhuá que houve grandes batalhas sangrentas, onde muitos Potiguara
tombaram na luta e hoje vemos que a historiografia contada por não indígenas esquece de
mencionar fatos tão interessantes que surgiram naquela época.
Isso mostra que a historiografia é escrita muitas vezes por pessoas que não são
conhecedoras desses fatos, omitindo uma parte importante da história. Muitos escritos
passaram pelas nossas aldeias, fizeram suas pesquisas, publicaram seus livros, mas não
levaram em conta a especificidades desse povo. Escreveram livros… Mas nunca terão o
conhecimento cosmológico que cada indígena Potiguara carrega consigo. Os verdadeiros
ensinamentos são hereditários e só os Potiguara que são guardiões dessa sabedoria.
Sabedoria essa que vai além do conhecimento cientifico, aflora a dentro do seu eu, nos
ensinamentos de curas, nas estratégias de sobrevivência e na pacifica harmonia com seu
povo.

Em seus rituais são inseridos elementos da natureza como forma de unificação de


corpo+espirito+terra. Esses elementos sagrados fazem com que os indígenas estejam
ligados com a natureza simultaneamente, havendo aquele respeito e reciprocidade dos
indígenas com a natureza.

136
São cantados versos relacionados a seres mitológico da sua cultura, pedindo proteção
e livramentos. Alguns cânticos são cantados na sua língua Tupi Potiguara:

“Xe Tupã, Xe Tupã, Xe Potiguara. Foi Tupá, Foi Tupã, Sou Potiguara. Xe
Potiguara Kó Tupã yby pupé; Sou Potiguara nesta Terra de Tupã; Arur arara,
karaúna, arur xéxeu, Tem uma arara, carauna e xéxeu, Opá-gûyrá
ybakyguara, Todos pássaros do céu, O-i-me’eng Tupã ixébe, Quem me deu
foi Tupã.”

Os Potiguara são um dos poucos povos que ainda habitam no local onde foram
encontrados pelos conquistadores europeus a 500 anos atrás; tem uma história marcada pelo
contato do não índio onde foram impedidos de falar sua língua materna, sofrendo etnocídios
e genocídios, mas também 500 anos de resistência, luta e sobrevivência. O resultado é um
maior grau de conscientização e de organização política entre os Potiguara. Tiveram que
relacionar-se com os vários atores e instituições da sociedade dominante. Vivendo uma
situação intersocietária (PALITOT, 2005), a sociedade Potiguara construiu-se através das
fricções entre as culturas. Como em muitos outros povos que sofreram grande perda cultural,
a construção de uma identidade étnica como “indígenas” e “Potiguara” pode ser
compreendido, dentro do contexto político, como estratégia de sobrevivência, autonomia
e terra (LINHART, 2008; PALITOT, 2005). Esse processo de “reindigenação” resultou em
uma consciência elevada em relação aos diacríticos que separam o imaginário “indígena” do
“ocidental”, ou seja, dos elementos culturais considerados genuinamente “indígenas”
justapondo-os aos considerados “ocidentais” (PALITOT, 2005).
Devido à sua atividade política e à proximidade das áreas urbanas de Rio Tinto,
Mamanguape e João Pessoa, hoje a educação escolar e acadêmica tem um papel importante
na vida dos Potiguara. Nas várias escolas indígenas das aldeias Potiguara estudam mais de
dois mil alunos. Os professores indígenas estão organizados na Organização dos
Professores Indígenas Potiguara (OPIP). Desde 2005, a UFCG vem oferecendo a
Licenciatura Indígena (no âmbito do PROLIND) com 50 vagas para professores Potiguara;
2008 iniciou a segunda turma com atualmente 48 alunos. E no campus IV da UFPB,
localizado em Mamanguape e Rio Tinto, estudam cerca de 100 alunos Potiguara,
representados pela Associação Universitária Potiguara (AUP). Devido ao contexto altamente
politizado, os estudantes e professores dessas organizações destacam- se por um alto nível
de consciência em relação às diferenças entre o imaginário indígena e o científico.

137
3 Aspectos sociais da ciência moderna

A ciência é, antes de tudo, uma instituição social (LATOUR, 1986); porém, ela também
é uma episteme (FOUCAULT, 2000), ou seja, uma forma específica de conceber o mundo.
Vários autores chamam a atenção para este fato e existe hoje uma longa tradição no
metadiscurso autocrítico da ciência que compreende a própria ciência como seu “objeto”
de pesquisa.
Max Weber (1919) foi um dos primeiros a chamar a atenção para as condições
socioeconômicas dos cientistas, e as implicações das regras sociais que governam a seleção
arbitrária das pessoas legitimadas a produzirem e reproduzirem conhecimentos “científicos”.
Para Weber, as ciências modernas são produto de um processo sócio- histórico5 milenar de
intelectualização, direcionado à dominação do mundo mediante o cálculo, ao
“desencantamento do mundo”. Mas esta intelectualização não levará a uma melhor
compreensão acerca da vida – ela meramente explica como o mundo funciona, mas não por
que ou para que. Sempre provisórias, as ciências negam qualquer verdade última.

Qual é, então, sob estes pressupostos, o sentido da ciência como profissão, após
o naufrágio de todas as antigas ilusões: ‘caminho para o verdadeiro
ser’,‘caminho para a verdadeira arte’, ‘caminho para a verdadeira natureza’,
‘caminho para o verdadeiro Deus’, ‘caminho para a felicidade autêntica’ (idem.,
p. 12)?

Também Gaston Bachelard (2002) via o conhecimento científico como construção e


resultado de processos históricos de formação de uma relação específica do homem
ocidental com o mundo e com a vida. Fatos científicos são produzidos, respondem perguntas
e utilizam instrumentos de medição construídos em base de pressupostos teóricos e
cosmológicos. O desenvolvimento das teorias cientificas não se dá a partir de um simples
acúmulo de conhecimento, senão é marcado por rupturas com teorias anteriores. Bachelard
antecipa assim, o conceito da mudança paradigmática pregado por Thomas Kuhn (1998),
que o progresso científico se dá em forma de revoluções cientificas; estas seriam produto de
intuições, coincidências e fatores sociais, e não do mero acúmulo de dados induzidos pelos
fatos.

5
Robert Merton (1970), inspirado pelo famoso ensaio de Max Weber, O Espirito do Capitalismo e a Ética Protestante,
e seguindo a linha de Durkheim (1912) que vê a ciência enraizada no pensamento mágico e religioso
(BOUDON 1995), relaciona o aparecer das ciências modernas com a ética protestante, que teria fomentado a
dúvida metódica e o espírito crítico (Merton Theory).

138
Já o filósofo Paul Feyerabend (1977), apoiando-se na analise de Kuhn e em dados
históricos, critica a metodologia científica e a desmascara como ideológica31 e governada por
interesses particulares. As ciências, como qualquer outro método epistemológico- heurístico,
seriam baseadas na “contra-indução”, ou seja, em intuições e ad hoc postulados não
falsificáveis, que seriam somente posteriormente justificadas teoricamente através de
discursos racionalizantes e por meios retóricos. Mais ainda, a “contra-indução” seria um sine
qua non para o progresso científico.

Combinando essa observação com a percepção de que a ciência não dispõe de


método especial, chegamos à conclusão de que a separação entre ciência e não- ciência
não é apenas artificial, mas perniciosa para o avanço do saber. Se desejamos
compreender a natureza, se desejamos dominar a circunstância física, devemos recorrer
a todas as ideias, todos os métodos e não apenas a reduzido número deles (idem., p.
462.).

Sociólogos como Bloor (1980) e Barnes (1974) afirmam que os princípios da produção
científica não se distinguem fundamentalmente da produção de outros conhecimentos, por
exemplo de conhecimentos mágicos. Segundo eles, a ciência moderna é parte de uma cultura
específica, da cultura ocidental, e deve ser objeto de estudos sociológicos igual a qualquer
outro sistema de conhecimento. Essa visão relativista, conhecido como Programa Forte, nega
a existência de qualquer racionalidade ou verdade universal. Objetividade e racionalidade
cientifica aparecem como resultados de jogos linguísticos que servem aos interesses de
certos grupos socioculturais (FREEDMAN, 1998).

Bruno Latour critica o Programa Forte por seguir um programa filosófico de cunho
relativista, deslegitimando as ciências exatas enquanto ignora a resultante relatividade dos
seus próprios achados sociológicos. Latour (1987) tenta olhar para dentro da caixa preta das
histórias de origem dos conhecimentos científicos. Para investigar os micro-processos sociais
da produção de fatos científicos, ele aplica pesquisas de campo em laboratórios, utilizando
os métodos qualitativos da antropologia, e a teoria ator-redes. As pesquisas de Latour
relevam que o trabalho cientifico é dominado pela disputa dos atores por recursos, reputação
e carreiras.
O sociólogo Pierre Bourdieu investigou a ciência enquanto instituição
(BOURDIEU,1992), questionou o objetivismo cientifico, e pesquisou a constituição da
realidade por meio

31
Karl Mannheim (1929) já apontou o caráter ideológico de qualquer tipo de conhecimento.
139
do habitus (BOURDIEU, 1997 e 2009). Bourdieu vê à necessidade de objetivar as
condições epistemológicas e sociais da objetivação científica. O objetivismo não seria capaz
de compreender a experiência dóxica e deixaria de objetivar a realidade objetivante
representada pela ruptura epistemológica entre subjetivismo e objetivismo. Esse
objetivismo não-objetivado legitima o monopólio dos cientistas na produção de
conhecimentos legítimos (=”científicos”), porém também priva os cientistas de refletirem
sobre a sua própria subjetividade. Igual a qualquer outra pessoa, os cientistas estão
imersos na illusio do campo, como “jogo por si mesmo”; matriz inquestionável perpetuada
pelo habitus, que determina o que acreditamos e percebemos como verdadeiro e real. Assim,
o capital simbólico dos títulos acadêmicos é reproduzido através da aceitação dos
paradigmas científicos como verdade inquestionável. Simbolizada no discurso científico pela
citação perpétua dos “ancestrais científicos”, articula silenciosamente o poder dentro da
estrutura hierárquica das nossas instituições científicas e educacionais. Desta forma, as
hierarquias nas instituições e nos discursos científicos funcionam como codificações não-
objetivadas que influenciam a própria compreensão objetiva e os resultados do trabalho
cientifico. Consequentemente, Bourdieu propõe uma auto-pesquisa das ciências sociais e
dos seus próprios critérios classificatórios.

Para o filósofo Lyotard (1986), as ciências pós-modernas, sim, estão consciente da


insustentabilidade sistêmica da doutrina positivista; mas como dispositivo performativo de um
sistema tecnocrata e hegemónico, elas estão enredadas na lógica mercantilista de eficiência
produtiva. Isso não responde ao ideal auto-reflexivo das ciências pós-modernas; mas como
instituição, as ciências estão reproduzindo a hegemonia social. Lyotard parte, como Foucault
(1978), de um entrelaçamento de saber e poder como “dois lados da mesma questão”
(idem., p. 35). O ceticismo das ciências pós-modernas frente o próprio meta-discurso, como
ideal da ciência, legitima a sua produção de saberes, contrariando a prática social dominada
por hierarquias e restrições, da qual ela, como instituição, faz parte e que ela continua a
reproduzir.

O filósofo e sociólogo Edgar Morin (2005) analisa a ciência como conjuntura sócio-
epistemológica e cultural “hic et nunc”, e afirma que as regras de jogo da ciência
“constituem a superioridade da ciência sobre qualquer outra forma de conhecimento”.
Porém, o “conhecimento científico não se poderia isolar de suas condições de elaboração,
mas também não poderia ser a elas reduzido” (idem, p. 25). Seria necessário uma ciência

da ciência. Mas Morin também aponta ao problema colocado pelo teorema de Gödel, de que
um sistema semântico não constitui os meios para a sua auto-explicação. Portanto será
necessário estabelecer um meta-sistema que se refere ao sistema analisado como objeto7.

Este problema apontado por Morin, outrora, já foi levantado por Luhmann (1990) quem
descreveu a ciência como sistema autopoietico, recursivo, autônomo e operacionalmente
fechado. A ciência somente aceita métodos e teorias que são resultado e fazem parte da

140
sua própria operacionalidade embasada na distinção verdadeiro/falso. Como resultado,
conhecimentos científicos somente podem ser construídos circularmente. A distinção
verdadeiro/falso refere-se meramente à coerência interna das suas operações, e não à
realidade externa. Fenômenos e conceitos externos que não podem ser integrados
coerentemente dentro da sua própria operacionalidade seriam percebidos como
perturbações ou anomias. Apesar de auto-reflexão e auto-descrição serem caraterísticas
intrínsecas das ciência, os métodos e as teorias utilizadas fariam parte da sua própria
operacionalidade, pois devido ao seu universalismo a ciência somente aceita ser pesquisada
por ela mesma: “E se a compreensão não puder ser alcançada de forma científica, então não
poderá ser alcançada de forma nenhuma” (LUHMANN, 1990, p.343).

Segundo Morin, um possível caminho para enfrentar este problema seria a


descentralização do meta-sistema, ou seja, pesquisar a ciência do ponto de vista de quem
está fora do sistema referencial – por exemplo do ponto de vista indígena8. O grande desafio
seria, então, estabelecer um novo meta-discurso a partir de um ponto de vista exterior ao
sistema que, ao mesmo tempo, seja traduzível para conceitos aceitáveis pelo metadiscurso
científico.

4 A ciência ocidental frente outros saberes

A comparação entre ciência moderna e pensamento indígena é um tópico clássico tanto da


antropologia quanto da sociologia. Seguindo a linha de August Comte, Lévy-Bruhl (1927)
ainda defendia uma teoria do big divide, descrevendo a “mente primitiva” como “mística” e
“pré-lógica”, baseada mais no senso emocional de que em verdadeiro pensamento.

7 Conseguentemente, tal meta-sistema precisava de um outro meta-sistema para auto-questionar-se e assim at


infinitum, o que nos levará ao problema do regresso ao infinito, afirma Morin (2005).
8 O melhor método para a ciência da ciência imaginada por Morin e Feyerabend seria o método antropológico
(MORIN, 2005; FEYERABEND, 1977, p. 378).

141
Já outros sociólogos e antropólogos como Durkheim, Malinowski (1973), Lévi- Strauss
(1998), e Horton (1967), defendem a unidade psicológica da humanidade, interpretando as
diferenças entre pensamento cientifico e mágico como expressão de duas lógicas distintas,
mas igualmente válidas. O grande diacrítico seria, que a ciência ocidental exclui o sagrado e
a experiência subjetiva do seu instrumentário explanatório. Porém, Lévi- Strauss afirma que
se bem que a magia obviamente teria menos resultados verificáveis em termos práticos9, o
pensamento mítico insistiria em criar sentido naquilo de que a ciência ocidental já desistiu 10.

Horton (1967) critica explanações simbólicas de antropólogos, que não seriam aceitas
pelos próprios pesquisados (no caso os africanos). Tanto a ciência, quanto a magia teriam
por fim explicar, predizer e controlar; somente no ocidente essa função seria deferida
unicamente às ciências. Para Horton, a diferença está modo competitivo das ciências de
avaliar perpetuamente as suas teorias, produzindo novas teorias, enquanto em sociedades
tradicionais prevaleceria um modo consensual de teorizar, ou seja, as teorias serão passadas
de geração em geração e consagradas pela sua ancestralidade, dificultando mudanças
paradigmáticas.

Analisando o papel extraordinário da escrita, Jack Goody (2000) a vê como sine qua
non da ciência moderna, do seu método acumulativo de produção de conhecimentos e da
analise lógica. Goody e outros antropólogos como Münzel (1986) e Hornbacher (2005)
apontam o caráter permutável do conhecimento oral e performativo comparado com a fixação
e descontextualização do saber escrito. Ou seja, diferentemente da visão convencional
defendida por Horton, os conhecimentos orais chamados “tradicionais” seriam mais flexíveis
e adaptáveis a novas realidade de que sistemas de saber embasados na escrita, como por
exemplo a ciência moderna.

9
Feyerabend (1976) critica esse tipo de afirmações referente a eficácia de rituais tradicionais seriam feitos sem
nenhum embasamento científico. Os antropólogos como Robert Merton interpretariam por exemplo a dança de
chuva dos Hopi como uma espécie de cola social. Mas nenhum antropólogo registraria a frequência de chuva
antes e depois das danças de chuva para levantar dados estatísticos referente a sua eficácia.
10
O logocentrismo de Leví-Strauss recebeu várias críticas (LINHART, 2008, p. 82, 153; HORNBACHER, 2005, p.
66; BOURDIEU, 2009, p. 70).

142
Stanley Tambiah (1990) aponta que a ciência, como forma especificamente
ocidental de conceber o mundo, não está limitada a uma certa sociedade, senão à
comunidade científica, e pergunta até que ponto a ciência e o postulado de coerência lógica
pode ser referência para a comparação de culturas. Ele critica a inconsistência da disputa
ente defensores de uma incomensurabilidade profunda e defensores de uma semelhança
entre ciência e magia. „Dizer que Gallileo tinha noções ‘incomensuráveis’ e logo seguir
descrevendo-as em detalhe é completamente incoerente” (TAMBIAH, 1990, p. 124)11 . Para
Tambiah, essa disputa aponta a um problema mais geral – da unidade psíquica e da
diversidade cultural: como é que um mesmo psiquismo pode gerar pensamentos
aparentemente incomensuráveis? Tambiah mostra que entre todas os sistemas de saber
existem elementos 1) comparáveis e traduzíveis, 2) diferentes, porem mutualmente
comensuráveis, e 3) elemento incomensuráveis.

A antropóloga Manuela Carneiro de Cunha (2007) chama atenção ao fato de que,


apesar das semelhanças entre ciências modernas e tradicionais apontadas por muitos
antropólogos e sociólogos, existem diferenças fundamentais entre esses dois modos de
conceber o mundo. Porem, é justamente por serem diferentes que os paradigmas e
práticas de ciências tradicionais são uma fonte importante de inovações da nossa ciência,
afirma Cunha.

Todos estes pensadores e cientistas apontam, então, que a ciência moderna é


somente um sistema de saber entre outros, todos social e culturalmente enraizados e
historicamente evolvidos, e todos com as suas potencialidades e limitações específicas, a
sua própria lógica e forma de interpretar o mundo; ou seja, que nada justifica o universalismo
pregado pela própria ciência e a deslegitimação generalizada de qualquer outro sistema de
saber. Pelo contrario, existe uma consciência bastante ampla entre a comunidade científica
referente as limitações do método científico e a necessidade de abrir o discurso científico
para novos paradigmas e conhecimentos oriundos de outros sistemas de saber. E alguns
pensadores levantaram dúvidas referente a possibilidade de uma autocompreensão plena da
ciência de se mesma por razões sistêmicas (MORIN, 2005; LUHMANN, 1990); precisa então
de um ponto de vista de fora do sistema para poder descrever-lo objetivamente.

11
Tradução nossa; lê-se no original: „To tell us that Gallileo had ‘incommensurable’ notions and then to go on to
describe them at length is totally incoherent” (TAMBIAH, 1990, p. 124).

143
O Coletivo de Pesquisa pela Valorização dos Saberes Potiguara tenta estabelecer este
ponto de vista de fora do sistema para construir um novo olhar entre os diversos sistemas de
saber, entre ciência moderna e outros saberes, um olhar de fronteira para construir um

“pensamento de fronteira” (MIGNOLO, 2000)12.


5 O Coletivo de Pesquisa pela Valorização dos Saberes Potiguara

A recente experiência do Coletivo de Pesquisa pela Valorização dos Saberes


Potiguara é intimamente relacionado à formação de um crescente número de acadêmicos
Potiguara (através da formação de professores indígenas pelo PROLIND, mas também
devido à instalação do campus IV da UFPB em Rio Tinto e Mamanguape) e pelo processo
de luta por reconhecimento e território que tomou força a partir da década de 1980 (que
fortaleceu a identidade Potiguara). Surge, assim, um grupo de intelectuais orgânicos
(GRAMSCI, 1982) muitas vezes com formação científica e forte identidade Potiguara.
Esses intelectuais atuam na fronteira entre a cultura dominante e a realidade do povo
Potiguara (RAPPAPORT, 2005); são professores nas escolas indígenas, militantes no
movimento, fazem ocupações de terras apropriadas pelo capital, negociam com
representantes do estado em Brasília, são pesquisadores e construtores de uma nova
identidade Potiguara (PALITOT, 2005).

Foi entre estes intelectuais de fronteira que procuramos interessados em participar na


formação de um grupo para realizar uma pesquisa com o objetivo de fortalecer o
reconhecimento do conhecimento Potiguara e abrir caminhos para uma melhor compreensão
tanto dos próprios saberes Potiguara quanto dos mecanismos de deslegitimação científica
dos conhecimentos indígenas em geral.

Apesar do caráter bastante abstrato e teórico da pesquisa (inicialmente proposta pelo


antropólogo alemão Jan Linhart) ela encontrou amplo apoio tanto entre as principais
lideranças (Cacique Geral Sandro Gomes, José Ciriacu “Capitão”, Antônio Pessoa
“Caboquinho”, etc.) quanto entre os acadêmicos Potiguara. As primeiras articulações do

12
Segundo Walter Mignolo (2000) o sistema mundo moderno/colonialidade pode ser compreendido meramente desde
a sua exterioridade; somente assim será realizada a necessária ruptura com o eurocentrismo como perspectiva
epistemológica; somente a partir de um pensamente desde um outro lugar, a partir de uma outra lógica, um
“pensamento da fronteira”, uma dupla crítica tanto dos saberes dominantes quanto dos saberes subalternos. Assim,
o pensamento da fronteira abre caminho para uma nava visão da diversidade alem do logocentrismo (ESCOBAR,
2003) .

144
projeto já aconteceram em 2013 “nos corredores” da grande assembleia Potiguara, porem a
formação do grupo e a concretização dos seus objetivos realizaram-se somente a partir do
final de 2015 e ainda encontra-se em fase embrional. Atualmente o Coletivo tem dez
membros ativos, entre eles um professor doutor da UFCG, dois professores mestres, uma
mestranda, entre professores licenciados em educação indígena e graduados de outras
áreas.

Recentemente o Coletivo foi vinculado à UFPB por meio da participação no Grupo de


Estudo e Pesquisa em Educação, Etnia e Educação Solidaria (GEPeeeS), consolidando o
seu científico.

Porem, apesar deste vínculo oficial, trata-se de uma iniciativa não institucional e sem
nenhum financiamento externo, baseando-se meramente no engajamento voluntário dos
membros do Coletivo.

5.1 Objetivos do Coletivo

Devido ao seu caráter participativo a proposta inicial do projeto de trabalhar somente


a questão da desvalorização dos conhecimentos indígenas sofreu mudanças significativas.
Atualmente o coletivo define como seu objetivo principal:

Contribuir na luta do povo Potiguara por reconhecimento e autonomia cultural, educacional


e territorial, fomentando a horizontalidade entre os saberes indígenas e a ciência moderna
para fortificar as demandas políticas e criar instrumentos para a educação escolar indígena
(COLETIVO etc., 2016).

Essa definição bastante ampla serve como guarda-chuva de diversos trabalhos


científicos que surgiram e continuam surgindo das necessidades reais identificadas pelos
próprios integrantes Potiguara que fazem parte do Coletivo.

Um dos resultados mais importantes desse processo de construção coletiva se deu a


partir da necessidade de construir um autoconhecimento aprofundado referente os próprios
conhecimentos Potiguara. Foi constatado que para realizar a proposta inicial de “equiparar
os conhecimentos Potiguara com o saber dominante (considerado “científico”) com fins de
legitimar os conhecimentos Potiguara frente o saber dominante” e “estabelecer o discurso

145
sobre a problemática da deslegitimação dos saberes indígenas dentro do discurso científico
e político” (idem.) faltava uma base consolidada de conhecimentos Potiguara.

Dessa necessidade resultou o objetivo de realizar uma auto-etnografia e uma


biblioteca juntando e disponibilizando todo o conhecimento sobre o povo Potiguara, a sua
historia e cultura. Isso se deu devido ao fato de que muitos Potiguara, especialmente dos
mais jovens, não se sentem suficientemente portadores dos saberes do seu povo e
portanto precisam criar um acúmulo através de entrevistas e vivencias com os anciões da
comunidade, considerados portadores dos conhecimentos Potiguara, ou seja, através de
pesquisas auto-etnográficas. Outra razão foi que aparentemente existem vários trabalhos
sobre o povo Potiguara, inclusive de autores Potiguaras, porem, inexiste uma etnografia
completa sobre este povo, e muito menos uma auto-etnografia que reflita a visão própria dos
Potiguara de se mesmos.

Obviamente tal trabalho etnográfico incluirá uma pesquisa documental e


bibliográfica, o que nós trouxe diretamente para um outro problema, que é o difícil acesso à
literatura sobre os Potiguara. A grande maioria dos trabalhos sobre os Potiguara representam
TCCs, monografias e teses de graduandos, mestrandos ou doutorandos (AZEVEDO, 1986;
PALITOT, 2005; VIEIRA, 2010; etc.), muitos destes com pouquíssima repercussão. Outras
fontes importantes são documentos originais armazenadas em arquivos em Rio de Janeiro e
outros locais distantes e praticamente fora do alcance dos Potiguara (MOONEN & MAIA,
1992; CARDOSO & GIMARÃES, 2012; etc.). Esse fato levou-nos a ideia de criar uma
biblioteca com todas as fontes existentes sobre os Potiguara em um local de fácil acesso para
a comunidade, sobre tudo para os professores e alunos das escolas indígenas.

Realiza-se, então, nesta flexibilidade e dinamicidade conceitual o espírito da pesquisa-


ação (BRANDÃO & BORGES, 2007) enquanto um projeto de empoderamento que realmente
da espaço para as visões e necessidades da comunidade alvo.

5.2 Trabalhos e métodos de pesquisa

O projeto de pesquisa como um todo tem um formato de pesquisa-ação participante


com fins de empoderamento do povo Potiguara. É mobilizado, organizado e realizado por

146
lideranças, comunidades e pesquisadores ligados às causas do povo Potiguara,
responsáveis pelo direcionamento e execução da pesquisa, não como “objetos”, senão como
sujeitos e atores ativos. Todos estes trabalhos envolvem pesquisas documentais,
bibliográficas e pesquisas de campo com entrevistas e observações participantes.

O trabalho de pesquisa não somente envolve a comunidade a nível da construção de


conteúdos durante o trabalho dos pesquisadores nas aldeias no âmbito das suas entrevistas
e estadias de campo.

Para garantir a participação da comunidade Potiguara a nível conceitual do projeto o


Coletivo realiza seminários bianuais onde uma ampla gama de participantes participa nas
articulações e construções coletivas. São convidados os caciques e outras lideranças,
professores das escolas indígenas, estudantes e acadêmicos indígenas e não indígenas. O
formato do seminário abre espaço para um debate a nível conceitual referente o trabalho do
Coletivo e ao mesmo tempo fomenta a construção coletivo dos conhecimentos específicos
trabalhados nos vários GTs realizado durante o evento.

Atualmente, os pesquisadores do Coletivo estão iniciando trabalhos de pesquisa em


várias áreas de conhecimento do povo Potiguara (medicina, direito, educação, cosmologia,
história, geografia, etc.) e referente a constituição e estrutura do conhecimento ocidental
científico. Cada membro do Coletivo está envolvido em pesquisas referente uma ou mais
dessas áreas, formando assim pequenos grupos ou duplas de pesquisa. É importante
ressaltar que nesta divisão de trabalho os membros Potiguaras desenvolvem trabalhos auto-
etnográficos sobre os conhecimentos Potiguara enquanto os membros não-indígenas focam
questões epistemológicas, sociais e históricas referente as ciências modernas e a sociedade
dominante. Partimos, então, da ideia de que os próprios portadores da cultura objeto sejam
mais qualificados para compreender, analisar e descrever estes conceitos de que
pesquisadores oriundos de outras culturas; ou seja, invertemos o antigo paradigma da
etnografia que postulava que a alteridade e o distanciamento seria necessária para garantir
a objetividade. Não tentamos mais evitar tornar-nos índios (going native) senão é
justamente o fato de sermos indígenas de fronteira, imersos e distantes ao mesmo tempo,
que garante a compreensão mais profunda e ao mesmo tempo crítica dos conceitos da
própria cultura.

147
Essa postura da fronteira será também o ponto de partida para a justaposição dos
conceitos epistemológicos Potiguara com os paradigmas da ciência moderna, para
identificar os paradigmas científicos responsáveis pela deslegitimação dos conhecimentos
indígenas, e para construir pontes sobre estes abismos epistemológicos.

Um dos método proposto para encontrar nexos entre os conceitos conflitantes é a


reinterpretação de conceitos chaves elaborada pelos intelectuais indígenas do Consejo
Regional del Cauca, Colômbia, (CRIC). Neste método de apropriação de conceitos alheios,
conceitos chaves (como vida, saber, poder, etc.) são reinterpretados em processos de
reflexão coletiva, dando novos significados aos conceitos de origem13. Desta forma, o
Coletivo funcionará como laboratório e espaço intercultural e mediador entre o contexto
acadêmico e o contexto indígena, e para a construção coletiva de novos conceitos e
dispositivos.

6 Conclusão

A experiência do Coletivo de Pesquisa pela Valorização dos Saberes Potiguara ainda


é muito nova para tirar conclusões definitivas sobre os possíveis efeitos da sua atuação.
Porém, o mero fato da sua existência já revela alguns aspectos interessantes sobre o povo
Potiguara e a realidade em que vive. Como mostramos acima, somente com a presença de
intelectuais de fronteira com uma sólida formação acadêmica foi possível formar este Coletivo
de Pesquisadores. Esse fato mostra uma das profundas mudanças na vida dos Potiguara.
Enquanto hoje os integrantes do Coletivo tem graus acadêmicos, os seus pais muitas vezes
nem tiverem acesso ao ensino fundamental e se orgulham imensamente dos seus filhos. A
formação dessa nova geração de intelectuais acadêmicos entre os Potiguara pode ser visto
como resultado dos esforços da geração dos seus pais por buscar melhorar as condições de
vida dos seus filhos frente as novas exigências da sociedade dominante.

Porém, a necessidade de realizar auto-etnografias para se tornarem portadores do


conhecimento oral dos seus pais e avós demonstra também o forte processo de perda
cultural que essa nova geração Potiguara está sofrendo, contrariando a sua busca por
identidade étnica e o orgulho de serem Potiguara. Pois, como o trabalho do Coletivo

13 Conceitos como o “buen vivir” ou o “derecho de la naturaleza, pachamama”, que forma inseridos nas novas
constituições da Bolívia e do Equador, são resultados deste método que demostram o seu potencial político (RAMOS
& RAPPAPORT, 2005).
148
não oferece nenhuma recompensa financeira, é somente a vontade de servir ao seu povo que move
os integrantes do Coletivo; ou seja, somente a sua forte identidade étnica como Potiguara é a força
motriz para estes intelectuais. E isso mostra que apesar das profundas mudanças nos seus planos
e estilos de vida os Potiguara de hoje não são menos Potiguara que os seus antepassados, mas
muito pelo contrário, seguidores na luta pela continuidade do seu povo. Não sabemos o futuro do
nosso Coletivo de Pesquisa nem dos impactos que o nosso trabalho possa gerar, porém a sua mera
existência já é um grande sucesso e indicador para a força do povo Potiguara e a sua habilidade de
se adaptar às novas exigências sem deixar de ser Potiguara.

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ESCRITA E ORALIDADE: SOBRE O PAPEL AMBIVALENTE DO USO DA
ESCRITA NAS ESCOLAS INDÍGENAS.

Profa. Ms. Maika Bueque Zampier


Departamento de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal da
Paraíba prof.maikazampier@gmail.com

Pedro Eduardo Pereira “Kaaguasu”


Secretaria de Educação do Município de Marcação
kaaguasupotiguara@hotmail.com

Orientador: Prof. Jan Linhart


Doutorando, Universidade Europeia Viadrina (Frankfurt Oder, Alemanha)
jan.linhart@yahoo.de

Resumo:
As culturas e os conhecimentos orais estão em um processo acelerado de
desaparecimento, ou pelo menos, em um processo de transformação radical - da oralidade
para a escrita. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, a escrita representa um recurso
indispensável na luta pela continuidade das culturas orais. O presente ensaio discute essa
relação ambivalente entre a oralidade e a escrita de forma crítica e leva estes
questionamentos para o campo da educação escolar indígena. Partindo de algumas reflexões
sobre o papel da escrita na formação do pensamento e da sociedade moderna, o texto aponta
as profundas diferenças entre os conhecimentos orais e escritos, e o tamanho dos impactos
sociais, políticos e cosmológicos relacionados ao advento da escrita. Os autores, todos
profissionais e especialistas na área da educação indígena, chamam a atenção para os
possíveis impactos e riscos do uso da escrita como instrumento do resgate e da revivência
cultural pelos intelectuais indígenas e no âmbito da educação escolar indígena. Longe de
negar a importância e a necessidade do domínio da escrita pelos povos indígenas, os
autores procuram incentivar uma reflexão profundo sobre o valor da oralidade, e o uso
crítico e virtuoso da escrita em favor dos povos, porém, sem entrar em conflito com a
oralidade.

Palavras chave: Oralidade, escrita, conhecimento, educação indígena, revivência cultural.

153
Abstract

Oral cultures and oral knowledge are in process of disappearing, or at least, of radical
transformation - from orality to literacy. At the same time, and paradoxically, writing represents
an indispensable resource in the struggle for survival and continuity of oral cultures. The
present work discusses critically the ambivalent relation between orality andliteracy and brings
these questions to the field of indigenous education. Starting with some reflexions on the roll
writing played within the transformations that brought modern thought and society into being,
the text outlines the profound differences between oral and written knowledge, and the
enormous social, political and cosmological impacts related to the advent of writing. The
authors, all of them professionals and experts in the field of indigenous education, draw
attention to possible impacts and risks that may come with the use of writing as a tool for the
maintenance and continuity of oral cultures as currently driven by indigenous intellectuals and
in the scope of indigenous school education. Without questioning the important role of writing
for today’s indigenous people, the authors intend to motivate for more profound reflexion on
the very value of orality, and for a more critical use of writing in favour of indigenous peoples
interests, without entering in conflict with orality itself.

Keywords: Orality, literacy, knowledge, indigenous education, cultural reliving.

Introdução

Escrevemos e lemos com tanta naturalidade, que poucas vezes questionamos o que
a escrita significa para a nossa forma de viver e pensar. De modo geral, a habilidade de ler e
escrever é visto como requisito indispensável para uma vida digna na nossa sociedade. De
igual forma, a educação escolar e a alfabetização são debatidos, quase unanimemente, como
objetivos importantes e louváveis. É claro que, a nível individual, saber ler e escrever é uma
questão decisiva em termos sociais, culturais, e sobretudo econômicos - é uma questão de
sobrevivência - pelo menos na nossa sociedade.

154
Porém, poucas vezes perguntamos o que seria da nossa sociedade se não
houvéssemos desenvolvido a escrita. Existiu uma época em que as sociedades tiveram
culturas e conhecimentos puramente orais e performativos, e aliás, ainda existem culturas e
conhecimentos que não estão embasadas em letras. Um exemplo muito citado de tais
culturas orais são as culturas indígenas e, de modo mais geral, os conhecimentos chamados
“tradicionais” ou “populares”.
É um fenômeno da nossa época que essas culturas e os conhecimentos orais estão
em um processo acelerado de desaparecimento, ou pelo menos, em um processo de
transformação radical - da oralidade para a escrita. Comumente o processo da transcrição
de conhecimentos orais é visto como uma medida necessária para a preservação desses
conhecimentos frente a ameaça da sua perda definitiva devido ao processo de
normatização causado pela modernidade/colonialidade (ESCOBAR, 2003). Pelo outro lado,
sabemos que a mera documentação dos conteúdos desses conhecimentos orais não pode
substituir o que chamamos de vivência ou prática cultural. Por mais que a escrita seja um
instrumento extremamente poderoso, tendo várias vantagens comparado com a mera
oralidade, ela é deficiente em outros aspectos. Um texto jamais substituirá a performance, a
prosódia e o tom da voz do narrador, e nem a luz, o cheiro e o calor da fogueira em torno da
qual os seus ouvintes estão sentados, nem a imagem das sombras do narrador, e muito
menos a vivência de rituais e práticas culturais e mágico-religiosas. Portanto a transcrição de
conhecimentos orais, além de incompleta, sempre representa uma transformação em um
outro tipo de conhecimento de uma qualidade essencialmente diferente.
Porém, ao que gostaríamos chamar atenção aqui é um outro aspecto, se bem que
relacionado, que consideramos ainda de maior alcance e complexidade: O papel fundamental
da escrita para a constituição da episteme moderna, ou seja, a nossa cosmovisão e o nosso
modo de viver, e as possíveis consequência da transcrição dos conhecimentos orais no
contexto da educação indígena como instrumento da revivência e continuidade cultural dos
povos originários.
Para esclarecer as nossas preocupações será necessário voltar o nosso olhar para
a origem da escrita, as suas caraterísticas específicas e os seus impactos no pensamento
ocidental.

O surgimento da escrita

155
Sem dúvida, a escrita foi uma das invenções culturais mais importantes da
humanidade. Vale apontar que os achados arqueológicos indicam que a escrita foi inventada
varias vezes e independentemente em diferentes continentes e épocas, no Oriente Médio,
na Europa, na China, na África e nas Américas (CRYSTAL, 1997). Os primeiros relatos do
uso da escrita do tipo coniforme no Oriente Médio remontam ao quarto milênio antes de Cristo
nas culturas dos Sumérios, da Babilônia, dos Assírios e Hititas, e serviam inicialmente a fins
econômicos e fiscais, ou para impor códigos de lei (Codex Ur- nammu). Já os hieróglifos
egípcios foram utilizados durante os três milênios antes de Cristo, principalmente para
eternizar o poder dos faraós. E nas américas achamos pictografias dos Olmecas, Zapotec,
Maya e outras culturas, igualmente fazendo alusões aos grandes lideres da época ou com
funções ritualísticas, como foi também o caso das primeiras inscrições chinesas que achamos
em ossos de animais. De forma geral parece que a escrita surgiu em sociedades hierárquicas
e serviu primeiramente como instrumento para facilitar a administração estatal e econômica,
para consolidar o poder estabelecido da época, ou em contextos mágicoreligiosos (por
exemplo na China). Não sabemos de indícios que estas primeiras formas de escrita tenham
substituído o conhecimento oral de forma significante.
Essa situação parece mudar com a consolidação de sistemas fonológicos durante os
dois primeiros milênios antes de Cristo entre os povos semitas, os Fenícios e finalmente com
o desenvolvimento do primeiro sistema plenamente alfabético pelos Gregos (entre 900 e 400
a.C.). Diferentemente de outros sistemas não-fonológicos (pictografia, ideografia, logografia,
etc.), que fazem uso de centenas ou milhares de símbolos, sistemas alfabéticos são capazes
de expressar praticamente qualquer conteúdo em qualquer idioma com apenas algumas
dúzias de letras. A sua simplicidade e forma direta de transcrição de cada fonema com uma
letra certamente ajudou muito para a sua difusão entre um grupo mais amplo de pessoas e
além dos contextos restritos da administração e veneração do poder estabelecido, ou da
religião.
O desenvolvimento pleno da escrita grega e a sua unificação e ampla difusão na
sociedade antiga coincide com o início da filosofia ocidental (a partir de 600 a.C.). É o início
de um novo discurso sobre a verdade que resultará em uma profunda transformação
cosmológica, social e política. Os primeiros filósofos gregos (Tales de Mileto, Empédocles,
Pitágoras, Heráclito, Parmênides, etc.) entraram em um discurso sobre os princípios do
mundo (αρχη, arché) que perpassara os séculos e milênios, até hoje. Somente o amplo uso
da escrita (por mais que ainda esteja restrito à aristocracia grega) como veículo desse novo

156
discurso sobre a verdade possibilita a referencia a ideias de pensadores de outras épocas.
Se estes filósofos não estivessem escritos textos anotando as suas ideias, hoje nem
sabíamos da sua existência (como quase aconteceu com Sócrates e Diógenes de Sinópe,
que não anotaram as suas ideias e somente são conhecidos hoje, porque outros, como
Platão, Diógenes Laércio, etc., escreveram sobre eles. Esse fato, que parece trivial, tem
gravíssimas implicações. É somente com a escrita que podemos construir um
conhecimento acumulativo, sempre aperfeiçoando e aprofundando todos os pensamentos já
publicados, até então (GOODY, 2000). Entramos em diálogo, ou melhor, em uma disputa
com pensadores e pesquisadores de todas as épocas, comparando as suas ideias e
competindo com elas. Se o conhecimento oral vinha dos ancestrais enquanto coletividade
primordial, textos escritos tem autores, representam ideias de certos indivíduos, ou seja, o
conhecimento em si passa a ser visto como construção de sujeitos individuais, de mentes
racionais (HORNBACHER, 2005). E é somente através do discurso por meio escrito que
podemos analisar as ideias e avaliar a sua coerência lógica 1. Diferentemente à fala que
representa um fluxo efêmero de comunicação, o texto alfabético é constituído por frases,
palavras, ou seja, conceitos claramente separáveis. O leitor pode analisar cada argumento
com calma, reler, voltar á partes anteriores, comparar argumentos e conceitos, e avaliar a
sua coerência lógica. O conhecimento passa a ser visto como produto de mentes racionais e
a lógica como único critério da verdade. Esse é o momento em que o logocentrismo ocidental
nasce e em que o conhecimento oral, ou seja o mito, é deslegitimado como ilusão.
O nascimento do sujeito autônomo e o fim do mito

A ruptura entre mythos e logos efetuada por filósofos como Xenófano e sobretudo por Platão
(por volta de 500 a 350 a.C.) pode ser analisada como a primeira negação do saber oral e a
fundação do conceito representacional da verdade. Com o uso da escrita como meio da
construção de conhecimento foi abandonado o conceito performativo- narrativo de aletheia,
que tinha o significado de lembrança (mnemosyne) ainda utilizado por Hesíodo (por volta de
700 a.C.). A intima inter-relação entre linguagem e pensamento foi transformada; a verdade
não aparece mais como som do mundo, senão como imagem do mundo, como unidade da
ideia e da escrita. O texto, como produto de uma mente individual, implicava um outro
conceito de compreender, como representação mental. O homem torna-se sujeito da sua
fala, do seu pensar e da sua verdade, e separa-se da “tradição da lembrança coletiva da

157
épica oral” (HORNBACHER, 2005: p. 173)32. A fonte de todo conhecimento não são mais os
ancestrais e a experiência espiritual, senão a mente racional do homem. Nasce assim, o
sujeito autônomo como figura central do pensamento ocidental, sobre tudo do iluminismo e
do humanismo, ou seja do pensamento moderno - o homem, enquanto indivíduo e razão
lógica (cogito).
É o racionalismo radical do iluminismo, e mais tarde a ciência como a sua forma
institucionalizada, que se apresenta como caminho que leva das trevas do mito para a luz da
razão, e que portanto sempre se articula em oposição à tradição, ou seja, como o oposto do
mito.

Como o oposto, porquê se opõe à obrigatoriedade autoritária de


uma corrente de gerações de tradições entrelaçadas à força não-
coerciva do melhor argumento; como força que rege contra,
porque deve quebrar a pressão dos poderes coletivos através de
conhecimentos alcançados individualmente e transformados em
motivos (HABERMAS, 1988, p. 131).

É o “começo da história ocidental, de uma luta inerente entre uma visão performativa
e uma visão representacional de conhecimento, às quais respondem duas formas distintas
de reflexão” (HORNBACHER, 2005, p. 440). Como base principal da autoestima da ciência,
este movimento no pensamento ocidental é também o primeiro pré- requisito do
universalismo epistemológico 3 , justamente aquele postulado que nega a validade de
todas as outras formas de saber, desmistificando-os como ilusórios. “Desde o início a ciência
está em conflito com a narração. Julgada pelos critérios da ciência, a maioria das narrações
parecem ser fabulas” (LYOTARD, 1986, p. 13).

1Jack Goody (2000) aponta que operações lógicas como por exemplo o silogismo de Aristoteles seriam possível
somente com a escrita.

32
Esta concepção do falar e do pensar mostra-se também na etimologia da palavra “ler” (que vem do latim, legere, e mais
antes do grego, logos).
158
Essa transformação do saber ocidental levará também a transformações nas
estruturas de poder, utilizando um argumento iluminista e emancipatório. “A iluminação,
porém, no pensar ocidental sempre toma a forma de uma ruptura radical com a tradição, e é
realizada como emancipação crítica” (HORNBACHER, 2005, p. 164).
A legitimação ancestral do saber e do poder legítimo através dos “maître de verité”,
dos donos da verdade, dos “poetas, profetas, e reis”, foi colocado em oposição a uma filosofia
reflexiva, cujo ponto de partida e objetivo era o individuo (idem., p. 172). Porem, a aletheia
tão pouco era uma mera repetição não refletida do tradicional.

Duas coisas parecem notáveis para o contexto etnográfico: Primeiro, a aletheia,


como conceito auto-suficiente e explícito, caracterizava a tradição mítica que Hesiod
havia definido em contraste do esquecer, da lethe, por um lado, e da fala subjetiva por
outro. Então a palavra das musas em si era ambivalente, ou melhor: ela não
transmite uma verdade universal, mas precisa ser distinguida reflexivamente daquilo
que meramente parece verdadeiro (idem., p. 180).

A diferença principal entre mythos e logos, portanto, não consiste no seu potencial
reflexivo, ou na ausência do mesmo (ambos tem o seu próprio modo de reflexão), senão na
legitimação por uma outra autoria, que agora é o indivíduo, o autor, e não mais a coletividade
dos ancestrais.
A negação do mito leva ao “desencantamento do mundo” (WEBER, 2005),
substituindo as forças espirituais e o mistério pelo cálculo, por modelos abstratos e contra-
intuitivos, “um reino trasmundano de artificiosas abstrações que, com as suas pálidas mãos,
tentam captar o sangue e a seiva da vida real, sem jamais conseguir” (WEBER, 2005, p. 15).
Porém, o desencantamento do mundo não é recompensado com verdades mais seguras,
senão pelo contrario, com a incerteza devido à impossibilidade de chegar a qualquer verdade
absoluta em um sentido ontológico ou metafísico. O modelo representacional do mundo,
intrínseco ao mundo do sujeito autônomo, encapsula a verdade dentro da mente humana
e a sua habilidade limitada de enxergar e compreender o mundo real das “coisas em si”
(KANT, 1787).

3 “Paradoxalmente essa hipótese da universalidade da razão humana leva à equivalência cultural de saberes diferentes”
(idem., p. 164).
159
É certo que seria difícil mostrar que o mundo moderno seja um efeito inevitável da
escrita alfabética4. Porem, perante o mostrado parece evidente que o desenvolvimento do
pensamento ocidental é intimamente ligado ao uso da escrita alfabética como veículo do
saber. Ou seja, a escrita não é uma condição suficiente para explicar o surgimento da
modernidade, da ciência e do capitalismo global, porém a escrita é uma condição
necessária (sine qua non) desses fenômenos.

A escrita e o poder

Nos seus famosos estudos sobre a origem do sujeito no pensamento ocidental,


Michel Foucault analisou as mudanças históricas nas regras do discurso sobre a verdade e
a sua função de legitimar regimes de poder (seja ele econômico, político ou religioso).
Perante esses estudos, seria tolo achar que as mudanças no saber ocidental
induzidas pelo advento da escrita não tenham resultado em mudanças profundas na
constituição do poder, da estrutura social e econômica.
O que isso tudo afinal mostra, é que existe uma relação não somente entre a ordem
da verdade e o poder, mas também entre os meios da construção do saber e a verdade. O
meio (oralidade/escrita/multi-mídia5) do conhecimento não é neutro em relação à constituição
e o significado do saber. Isso significa que o fato de uma sociedade optar por utilizar a escrita
como veículo do seu conhecimento leva inevitavelmente a mudanças sociais, políticas e
econômicas. Quais essas mudanças serão certamente depende do contexto específico
daquela sociedade na sua situação histórica. Porém, o estudo das mudanças históricas em
reação ao surgimento da escrita mostra uma tendência da escrita de induzir certas
transformações cosmológicas, culturais e sociopolíticas.

4
Existem diversos exemplos de culturas com sistemas alfabéticos que desenvolveram outras propostas cosmológicas e epistemológicas, como por exemplo
as culturas árabes/muçulmanas, indianas/hindus, a cultura medieval/católica, entre outras. Porém, trata-se nestes casos de sistemas religiosos onde um
conjunto limitado de textos religiosos funciona como ponto referencial para todos os demais textos. Estes textos são tidos como fonte de uma verdade divina e
inquestionável; os demais textos meramente interpretam estes textos canônicos, mas dificilmente disputam com eles.
Mas um ponto que essas culturas literárias tem em comum com o conhecimento ocidental é a negação da oralidade como fonte da verdade.

160
Jack Goody (2000) aponta que a origem da escrita é intimamente relacionada ao
poder hierárquico. Segundo este autor o poder da palavra escrita tem a tendência de dominar
a palavra oral. Consequentemente, culturas literárias tem a tendência de submeter as
culturas orais. Goody explica esse poder das culturas literárias com o modo acumulativo do
conhecimento escrito que resultaria em uma transformação das operações intelectuais (o que
ele chama de “tecnologias do intelecto”). As técnicas intelectuais resultantes do uso da
escrita teriam a caraterística de serem extremamente adequados para o
estabelecimento e a administração de sistemas hierárquicos.

Lévi-Strauss levanta a hipótese provocante que a escrita, de forma geral, tenha a


tendência de levar a sistemas hierárquicos e à escravidão:

Se se quiser por em correlação o aparecimento da escrita com certos traços característicos da


civilização, devemos procurar em outra direção. O único fenômeno que fielmente a acompanhou foi a
formação das cidades e dos impérios isto e, a integração num sistema politico de um número considerável
de indivíduos e sua hierarquização em castas e em classes. Tal e, em todo caso, a evolução típica a que
assistimos, desde o Egito até a China, no momento em que a escrita faz a sua aparição: ela parece
favorecer a exploração dos homens antes de iluminá-Ios. […] Se minha hipótese for exata, é preciso admitir
que a função primaria da comunicação escrita é facilitar a servidão (LÉVI-STRAUSS 1957, p. 318).

Segundo Lévi-Strauss, o argumento que a escrita facilitaria a democratização do


conhecimento e que ela seria um instrumento eficiente para o avanço cultural e
tecnológico, é ideológico. No fundo, os esforços estatais pela alfabetização da população não
teriam o objetivo de libertá-los, mas pelo contrário, de controlá-los, obrigá-los a obedecerem
às leis e para eles serem úteis membros dentro de um sistema de exploração. Esta seria
também a razão pelo interesse em alfabetizar os povos colonizados, afirma Lévi- Strauss,
ainda especificando que o acesso a escolas e bibliotecas viabilizaria a manipulação
através das “mentiras” contidas nos documentos escritos.
Essa visão de Lévi-Strauss certamente marca um posicionamento extremo e deve
ser considerado com cautela, apesar de encontrar bastante sustento nos fatos históricos.
Mas de toda maneira devemos levar essas alertas a sério e repensar a nossa relação com a
escrita e das possíveis implicações da introdução da mesma em culturas orais.

5
Veja o discurso crítico de Adorno (ADORNO, 1971)

161
O conhecimento oral

A caraterização de culturas orais como “tradicionais” subsome que os conhecimentos


orais sejam passados de geração para geração de forma inalterada. Essa visão implica um
mito essencialista, e afinal também evolucionista, que vê as culturas orais como imutáveis
testemunhas, ou “fosseis vivos”, de épocas passadas. Mesmo antropólogos como
Claude Lévi-Strauss (1989) e Robin Horton (1967), cujos trabalhos procuraram valorizar os
conhecimentos orais e colocá-los em um mesmo patamar com o conhecimento científico,
permanecem nesta lógica.
Fazendo uma comparação do conhecimento oral com a ciência ocidental, o
antropólogo Robin Horton (1967) mostra que os conhecimentos orais não são menos lógicos
ou menos coerentes que o conhecimento científico. Porém, segundo Horton, esses dois tipos
de conhecimentos seriam diferentes no seu modo de teorizar. Conhecimentos orais seriam
embasados na repetição quase inalterada dos conhecimentos ancestrais conforme a
interpretação consensual do grupo (modo consensual de teorizar), enquanto a ciência está
embasada na competição entre uma diversidade de ideias individuais (modo competitivo de
teorizar), levando ao progresso contínuo do conhecimento científico.
Essa visão corresponde também à visão estruturalista de Lévi-Strauss, onde o mito
aparece como conhecimento coletivo enquanto manifestação das estruturas socioculturais do
grupo. Assim, o caráter coletivo do conhecimento oral é interpretado como epifenômeno da
estrutura onde os narradores seriam meros reprodutores de conteúdos imutáveis
O antropólogo Mark Münzel (1986) critica que essa redução do mito ao seu conteúdo
ignora o seu caráter essencialmente artístico e performativo, e mais importante ainda, as
interpretações individuais de cada narrador. Cada narrador desenvolve o seu estilo artístico
dentro de diversas linhas de “literatura oral” para expressar as suas interpretações dentro do
seu contexto e em base da sua experiência. O narrador vai fazer uso da entonação, do ritmo

162
e altura da sua voz, da melodia, do uso poético das palavras, de gestos e expressões faciais,
sons onomatopéicos, do clima do ambiente, entrar em sintonia com a sua platéia, ele pode as
vezes dançar ou cantar, sempre adaptando a sua performance ao contexto e aos seus
ouvintes, para criar toda uma situação sinestésica e emotiva com o objetivo de repassar certas
experiências e sensações para os seus ouvintes que preenchem o dito com significado, com
a facticidade da vivência. Segundo Münzel, é justamente o caráter performativo e a
pluralidade das interpretações artísticas dos vários narradores que destacam o mito do
conhecimento escrito.
Diferentemente à pluralidade do conhecimento oral, o conhecimento escrito sempre
compara todas as propostas existentes dentro de um único arcabouço lógico, e portanto,
permite somente uma única versão como verdadeira. O resultante logocentrismo procura
transcrever os mitos e analisá-los para descobrir a sua “lógica”. Porém, as transcrições, como
extração do mero conteúdo, aniquilam justamente o que a oralidade tem de mais precioso: a
interacionalidade, a performance artística, a sinestesia e a contextualidade.

If the anthropologist is often attempting to give an account of chunked and non-sentential


knowledge in a linguistic medium (writing), and she has no alternative, she
must be aware that in so doing she is not reproducing the organization of the
knowledge of the people she studies but is transmuting it into an entirely different logical
form (BLOCH,
1998, p. 15).

Uma vez reduzidos ao seu conteúdo, os mitos são analisados como se fossem
estruturas coerentes ou, pior, descaracterizados como “irracionais”, “não-reflexivos”,
meramente emotivos ou “pré-lógicos” (LEVÍ-BRUHL, 1927). Contra tais reduções, Münzel
aponta que é justamente a permutabilidade e reflexibilidade resultante das perpetuas
interpretações individuais pelas inúmeras gerações de narradores que garante uma
extrema adaptabilidade dos conhecimentos orais aos contextos atuais. Tendo essa
contradição em vista, Münzel levanta a questão se a distinção entre ratio e emotio
realmente existe, ou seja, se não é o caso que nós ocidentais separamos o que para muitas
culturas orais é inseparável. Não seria o caso que nós “logocentristas” supervalorizamos a
escrita como veículo da lógica, tão preciosa para nós, desvalorizando a oralidade e a
performance, enquanto culturas orais como os povos indígenas utilizam a escrita meramente
como ferramenta complementar na luta pelos seus direitos?
163
Por mais que existe uma diferença incontestável entre as culturas orais e a nossa
cultura moderna, não devemos ignorar que atualmente a grande maioria das culturas
indígenas não são mais puramente orais. A crescente classe de intelectuais indígenas faz uso
da escrita e instrumentaliza-a para os próprios fins políticos contra a hegemonia da sociedade
dominante.

Eles tentaram tanto mudar-nos, que agora pelo menos aprendemos a utilizar as
próprias armas deles: o papel por exemplo. É através do papel que proclamamos estar
cansados de ser oprimidos, e que estamos prontos para divulgar a nossa cultura com
orgulho e para escrever a nossa própria história. Dessa vez do ponto de vista dos oprimidos
(TURÓN, 1982, p. 110, apud MÜNZEL, 1986, p. 158).

Porém, apesar de reconhecerem o importante papel da escrita como instrumento do


poder, a nossa fissura pelo conhecimento escrito é visto, por muitos intelectuais indígenas,
como deficiência antes de uma virtude.

El estudiante actual puede leer un libro de 500 hojas; termina de leer, se come todo el libro,
y no entiende. [...] Y así es la vida de un académico. Termina de leer un libro y no hay
respuestas. Tiene que buscar otro libro, tiene que buscar otro libro... y así de libro en
libro. Claro se hacen ricos, se hacen sabios. Pero sinceramente no tienen respuestas
para sus corazones, no tienen respuestas para su sociedad, y no tienen respuestas para si
mismo, y no tienen respuestas para lo que quieren hacer. Por eso es que el hombre con la
cabeza construye, construye tantos edificios, construye tantos armamentos, hace tantas
ciencias. Pero aquí nosotros nos preguntamos: ‘a quien le sirve esto?!’
(TZAMARENDA, Estalyn Naychapi (do povo Shuar), apud LINHART, 2008, p.83).

O acumulo exponencial de textos não corresponde necessariamente à um aumento de


sabedoria, nem dos indivíduos (especialização), e nem da sociedade (incapacidade da
humanidade de enfrentar os atuais desafios ecológicos, econômicos e sociopolíticos). Ou
seja, não somente do ponto de vista de alguns intelectuais indígenas, mas perante os fatos
devemos ser cautelosos em julgar o saber escrito qualitativamente superior ao conhecimento
oral. O fato que a escrita aparece ser um instrumento mais potente para dominar as pessoas
não necessariamente leva à conclusão que o conhecimento oral tenha uma capacidade
inferior de compreender e lidar com a vida. Na verdade, visto os crescentes desafios
da nossa sociedade moderna, o contrario parece ser mais provável.

164
A escrita e a educação escolar indígena - um grande desafio

O SPI [Serviço de Proteção aos Índios] pretendia desmistificar o


‘pensamento do indígena’ e iniciá-lo, via escola, em um outro nível de
conhecimento, bem ao gosto do positivismo, objetivava tornar o ‘espaço místico’ em espaço
de produção e solidificação de novos saberes e tecnologias, estas escolas, estupidamente
militarizadas, pretenderam referenciar os projetos de ‘civilização’ e
‘integração’ dos povos indígenas à sociedade nacional, de modo a integrá-los em uma
nova ordem econômica e social (SOUZA, 2003, p. 23).

A escrita chega nas culturas orais principalmente através da escola e como instrumento
para “civilizar” e catequizar os povos originários. Foram as igrejas e o Estado que trouxeram
a educação bilíngue nas aldeias justamente para acabar com as línguas e as culturas
indígenas. A apropriação da escola pelos movimentos indígenas como novo espaço de
formação intelectual, cultural e política é um fenômeno bastante recente (LINHART, 2008;
SOUZA, 2003; BOLAÑOS et al., 2004).

El trabajo en esta perspectiva nos permitió retomar opiniones y planteamientos


muy diversos que demostraban de una u otra manera que las escuela ‚oficiales’ y
misioneras, así como estaban funcionando, eran uno de los medios que más influían
para la desintegración cultural y la pérdida de la identidad en las comunidades. Sin
embargo, también se reconocía que de todos modos se necesitaba ese espacio de la
dimensión política de los pueblos indígenas, como un mecanismo para la revitalización
cultural (BOLAÑOS et al., 2004, p. 168).

Não tem dúvidas que a educação escolar indígena tem um papel fundamental e
indispensável para a luta, a sobrevivência e a continuidade cultural dos povos indígenas.
Porém, a importância das escolas indígenas não deve cegar-nos frente o seu papel
ambivalente, os seus riscos e suas amplas implicações na vida das culturas orais.
A educação escolar indígena tem no mínimo duas funções importantes. Primeiro,
apropriar-se do espaço escolar para oferecer uma formação do modelo ocidental de qualidade
para os jovens indígenas, tanto para melhorar as suas condições de vida a nível individual,
quanto para eles desenvolverem a habilidade de atuarem no espaço politico de igual com os
não índios, defendendo os seus direitos frente a sociedade dominante. Segundo, ensinar a
língua, os valores e os conhecimentos ancestrais do povo para incentivar a identificação

165
étnica dos jovens indígenas, e assim, servir como meio transformador para a revitalização e
continuidade cultural.
A junção desses dois objetivos implica a integração de conhecimentos ocidentais
(teóricos e escritos) e indígenas (orais, performativos e práticos) dentro de uma só proposta
educacional e seguindo o modelo escolar institucionalizado de cunho colonizador. Ou seja,
por um lado, a escola indígena deve seguir ao modelo ocidental de ensino escolar, ensinar a
ler e escrever e passar os “conteúdos” curriculares de uma visão cientificamente
“desencantada” (WEBER, 2005) do mudo para os alunos. Pelo outro lado, a escola
indígena deve, sem deixar de ser escola no sentido ocidental, ser um espaço para
perpetuar os conhecimentos orais, performativos e práticos dos povos.
As contradições entre o papel histórico da escola nas aldeias, o seu próprio formato
e espaço pedagógico, e estas novas exigências da educação indígena não poderiam ser mais
gritantes; porém, ao mesmo tempo podem ser vistos como a sua própria consequência
lógica e inevitável6. Sem ter o espaço aqui para entrar em todos os detalhes dessa complexa
problemática, achamos oportuno apontar pelo menos alguns aspectos de grande importância
em relação aos conhecimentos orais.
É importante relembrar que cada tipo de conhecimento necessita de seus próprios
espaços, práticas e atores de ensino e aprendizagem; ou seja, é preciso criar um certo
conjunto de conteúdos e experiências para construir um certo tipo de conhecimento. Portanto,
seria ingênuo achar que podemos dar continuidade aos conhecimentos orais e práticos
simplesmente através do ensino teórico de conhecimentos indígenas transcritos, ou melhor
dito, transformados em textos, em conhecimentos escritos e portanto qualitativamente
diferentes dos conhecimentos orais e práticos. E por mais que tentemos adaptar a escola às
necessidades específicas dos conhecimentos orais e práticos, ela dificilmente substituirá
esses espaços, práticas e atores. As quatro paredes da escola são diferentes da mata,
diferentes do rio, diferentes da aldeia, diferentes do roçado; e o professor não e igual ao pai,
ao ancião e ao pajé.
E, querendo ao não, a escola ocupa uma grande parte do tempo dos jovens
indígenas; tempo que antigamente se passava com os pais caçando, pescando, roçando e
plantando, escutando as narrações dos anciões, ou em rituais com a comunidade, com pajés,
curandeiros, e assim em diante. Podemos, sim, como professores de escolas indígenas, levar

166
os alunos para o ancião, para o pescador, fazer a horta escolar para mostrar as plantas
comestíveis e medicinais á eles, cantar e dançar no pátio da escola, fazer artesanatos, etc. -
isso tudo é bom e muito importante; porém, de todos os modos ocuparemos uma boa parte
dos espaços e do tempo, antigamente dedicadas à oralidade e à pratica, para o ensino de
conhecimentos escritos e teóricos.
Além disso, escola é, antes de tudo, o espaço da imposição de um conhecimento
alheio e hegemônicos. Se a nossa hipótese for certa, que o uso da escrita é relacionado às
grandes transformações que levaram ao surgimento da modernidade, devemos no mínimo
ser cautelosos quando levamos crianças indígenas à escola para aprenderem a ler e escrever.
Isso não significa de forma nenhuma que devemos deixar de alfabetizar crianças indígenas,
muito pelo contrário: devemos ter muita atenção neste processo e criar uma consciência
crítica nos alunos enquanto à escrita como um instrumento alheio de poder que pode tanto
destruir a oralidade, quanto servir como arma na luta pela continuidade das culturas orais.
E por último, é obvio que os saberes hegemônicos são saberes embasados na escrita
e que, portanto, ler e escrever é uma questão de sobrevivência em um mundo dominado pelo
saber escrito. Porém, essa dominação não deve ser confundida com superioridade em um
sentido qualitativo. É certo que os jovens indígenas devem aprender tanto o conhecimento
hegemônico (ciências, direito, etc.) quanto os saberes ancestrais. Porém, é de suma
importância que haja um equilíbrio na valorização desses conhecimentos, não
somente em termos patrimoniais, mas enquanto sistemas cosmológicos que orientam
toda a vida dos alunos. Com outras palavras: não será suficiente oferecer aos jovens
alunos indígenas conteúdos ocidentais e conteúdos próprios. Em um mundo que exige passar
pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para ter uma vida digna e que nega a
veracidade e o valor dos conhecimentos orais em favor do universalismo científico não haja
jovem quem não acabe construindo uma visão de mundo embasado nas ciências ocidentais,
ou seja, nos conhecimentos escritos e hegemônicos.
Dessa maneira, a “tradição” indígena está sendo transformada em folclore, em perfume e
enfeite, um conjunto de símbolos para constituir uma identidade indígena que somente serve para
garantir direitos perante o estado burguês. Para garantir a continuidade da oralidade, e com ela das
culturas indígenas, é preciso que os jovens indígenas atribuam aos conhecimentos orais igual ou mais
valor que aos conhecimentos dominantes e à escrita. A criação desses valores com os alunos, porém,
somente será possível a partir de vivencias dentro da oralidade e da pratica ancestral, da valorização
167
e do reconhecimento coletivo dos conhecimentos ancestrais dentro das suas comunidades. Eis a
importância do

7
contato direto entre alunos e anciões no âmbito das escolas indígenas .

Vemos então, que a escola indígena está enfrentando o duplo desafio de formar indígenas
fronteiriços, experts na escrita e no conhecimento escrito da sociedade dominante, e ao mesmo tempo
praticantes da oralidade e das práticas tradicionais. Visto que os meninos da sociedade dominante já
tem dificuldades de passar pelo ENEM, sem quaisquer outras exigências, imaginamos o tamanho do
desafio da escola e dos alunos indígena que devem assumir o ENEM somente como um desafio de
segundo plano, após ter garantido a continuidade da cultura oral.

Considerações finais

O que tentamos mostrar aqui, é que a escrita não é um meio neutro e apto para
armazenar qualquer tipo de conhecimento sem alterá-lo. Muito pelo contrário, acreditamos
que o uso da escrita tem impactos consideráveis na construção e para a constituição do
conhecimento e do poder. Consequentemente, a transcrição de conhecimentos orais e
práticos, o uso de fontes escritas na reconstrução de conhecimentos e identidades indígenas,
e o uso da escrita na escola são fatores importantes para a questão da continuidade das
culturas orais. Longe de negar a importância e a necessidade do domínio da escrita pelos
povos indígenas, queremos incentivar a reflexão profundo sobre o valor da oralidade, e o uso
crítico e virtuoso da escrita em favor dos povos, porém, sem entrar em conflito com a
oralidade. Temos que achar caminhos para garantir os espaços da oralidade como tal; não
na sua forma transformada em texto, senão nos seus espaços e com os seus atores, e através
das suas práticas performativas. No âmbito da educação escolar indígena esse desafio não
poderia ser mais difícil e complexo, as contradições não poderiam ser maiores. Porém,
sem enfrentar esses desafios não terá futuro nem para os povos e nem para os
conhecimentos orais. Cabe a nós enfrentar esse desafio e tornar o impossível possível.

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Lisboa: Tribuna da História, 2005.

169
O MULTICUTURALISMO NO ÂMBITO ESCOLAR:
UM DILEMA NA EDUCAÇÃO

COSTA, J. E. P. DE A.
Professora Mestra em Educação da Universidade Estadual da Paraíba - UEPB
Joannaemilia589@gmail.com

ADRIANA MUNIZ DA PENHA SOUSA


Graduada em
Letras
adrianamuniz10@hotmail.
com

Resumo A escola não deve ser vista apenas como uma instituição social. Ela deve ser
vista, principalmente, como um espaço que promova o desenvolvimento da autonomia
e respeite as diversas culturas existentes nela. Assim, esse artigo é resultado de um
estudo teórico que envolve discussões sobre a educação e a identidade negra,
relacionando-as à construção do processo educativo e abordando particularidades da
formação da identidade pessoal e cultural na sociedade brasileira. Além disso, discutimos
a construção da identidade negra na prática docente. Sendo assim, nossa inquietação visa
saber quais são as principais categorias do multiculturalismo que favorecem o
desenvolvimento de práticas docentes que respeitam a alteridade na sociedade brasileira?
Para isso, usamos uma fundamentação teórica que aborda as questões sobre
multiculturalismo na escola, explicitando a categoria identidade. Com isso, nosso objetivo
geral é sistematizar, a partir da teoria multiculturalista, as categorias relacionadas ao
desenvolvimento de práticas que estimulem o respeito a cultura afro- brasileira. Para
alcançar esse objetivo geral, tivemos que discutir sobre a origem do racismo no Brasil e o
preconceito na escola, a partir das vivências dos negros desde os momentos iniciais da
formação social do povo brasileiro até a atualidade; compreender como as questões sobre
a discriminação racial estão relacionadas ao cotidiano escolar. Para isso, esse trabalho está
estruturado da seguinte forma: apresentamos a origem do racismo no Brasil e do
preconceito na escola. E em seguida, tratamos das principais categorias que o
multiculturalismo utiliza, visando uma prática pedagógica emancipatória. Consideramos que
uma prática pedagógica multicultural possibilita a ação recíproca da radicalidade
democrática.

Palavra Chaves: 1. Multiculturalismo. 2. Relações étnico-raciais. 3. Prática pedagógica.

Introdução

170
A escola não é um espaço neutro, onde após entrarmos, podemos deixar de fora
os conflitos raciais e sociais. Por isso, o pano de fundo deste artigo envolve à sociedade
brasileira e suas relações raciais. Assim, nossa preocupação é estudar a discriminação e
o preconceito racial presentes na educação e como essas questões étnico-raciais são
ressaltadas na escola, atribuindo as marcas dessas ações no cotidiano escolar. Pois, a
escola não pode ser vista apenas como uma instituição social que atende as
demandas institucionais da sociedade, mas que nesta reproduzem e refletem os
fatores que constituem uma nação autônoma ou não.
Nosso enfoque está voltado para o estudo da discriminação na escola, cuja função é
formar cidadãos críticos, reflexivos e que respeitam a alteridade. Nesse contexto, a
identidade é formada por meio das relações vividas no dia a dia do sujeito, realizada
nos diversos espaços discursivos que incluem a escola.
Convém distinguir a esse propósito, que a escola é um espaço composto por uma
diversidade cultural muito grande. Por isso, o multiculturalismo favorece nossa base
teórica, defendendo que devemos sempre respeitar a alteridade. Dessa forma, o professor
tem a oportunidade de elaborar metodologias didáticas interativas, de forma que, tanto o
professor quanto o aluno possam aprender juntos respeitando as diferenças de um modo
geral. O que na verdade, na maioria das vezes, acaba não acontecendo e que nos leva
a supor que a prática dos professores está distante de uma análise histórica,
sociológica, política e antropológica sobre a diversidade étnico-cultural.
A esse respeito, é preciso progredir muito ainda, tendo em vista que a escola possui
um papel crucial na formação da identidade de qualquer individuo. Por isso, é necessário
também, revisitar a importância que a questão racial incorpora na vida profissional e
pessoal de qualquer sujeito.
Sabemos que a discriminação racial ainda está muito presente na estrutura da
sociedade brasileira. Visto que o Brasil é um país rico em etnias diversas. Então, não
devemos permitir que práticas excludentes permaneçam vigentes em nosso sistema
educacional. Sendo assim, nossa inquietação é descobrir quais são as principais
categorias do multiculturalismo que favorecem o desenvolvimento de práticas docentes
que respeitam a alteridade na sociedade brasileira?
A partir desse questionamento, nosso objetivo geral é sistematizar, a partir da teoria
multiculturalista, as categorias relacionadas ao desenvolvimento de práticas que
171
estimulem o respeito a cultura afro-brasileira. Para alcançar esse objetivo geral, tivemos
que discutir sobre a origem do racismo no Brasil e o preconceito na escola, a partir das
vivências dos negros desde os momentos iniciais da formação social do povo brasileiro
até a atualidade; compreender como as questões sobre a discriminação racial
estão presentes na escola. Além disso, apresentar a visão multiculturalista e suas
principais categorias, as quais podem ser apresentadas desde visões mais abertas ou
folclóricas, que tratam da valorização da pluralidade cultural a partir do conhecimento
dos costumes e processos de significação cultural das identidades plurais, até visões mais
críticas, cujo foco é, justamente, o questionamento sobre os racismos, sexismos e
preconceitos de forma geral, buscando perspectivas transformadoras nos espaços
culturais, sociais e organizacionais.
A esse propósito, mencionaremos Sodré como articulador do multiculturalismo,
o qual defende: que na cultura negra, o corpo é fundamental. Sobre o corpo se assenta
toda uma rede de sentidos e significações. Esse não é apartado do todo, pertence ao
cosmos, faz parte do ecossistema: o corpo se integra ao simbolismo na forma de gestos,
posturas, direções do olhar, mas também de signos e inflexões microcorporais, que
apontam para outras formas perspectivas (SODRÉ, 1996).
A instituição escolar como instancia formadora de identidade tem um papel a
desempenhar no contexto das relações interétnicas face a essa diversidade. Sua
função é estimular a reflexão e o jeito de ver o outro e suas divergências. Pois,
sendo a linguagem um órgão competente na interação social, proporcionando ao homem
o seu desenvolvimento nos seus feitios distintivos, que trata da sociabilidade e
da consciência. Então, é de suma importância que a escola busque implantar uma
didática que se molde e que se concretize a esse crescimento, levando em conta
como lidar com uma situação de preconceito em sala de aula.
Esse artigo é resultado de uma pesquisa teórica. As obras pesquisadas nos
forneceram os elementos que serviram como subsídio para se compreender a
procedência e como se dá a transmissão histórica do racismo em nosso meio.
Essa pesquisa tem como propósito defender a introdução da perspectiva
multicultural no dia a dia das escolas e da sala de aula, que geram muitas questões para a
didática, relacionadas com a seleção dos conteúdos escolares, as estratégias de
ensino, o relacionamento, que necessitam ser revisitados e ressignificados.
172
O primeiro item do nosso trabalho fala sobre a origem do racismo no Brasil e do
preconceito na escola. A partir desse tema pode-se observar que em todo decorrer da
historia do nosso povo desde o berço da nossa formação cultural, o racismo, o preconceito
e a discriminação estiveram presentes em nossa sociedade.
Em seguida, apresentamos a discriminação racial na escola, explicitando a categoria
identidade como central a essa perspectiva, visando contribuir para o processo de
reflexão de profissionais da educação na elaboração de novas técnicas de combate
ao racismo no âmbito escolar e na sociedade em geral. Pois, é imprescindível
compreendermos o racismo, o preconceito e a discriminação que estão envolvidos em
nossa sociedade, sem antes conhecermos nossos próprios valores. Pois, de tal forma se
quisermos uma sociedade de justiça social, é imperativo transformarmos nossas
escolas em um espaço de equidade e de respeito.
O terceiro item explicita as principais categorias do multiculturalismo visando uma
prática pedagógica emancipatória, as quais influenciam as questões de discriminação
racial, pontuando a complexidade dessa problemática e as relações entre escola e cultura,
além de abranger como é trabalhada essa relação no cotidiano escolar. Embarcando
nessa realidade, com uma visão multicultural, a educação, e em destaque a escola,
juntamente com os professores, são vistos como uma espécie de esperança para a
sociedade comteporânea.

A ORIGEM DO RACISMO NO BRASIL E DO PRECONCEITO NA ESCOLA

O preconceito e a discriminação racial no Brasil é um fato histórico. Surgiu na


colonização abertamente e criou uma “hierarquia racial e social” que está injustamente
associada à cor da pele das pessoas e também a outras características que vão identificar
os indivíduos dentro dos degraus dessa “hierarquia”.

Essa cultura racista e preconceituosa se aprofundou na alma do povo


brasileiro pondo em desvantagem o grupo étnico-racial dos negros, colocando em posição
de supremacia os grupos brancos europeus. Como disse Silva (2010), isso ocorre porque
os negros são vistos como descendentes de escravos.
A cultura da colonização se apresenta como uma cultura “predadora e
antropofagista”1 (ato de comer carne humana), que nasce devorando a cultura dos
173
negros, cometendo um “verdadeiro canibalismo” contra as espécies (raças) que foram
dominadas e expostas a uma segregação cultural, social, econômica e racial. E os negros,
embora tenham se misturado com outras raças, os afrodescendentes são marginalizados
em todos os seguimentos da sociedade ainda. Até nossos dias, os negros estão sofrendo
a marginalização e a exclusão social (SILVA, 2010). O racismo tem como base o
entendimento de que os negros são inferiores aos brancos, servindo como elemento de
estrutura das relações sociais que justifica e consolida a escravidão que submeteu os
povos africanos (SILVA, 2010).
Entendendo o preconceito como uma prática muito comum, transmitido pela a
oralidade e pela a escrita, é notório a forma que o colonizador usava para discriminar
os povos citados. Veja a expressão que Schwarcz (2001, p. 16) utiliza quando diz: “eis a
representação primeira desses ‘naturais’, caracterizados a partir da ‘fala’. Ela defende que,
sendo transmitido na oralidade pelos saberes populares e na literatura escrita por
poetas, historiadores e religiosos, o preconceito étnico/racial foi encarado pelo
colonizador como um método para a sua prática pedagógica de “civilização”.
A esse respeito Schwarcz (2001, p. 17) declara que: “diante dessa população
‘demonizada’, a colonização e a catequese eram entendidas e representadas como provas
de benfeitorias, ações valorizadas, em outra ordem divina”. No entanto, há pesquisadores
que estudavam aquela sociedade e discordavam da reputação que os portugueses
passavam destas gentes. Entre eles, destaca-se o filósofo francês Montaigne que
argumentou não ver nada de bárbaro ou selvagem naquilo que diziam daqueles povos;
o que havia na verdade, era que as coisas que não se praticava em sua própria terra,
cada qual via no outro como bárbaro (MONTAIGNE, 1580, apud SCHWARCZ, 2001).
Portanto, um racismo político e cultural.

Já na época moderna, com início em 1870, nas escolas de direito, do Recife e de


São Paulo, e nas escolas de medicina, da Bahia e do Rio de Janeiro notava-se a origem
do preconceito e do racismo. Dificilmente, negros estudavam nesses espaços.
Guimarães (2004) afirma que o discurso sobre a diferença inata e hereditária, de
natureza biológica, psíquica, intelectual e moral, entre grupos da espécie humana,
distinguíveis a partir de características somáticas, é resultado das doutrinas individualistas
e igualitárias que distinguem a modernidade da Antiguidade ou do Medievo e, no
nosso caso, do Brasil colonial e imperial. Segundo Guimarães (2004), o racismo surge,
inicialmente, no cenário da política brasileira, concomitante, à abolição da escravatura e,

174
consequentemente, à igualdade política e formal entre todos os brasileiros, e mesmo
entre estes e os africanos escravizados. Sobre a questão, sugerimos para maiores
aprofundamentos a obra:
O espetáculo das raças, de Lilia Schwarcz (1993).
Guimarães (2004) defende que o racismo brasileiro não deve ser lido apenas como
reação à igualdade legal entre cidadãos formais, que se instalava com o fim da escravidão;
mas, que foi também o modo como as elites intelectuais, principalmente, aquelas
localizadas em Salvador e Recife, reagiram às desigualdades regionais crescentes que
se avolumavam entre o Norte e o Sul do país, em decorrência da decadência do açúcar
e da prosperidade trazida pelo café. Assim, o Brasil crescia os índices do racismo.
Avaliando o Brasil de hoje, pode-se dizer que não aconteceram grandes
mudanças quanto ao preconceito e a discriminação, os negros de nossos dias sofrem
constrangimentos semelhantes aos passados. Isso vem se desdobrando como um
processo histórico contínuo não mais abertamente como no princípio, mas, camuflado
nos métodos modernos de ensino que procedem da origem de algumas correntes
conservadoras do sistema capitalista e, neste caso, são vítimas, não apenas negros, pois,
excluem-se também os brancos pobres. Acerca desse sistema de reprodução da política
colonial opressora e ainda “escravagista”, Silva (2010, p. 259) se posiciona da seguinte
maneira:
A sociedade brasileira e suas instituições, inclusive a escola, vão se
constituir em sintonia com esse projeto colonial que institui o racismo e as
práticas racistas em suas instituições. Dessa forma, a sociedade em geral
e a educação em particular assimilam e reproduzem o imaginário brasileiro
a respeito da população negra, como uma população inferior.

A questão que dificulta encontrar essa identidade, talvez seja dada por duas razões:
Primeiro, o fato de se debater tanto o assunto do racismo, não significa dizer que, por
isso, ele esteja sendo vencido. Segundo, porque não obstante o preconceito, a
discriminação e o racismo, o povo brasileiro é hoje um povo de sangue misto, formado
pela junção dessas culturas.
Os negros no Brasil são os grupos pretos, pardos, mestiços e indígenas, o que
constitui uma diversidade complexa. Por causa dessa complexidade o indivíduo se confunde
de tal forma que fica difícil perceber sua identidade, tanto pela mistura de raças quanto
pelo desafio de assumir-se alvo do preconceito social e, às vezes, do seu próprio
175
preconceito. Alguns conseguem superar esses obstáculos chegando a assumir a sua
identidade negra e a se elevar socialmente, mas, a maior parte continua nos degraus das
classes desprivilegiadas e, apesar de ser identificada por suas características negras, não é
denominada (SILVA, 2010, p. 258).
Castells (1999) define identidade como sendo o processo pelo qual um ator social
se reconhece e constrói significado principalmente com base em determinado atributo
cultural ou conjunto de atributos, a ponto de excluir uma referencia mais ampla a outras
estruturas sociais. Ele ainda trata sobre esse conceito que não significa necessariamente
incapacidade de relacionar-se com outras identidades, ou abarcar toda a sociedade sob
essa identidade. Ele cita dois exemplos para esclarecer essa questão: as mulheres ainda
se relacionam com os homens. E o fundamentalismo religioso ainda tenta converter o
mundo.
Entendo que um dos agentes do racismo no Brasil deve-se ao fato de termos sido
instigados a crer que vivemos num democratismo racial, constituído pela mistura
harmoniosa de três raças: indígena, branca e negra. Assim, negou-se e nega-se a enorme
heterogeneidade racial, afirmando-se que há no Brasil apenas uma desigualdade social,
a questão de classe.
A sociedade passa por um processo irreversível de mudanças econômicas, políticas,
sociais e culturais. Da cultura local, ou seja, inserida num determinado espaço, povoado,
região ou território, passa-se a uma cultura híbrida ou várias culturas sem fronteiras
(CANCLINI, 1990).

DISCUTINDO A DISCRIMINAÇÃO RACIAL NA ESCOLA


As polêmicas sobre preconceito racial têm aumentado consideravelmente na cultura
brasileira; envolvendo as práticas cotidianas da escola. Temos que considerar que
o Brasil é uns pais mestiço, e portanto, sombreado pelo multiculturalismo 2. Os costumes se
entrelaçam numa escola com olhar preconceituoso, onde a inclusão fica apenas na
teoria, enquanto na pratica a exclusão permanece. Pois, em certos casos os
próprios estudos literários encaminham o preconceito para o negro, sendo realmente difícil
conviver com as diferenças. Segundo Juan Comas:

A pigmentação relativamente escura é uma marca de diferenciação que


condena numerosos grupos ao desprezo, ao ostracismo e a uma posição
176
social humilhante. O preconceito de cor é tão acentuado em certas pessoas
que dá origem a fobias quase patológicas, estas não são inatas, mas
refletem, de uma forma exagerada, os preconceitos do meio social. Afirmar
que um homem é um ser humano inferior ao outro porque é negro é tão
ridículo como sustentar que um cavalo branco será necessariamente mais
ligeiro que um cavalo negro (COMAS, 1970, p. 26).

De acordo com Sodré (2008), para se entender o preconceito é necessário distinguir


o conceito de atitude numa cultura miscigenada. “A atitude é um sistema relativamente
estável de organização de experiências e comportamentos relacionados com um
objeto ou evento particular”. Para cada costume há um conceito racional e cognitivo –
crenças e ideias, valores afetivos, que levam as intenções de cada individuo. Segundo
Sodré (2008), “Preconceito é a opinião ou pensamento acerca de algo ou de alguém cujo teor
é construído a partir de análises sem fundamentos, sendo preconcebidas sem conhecimento
e/ou reflexão; o prejulgamento.
Por isso, é uma forma de pensamento na qual a pessoa chega a conclusões que entram
em conflito com os fatos por tê-los prejulgado. Repúdio demonstrado ou efetivado através de
discriminação por grupos religiosos, pessoas, ideias; sexualidade, à raça, à nacionalidade
etc. constata-se muita intolerância.
Conclui-se, portanto que o preconceito é uma atitude negativa que o individuo
está predisposto a sentir, pensar e direcionar-se de forma negativa a determinado grupo.
O preconceito tem três componentes: crenças; sentimentos e tendências comportamentais.
Crenças preconceituosas são sempre estereótipos negativos.

3.1 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA DIANTE O PRECONCEITO NA


ESCOLA

A escola é um espaço de vivências e construção do conhecimento por meio das


relações ali vivenciadas. É um espaço ideal para o despertar da cidadania, e acima de
tudo do respeito. Isso, uma vez que a escola permite o contato entre pessoas diferentes.
Conviver com as diferenças é muito mais do que um desafio para o mundo de
hoje. Combater o preconceito é mais uma necessidade para que cada um de fato possa
ocupar seu lugar na sociedade e no mundo. Igualdade de direitos e de obrigações.
Igualdade de respeitar e se fazer respeitado.

177
O debate sobre promoção da igualdade das relações étnico-raciais nas
escolas ganha intensidade a partir de janeiro de 2003, quando foi sancionada a Lei no
10.639/2003. Como política pública de educação, ela surgiu em resposta a
reivindicações históricas de pessoas e grupos do movimento social negro que, de
diferentes maneiras, têm se empenhado em prol de ações concretas contra o racismo,
o preconceito e as discriminações raciais na sociedade de forma geral e na educação
especialmente.
A Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional (LDB) de 1996 já não é a
mesma. Conforme já citado, a promulgação da Lei 10.639/2003 altera a LDB, incluindo
o artigo 26-A, o qual torna obrigatória a temática história e cultura afro- brasileira no
currículo oficial da rede de ensino, e, ainda, o artigo 79-B, que estabelece para o
calendário escolar o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.
Posteriormente, em março de 2004, o Conselho Nacional de Educação
referendou o dispositivo legal, aprovando as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira
e Africana”, identificadas como resolução CNE/CP, 1/2004.
Essas diretrizes explicitam aspectos e princípios fundamentais para a produção
de sentidos que contribuem para a gestação novas relações étnico- raciais, como
preconiza a lei. Considerando-se nossa sociedade multirracial e multiétnica,
profundamente marcada por desigualdades e contradições, ditas e não ditas, vivemos um
momento privilegiado em que práticas isoladas voltadas para a educação anti-racista que
podem dar lugar a um olhar crítico, a um diálogo denso e tenso do qual já não se pode
fugir. Nesse sentido, vale destacar pelo menos três aspectos fundamentais para que
se instaure uma política que faça do reconhecimento das diferenças um caminho
para a revisitação de condutas e a busca de referenciais para a construção da igualdade
de direitos.
Acredita-se, portanto, que a convivência com as diferenças, proporcionada na
escola, pode contribuir decisivamente para a formação humana e cidadã dos alunos.
Diante de uma estrutura preconceituosa, são construídas formas para descriminar
o negro em diversos aspectos. A identidade se constrói a partir dos diferentes lugares,
espaços e situações vividas entre famílias, na comunidade, no trabalho, na escola, nos
movimentos sociais, ou seja, dependendo da história de vida de cada negra ou individuo.
178
Como afirma Silva (1996) apud Backes (2002, p.166), as narrativas culturais “(...)
representam diferentes grupos sociais de forma diferente, enquanto as formas de vida
de alguns grupos são valorizadas e instituídas como cânone, às de outros são
desvalorizadas e proscritas”. De acordo com esse pensamento não é fácil construir uma
identidade negra positiva, convivendo e vivendo num imaginário pedagógico, que trata
os negros e sua cultura de maneira desigual. Mas, é preciso levar em consideração que o
perfil de beleza destacado de pele branca, cabelo liso, configura a inferioridade da
população negra e torna-se um obstáculo para sua constituição identitária, um ponto
que se formula na escola. No entanto, o cotidiano de vida evidencia marcas do preconceito
e discriminação a que são submetidos (as) os(as) negros(as) nesta sociedade.
Ao adentrarmos o espaço escolar, observamos que, lá, a situação não é diferente.
Ao trabalhar com a coerência da homogeneização, a escola não estima a diferença presente
no cotidiano, instalando, assim, a desigualdade, pois reforça mecanismos psicológicos
etnocêntricos que não possibilitam a afirmação da identidade étnica negra, pois o
referencial de ideal, tem sido, historicamente, o branco.
Compartilhando o pensamento de Neuza Santos Souza (1983, p.77):

No Brasil ser negro é tornar-se negro, uma vez que nascer com a pele e/ou
outros caracteres do tipo negroide e compartilhar de uma mesma historia
de desenraizamento, escravidão e discriminação racial, não organiza,
por si só, uma identidade negra (...) ser negro é tomar posse desta
consciência que reassegure o respeito as diferenças e que reafirme uma
dignidade alheia e qualquer nível de exploração.

Talvez isto nos ajude a melhor perceber as relações que se dão na sociedade
e que têm seus reflexos nos cotidianos escolares onde atuam e são formadas, as quais,
de certa forma, está intimamente ligada ao reconhecimento e valorização das diferenças
étnico-culturais. Segregacionista encontraria ressonância nas próprias famílias negras, por
receio de seus filhos enfrentarem certas situações de racismo e preconceito, optariam por
protegê-los, procurando escolas frequentadas por negros ou por população branca mais
pobre (Rosemberg, 1987).

179
Outro tipo de agressão à classe negra vem em forma de brincadeira entre o alunado
ou até mesmo na rua entre amigos. É uma violência que atinge simbolicamente
as meninas negras, talvez pelo aspecto do cabelo mais chamativo do que o do menino,
mais esse motivo não diminui o preconceito relacionado a ambos (SILVA, 2010).
No processo educativo, a diferença coloca-se cada vez mais de maneira
preponderante, pois a simples existência do outro aponta para o fato de que não somente
as semelhanças podem ser consideradas como pontos comuns entre os humanos.
Portanto, então, a diferença é um importante componente do nosso processo de
humanização. O fato de sermos diferentes, talvez seja uma das nossas maiores
semelhanças, enquanto seres humanos e sujeitos sociais.
Nesse percurso, os indivíduos negros deparam-se, na escola com diferentes olhares
sobre o seu pertencimento racial, sobre a sua cultura e a sua historia, e isso às vezes
interfere no reconhecimento de competência profissional e pedagógica dos negros. A
questão racial interfere no campo das subjetividades resultando numa imensa carga de
emoção e em situações de discriminação racial no ambiente escolar.
A escola, por sua vez, não vem desenvolvendo qualquer trabalho sistemático efetivo
de valorização do negro. A esse respeito, estudiosos criticam agentes pedagógicos por
não reconhecerem o direito à diferença, e deste modo, contribuem para mutilar o patrimônio
cultural do negro (GONÇALVES, 1987; SILVA, 1987).
As diferenças implicam processos de aproximação e de distanciamento. Nesse
jogo complexo, vamos aprendendo, aos poucos, que a diferença estabelece os contornos
da nossa identidade. Isso predomina, no caso, o relacionamento inter- racial e as
consequências vistas em espaços onde estão pessoas brancas, faz com que as pessoas
negras se sintam constrangidas em entrar num mundo que não seria “o seu”.
Como diz Stuart Hall, “a identidade torna-se uma celebração móvel: formando
e transformando continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (Hall, 2006, p. 12)

Nesse aspecto, é importante observar a questão da pluralidade cultural, que se define


no termo multiculturalismo, que pelo fato de lidar com o múltiplo, com o diverso e com o
plural, encara as identidades plurais, como a base de constituição das sociedades. No
entanto, numa visão essencializada, a identidade é vista como essência acabada.

180
MULTICULTURALISMO: VISANDO UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA
EMANCIPATÓRIA

O multiculturalismo foi aderido pelas universidades, como abordagem


Curricular. Segundo Gonçalves e Silva (1998), o movimento multiculturalista teve inicio no
final do século XIX, com os afro-descendentes, lutando pela igualdade dos direitos civis e
contra a discriminação racial, proferem ainda, que os programas e departamentos iniciais,
foram instituídos em 1968, na San Francisco State University, que foi fundada em
1899, nos Estados unidos.
Após esse principio outras universidades abdicando a oscilação estudantil,
abrangem seus conteúdos curriculares com essa inovação extensiva, que lhes capacitam
a trabalhar com a diversidade, permitindo aos grupos sociais, o conhecimento de outras
culturas.
Essas modificações colaboraram para o dilema racial nos Estados Unidos em
meados dos anos 70, que incluíam a juventude negra. Para Glazer (citado por GONÇALVES
E SILVA,1998: 34), “eles queriam ser como os brancos, por isso, estavam engajados na
integração desconhecendo suas próprias mitologias. Porém, hoje, buscam suas origens
tentando a igualdade social, encontrando sua própria identidade”.
Então, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) afirma que 51% da
população brasileira é representada pelos afro-brasileiros. Sendo assim, tornou- se
obrigatório a inserção de conhecimentos sobre a diversidade nas escolas.
A pesquisa sobre multiculturalismo tende a focalizar a pluralidade cultural em
termos da diversidade de identidades culturais, individuais ou coletivas, advogando o direito
à voz e o perfil das mesmas nos diversos espaços sociais, educacionais e culturais. Tais
estudos têm contribuído para se pensar sobre o múltiplo, o plural e o diferente, bem como
para se discutir a edificação discursiva das diferenças e dos preconceitos, de maneira a
se pensar em métodos e discursos transformadores, valorizadores da multiplicidade
cultural.
Dessa forma, cabe lembrar que na visão de Peter Maclaren (2000), torna-se

181
indispensável que, os educadores críticos ampliem seus currículos, alcançando um ensino
multicultural que absorvam uma especificidade da diferença, mas que ainda, ao mesmo
tempo, remetam-se à comunidade dos outros múltiplos sob a lei que diga respeito aos
alusivos que norteiem para a liberdade e libertação.
De acordo com essa perspectiva, nós professores, podemos refletir sobre nossa
prática pedagógica, sobretudo, pelo fato de trabalharmos sob o olhar dos PCN’s. Um
documento que apresenta propostas que compõem a afluência dos efeitos e pressupostos
teóricos de estudos desenvolvidos no Brasil desde meados dos anos 70. Podemos incluir
aqui também, que os PCN’s são estruturados por um artifício trivial a todos as regiões,
fundamentando nessa configuração, o artefato principal convergente a ser desenvolvido
em qualquer lugar e com a parte diversificada que é variante a todas as regiões,
para poder assim garantir uma educação de qualidade.
A diversidade cultural é inegável em nosso país, mas apesar disso, essa questão
não é trabalhada de maneira satisfatória no cotidiano escolar, é levada sutilmente ao
estereotipo e a dispersão de preconceitos e suas possíveis causas. Então, é de suma
importância que a metodologia adquirida pelos profissionais da educação como
mediadores culturais, em sala de aula, se mostre eficiente no combate a exclusão e
outros artefatos já citados aqui neste artigo, mostrando o devido valor de cada cultura e
expondo a importância de cada uma, e que não há como individualizar e nem caracterizar
uma como superior a outra, valorizando assim o aluno, e fazendo com que o mesmo
sinta-se estimado. A isso, junta-se, igualmente a dificuldade que o professor tem
em conduzir a sua turma plurilinguístíca e pluricultural, não dispondo de materiais e
metodologia apropriados para lidar com os contextos culturais.
A escola que deseja pautar sua prática escolar no conhecimento da pluralidade
deve incorporar como conteúdo escolar a história e cultura do povo negro, bem como
a dos outros grupos sociais oprimidos, e toda a sua trajetória de luta por eles vivida. É
o caso também de recusar o material didático que apresentem imagens estereotipadas
do negro, voltadas para a construção de atitudes preconceituosas e discriminatórias,
pois o estilo ético, crítico e, sobretudo, reflexivo do sujeito, envolvem a assimilação e
reconstrução dos conceitos. Acreditamos que dessa forma, o aluno se deparando com
a sua historia, sendo estudada, analisada, exposta em conteúdos escolares, e vendo

182
o respeito à diversidade em que ele se encontra, vai elevar a sua auto-estima trazendo
o orgulho ao pertencimento racial.
No entanto, sabemos que, abordar temas como preconceito e racismo, assim como
a narrativa do povo negro, é algo novo para muitas escolas, é um substancial que até então,
não era objeto de estudo e nem fazia parte do conteúdo estipulado em seus programas.
Por esse motivo, esse ponto trás muitas dificuldades para a maioria dos professores em
conduzir essas discussões. Outro fato, é que aparentemente, a falta de material propício
também causa esse problema na prática pedagógica. Como ressalta Brandão (2006),
este é um lugar que nunca esteve ocupado, sendo necessárias formação e atualização
para tratarmos com profissionalismo e responsabilidade desses conteúdos.
Sendo assim, para distorcer a pluralidade no âmbito escolar, é necessário refletir
formas de reconhecer, valorizar e coligar a diversidade em aprendizados curriculares.
Concluímos assim que, para formar cidadãos no século XXI, a escola precisa está
preparada e ter disponível material didático adequado, e o aumento de acervo de livros da
biblioteca sobre o assunto, contemplando as dimensões multiculturais
Abaixo, apresentamos as principais categorias do multiculturalismo, visando uma
prática pedagógica emancipatória.
Nesse sentido, entendemos que a diversidade cultural é a possibilidade de
homogeneizar as práticas culturais, sem necessariamente, padronizar a cultura, ou seja,
sem seguir modelos padronizados, uma vez que essas práticas devem considerar os
aspectos diversos da cultura de cada localidade, sem remetê-los aos padrões das camadas
dominantes em detrimento de grupos minoritários.
Muniz Sodré (2002) também corrobora essa questão, afirmando que a
experiência da diversidade cultural é a experiência da vivência democrática em seu
modo mais radical, ou seja, a radicalidade da experiência democrática representa
o reconhecimento da diversidade cultural.

4.1 GLOSSÁRIO SOBRE MULTICULTURALISMO

183
MULTICULTURALISMO - termo que significa diferentes culturas em uma mesma
região.(CABRAL,1999).

PRECONCEITO - “Preconceito é a opinião ou pensamento acerca de algo ou de alguém


cujo teor é construído a partir de análises sem fundamentos, sendo preconcebidas sem
conhecimento e/ou reflexão; prejulgamento “((CABRAL, 2008).

CORPO – Esse não é apartado do todo, pertence ao cosmos, faz parte do


ecossistema: o corpo se integra ao simbolismo na forma de gestos, posturas, direções
do olhar, mas também de signos e inflexões microcorporais, que apontam para outras
formas perspectivas ((CABRAL, 1996, p. 31).

ATITUDE – “A atitude é um sistema relativamente estável de organização de


experiências e comportamentos relacionados com um objeto ou evento particular”
(CABRAL, 2008).

RADICALIDADE DEMOCRÁTICA – significa a representação do reconhecimento da


diversidade cultural (CABRAL,1999).

IDENTIDADE – processo pelo qual um ator social se reconhece e constrói significado


principalmente com base em determinado atributo cultural ou conjunto de atributos,
a ponto de excluir uma referencia mais ampla a outras estruturas sociais. Ele ainda
trata sobre esse conceito que não significa necessariamente incapacidade de
relacionar-se com outras identidades, ou abarcar toda a sociedade sob essa identidade.
Ele cita dois exemplos para esclarecer essa questão: as mulheres ainda se relacionam
com os homens. E o fundamentalismo religioso ainda tenta converter o mundo.

PLURALIDADE CULTURAL - A pluralidade cultural são diferenças culturais que existem


entre o ser humano.

ESTEREÓTIPO - O estereótipo é a prática do preconceito.

184
ALTERIDADE – É o respeito ao outro

RACISMO – “Racismo é uma ideologia que postula a existência de hierarquia entre os


grupos humanos” (Programa Nacional de Direitos Humanos, 1998, p. 12).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O respectivo texto articulou sobre a origem do preconceito no Brasil,


debatendo a partir disso, alguns dilemas que diz respeito ao multiculturalismo no espaço
escolar, bem como os desafios enfrentados por professores em sala de aula,
articulando a categoria identidade nessas discussões, centralizando as diferenças que
circulam no ambiente escolar, apontando assim as necessidades da superação de atitudes
dogmáticas. Pois a medida que, alunos e professores se colocam em determinação,
para trilhar caminhos como, valorizar a diversidade cultural em que estão inseridos,
traçando o preconceito e a discriminação, entre outros artefatos, encontrarão desafios
diversos, que certamente serão confrontados com dilemas e hesitações respectivos a esses
litígios.Discutir sobre a pluralidade cultural, é sem sombra de dúvidas um tema que gera
muita controvérsia, devido a grande amplitude do assunto. É também coevo na maioria
das instituições escolares, sendo assim, novas propostas e estratégias estão sendo
concebidas em relação a complexidade desse contexto, dando ênfase, no avanço da escola
brasileira, com o intuito de degredar o racismo da escola e da sociedade, se tornando uma
escola de todos e para todos.
Por fim, tendo em vista esse quadro, podemos concluir, que não apenas o acesso
à escola, garante a cidadania dos estudantes brasileiros, mas também o direito de aprender
sobre sua cultura, o que é obrigação do professor e dever do Estado, e isso, sobrevém
na abordagem dos conteúdos ensinados na escola. Neste sentido, nos deparando com essa
diversidade tão complexa, nos leva a pensar, que pode ser cabível, como forma de
desenvolvimento da criança, do seu mundo globalizado.
Com isso, a contribuição que acreditamos deixar com esse trabalho está em levar os
nossos leitores a perceberem que o racismo e o preconceito étnico/racial em nossa

185
sociedade tem se perpetuado durante todo esse tempo da nossa existência desde a
colonização até os dias hodiernos em que nos proclamamos como uma pátria
democrática. Finalmente, tencionamos produzir uma reflexão sobre o assunto, para
que aqueles que lerem este artigo possam repensar e reconstruir uma nova maneira
de raciocinar e de ver o racismo no Brasil; construindo sua autoidentidade e
permitindo também que os outros possam construir.
Consideramos importante entender a complexidade das relações raciais no Brasil.
Tal movimento exige problematizar e esmiuçar como são construídas histórica e
socialmente as concepções racistas e como em torno delas são engendrados os
esquemas interpretativos que informam e orientam as práticas preconceituosas e
discriminatórias, muitas vezes “silenciosas”, silenciadas e naturalizadas.

É fato que as crianças em geral não possuem natureza racista, mas a socialização
que lhes é imposta pela sociedade as ensina a usar o racismo e seus derivados como
armas para ferir as criança as negras, em situacões de disputas e até simplesmente
para demarcar espacos e territórios, bem ao exemplo dos padrões da sociedade mais
ampla. A escola constitui apenas mais uma instituição social na qual as características
raciais negras são usadas para depreciar, humilhar e excluir. Assim, depreciadas,
humilhadas e excluídas pela prática escolar e consumidas pelo padrão racista da sociedade,
as crianças negras têm sua energia, que deveria estar voltada para o seu
desenvolvimento e para a construção de conhecimento e socialização, pulverizada em
repetidos e inócuos esforços para se sentir aceita no cotiano escolar.
Entre as possíveis interpretações no campo das ciências humanas e sociais sobre os
caminhos traçados pela humanidade, ao longo de seu desenvolvimento milenar, quanto à
construção de suas relações sociais, de sua visão de mundo, e da maneira de
compreender o processo de conhecimento, uma das que mais influenciou o
pensamento e a prática pedagógica foi o interacionismo, a qual dialoga muito bem
com as práticas do muticuturalismo. Isso é uma construção humana de significados
que procura fazer sentido do seu mundo. Trata-se, portanto, de um processo de
construção que se dá na relação do sujeito (que conhece) com o entorno físico e
social (que é conhecido) e que deve ser significativo para ele. A aprendizagem,
186
portanto, vai depender das condições do indivíduo (hereditariedade, motivação, interesse)
bem como das condições do meio do ensinante-aprendente, da instituição ou da escola
que tem a função histórica de educar seus cidadãos.

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V.1. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho.

187
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Recife: Ed. UFPE, 2010. p. 257 – 298.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se Negro. RJ: Graal, 1983.


188
_
APROXIMAÇÃO E DISTANCIAMENTO ENTRE OS SABERES TRADICIONAIS
INDÍGENAS E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO EM UM CURSO DE
LICENCIATURA INDÍGENA DA UFMG.

CONTINUITY AND RUPTURE BETWEEN TRADITIONAL KNOWLEDGE AND


INDIGENOUS KNOWLEDGE SCIENTIFIC IN A COURSE OF UFMG FOR
INDIGENOUS EDUCATORS.

Juarez Melgaço Valadares33


UFMG/DMTE/ Faculdade de Educação
juarezm@ufmg.br

Marta Maria Castanho Pernambuco


UFRN/Centro de Educação
martaper@ufrnet.br

RESUMO

Neste trabalho analisamos os impasses decorrentes do encontro entre a cultura


acadêmica e os saberes tradicionais em um Curso de Formação Intercultural para
Educadores Indígenas (FIEI) da Faculdade de Educação da UFMG, referente à área
Ciências da Vida e da Natureza (CVN). Em 2015 criamos o agrupamento “Relação com
o Conhecimento”, com o objetivo explícito de se iniciar o Curso pela discussão da
pergunta “como Conhecemos as coisas? ” Buscamos os discursos dos novos alunos
sobre a natureza do conhecimento científico e sobre o conhecimento tradicional: “Que
lugar eles atribuem a esses conhecimentos? ” Os dados dos debates foram registrados
em um diário de campo por um docente em sala de aula. Observamos tanto as formas
com as quais os alunos explicaram a aproximação entre as duas formas de produzir
e validar os conhecimentos e saberes em jogo quanto percebemos dois momentos
nos quais as vozes dos alunos foram silenciadas. Acreditamos que este trabalho
fornece contribuições para compreender a interculturalidade nos cursos de formação
para educadores indígenas.

Palavras-chave: Interculturalidade. Educação Indígena. Formação docente.

ABSTRACT

In this paper we analyze the conflicts that arose from the encounter between scientific culture and
traditional knowledge in a Intercultural Training Course for Indigenous Teachers (spun) of the Faculty of
Education of UFMG, referring to the area of Life Sciences and Nature (CVN). In 2015 we created
the grouping "Relationship with Knowledge" in order to start the course by the discussion question

33
Pós-Doutorando no Centro de Educação da UFRN. Com auxílio da CAPES.
189
"to know the world?" We seek the speeches of the students about the nature of scientific knowledge and
the traditiona knowledge. We ask: "What place they attribute to such knowledge? "The data debates were
recorded in a diary by a teacher in the classroom. We observe both the ways in which students explained
the approach between the two ways to produce and validate the knowledge and knowledge into play as
we noticed two moments in which the voices of the students were silenced. We believe this work provides
contributions to understanding the intercultural training courses for indigenous educators.

Keywords: Interculturalism. Indigenous education. Teacher training.

INTRODUÇÃO

Diversos trabalhos discutem os momentos de silêncio que ocorrem em sala de aula.


Gilka Girardello (2011), ao discutir a importância da imaginação para a educação das
crianças, busca argumentos para uma compreensão do quanto a experiência
imaginativa é vital para os caminhos da criança em seu processo integral de
conhecimento do mundo, tanto em seus aspectos estéticos quanto científicos. A
autora indica os momentos em que o aluno se torna contemplativo em sala de aula,
dilatando o tempo de forma a recriar as situações vividas, dando-lhe um caráter lúdico,
e por isso mesmo estimulando e educando a imaginação. A autora mostra a importância
de mudar os tempos escolares, tornando-o mais lento de forma a se adequar ao trabalho
com os alunos. A escola não deve proibir a lentidão e a paciência:

Nem sempre a criança que se mostra momentaneamente


parada, com o olhar fixo e aparentemente vago, precisa naquele
instante da interferência automática do adulto para que faça
alguma coisa, para que se envolva com os colegas ou com
alguma outra proposta em andamento na sala. Às vezes, ela
pode estar em plena elaboração imaginária, vivenciando o
devaneio, que é parte fundamental de sua vida subjetiva.

Adriane Laplane (2000), por sua vez, reconhece as questões que atualmente
perpassam a educação pública, principalmente as tensões decorrentes da pluralidade
cultural que hoje chegam às escolas:

Na discussão dos problemas da educação formal, as questões


que resistem ao tempo e aos esforços de teorização e de
explicação referem-se, justamente, a essa escola mais
distante dos padrões idealizados, à escola que se reconhece

190
incapaz de lidar com a diversidade e a heterogeneidade
próprias de uma instituição que não pode deixar de refletir as
diferenças sociais, culturais, de gênero, raça, religião etc
(LAPLANE; 2000, p. 56)

A autora orientou seus estudos para as interações em sala de aula, e o papel que
as mesmas possuem na aprendizagem dos alunos. Em muitos casos, a interação é vista
como indicador de sucesso de determinadas propostas metodológicas e de estratégias
de ensino. Entretanto, menciona alguns casos de alunos que não se comunicam
com os adultos, gerando momentos de enfrentamento e tensão em sala. Segundo
ela, o estudo de episódios de silêncio compreendidos como momentos de interação
permite explorar os limites das ideias vigentes no campo das interações. As crianças que
não interagem aprendem de que forma? Ou não aprendem? Em seu trabalho, Adriane
Laplane analisa diversas interações em sala de aula, e em cada uma mostra a
complexidade envolvida no que se refere à participação dos alunos.

Por fim, um caso que ocorreu em uma turma do Curso de Formação Intercultural
para Educadores Indígenas, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Minas Gerais (VALADARES; LIMA-TAVARES, 2014). Refere-se a um aluno indígena
que, ao pedir explicações sobre os motivos que provocam que uma lâmpada seja acesa,
gerou uma enorme quantidade de perguntas em sala. O aluno foi silenciado pelas
indagações dirigidas a ele.

Em nossa perspectiva, se tratava de uma discussão sobre as formas de


manifestação da energia, seus processos de transformação e conservação para que uma
lâmpada incandescente se acendesse. Sobretudo, tratava-se de uma aula com
atividades experimentais e algumas questões conceituais envolvendo o tema “Energia”.
A atividade foi pensada de forma a promover as interações dialógicas entre alunos e
professores, de forma que estes últimos tinham a pretensão de evitar intervenções
diretas, deixando a discussão sobre as questões propostas se desenrolarem mais
livremente. O material proposto, em nossa visão, se abriria à participação dos alunos.
Mas surgiu um desconcerto diante da pergunta de um

aluno. Ele fez, inicialmente, uma pergunta sobre o modelo microscópico da corrente
elétrica (O que acontece dentro dos fios para acender a lâmpada?), deixando de lado
191
uma descrição macroscópica. Após a rápida explicação pelo professor sobre o modelo
clássico da corrente elétrica, o aluno perguntou se aqueles elementos – prótons,
elétrons e nêutrons – constituíam também a mesa, as cadeiras, as pessoas, as
plantas. Na continuidade, um dos docentes percebeu que a pergunta feita pelo aluno
tinha outro viés: “Sua problematização relacionava-se à constituição das coisas. Se
prótons, elétrons e nêutrons constituíam um universal a fazer parte de todos os
materiais”. Enfim, ele construiu um outro sentido para o texto, direcionando a discussão
para “qual seria a essência das coisas”?

A resposta, nesse caso, poderia envolver questões e determinantes culturais. Ao


perceberem o nível do que se propunha aquele debate, o docente respondeu de
maneira rápida, e em forma de pergunta, a questão. Simultaneamente, começou a fazer
perguntas ao aluno: o que ele achava daquele tema? O que ele responderia? E a turma,
o que achava? Ao perceber certo agito e troca de olhares, o aluno renunciou ao debate,
talvez até mesmo para garantir uma persistência para o reconhecimento da diferença
que poderia não ser enunciada. Após a discussão, seguiu-se um silêncio, uma pausa.
Esse se deve ao conteúdo da discussão ou ao lugar que o debate ocupou na sala?
Alguma fantasia de intrusão pela forma que o docente levou o debate e a associação
feita? O aluno entrou numa posição defensiva, não respondendo mais às indagações
feitas pelo docente e pelo bolsista. Não importa se ele teria uma resposta ou não, mas
o fato de que ele não levou o diálogo a frente, mostrando-se silencioso em sala. O que
não foi também mencionado é que o docente também se mostrava numa posição
defensiva, em função do seu desejo de conhecer algo mais da cultura daquele grupo
indígena

Apresentamos uma pesquisa realizada com alunos indígenas da segunda turma da área
de Ciências da Vida e da Natureza (CVN), do Curso de Formação Intercultural para
Educadores Indígenas (FIEI) da Faculdade de Educação da UFMG (FaE/UFMG).
O curso é dividido, semestralmente, em duas partes: uma delas denominada Módulo,
quando os povos indígenas passam 5 semanas na FaE, e a outra de Intermódulo,
quando os docentes da UFMG vão às aldeias. Na organização do Módulo, para a
segunda turma, os docentes propuseram a criação de agrupamentos temáticos:
Tecnologia e trabalho; Saúde; Educação e escola indígena; Território e Ambiente;

192
e, por fim, Relação com o Conhecimento. Esperava-se que o debate em cada eixo
auxiliaria a formatar os componentes curriculares do curso.
Apresentamos as discussões que ocorreram no agrupamento Relação com o
conhecimento. A partir da pergunta “Como conhecemos o mundo? ” houve uma Roda
de Conversa envolvendo os docentes e os indígenas. Tal indagação trouxe com ela
aspectos ligados à diferenças entre as explicações fornecidas pela cultura indígena e
pelo conhecimento científico para situações do cotidiano. Os trinta e cinco indígenas,
das etnias Pataxó (Itapecerica/MG, Barra Velha/Ba), Pataxó Hãe Hãe Hãe (Porto
Seguro/Ba), Guarani (Angra dos Reis/RJ), e Xakriabá (São João das Missões, MG),
foram divididos em três grupos, e ao longo de uma semana cada grupo passou pelos
agrupamentos. Todos apresentaram suas visões de mundo sobre as diversas formas
de produzir, validar e transmitir o conhecimento. Indagamos: Como a cultura indígena
tem sido tratada no curso, em seus contatos com a cultura científica? Qual a
relação entre a interculturalidade e o silêncio que ecoou em alguns momentos?
Pensar no encontro de culturas distintas faz parte do pressuposto geral de um
curso para educadores indígenas. Esperamos trazer contribuições importantes para
compreender a sala de aula, tanto nos cursos de formação docente quanto na educação
básica indígena, em suas dinâmicas culturais (GOMES; MIRANDA, 2014).

2. – DESENVOLVIMENTO

No passado, o contato dos povos indígenas com a cultura branca suscitou uma
visão romântica da cultura indígena, com seus modos de vida simultaneamente
atrasado e passivo. A cultura etnocêntrica era a cultura a ser aprendida nas escolas. O
processo de democratização do país, na década de 1980 trouxe ao primeiro plano a luta
pelo acesso e permanência a uma escola pública. Essas mudanças criaram tensões:
de um lado, um universo escolar marcado por lógicas como homogeneidade, igualdade,
objetividade, ciência, cultura única. Por outro, um mundo social caracterizado pela
heterogeneidade, relativismo, subjetividade, cultura local. Abriu-se uma perspectiva
de educação intercultural como uma forma de ruptura do pensamento único que
perpassam as escolas. Para Roy Wagner (2012), uma vez que toda cultura pode ser
entendida como uma manifestação específica ou um caso de fenômeno humano, e uma
vez que jamais se descobriu um método para “classificar” culturas diferentes,
presumimos que cada cultura, como tal é equivalente a qualquer outra.
193
A partir da década de 1990 a superioridade do conhecimento científico e o
desprezo pela cultura popular começaram a sofrer críticas pelos pesquisadores da área
de ciências. Para Alice Lopes (2014), a proposição de currículos alternativos não
conseguiu superar a dicotomia entre o conhecimento científico e a cultura tradicional.
Tal aspecto mostra a importância desse trabalho: conhecer os impasses que surgem
em sala quando culturas diversas estão em interação.
Para Manuela Cunha (2007), essas dimensões separam já de saída o
conhecimento tradicional e o conhecimento científico. Nada ou quase nada ocorre no
conhecimento tradicional da mesma forma como ocorre no conhecimento científico. Não
há dúvida, no entanto, de que o conhecimento científico é hegemônico. A autora nos
deixa a seguinte pergunta: Quais as pontes entre eles? Investigamos a produção do
silêncio de uma das vozes em sala de aula, procurando entender os significados
atribuídos ás situações vividas, e como essas possibilitaram o reconhecimento das
peculiaridades das culturas envolvidas no diálogo.

Dois docentes e um bolsista acompanharam o grupo temático. Em sua


dinâmica, o agrupamento teve dois momentos. No primeiro, os alunos, em
pequenos grupos, responderam, por meio de desenhos e textos, á questão “Como
conhecemos as coisas”? Em seguida, ocorreria a apresentação e o debate com todos
os alunos. No segundo momento ocorreu à passagem da “Caixa-preta”
acompanhada da pergunta “Como saber o que tem dentro? ” Cada aluno, ao ter a caixa
em suas mãos, respondia à pergunta, justificando a sua resposta. Em cada uma das
atividades realizadas foi feito o levantamento das respostas dos alunos, e as discussões
foram anotadas pelo bolsista no diário de campo.
Subjacente a essa discussão, buscava-se nos diálogos os significados e
valoração que são atribuídos ao conhecimento científico e aos saberes tradicionais
indígenas. Esse trabalho trata exatamente do caráter crítico desse diálogo intercultural.

Nosso objetivo é que a cultura indígena se torne “visível” e “plausível” para todos nós.

4. – ANÁLISE DOS DADOS

A partir das questões propostas, ocorreu a socialização das respostas para toda
a turma:

194
3. Conhecimento é sabedoria divina;

2. Conhecimento do pajé é dom;

2. Para utilizar o mangue, é preciso ter conhecimento;

2. Os conhecimentos tradicionais e acadêmicos se


complementam;

2. Os experimentos nem sempre dão certo, pois laboratório é

da vida;

1. Conhecimento dos pais que passam para a gente;

3. Sinais da natureza (animais e plantas)

1. Plantio: aprende-se com a convivência;

1. Observando a Lua.

Existem vários tipos de conhecimentos: aqueles que são apreendidos via


transmissão e convivência (a família que passa para os filhos, os sábios que
passam as tradições para todos, e pela convivência); aqueles saberes oriundos de uma
capacidade que transcende o humano (dom, sabedoria divina); e por fim, os saberes que
são adquiridos pela observação da natureza (sinais das plantas e bichos, observação da
lua). Segundo eles, esses conhecimentos não resultam de “experimentos de laboratório”,
pois é a vida que os determinam, são práticos (é preciso conhecer para utilizar o
mangue). Percebemos que os saberes se diferenciam pela sua produção em
laboratórios (conhecimento científico) ou na concretude da vida (saberes tradicionais).
Talvez seja decorrente dessa concepção o fato de que “os conhecimentos científicos e
os saberes tradicionais sejam complementares”: um é prático, concreto, se liga à vida; o
outro é abstrato, não tem uma utilidade no cotidiano.

A aprendizagem dos modos de viver pelos mais jovens se faz pela observação,
imitação, e seguindo as orientações dadas pelos mais experientes na convivência
conjunta das práticas sociais. Na sequência da discussão essas visões se tornaram mais
explícitas:
P1: Mas como eu sei que uma planta é boa para alguma coisa
que a pessoa está sentindo?

2.Meu pai falou;

195
2. Conhecimento vem desde o nascimento. Baseado no
ensinamento dos pais. A criança vai para a roça, primeiro para
observar. A profissão a partir da convivência com o grupo;
3. A mãe ensina à criança tecer, e o pai ensina a fazer os
arcos, as flechas, os cantos.

Após essa pequena discussão o diálogo cessa, como se a resposta fosse


suficiente. Temos um primeiro silêncio: não há mais o que dizer. Os docentes
retomam a discussão sobre a influência da lua para o plantio. Porém, novamente ocorreu
a distinção entre um conhecimento prático –, fruto da convivência e observação –, e
aquele produzido pela ciência, observando e testando. Vejamos:

P2: Como é que eu sei que uma lua tal é boa para se plantar?
[pergunta o professor]
2. Observando a lua; Foi sendo passado de geração a geração; Foram
observando, testando (como a ciência faz);

Inferimos duas novidades: primeiramente, percebe-se que a transmissão do


conhecimento implica também em sua validação: se o conhecimento não fosse válido ele
não seria transmitido. Em segundo, o surgimento da palavra “testar” para produzir uma
comparação entre o conhecimento científico e o saber tradicional. Nos diálogos em sala
surge um conhecimento espiritual, mítico. Vejamos:

3. Pajé conhece as plantas, é um conhecimento espiritual;

P1: Como se passaria o conhecimento espiritual?

3. Tem que ter o dom também;


1. Pelos Sonhos;

3. Espiritualidade vem da força da natureza

Outro silêncio desconfortável. Os docentes, focados na discussão do


empirismo, não percebem a mudança na sequência discursiva. A produção do
conhecimento e sua transmissão precisam de algo mais do que simplesmente

196
observar: necessitam de um conhecimento espiritual, que vem da natureza, e que,
dependendo de sua relevância para a comunidade, é transmitido pelos “sonhos” apenas
para alguns iniciados (pajés), que possuem o “dom” suficiente. A falta de atenção docente
leva ao silêncio. Na continuidade, discutem sobre o canto dos pássaros:

2. Escutando os pássaros vem chuva.


P2: Como descobriram?
2: Aprenderam com os mais velhos, que aprenderam com os
mais velhos.

O último excerto mostra que poderia haver um conhecimento sem origem. De certa
forma, nas culturas caracterizadas pela oralidade, a memória da autoria, embora nunca
totalmente ausente, nem sempre tem a importância que se espera dela. Tal aspecto
permite que haja recriações por meio da incorporação de variações próprias, e as
mudanças vão sendo introduzidas por uma cadeia de indivíduos. Teríamos, assim, várias
“versões locais corretas”.

A insistência de um conhecimento que pudesse não ser produzido pela


observação provocava um clima de desconforto entre os indígenas. Nesse momento
houve a apresentação da caixa-preta:

P2: Como é que a gente faz para transmitir para alguém, para
as novas gerações, o que tem dentro da caixa? Seremos os
primeiros sábios. Como é que eu vou descobrir?

O professor apresentou uma pequena caixa de papelão, opaca e vedada,


perguntando-lhes o que ela continha. Após o manuseio da caixa, as respostas eram
dadas e o professor fazia os registros no quadro. As respostas eram as mais diversas:
bolinhas, cubos, tampinhas, apontadores, lápis, borrachas, esferas (de metal, de vidro,
de plástico, de madeira), materiais em configuraçõescomplexas (uma bolinha dentro
de uma caixinha de metal). A cada resposta, o professor perguntava qual a justificativa.
Nesse momento, o professor discute com os estudantes as principais questões da
atividade: como conhecemos as coisas? Temos certeza do que tem dentro da caixa?

P2: Alguém, em algum momento, começou a observar a natureza. Vejamos que não é fácil
fazer certas observações. As astronômicas, por exemplo.
Passaram-se muitos anos para que uma hipótese pudesse ser
feita e confirmada. O sol vai nascer amanhã? Como sabemos?
197
2. Pela observação [responde um estudante].

P2: E no caso da caixa, a observação serve?

2.Passo a usar a imaginação a partir do que eu conheço.

Para os astecas, o Sol não poderia parar de nascer, pois provocaria uma ruptura
muito grande na ordem do universo. Mas aquele povo não tinha a certeza, pela simples
observação, de que ele nasceria todos os dias. Precisavam de um mediador espiritual;
faziam sacrifícios humanos destinados a garantir o seu nascimento. Será que para a
ciência o simples fato do Sol nascer todo dia basta para que ele nasça amanhã? A
resposta do aluno traz um novo elemento diferente da observação: a imaginação. Foi
nesse aspecto que os docentes se apoiaram para introduzir a ideia de teoria e modelo:

P2: Os conhecimentos que temos vêm de maneiras diferentes.


Por exemplo, sobre o sol aparecer amanhã com certeza. Uma
maneira de saber isso é pela observação. Mas, preciso mais do
que observação: preciso também da imaginação. Elaboramos
modelos, uns mais complexos, outros mais simples.

A discussão caminhou na direção tanto da diferenciação das formas de conhecer


o mundo quanto se abria a caixa ou não. Porém, no fim, virou um debate entre os dois
professores:

P1: A ciência é capaz de abrir a caixa? Para conhecer as coisas é preciso abrir a caixa? Ao
longo do curso, temos que pensar que nenhum conhecimento
abre a caixa, seja ele o científico ou o tradicional. Ambos são
crenças, e que também podem mudar [não são imutáveis].

198
P2: Mas qual é a melhor explicação? A científica ou a tradicional? As
explicações não são comparáveis. Não tem como comparar os
conhecimentos. Partem de pressupostos diferentes. Mas, durante o
curso, eles serão tensionados.

P1: Como sabemos que a lua influencia o corte de cabelos, o nascimento dos filhos? São
crenças/valores.

P2: A astronomia, é uma prática para os indígenas. Interfere no cotidiano, nas relações de trabalho.
Em vários momentos vamos nos deparar com essas questões. O sol
nasce todo dia pois foi assim há bilhões de anos: observação. A partir
de certo momento, a ciência passou a explicar de uma outra forma.
O conhecimento baseado só na observação não é suficiente, ainda
que não seja invalidado por isso.

P1: Algum desses conhecimentos (tradicional e/ou científico) é sempre capaz de comprovar, de
dizer qual é a verdade?

P2: As teorias mudam: a ciência é também uma construção de um grupo de pessoas que foi se
perpetuando ao longo do tempo.

No diálogo final, notamos que os docentes comentaram sobre as várias formas do


saber, de sua produção e validação. Porém, fica nítido que as vozes dos alunos
desapareceram do registro.

5 – CONCLUSÕES

Não se tem dúvidas, no que se refere à educação indígena, de que as legislações


recentes têm defendido o acesso a uma escola que valorize a cultura tradicional indígena
e, simultaneamente, fornece os instrumentos para o contato com a sociedade no geral.
Como essas culturas se encontram em contextos escolares?

Deparamos com um caminho novo para discussão da natureza do conhecimento


científico. Reconhecendo a importância das tensões decorrentes da convivência do
conhecimento científico e dos saberes tradicionais indígenas no curso FIEI/CVN, os
docentes colocaram essa temática como um dos eixos organizadores do curso. Sobretudo,

199
esse trabalho mostrou as tensões decorrentes dos diálogos entre os saberes, presentes em
sala.

A ideia dos povos indígenas de que o conhecimento tradicional é diferente dos


saberes científicos devido ao fato de que um é prático, concreto, e o outro é abstrato,
produzido em laboratório: um completa o outro. Ambos são considerados próximos devido
à origem de cada conhecimento: partem da observação, e a repetição dos dados funciona
como teste de validade das conclusões. Deixam entrever a indução com mecanismo de se
chegar às leis gerais.
Sobretudo, a leitura atenta das falas durante os diálogos travados em sala parece
indicar que uma das formas de validação do conhecimento tradicional é sua transmissão
pelos mais velhos. Só se transmite o conhecimento correto.
Além disso, uma parte dos excertos indígenas não foi considerada pelos docentes:
as partes que mencionam o pensamento mítico, isto é, aqueles conhecimentos oriundos da
força da natureza e da espiritualidade. O silêncio dos alunos refletiu essa postura de
nãoescuta pelo docente. Nesses momentos as culturas em sala se tornam sem contato,
exteriores entre si. De maneira semelhante, o diálogo final, travado apenas entre os
docentes. Para Manuela Carneiro da Cunha 2007, p.84), devemos

(...) encontrar uma forma para o conhecimento científico e o conhecimento tradicional


viverem juntos. Viverem juntos não significa que devam ser considerados
idênticos. Pelo contrário, seu valor está justamente na sua diferença. O problema,
então, é achar os meios institucionais adequados para, a um só tempo, preservar a
vitalidade da produção do conhecimento tradicional, reconhecer e valorizar suas
contribuições para o conhecimento científico e fazer participar as populações que o
originaram nos benefícios que podem decorrer de seus conhecimentos. Essa
tríplice condição parece mais fácil de dizer do que fazer, sobretudo a primeira. A
confidencialidade e o monopólio, por exemplo, que fazem parte do sistema ocidental
contemporâneo de direitos de propriedade intelectual, se estendidos a todos os
regimes de conhecimentos tradicionais.

A educação intercultural é compreendida como mecanismo marcado por uma


relação tensa entre sujeitos diversos, propiciando contextos ora interativos ora mais
“silenciosos”, significando maior ou menor espaço simbólico onde se constrói um ambiente
mais ou menos criativo. E o que teriam em comum? Segundo Manuela Carneiro Cunha
(2007), uma resposta é que o conhecimento científico e o saber tradicional são formas de
procurar entender e agir sobre o mundo. E também obras abertas, inacabadas, sempre se
fazendo.

200
Referências

CUNHA, MANUELA CARNEIRO: Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber


científico. Palestra realizada na Reunião da SBPC, Belém, Pará, em
12/07/2007. REVISTA USP, São Paulo, n 75, 2007, pp.76-84.

file:///C:/Users/Marilene/Downloads/13623-16598-1-PB.pdf Acessado em

07.04.2016

GIRADELLO, GILKA. Imaginação: arte e ciência e na infância. In: Pro-Posições, Campinas,


v. 22, n. 2 (65), p. 75-92, maio/ago. 2011.

GOMES, A. M. R.; MIRANDA, S. A. A formação de professores indígenas na UFMG e os


dilemas das culturas Xakriabá e Pataxó. In: CUNHA, M. C.; CESARINO, P. N. (Org.).
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2014. p. 455-483.

GUTIERREZ, A. L. G. Notas conceituais sobre a relação entre justiça curricular e currículo


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N. 50, abril/2000

LOPES, A.C.: Ainda é possível um currículo político? In: LOPES, A. C.; ALBA, A. (Org.).
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2014.

VALADARES, Juarez Melgaço; LIMA-TAVARES, M. A FORMAÇÃO INTERCULTURAL


PARA OS POVOS INDÍGENAS NA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS:
desafios e possibilidades. Interaccoes, v.10, p.54 - 70, 2014.

WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. 1ª Edição. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

201
JÚRI SIMULADO SOBRE O CURRÍCULO DE CIÊNCIAS PARA A EDUCAÇÃO DO
CAMPO

A JURY SIMULATED ON SCIENCE CURRICULUM FOR THE RURAL EDUCATION

Juarez Melgaço Valadares34


DMTE / Faculdade de Educação / UFMG
juarezm@ufmg.br

Francisco Ângelo Coutinho


DMTE / Faculdade de Educação / UFMG
fac01@terra.com.br

RESUMO
Analisamos uma atividade desenvolvida numa turma de Licenciatura em Educação do
Campo, Ciências da Vida e da Natureza, da Faculdade de Educação da UFMG. A partir de
uma discussão que surgiu na Disciplina Construindo Modelos – Astronomia,
relacionada à influência da Lua na vida cotidiana das pessoas, promoveu-se um Júri
Simulado com a seguinte indagação: “Os saberes da experiência devem fazer parte do
currículo das escolas públicas? ” O Júri simulado foi pensado como estratégia didática que
permitiria o debate e o aprofundamento das argumentações sobre o tema. A análise dos
discursos produzidos pelos alunos mostrou a complexidade dessa discussão, pois envolvida
pela natureza e formas de produção dos conhecimentos científico e tradicional. Esperamos
trazer contribuições à discussão curricular para o ensino de ciências, uma vez que os
conteúdos disciplinares definidos a priori sempre se constituíram no foco principal de nossas
escolas.
Palavras-chave: Educação do Campo. Júri Simulado. Currículo.

ABSTRACT
In this paper we analyze an activity performed in the course of the Field Education Degree,
Life and Nature Sciences, Faculty of Education of UFMG. From an initial discussion on the
influence of the moon on people's lives, which appeared in the Discipline Building Models -
Astronomy, promoted a Simulated Jury with the following question: "The experience
knowledge should be part of the curriculum for agricultural schools?" the jury simulation was
designed as a teaching strategy that would allow the debate and deepening of arguments
on the subject. The analysis of discourses produced by students showed the complexity of
this discussion, it involved by nature and forms of production of scientific and traditional
knowledge. We hope to bring contributions to the curricular discussion to the teaching of
science, since the subject content defined a priori always constituted the main focus of our
schools.
Keywords: Rural Education. Simulated Jury. Curriculum.

34
Pos-doutorando no Centro de Educação da UFRN. Com auxílio da CAPES.
202
1 - INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta uma análise de uma experiência didática na disciplina


Construindo Modelos – Astronomia, do curso de Licenciatura para a Educação do Campo
da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE-UFMG),
Brasil. Um Júri Simulado foi introduzido, buscando responder à seguinte questão: “Os
saberes tradicionais da população rural devem constar dos conteúdos curriculares para a
Escola do Campo? ” Trata-se de um curso de formação de professores ligados à
educação do campo e aos movimentos sociais do meio rural. Seu principal objetivo é que
as escolas do campo tenham professores comprometidos com os movimentos identitários
do campesinato.

A questão surgiu a partir de uma discussão sobre a influência da Lua na agricultura,


e os diversos posicionamentos existentes de agricultores, cientistas, agrônomos, dentre
outros, sobre o assunto. Esses textos foram apresentados em sala e discutidos com os
alunos, em grupos menores e plenárias. Nesse momento o professor perguntou se os
saberes da experiência deveriam ou não fazer parte do currículo escolar. Essa indagação
já havia sido apresentada em momentos anteriores na disciplina. O professor trazia um
debate para a sala de aula: quais as justificativas para introduzir ou não os saberes
tradicionais no currículo de uma escola?

Atualmente, mesmo que a maioria da população permaneça ligada aos saberes


tradicionais, as escolas mantêm os conteúdos universais e acumulados historicamente
como padrão oficial a ser ensinado às novas gerações. A questão inserida no curso
problematiza uma situação na qual existe certa polêmica: se a cultura e os saberes
tradicionais do homem do campo devem fazer parte dos conteúdos escolares, e quais as
justificativas para essa inclusão. De um lado, nos textos apresentados alguns grupos de
cientistas acham que tais conhecimentos, por não possuírem o status de ciência, não devem
entrar em sala de aula. Por outro lado, algumas pessoas acreditam que tais conhecimentos,
por fazerem parte da cultura das pessoas que vivem no campo, devem adentrar-se, por

203
motivos diversos, nas escolas. Vejamos o que nos escreveu Attico Chassot (2011,
p.226), sobre a assimetria entre esses saberes:

Esse valioso aprender na chamada Escola da Vida corre o risco de


desaparecer ou porque modernas tecnologias suplantam (ou
incorporam) os conhecimentos ditos populares ou porque, como já se
viu, estes não são validados pela academia, e passam a merecer
descrédito. Uma e outra das situações pode levar à extinção desses
saberes. Há áreas em que a primeira das situações é mais evidente
(medicina caseira, controle genético das sementes). Outras há que,
pelo fato da academia não saber explicar (Meteorologia, Astrologia,
por exemplo), são simplesmente ridicularizadas ou até vetadas.

Como são selecionados os conteúdos escolares? Por que alguns são


privilegiados em relação aos demais? Essas perguntas formam o pano de fundo do debate
proposto. Estamos assim frente a uma situação da realidade perpassada por diversas
dimensões: política, jurídica, teórico-conceitual, sociocultural, técnico- assistencial. A
hipótese que aceitamos é que há um modelo de escola, que tem como âncora o princípio
da universalidade, que opera com o conceito de razão abstrata, com a consequente
cassação da subjetividade. Nesse processo ocorreu a denegação das culturas locais e
regionais (GIUST-DESPRAIRIES, 2011).
Ao se propor um jogo, onde futuros docentes transformam o brincar e a socialização
em processos de aprendizagem, espera-se criar espaços ventilados nas quais a docência
seja reinventada por eles. Uma atividade controversa, que opera a partir da argumentação
construída pelos próprios alunos faz surgir palavras onde antes não existia. A
possibilidade de os saberes tradicionais, – a influência das fases da lua na vida das
pessoas – fazerem parte do currículo escolar ganha figurabilidade. Além disso,
investe uma capacidade de cada um pensar a sua história, pessoal e profissional.
A situação controversa foi levada para a sala de aula, de forma que os sujeitos
envolvidos no fazer educativo pudessem encontrar espaços de atuação diversificados e,
simultaneamente, aprofundar seus argumentos sobre o tema proposto. Olhar e analisar
esse momento implica em prestar atenção nos níveis de argumentação e busca da
dimensão escolhida para caracterizar a opção feita.
Estamos aqui em busca de novas articulações entre Ciência, Tecnologia e
Sociedade. A construção de uma cultura universal para todos, oriunda de uma razão
204
instrumental que proporcionou a integração entre cultura e tecnologia só pode funcionar a
partir da negação e exclusão de qualquer outra cultura que não seja integrável na
dominante. Assim, a discussão curricular ganha tonalidades da dimensão político-jurídica,
como um campo em disputa. Trabalhar o currículo nessa perspectiva implica numa
tentativa de engajar o aluno num processo de aprendizagem ancorado em
situaçõesproblema, mais complexas do que aquelas fragmentadas encontradas em livros.
Além de compreender essas situações (Questões curriculares controversas) como
articuladoras dos diversos objetivos para o ensino da ciência e de suas relações com a
sociedade, suas discussões em sala de aula promovem também o diálogo entre a ética e
a cultura.
Em nosso trabalho, exploramos o potencial educativo de uma situação
controversa para uma reflexão mais aprofundada sobre o que deve ser ensinado, e quais
seriam as aprendizagens essenciais, na elaboração de um currículo intercultural. A
disciplina, ministrada em 2016, tinha como objetivo principal a discussão do uso de
modelos na astronomia, e os diversos sistemas explicativos dos fenômenos celestes.
Acreditamos que o currículo possa fazer sentido para os sujeitos envolvidos ao
propiciar a aprendizagem dos conceitos científicos sem perder de vista as vivências locais
perpassadas pelos problemas da vida contemporânea. Sobre essa articulação,

(ela) é geradora de encontros das lógicas disciplinares com a lógica


do senso comum e de debates em torno de valores. Atravessa
vários campos do saber, é de carácter holístico, comporta tópicos
controversos, é comum a muitas situações vivenciadas, tem grande
significado socioambiental, revela interesse actual e prático, faculta
elementos para análises, sínteses, avaliações e articula-se a
questões de cidadania (SANTOS, M-E, et.al, 2006, p.7).

O objetivo inicial era discutir quais conteúdos deveriam fazer parte do currículo de
ciências. Para tanto, lançamos mão tanto dos diálogos travados pelos alunos ao longo da
atividade. Porém, notamos que o tema se tornou mais complexo, pois envolvido pela
discussão sobre a natureza do conhecimento científico e dos saberes tradicionais.

205
Esperamos trazer contribuições para a discussão curricular em ciências, uma vez
que atividades centradas em questões socialmente controversas possibilita tanto a
ampliação da participação dos sujeitos aprendizes, uma vez que são temas atuais e
pertinentes ao cotidiano, quanto contribui para construir um outro olhar sobre a realidade.

2 - METODOLOGIA DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS

A disciplina possui uma carga horária de sessenta horas (60 horas), e é ministrada
no formato denominado Pedagogia da Alternância: quarenta e quatro horas são em
regime presencial, e o restante em atividades não presenciais, realizadas nas
comunidades de cada um dos alunos. Essa forma de trabalho procura respeitar as
especificidades dos sujeitos que participam do curso: seus tempos de trabalho nas
comunidades, suas relações familiares, seu entorno sociocultural, enfim, seus tempos
próprios de vida.
De uma forma geral, as atividades foram divididas da seguinte maneira: atividades
problematizadoras no início da disciplina e anteriormente a cada conceito ou tema, aulas
teóricas e dialógicas, leitura e discussão de textos, sistematização dos conteúdos
trabalhados, atividades experimentais, aulas de exercícios. Todo o material didático
utilizado na disciplina foi produzido coletivamente pelos professores da Área de Ciências
Físicas da FaE-UFMG. Cabe ainda ressaltar que os textos foram retirados de livros
didáticos, revistas, sites da internet, capítulos de livro especializados, além de material
produzido pelos professores e bolsista do curso.

A pesquisa foi de cunho qualitativa (ANDRÉ, 1995). Todas as aulas da disciplina


foram gravadas em vídeo, com transcrição a posteriori. Após cada aula, o professor e o
pesquisador avaliavam conjuntamente a experiência vivida.

A atividade sobre a importância dos saberes tradicionais para o currículo de


ciências foi realizada após uma discussão iniciada pelo professor sobre a influência da lua
na agricultura. Essa aula teve a duração de quatro horas, e foi gravada em vídeo. Nessa
aula, a turma foi dividida em dois grupos, e cada um deles tinha que procurar vídeos e
textos favoráveis e contrários à inclusão da cultura local no currículo da educação básica.
206
A intenção era que a sala chegasse a um consenso após todo o contexto argumentativo
gerado no debate entre os grupos.
Para análise dos dados, utilizamos os diálogos desenvolvidos durante o desenrolar
dos debates. Indagamos: Qual a relevância da atividade na visão dos alunos? Os alunos
perceberam os mecanismos e as dimensões envolvidas quando se pensa dem um
currículo de ciências?

3 - ANÁLISE DOS DADOS

3.1 – Os argumentos de cada grupo em sala de aula

Na apresentação inicial do grupo a favor de que os saberes tradicionais estejam


presentes no currículo escolar surgiu a dimensão teórico-conceitual como justificativa para
tal presença. Segundo esse grupo, a ciência é parte do conhecimento da humanidade,
cuja origem é a observação atenta dos fenômenos. A ciência é melhor do que o
conhecimento empírico?

Grupo CP 35 : Porque não tem como dizer que os conhecimentos


populares não são ciência. Até mesmo na palavra ciência quer dizer
conhecimento, amor pelo conhecimento. Ciência significa saber.
Então se eu sei que alguma coisa aí é devido à observação, a milhares
de anos a população vem observando as influências da lua. Aí vem
alguém que só porque pegou o diploma de uma faculdade, que talvez
não tenha tido tanta observação e experimentação quanto as
pessoas antigas, chega e fala "ah, não é ciência". Por que não é
ciência? Por que não? É melhor que as populações que ficam
observando isso a tanto tempo?

Inicialmente, a diferença entre o saber tradicional e o conhecimento científico


estaria na personalidade e grau de formação daquele que descobre as leis científicas. Por
sua vez, o critério de validação dos saberes tradicionais é dado pela forma com que é
transmitida pelos mais velhos às gerações posteriores:

Grupo CP: E que viveram tendo a observação como referência,


tinham suas práticas mediante as fases da lua e toda essa
experiência. Passam para os seus filhos dessa forma e a partir daí
várias populações, várias novas gerações foram surgindo e esse

35
CP é o grupo que defende a inclusão dos saberes da tradição no currículo. CC é o grupo que defende apenas a presença
do conhecimento científico.
207
conhecimento foi sendo repassado. Nós temos isso até hoje. Acredito
que se fosse algo que não fosse válido, que não acontecesse, que
não influenciasse, hoje já teria acabado. Hoje as pessoas num
plantariam mais de acordo com as fases da lua, observando as
fases da lua.

O critério de produção do conhecimento, bem como o de validação, serão aspectos


atacados pelo grupo de alunos defensores do conhecimento científico. A ideia de um
conhecimento neutro, que se distingue dos demais por um método cujo rigor é defendido
de forma insistente, e que explica os fenômenos como eles realmente são (os fenômenos
são cópias da realidade), tornam-se o caminho para defender exclusivamente o
conhecimento científico no currículo escolar:

Grupo CC: Então o conhecimento empírico ele é passado de gerações em


gerações, e assim a gente questiona: “Quem provou isso? ” Alguém falou
com com seu pai que a lua influencia no plantio da mandioca, seu pai
ensinou para você, você vai ensinar seu filho. Mas assim, está provado
aonde isso aí? Aí a ciência, ela corre atrás das respostas para essas
perguntas por que, a partir disso, é que surge uma indagação, a
dúvida, a incerteza, aí a ciência vai atrás. E quando vai atrás fazendo
pesquisas, experimentos, entrevistando a própria comunidade, a gente
chega as conclusões de que a lua não influencia. Cientificamente
provado: a única coisa que a lua influencia é sobre as marés, e mesmo assim
não é somente a lua, tem o sol também.
Grupo CC: e foi Isaac Newton quem falou isso...
Grupo CC: Não existe outro nenhum outro caso fato que a lua
influencie, mais nada.
Grupo CC: É a força gravitacional que influencia.
Grupo CC: E quando é relatado esses fatos que é dito pelo conhecimento
empírico, as pessoas só relatam aquilo que deu certo, por exemplo, se uma
criança nasceu na lua cheia é homem só vai relatar isso, se for mulher
esquecido passo para frente que nasceu homem. Então algumas coisas são
esquecidas, deixadas de lado porque não deu certo como do jeito que o
conhecimento empírico relata.

“Cientificamente comprovado. E foi Isaac Newton quem falou isso”. Com esse
discurso de autoridade o grupo CC abre a sua participação no debate. Como nos escreve
Bourdieu (2011), a representação socialmente reconhecida como científica, e
consequentemente verdadeira, traz consigo uma força social própria; quando se trata do
mundo social, a ciência fornece, aos que a detém, o monopólio do ponto de vista legitimo,
da previsão autoverificadora. Além disso, há também uma desvalorização dos saberes
tradicionais no fechamento do diálogo, bem como a forma com que é manipulado: o dado
208
que não combina com o real é descartado ou deixado no esquecimento, de maneira que
o fenômeno continue sendo verdade. Essa a falcatrua do saber tradicional, na visão do
grupo CC.

Talvez estejamos aqui diante de uma versão positivista da ciência, manifestada


pelo grupo CC. Para mostrar sua separação dos conhecimentos tradicionais e do senso
comum, afirma-se tanto a existência de um método rigoroso quanto a não historicidade do
conhecimento científico. Nos excertos que se seguem, percebemos a insistência nessa
discussão; pareceu-nos que há uma superposição entre o objeto do saber tradicional e o
objeto do discurso científico, acompanhados por uma metodologia indutivista na
construção dos saberes:

Grupo CP: Importante destacar que também a lua tem influência muito
grande sobre a Terra. A lua também tem influência muito grande na
maré, comprovado cientificamente. Então porque a gente dizer que a lua não
tem influência nos seres vivos? Isso também confirma que a lua tem grandes
influências sobre os seres vivos. Grupo CP: Só para reforçar aqui também
no nosso grupo. Não existiriam saberes científicos se não fossem os
saberes populares. Acho que tudo tem uma escada, então acho que o grupo
nosso teria saído na frente com esses saberes populares.
Grupo CP: Hoje nas escolas se estuda os modelos atômicos. É algo bem
mais difícil de se entender, é algo bem mais difícil de se comprovar, algo bem
mais difícil de se visualizar na prática e não explica, por exemplo, que na lua
cheia não pode, os agricultores falam e muitas outras etnias, muitas outras
culturas falam que não pode cortar madeira na lua cheia por causa que ela
apodrece mais rápido. Muita gente já me explicou isso, isso já teve
comprovação, muita experimentação, isso não é uma coisa que, por
exemplo, eu que sou novo fui lá e aconteceu uma vez só. É desde os
antepassados que já vem acontecendo e sempre dão esses mesmos
resultados. E na escola, por exemplo, ensina a gente elétrons, prótons,
nêutrons. Coisa que ninguém nunca viu, foram poucas pessoas que tem
esse conhecimento científico, foram poucas pessoas que estudaram sobre
isso, muito poucas pessoas têm acesso com acelerador de partículas. E
por exemplo, a influência da lua tem muito mais gente que tem observando,
então é muito mais sério, muito mais pensamentos envolvidos nessa história.

A ciência, nessa visão, seria uma continuidade do saber tradicional. Este se


constituiria pela observação rigorosa do cotidiano, e teria grande aplicabilidade prática,
pois observada por um grande número de pessoas. Decorre daí a sua importância. Por
sua vez, o conhecimento científico viria de experimentos realizados em laboratórios –
aceleradores de partículas – de onde o conhecimento se produziria após a observação
dos acontecimentos, por um número pequeno de cientistas pertencentes aquela
209
comunidade. De característica mais contemplativa, esse discurso da ciência completaria a
visão do senso comum. É o que nos informa os membros do grupo CP:

Grupo CP: E por exemplo quando para a gente aqui do grupo quando
fala que as influências da lua não é ciência, ele fala que a observação popular
também não é ciência. Só é ciência aquilo que

as renomadas pessoas da universidade, com diploma, só aquilo que eles


falam que é ciência. Então acaba desvalorizando o conhecimento popular e
também inibindo a pessoa de estudar ciência. A pessoa pensa "se isso que
eu estou falando não é ciência então para que eu vou me interessar por
ciência". Então monopoliza os conhecimentos científicos.
Grupo CP: Tanto que a criança, quando a gente é criança, a gente pensa
que as grandes coisas que foram surgindo, as invenções, a gente pensa que
para ser cientista tem que ser muito inteligente, tem que inventar coisas, tem
que saber criar coisa. Mas tudo que hoje na ciência é comprovado e tudo
que instiga os pesquisadores tem base é no saber tradicional, é na vivência,
na observação. A partir da observação eles vão buscar formas de comprovar
aquilo, de estudar aquilo, de aprofundar naquilo. A ciência, o conhecimento
científico, nada mais é que o saber tradicional, popular, porém com
comprovação, com estudos aprofundados. Nós temos pessoas que estudam
a influência da lua. São pesquisadores, mas por isso não serão tratados
cientificamente, não é ciência? Não é válida?

Nesse caso, percebemos claramente uma concepção positivista como


enquadramento para ambos os discursos, uma vez que se defende um modelo ideal de
cientificidade no qual os dois discursos precisam aderir para se inscreverem no logos da
ciência. Visão essa que retorna também no outro grupo:

Grupo CC: Então assim, a ciência ela parte de coisas concretas, coisas
corretas né? É o conhecimento empírico deixa muitas dúvidas. Em
relação das fases da lua influenciar na questão da agricultura, não é que a
lua por ela ser cheio ou por ser nova que ela vai influenciar. Simplesmente
as pessoas utilizam a lua, as fases da lua, como um calendário. "Eu fiz um
plantio a lua foi dia oito então eu sei que daqui a lua vai completar o seu ciclo
das quatro fases e aí já vai estar no ponto de colher. Então assim a questão
disso aí a pessoa vai se programar.
Grupo CC: E hoje muitas coisas são substituídas como energia elétrica
substituiu lampião e outras coisas, a ciência substituiu esses conhecimentos.
Porque não é necessário mais você ficar olhando a lua para fazer seu plantio,
você tem outros meios, você não tem de ficar reparando na lua o que que
ela está hoje para saber que dia você tem que plantar.
Grupo CC: Em relação da questão de a lua influenciar na pesca, a questão
dos peixes ficarem na superfície ou no fundo da água, isso tem a ver com
a presença de oxigênio na água. A questão da luminosidade, se tiver
mais luminosidade com a presença dos plânctons e fitoplânctons que tem
dentro da água, com a presença
210
da luz e aí é mais importante a presença da luz solar, aí vai produzir mais
oxigênio na água, que vai ser o oxigênio subindo na água que vai influenciar.
Se tem mais oxigênio na água os peixes vão ficar mais no fundo, se faltar
oxigênio ele vai ir para superfície mesmo para buscar oxigênio. Isso aí não
tem questão de influência de lua. O ensinar em estado que infelizmente
ensinam essa questão de astronomia na escola, ensina, mas é um sério
problema porque astronomia é algo muito complexo, é complexo demais e
os professores não tem essa formação continuada sobre astronomia, e o que
acontece eles vão para as escolas, falam meias palavras, informações pela
metade, não refletem isso com os alunos, não levam nada concreto e os
estudantes, eles saem da escola com mais perguntas do que respostas, com
respostas insatisfatórias né? E questionar a influência da lua sobre o ensino,
sobre os modelos agrônomos é meio que contraditório a pessoa falar isso,
porque se chama modelo agronômico, é simplesmente porque é modelo
você não vê, você cria um modelo, aquilo que você não consegue enxergar.
Grupo CC: É comprovado, que a ciência fez o experimento, comprovou
aquilo.

Mesmo que levantem a ideia de um modelo saído da teoria, os alunos rapidamente


descartam essa ideia em função de um conhecimento advindo da experiência. Mesmo
para o grupo CC, a experimentação é o que fornece o rigor para se testar qual é o
conhecimento verdadeiro, aquele que deve ser transmitido às crianças em processo de
escolarização:

Grupo CC: É, tipo assim a gente tem, eu tenho experiência de vida de que a
lua não exerce influências em algumas experiências que eu tenho, que é só
para as questões de castração de porco. Meu pai dizia que nunca castrava
um porco na lua cheia, que a influência da lua nova porque ele dizia que na
lua cheia o porco inchava mais da castração. Aí a gente, eu tipo adquiri um
pouco de conhecimento científico na escola que estudei, eu cheguei em casa
e questionei isso com ele e a gente foi ver o que? Os experimentos, a gente
partiu para a prática. Eu fiz assim ele da forma que eu aprendi, ele fez a
técnica dele. Eu fiz as técnicas de higienização, esterilização para fazer
excisão e eles fez as práticas dele lá de fazer de qualquer forma, na dúvida
que lhe chamo no final e a gente vezes na lua cheia no final o porco que ele
castrou inchou, teve inflamação maior, teve a presença dos bichos e no caso
do animal que eu castrei não teve isso. No final nós concluímos que não é
questão de influência da Lua, o que influencia é o conhecimento de técnicas
científicas para fazer a esterilização, isso influencia.

Grupo CC: E outra questão na escola por exemplo se você não ensina uma
coisa, você ensina uma coisa que não é comprovada para uma criança, ela
vai se perguntar porque e como você vai responder porque se você não tem
provas realmente disso? Como que você vai responder para uma criança?
Grupo CC: E aí tem a questão a os bebês que nascem na lua cheia são todos

211
homens, vão ser todos do sexo masculino. Aí vou para universidade
pesquiso uma quantidade enorme de estudantes das universidades que
tenha faixa de idade etária e que nasceram na lua cheia, e os números batem
numa média onde a quantidade de meninos e meninas, é quase
praticamente igual, ou seja não existe influência da lua sobre a questão do
sexo dos bebês. Assim é o conhecimento empírico que afirma uma coisa,
mas não provam. A ciência vai lá atrás daquela resposta, encontra resposta,
infelizmente eu tenho que dizer para vocês que há coisas na vida que a lua
não influencia em nada.
Grupo CC: Oh, deixa eu falar aqui, a luz influencia em massas extensas
como os oceanos, como diz o pesquisador Fernando Londres da Silveira,
Instituto de Física da UFRGS, "isso implica na seguinte questão que não
influencia em piscinas, copos d'água e muito menos em fluidos de vasos
capilares". Como que vai influenciar em corte de cabelo?
Grupo CC: Tem pesquisas científicas que a gente viu, que perceberam que
um bebê nascendo a mesma influência que a lua tem nascimento do bebê é
menos que um caminhão passando na porta enquanto falo maternidade.
Não influencia nada, infelizmente vocês foram enganadas a vida toda!

Novamente estamos diante de uma verdade científica, cuja forma de se expressar


não se abre ao diálogo. Percebemos, nas falas dos diversos membros do grupo CC, que
o discurso da ciência positivada descaracteriza outras formas de conhecimento, inclusive
seus critérios de validação. Uma visão de uma ciência heroica, que deixa de fora o mundo
da cotidianidade e das práticas culturais locais. Essa é uma dimensão importante para se
compreender os motivos com que outras formas de conhecer chegam à escola com maior
ou menor dificuldade. Vejamos o prosseguimento dessa descaracterização na
continuidade do debate entre os grupos:

Grupo CP: Eu queria perguntar para o outro grupo em que base que eles
afirmam que as coisas têm que ser provadas por cientistas. Porque é que
tem que ser comprovada por cientistas? O conhecimento científico, a palavra
deles, o que eles fazem que é mais importante do que as populações
disseram?

Grupo CP: Considerando que os cientistas são que buscam por saber! Grupo
CC: A questão não é do que que você está afirmando, é a partir do que que
alguém ou uma instituição está afirmando algo. O cientista não porque ele é
estudado, que ele estudou, que ele é elite, que eles são tudo rico, não é por
causa disso. A questão que a gente quer saber é a partir de que ele
está afirmando, ou ele simplesmente afirma que a lua não exerce influência
sobre sexo do bebê? Ele fez pesquisas pelo menos para tomar, para chegar
nessa conclusão. Então, e o conhecimento empírico, ele simplesmente
ouve falar, "minha bisavó falou com a minha vó, que falou com a minha mãe,
que falou para mim e eu sei disso na minha vida"... Grupo CC: Não tem nada

212
escrito, não tem nada comprovado, tem alguma coisa escrita? Não tem.
Mas não tem nada estudado e comprovado para você ter essa conclusão.
Grupo CC: Como eu já disse não tem nada escrito que comprove isso, da
mesma forma que eu conto a história para você e você pode contar ela
diferente. Da mesma forma foi o que surgiu, se surge alguma coisa que eu
conto para você, você pode contar da maneira diferente. Não tem nada que
se comprove que aquilo lá que você está falando é real.
Grupo CP: Ana Paula disse que não tem nada escrito, então é simples a
gente vai escrever e vai ficar comprovado, não é? Não é que não tem nada
escrito como prova? Quer dizer o cientista é comprovado, mas a minha
desde a época da idade média eles plantam, eles vão escrevendo,
eles vão observando, vão escrevendo. Isso com tempo não serve, porque
não tem que ser escrito para comprovar? Então a gente escreve para
comprovar. Eu tenho certeza que várias pessoas têm documentos que
eles mesmos escreveram, com observações que eles fazem, por isso não
seria válido?

O grupo CC vai dilapidando o último apoio do grupo CP: a impossibilidade da


transmissão dos saberes tradicionais pela oralidade. O conhecimento hegemônico,
transmitido pela linguagem escrita, transforma por dentro o sentido da vida comunitária,
criando fragmentos cada vez mais dispersos. Nessa direção, o conhecimento científico,
pela sua caraterização (objetividade, neutralidade, método único) torna-se obstáculo
epistemológico para outros saberes, impedindo a entrada destes na escola. Tudo que não
pode ser medido, separado, e comprovado pelo método científico está fora de circulação.
Dentro dessas concepções que os dois grupos começam a debater a presença dos
saberes tradicionais nas aulas de ciências. Vejamos essa discussão:
Grupo CC: Eu acho que na escola, a ciência não precisa falar "essa é uma
resposta definida". Quando você quer uma resposta da

ciência, você vai para perguntas, sempre surgem mais perguntas. E é


construído ali então com conhecimento empírico também, porque a ciência
é movida por perguntas dos conhecimentos empíricos. Então quando você
fala assim que a ciência é a partir da base, com comprovações concretas, o
conhecimento ele está ficando. Além do boca-a-boca teve várias dessas
experimentações.
Grupo CC: Anderson falou da questão concreta, e ela é válida. Não são
observações a curto prazo, são de longo prazo. Não é porque minha vó
falou, não é porque há anos várias gerações vêm vivenciando isso e
observando isso eles não vieram pouco tempo Grupo CP: Mas como eles
comprovam cientificamente?
Grupo CC: Como já disse, como que você vai passar o
conhecimento para uma criança, se você deixa dúvida na cabeça dela? Você
não vai ter uma resposta concreta para dar para ela. Se você vai passar isso
mas não tem como comprovar pra ela?

213
Grupo CC: Também é assim, o conhecimento científico é baseado em fatos,
estudos e pesquisas. Muitos deles levam a vida toda de muitos
pesquisadores, e para ser reconhecido como válido tem que ter toda uma
comunidade científica em torno daquele estudo para que seja considerado
como um estudo válido. E aí o conhecimento empírico é complicado pela
seguinte questão, porque como que vai provar que aquele conhecimento é
válido sendo que só uma certa
parte da comunidade detém aquele conhecimento? Ou outra parte detém
conhecimento, mas não conhece muito completo e assim sucessivamente?
Grupo CC: E não sei, mas vê que mudam seus conhecimentos, suas crenças
muito facilmente,
Grupo CC: E vocês estão justificando suas questões empíricas com
conhecimentos científicos, vocês estão usando sempre argumentos
científicos para justificar seus conhecimentos empíricos.
Grupo CP: Primeiramente, eu parto do conhecimento científico mas tenho
que separar do conhecimento empírico que a gente está levando também.
Segundo, a turma não tem conhecimento a gente passa. E outra coisa, eu
queria fazer uma pergunta. Você sempre fala aí "tem que ter comprovação
científica" se vocês fossem desafiados a comprovar alguma coisa
cientificamente como cientistas que vocês estão formando como vocês
fariam? Como vocês comprovariam algo?

Perguntamos: Quais conteúdos devemos privilegiar? O debate continua,


sempre perpassado pela discussão sobre a natureza do conhecimento científico.

Grupo CP: Como vocês comprovariam alguma coisa cientificamente?


Grupo CC: Tem que partir do experimento.

Grupo CC: Conhecimento científico é conhecimento provado. As teorias


científicas são derivadas de maneira rigorosa de obtenção de dados das
experiências, adquiridas por observação e experimento. A ciência é
baseada no tipo de ver, ouvir, tocar, entre outras coisas.
Grupo CP: Aí você falou que os cientistas partem das perguntas que os
outros indivíduos fazem. Aí você vai ensinar para os alunos só pergunta?
Grupo CC: O saber científico é a observação, a busca por esses temas no
intuito de explicar motivacional aquilo tudo que está sendo observado, não
podendo dar explicações sem provas concretas. No seu processo a
metodologia e a racionalidade são alicerces fundamentais no seu processo
de construção e síntese que o permeia, isto é, estão ligadas as suas
principais características. Faz do conhecimento científico antítese do
popular.

Á medida que o debate se desenvolve cada grupo tem que explicar de forma mais
aprofundada e compreensiva a sua posição, e, assim, as explicações se tornam mais
complexas. O Grupo CC, nesse momento, retorna com a ideia de modelo, como parte de

214
uma teorização e invenção de conceitos para se distanciar dos aspectos levantados sobre
educação, conhecimento empírico e cidadania, pelo outro grupo:

Grupo CP: Primeiro, a gente perguntou o que vocês fariam para poder
comprovar alguma coisa. Segundo, Naná leu aí que o conhecimento
científico ele é provado, ele tem que ser visto e tem que ser declarado. A
pergunta quem viu a questão do ensino, é não é deixar só perguntas para o
menino não, porque a gente está aqui na licenciatura e a gente aprende que
a relação na sala de aula é dialogada. E nós como professores não falamos
para os alunos "é isso ou "é aquilo", "nós viemos dos macacos", "foi Deus
que nos fez". Não, a ciência "tal teoria tem essa visão", "tal teoria tem essa
visão" a respeito dos fatos. Então dialogar com a questão da influência da
lua também seria bem assim. Mostrar para o conhecimento científico a visão
do tradicional, mostrar. Para o tradicional a visão com relação à influência da
lua tem que ver, então eu quero ver o átomo, tem que saber quem viu o
átomo lá para poder me mostrar para provar o que é então. Tem que ver, eu
quero ver o átomo, aí eu vou acreditar que é. Todo mundo aqui não acredita
que tem átomo? Quem aqui viu?
Grupo CC: Só lembrando também que nós não apontamos o conhecimento
como se fosse uma verdade absoluta, mas apontamos modelos para
explicar as conclusões que até então é um modelo que explica. Na verdade
absoluta o que falou é decidido e pronto. Então porque chegou lá e decidiu,
descobriu hoje quer dizer que aquele conhecimento que tinha até então
deixou de existir? Só
porque descobriu que aquilo deixou de existir, aquilo já não tem mais sentido
nas prateleiras?
Grupo CC: Em relação ao átomo, se ele é um modelo atômico é o modelo,
né gente? Não foi alguém que foi lá e viu não.
Grupo CC: Entretanto o conhecimento científico como verdadeiro, como
comprovada, baseados em fatos, estudos e pesquisas, em que vocês
baseiam para provar suas ideias?
Grupo CP: Baseamos em experimentos, observações o que tem feito pela
humanidade (desde que o mundo é mundo), então a ciência como eu
perguntei, como faria para provar algo cientificamente e vocês
falaram "através de experimentos e observações", então vocês
desprezaram as observações e experimentos que homem fez a milhares
de anos vem fazendo aí. Grupo CC: Se tem experimento como é que
você fez um experimento lá? Você olhou a lua e plantou? Você olhou de
outra forma? Não, eu nunca vi ninguém fazendo isso no conhecimento
popular. Eu nunca vi ninguém plantando numa lua e plantando na outra para
comprovar que aquela lua é certa. Eu nunca vi isso, alguém já fez? Grupo
CC: Voltando ao átomo, como é que vai ver um átomo se é um modelo
atômico?
Grupo CP: Quem é que viu?
Grupo CC: Você falou como é que faz para ver o átomo? Como é que vai ver
o átomo se é um modelo atômico? Vai fazer o que?
Grupo CC: O conhecimento científico ele procura se relacionar com o
conhecimento empírico. Eu não estou descartando o conhecimento
empírico não. O conhecimento científico procura se relacionar com
conhecimento empírico porque baseado no conhecimento empírico e
215
através dos estudos que é feito pelos estudiosos, as teorias e as teses
são baseadas em conhecimentos que as pessoas tiveram, certo
conhecimento daquele assunto. Aí ele falou assim "vou estudar aquilo ali
para ver se aquilo é fato ou não". Às vezes é fato e as vezes não. Aí por isso
que não está totalmente desassociado o conhecimento científico do
conhecimento empírico, porém não há de se descartar o conhecimento
científico porque através do conhecimento científico que a gente tem as
teorias, tem os fatos e comprovamos tudo aquilo que nós temos de ciência
hoje. Grupo CC: Eu acho que é isso, eu acho que você tem, você chega na
escola, nós não vamos, na escola o professor ele tem que realmente
ele tem que ter uma preparação, uma educação continuada, igual
aqui. Porque ele não vai chegar também e sair falando coisas por alto ali sem
ter algo, uma opinião né? E aquela opinião dele também não pode ser levada
como verdade absoluta, igual o Carlos falou. Eu acho que tem que ser
apresentadas coisas, igual a gente está fazendo aqui, vocês estão falando
seus pontos de vista, a gente está colocando os nossos. A partir de coisas,
de experimentos, de observações, o próprio estudante vai criar suas opiniões
crítica, no que ele acredita, eu não quero que "como surgiu a vida". Grupo
CP: Nessa questão aí que você falou e que o B. falou, nós vamos refazer a
pergunta nossa. Isso que o B. falou se faz necessário o conhecimento que
vire fazer mais na escola, porque nós não estamos falando aqui que vamos
desprezar os conhecimentos científicos, estamos falando que o
conhecimento empírico devia fazer parte da escola. Assim como foi
citada a questão dos modelos atômicos, nós temos quantos modelos
atômicos? E nós deixamos de estudar os modelos atômicos anteriores
porque eles já deixaram de fazer uso, deixaram de explicar da melhor
forma? Não, então porque que nós devemos deixar estudar o conhecimento
empírico porque já foi comprovado cientificamente que determinada situação
se deve usar o conhecimento empírico, não se deve usar o conhecimento
empírico? Não estou desprezando todo conhecimento que foi adquirido, toda
experimentação, toda história que tem por trás, não estou desprezando tudo
que foi evidenciado até chegar ali?
Grupo CC: É exatamente isso, você começa igual a gente começou, ver o
modelo atômico como uma esfera maciça, depois a gente viu que não era,
como que era uma coisa invisível, e que depois colocamos o modelo, até
hoje outros modelos e vimos provar que não era uma esfera maciça. Da
mesma forma a gente tem que fazer na escola! Vai ensinar a partir do
conhecimento que esse estudante tem, você vai apresentando as teorias, as
hipóteses, o que tiver comprovado você afirmar se for provado você tem, se
é provado você vai dizer que provado, você vai mostrar que é provado, fazer
experimento, ir para campo, não vai ficar só dentro de uma sala de aula
desenhando em quadro, falando o que você pensa, e aí o estudante ele vai
chegar à conclusão. A questão é que nós sabemos que a partir daí o
estudante ele vai mudar a concepção dele, porque ele vai ver que a lua não
exerce influência sobre negócio. Não é que ele vai queimar a crença dele,
ele vai ver cientificamente, ele vai ver a partir dos exemplos, coisas que é
possível provar que aquela crença dele não é a melhor, não é que está
errada, mas não explica de maneira mais correta.
Grupo CC: Não desfaz completamente, simplesmente é uma maneira
melhor de explicar.

216
Grupo CP: Levar isso para escola porque como eu disse no começo, na
primeira fala, é da vivência do aluno, é da realidade dele, é o que ele
aprendeu, não é o que é comprovado, não é o que é exato, não é o que está
influenciando na maioria das vezes, mas é do viver dele, é da vivência dele,
é do saber dele, é do conhecimento dele, é da cultura dele, por isso levar!
Porque o professor deve mediar os conteúdos a partir da realidade do aluno.

A introdução dos modelos – neste caso, os modelos atômicos – introduz a


historicidade ao discurso científico, com a construção de novos conceitos e novos objetos
teóricos. Inaugura-se um ponto de vista diferente até então: a concepção de diferentes
discursos científicos, considerando a diversidade de seus objetos teóricos e de seus
métodos específicos de indagação do real (BIRMAN, 1994).

Dessa maneira, não seria possível a comparação entre diversos discursos


científicos, pois seria impossível a comparação de regimes epistemológicos
diferentes. Rigorosamente, não existiria o discurso da ciência como se
formulava no positivismo, mas discursos das ciências, o plural destacando
sua diversidade e diferença epistemológica (BIRMAN, 1994, pag. 49).

A ideia de que o conhecimento científico se constrói contra o senso comum


também parece emergir ao longo da discussão; Bachelard já destacava o advento de uma
ciência a partir da constituição de um objeto teórico, mediante o corte epistemológico com
o senso comum. Encerramos, aqui, o debate.

4 - CONCLUSÕES

Nosso objetivo foi perceber qual a natureza dos argumentos que cada grupo
elaborou para a defesa ou não de sua proposta. De uma maneira geral, os textos que cada
grupo escolheu permitiram a elaboração de uma boa argumentação para posicionamento
em sala. Além disso utilizaram pontos de vista debatidos anteriormente em sala,
estabelecendo relações entre os conceitos e as dimensões envolvidas. Não se tem dúvida,
pela gravação feita, da ampliação do número de alunos que participaram da atividade.
Alunos que até então quase não expressavam seus pensamentos, aceitaram o desafio
proposto pela atividade, tanto na busca investigativa dos argumentos quanto no debate
em sala.

217
Percebemos que os argumentos contrários à inserção dos saberes tradicionais no
currículo apresentaram características interessantes: primeiro, um discurso da autoridade,
ou seja, “só entra no currículo aquilo que pode ser comprovado, cientificamente correto” e
que coloca esse discurso como acima de todos os outros; em segundo, e como
consequência do anterior, o discurso de dessubjetivação dos sujeitos envolvidos, tratados
sempre em aspectos gerais.
Fomos surpreendidos, de certa forma, pela condução da discussão para a
natureza do conhecimento científico, criando uma linha de demarcação entre a ciência e
o saber tradicional. Tal demarcação foi utilizada como critério para se pensar os conteúdos
que comporiam o currículo escolar. Porém, percebemos claramente a influência do
positivismo nas concepções trazidas pelos dois grupos. À medida que o debate foi se
desenvolvendo, uma mudança atingiu os grupos, principalmente com a discussão do
caráter histórico dos modelos atômicos. Percebemos, a partir deste caminho, um olhar
diferente sobre a presença dos saberes tradicionais na escola.
A atividade proposta permitiu aos alunos estabelecerem implicações da ciência
na vida cotidiana e na formação para a cidadania, além da produção de conhecimentos e
saberes no contato com outros conteúdos. Tal fato pode ser visto quando os alunos
relataram uma diversidade de argumentos sobre o tema proposto, e que perpassavam os
contextos e implicações entre ciência e sociedade.
Acreditamos que a atividade ganhou relevância uma vez que a disciplina foi
pensada dentro da mesma dinâmica participativa, tomando como eixo a indissociação
método-conteúdo. Podemos, agora, tentar responder às perguntas formuladas
anteriormente. Trabalhar com as Questões Socialmente Controversas ampliou, sem
sombra de dúvidas, a participação dos alunos, inferido pela própria batalha que ocorreu
na sala de aula, na visão de um dos alunos. Os grupos encontraram um número pequeno
de textos e vídeos ligados ao assunto.
Para Manuela Carneiro da Cunha 2007, p.84), devemos

(...) encontrar uma forma para o conhecimento científico e o conhecimento


tradicional viverem juntos. Viverem juntos não significa que devam ser
considerados idênticos. Pelo contrário, seu valor está justamente na sua
diferença. O problema, então, é achar os meios institucionais adequados
para, a um só tempo, preservar a vitalidade da produção do conhecimento
tradicional, reconhecer e valorizar suas contribuições para o conhecimento
científico e fazer participar as populações que o originaram nos benefícios
218
que podem decorrer de seus conhecimentos. Essa tríplice condição parece
mais fácil de dizer do que fazer, sobretudo a primeira. A confidencialidade e
o monopólio, por exemplo, que fazem parte do sistema ocidental
contemporâneo de direitos de propriedade intelectual, se estendidos a todos
os regimes de conhecimentos tradicionais.

REFERÊNCIAS

ANDRÉ, M. E. D. A: Etnografia da Prática Escolar. – Campinas, SP: Papirus. – (Série


Prática Pedagógica), 1995.
BORDIEU, P: Homo Academicus. Tradução Ione Ribeiro Valle, Nilton Valle. –
Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.
BIRMAN, J: Psicanálise, ciência e cultura. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.
CHASSOT, A: Alfabetização Científica: questões e desafios para a educação. - % ed., ver,
- Ijuí: Ed. Unijuí, 2011. – 368 p. (Coleção Educação em Química).
CUNHA, M. C: Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico. In:
Revista da USP, São Paulo, número 75, pp. 76-84, setembro/novembro, 2007.
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saturada. In: OLIVIER, N; KAËS, R: A Instituição como herança. Tradução Ephraim
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Curriculares, Anais em CD-Rom: III Colóquio Luso-Brasileiro sobre Questões
Curriculares, Braga – Portugal, 2006.

219
CÔCO DE RODA NOVO QUILOMBO: saberes da cultura popular e práticas de
educação popular na comunidade quilombola de Ipiranga no Conde

Cícero Pedroza da Silva.


Universidade Federal da
Paraíba Email;
ciceropedroza@gmail.com
Alessandra de Oliveira Silva.
Universidade Federal da Paraíba
E-mail: aledeoliveirasilva@hotmail.com

Resumo

O objetivo deste texto é apresentar alguns encaminhamentos críticos para o ensino de Filosofia na Educação
Popular, de modo que possa construir cidadãos críticos e reflexivos. Afinal, o conhecimento filosófico, que
guarda uma tradição de ensinamentos, pode elevar o ser humano à compreensão sobre a realidade que o
envolve. Esse Artigo é o inicio de uma pesquisa de Mestrado que esta sendo realizada na Escola Municipal
Lina Rodrigues do Nascimento no município de Conde - PB com o objetivo de investigar a historia a cultura
e a filosofia de vida das comunidades Quilombolas de Ipiranga e
Gurugi no Conde. E Assim, demonstrar se hoje a educação Popular existente na manifestação cultural do
Coco de Roda Novo Quilombo de Ipiranga desenvolve o processo de emancipação consciente dos indivíduos
nessa comunidade. E argumentar sobre a importância da junção entre a filosofia e a educação Popular para
uma práxis que envolva os indivíduos na busca pelo conhecimento sobre o SER , sobre o OUTRO, sobre as
COISAS e sobre o MUNDO com a finalidade na produção de conhecimento em Educação Popular com o
auxilio da pesquisa-ação, com a fotografia e com olhar fotográfico na visualidade da educação popular.

Palavras-chave: Coco de Roda. Ensino de Filosofia. Educação Popular. Pesquisa- Ação. Quilombo

INTRODUÇÃO

Esse texto é o inicio de nossa proposta de dissertação que está sendo


desenvolvida na Universidade Federal da Paraíba, no Programa de Pós-Graduação em
Educação, na linha de Pesquisa Educação Popular. Fazendo parte das ações realizadas
na Pro- reitoria de assuntos Comunitários, PRAC, Especificamente na Incubadora de
Economia solidaria INCUBES, coordenada atualmente pelos professores, Dr José
Francisco de Melo Neto, Dr. Mauricio Sarda de faria, Dr, Brenndam Mcdonald.
Durante o período de minha formação na graduação em Filosofia, na
licenciatura e no bacharelado tive a oportunidade de participar de um Projeto de Iniciação
Científica (PIBIC) na área da Educação, cujo plano de trabalho denominava-se, A
implementação da Biblioteca digital Paulo Freire. Onde a priori surgiu a conexão de
saberes existentes entre minha formação filosófica e a filosofia da educação freiriana, e
dessa junção se desenvolveu a minha monografia cujo titulo é, O ensino de Filosofia como
uma Experiência filosófica: Da práxis Socrática a filosofia da Educação Freiriana e que
posteriormente me relacionou com o universo da práxis existente na educação, onde me
escrevi como aluno especial na disciplina Educação Popular e economia solidaria

220
ministrada pelos professores, Dr. José Francisco de Melo Neto, Dr. Mauricio Sarda de
faria, Dr. Brenndam Mcdonald no programa de pos- Graduação em Educação –PPGE-
durante o período de 2011.2, oportunidade que nos levou a discussões de assuntos
referentes a Educação Popular ao ensino de Filosofia a Economia Solidaria a Pesquisa-
ação e as manifestações culturais existentes como praticas educativas formais e
informais no município de Conde –PB, onde atualmente sou professor do quadro efetivo
do governo do estado da disciplina filosofia, na educação básica com foco na educação
de jovens e adultos especificamente nos moradores das comunidades Quilombolas de
Ipiranga e Gurugi.
O eixo analítico de acesso ao nosso objeto de estudo parte das transformações sociais
que a educação nacional esta passando em seu tempo histórico e nas muitas dificuldade
enfrentadas para implementar no currículo escolar desse jovens Afro-descendente a LEI
DE DIRETRIZES DE BASE DA EDUCAÇÃO NACIONAL –LDB- 11.645, de março de 2008
alterando a lei 9.394 de dezembro de 1996 modificada pela lei 10.639 de janeiro de 2009,
para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática da Historia
e cultura afro-brasileira.
Assim com na reintrodução do ensino de filosofia na educação básica definida pela
LDB Altera o Art. 36 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes
e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas
obrigatórias nos currículos do Ensino Médio.
E partindo dessa duas impactantes modificações na LBB, e que surge grandes
inquietações a respeito da implementação dessas novas formas de tratar a educação
brasileira tanto pela poder de reflexão que a filosofia pode oferecer quanto ao grande
debito social existente na historia e na cultura afro-brasileira.
Esse projeto ocorrerá em consonância com a problemática que também está
fundamentada nessa pesquisa-Ação, cujo contexto está situado nesse período de
reintrodução da filosofia na da escola pública e o poder de transformação social que ela oferecerá
a educação popular de jovens e adultos, possibilitando a interdisciplinaridade de conceitos, tais
como: filosofia, antropologia, senso comum, sabedoria popular, ciência, educação Popular e
economia solidaria.
E nesse contexto, o ensino de filosofia está em processo de reintrodução, visando o ensino
crítico e oferecendo aos jovens e adultos a possibilidade de entender melhor o mundo, o ser, e o
outro no universo social em que vivem. Sendo assim, esse estudo será realizado com o objetivo de
propiciar uma formação para o exercício da cidadania e promover debates para a compreensão
dos pensamentos dos estudantes, preservando o conhecimento a priori e o desenvolvimento
intelectual e individual de cada um. Desse modo, possibilitaremos uma práxis educacional
desenvolvendo a interação entre escola e comunidade.
Portanto, essa Etnopesquisa-Acão possibilita a todos os jovens e adultos uma busca justa e
cidadã para conceitos fundamentais como virtude, justiça, dignidade humana e espírito de equipe.
Essa pesquisa-Ação consiste em nos deparar com a dificuldade de identificação da
corrente filosófica que fundamenta nossos pressupostos teórico-metodológicos. Pois nosso
projeto está vinculado à compreensão de fenômenos situados no cotidiano escolar e das
comunidades quilombolas, buscando significados e atribuídos aos sujeitos e as suas
experiências de vidas, num enfoque filosófico e antropológico.
Acreditando não ser possível desvincular nossa visão de mundo e a intencionalidade
de nossas vivências enquanto docentes e pesquisador, realizamos uma breve revisão da
221
literatura com o objetivo de delimitar o referencial filosófico e antropológico que fundamenta
a elaboração do nosso projeto de pesquisa para o desenvolvimento local.
Iniciamos nossa escolha a partir das delimitações do paradigma hermenêutico para
pensar o convívio escolar, social e cultural das comunidades envolvidas nesse estudo. A
filosofia apesar de ter sido excluída durante a ditadura militar das escolas publica possui um
caráter de intervenção, interação e observação, que vem sendo ressaltada com o processo
de reintrodução no ensino médio, de acordo com o Art. 36º. da LDB, O aluno de Nível Médio
deve ter o domínio de filosofia e sociologia para o exercício da cidadania.”. Paulo Freire
(2000) afirma que não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio,
pois é consciente desse vazio que a filosofia se insere, no atual momento no país, na
educação popular de Jovens e Adultos.Na realidade social e cultural das escolas de ensino
médio, a filosofia deixou de ser obrigatória desde 1961 (lei nº 5692/71), favorecendo ainda
mais a desigualdade em nosso país.Desde a década de 70 do séc. XX, a filosofia
permaneceu apenas em algumas escolas da elite brasileira e nas grandes divisoras de
águas que são as universidades. Nesse contexto, Freire corrobora dizendo que:

A educação das massas se faz, assim, algo de absolutamente


fundamental entre nós. Educação que, desvestida da roupagem
alienada e alienante, seja uma força de mudança e de libertação. A
opção, por isso, teria de ser também, entre uma “educação” para a
“domesticação”, para a alienação, e uma educação para a liberdade.
“Educação” para o homem-objeto ou educação para o homem-
sujeito.(FREIRE, 2000, p.44).

Sendo assim, o objeto de estudo dessa pesquisa está situado na manifestação cultural do coco de
roda Novo Quilombo em Ipiranga e na forma de pensar do jovem e do adulto, anterior ao contato com a
filosofia e depois da experiência de pensar filosoficamente sobre o seu ser e sobre o ser do outro; sobre a
vida e a morte; sobre o início do cosmos e a origem da vida. Por isso, o foco é pensar filosoficamente, a partir
do existencial do Ser da manifestação da educação popular na realidade da dança do Coco de roda em uma
abordagem antropo-filosófica, sobre tudo que estiver no universo cultural do Coco de Roda e de todos na
sala de aula e nas aulas ao ar livre nas comunidades envolvidas.
O objeto de estudo dessa pesquisa-ação é a manifestação do Coco de Roda, e a natureza de todas
as transformações existentes entre a dança do Coco de Roda e a educação popular, e as possibilidades que
a filosofia podem proporcionar a sociedade. Desse modo, faz-se necessário unir a filosofia e a práxis.

222
Foto: Dança do Coco de roda.

Fonte:Arquivo pessoal do autor.

Baseado no estudo humanístico da Educação Popular,“desenvolveu um interesse


filosófico pelo diálogo com a tradição, com as línguas e as culturas distantes e refletiu sobre
as condições históricas e filosóficas da compreensão e da interpretação.” (NIETZSCHE,
2009,)
Na esfera do conhecimento, centrado na Educação Popular, está transitando uma
nova linguagem filosófica, cuja função possibilita a compreensão e a interpretação de ser
cidadão. Sendo assim, temos que acompanhar essas transformações, pois a educação do
nosso país precisa da filosofia para manter vivos os valores éticos, morais, culturais, sociais
e genealógicos da sociedade.
O saber filosófico tem que ser associado à mente, pois, para um ser pensante, o
ideal e o imaginário, o real e o abstrato são necessidades do corpo e da alma. De acordo
com Freire (2000, Pág.: 51), “Enquanto o animal é essencialmente um ser da acomodação e do
ajustamento, o homem o é da integração. A sua grande luta vem sendo, através dos tempos, a de superar
os fatores que o fazem acomodado ou ajustado. É a luta por sua humanização, ameaçada constantemente
pela opressão que o esmaga, quase sempre até sendo feita – e isso é o mais doloroso – em nome de sua
própria libertação.”

223
Desse modo, a filosofia tem a responsabilidade de possibilitar a integração entre os
humanos e a autonomia, a fim de tornar os cidadãos em seres livres de opressão. Para
isso, veremos nitidamente a convicção, o sentido,as normas e os valores nos pontos dessa
pesquisa-Ação, tendo uma ótima relação com o objeto de estudo, pois muitos dos
integrantes do grupo Coco de Roda são meus alunos

Foto: Saias rodada das alunas e integrantes do Coco de Roda.

Fonte:Arquivo pessoal

e compreendendo a simplicidade da pesquisa, ciente de que todo conhecimento é


relativo. Alguns posicionamentos dentro dessa Práxis são necessários, baseado no
Discurso do Método de René descartes será considerado uma metodologia para essa
experiência no campo da Educação Popular e na pesquisa-Ação.
O primeiro posicionamento crítico decorre da defesa de que o ensino de Filosofia
deve ter como pressuposto básico o aprender a pensar, “entendido não como capacitação
lógica, mas como domínio do uso de um instrumento que ordena o pensamento, como o
desenvolvimento da capacidade de questionar, de rejeitar como dado inequívoco a
evidência imediata” (SOUZA, 1992, p. 91).
O segundo se apropria do espírito kantiano, dando ênfase a um ensino que privilegie a história

224
da Filosofia: “embora Kant não estivesse muito preso à história, as suas considerações a
respeito da Filosofia e do exercício da razão acabam confirmando a pertinência da história
da filosofia no ensino de Filosofia”, tendo em vista “o exercício do pensamento, [...] a sua
emancipação” (GUIDO, 2000, p. 84-90).
O terceiro caminho tem como referencial teórico-metodológico o pensamento de
Gramsci (1989), de Silveira (1991) e de Alves (2002), em objetivação à superação do senso
comum para poder forjar nova consciência, crítica e consciente, também fundamentado na
história da Filosofia, já que
“não se pode separar a Filosofia da história da Filosofia” (GRAMSCI, 1989, p. 13).
Por fim, a quarta proposta, bastante polêmica, no campo da criticidade, refere-se
à definição
da Filosofia como “disciplina que consiste em criar conceitos” (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 13) e sua transposição para o ensino da Filosofia. Para o propugnador desse
encaminhamento, “não se ensina Filosofia impunemente; não se aprende Filosofia
impunemente.
Criar conceitos não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”;
significa, também, difundir criticamente as descobertas, “socializá-las”, por assim dizer;
transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem
intelectual e moral.
O encaminhamento para o ensino crítico não se reduz à defesa de um saber
estritamente filosófico, muito menos, em trato exclusivamente pedagógico. Ambos os
paradigmas para o ensino de Filosofia são atravessados por viés abstrato, sem se darem
conta de que o trato com o ensino é questão eminentemente concreta, fruto da prática
social, marcadamente contraditória, pois é resultante de conflitos entre as classes sociais
e é isso que mais tarde ou mais cedo obriga os sujeitos “invisíveis” a se tornarem atores.
O Presente artigo objetiva relatar a pesquisa-ação em andamento na área de
Educação Popular destinada as Comunidades Quilombolas de Gurugi e Ipiranga
localizadas no município do Conde-PB relacionando o objeto de estudo e a Educação
Popular.

225
Foto: Contra-Mestra Ana Lúcia Nascimento, Educadora popular.

Fonte: Arquivo Pessoal do autor.


O projeto surge em parceria com o Governo do Estado através da Secretaria de Educação e Cultura
visando a formação das identidades e a valorização do território, sobretudo para os sujeitos
remanescentes de quilombolas inseridos na Escola Municipal Lina Rodrigues localizada em
Gurugi; . Tendo como participantes dessa pesquisa-ação os moradores da localidade, os
professores e os estudantes dessa unidade escolar e os pesquisadores e extensionistas da
Incubadora de Empreendimentos Solidários - INCUBES/PRAC/UFPB, os quais colaboram nas
reflexões e ações sobre Economia Solidaria.

226
Foto: Comunidade Quilombola e pesquisadores da Incubes.

Fonte: Arquivo pessoal do autor.

A filosofia nos moldes de seu paradigma mais contemporâneo oferece aportes para
reflexão sobre as questões de Etnodesenvolvimento que permeiam o recorte dessa
pesquisa-ação. Assim, possibilitar a investigação desse objeto de estudo unindo a filosofia
e a práxis em discussões que possam ancorar a valorização das representatividades do
território e a formação de identidades autônomas em sua própria cultura, desconstruindo
conceitos criados por uma maioria dominante em detrimento dessa cultura da minoria,
estimula-se a necessidade de aprofundar as discussões sobre essa temática, a partir do
convívio na sala de aula, precisamente nas aulas de filosofia, as quais remetem os
estudantes, originários da cultura afro-descendentes, aos conflitos de identidades, gerados
pelas questões étnicas raciais e sócio-econômicas na historia das matrizes que construirão
o povo brasileiro.
E nesse sentido, muitos se sentem desestimulados a participar do processo ensino
aprendizagem, ocasionando, além da evasão, uma construção imaginária que a educação
não serve como meio de formação identitária. Sendo assim, esses sujeitos não acreditam
que a educação pode favorecer a valorização dessas minorias. Enquanto isso, outros vêem
nas aulas de filosofia a possibilidade de estabelecer discussões a cerca desse assunto que
propiciem no espaço das aulas a instauração de um espaço público capaz de levantar
discussões sobre sujeitos considerados “invisíveis” por nossa sociedade em muitas
situações. Então, visando ampliar os debates e estabelecer o exercício da cidadania nesse
grupo, estamos realizando nessa escola esse projeto esse Projeto para desenvolver uma
prática educativa na Educação Popular , a qual terá como atores principais esses
estudantes da Escola e suas problemáticas. Onde os envolvidos nesse projeto de pesquisa
despertem para a construção de novas possibilidades através da transformação social.
227
Tudo em consonância com a discussão da problemática do ensino da Filosofia no currículo
da Educação Básica e o poder da educação popular, possibilitando a interdisciplinaridade
como base nesse contexto de inúmeros conceitos, tais como: filosofia, antropologia, senso
comum, sabedoria popular, ciências, educação popular, cultura popular e economia
solidária.
E nesse contexto, o ensino de Filosofia está em processo de reintrodução, visando
o ensino crítico e oferecendo as Crianças aos jovens e adultos a possibilidade de entender
melhor o mundo, o ser, e o outro no universo social em que vivem. Sendo assim, esse
estudo será realizado com o objetivo de propiciar uma formação para o exercício da
cidadania.
Portanto, estas ações possibilitam a todos os jovens e adultos uma busca
justa e cidadã para conceitos fundamentais como virtude, justiça, dignidade humana,
espírito de equipe e economia solidaria, Enfim, unir a teoria e a prática na pedagogia da
alternância na escola na comunidade quilombola e na UFPB construindo, pela abordagem
antropológica e com o auxílio da Filosofia e da educação, a responsabilidade social com o
Governo do Estado com a Prefeitura de Conde- PB e com a extensão da
UFPB/PRAC/INCUBES, para que todos possam construir e usufruir da cidadania.
Buscando significados atribuídos pelos sujeitos as suas experiências, pelos
paradigmas filosóficos e antropológicos em três perspectivas diferentes que são na
alfabetização de adultos, em um curso pré- vestibular e no projeto Mais Educação do MEC.
Desta forma, o objeto de estudo dessa pesquisa está situado no fenômeno na dança do
Coco de roda para alfabetização de adultos e na forma de pensar do jovem e do adulto
para o vestibular, e no auxilio da filosofia para o projeto Mais educação. Por isso, o foco é
pensar filosoficamente sobre a educação popular a partir da economia solidaria em uma
abordagem para o etnodesenvolvimento, nas perspectivas que estiver no universo cultural
de todos na sala de aula e nas aulas ao ar livre na comunidade envolvida com a
manifestação cultural do Coco de Roda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscando a interdisciplinaridade como base fundamental para a compreensão dos


movimentos sociais, da educação popular e de estudos antropo-filosoficos pretende-se
utilizar a Pesquisa-Ação como metodologia mais apropriada à pesquisa.Numa primeira
etapa serão realizadas leituras teóricas sobre os conceitos de senso comum, sabedoria
popular, ciência e educação Popular, pautadas nos estudos sobre educação popular,
movimentos sociais e antropologia social e cultural. Segundo Batista (2008, pág. 34), os
elementos definidos para um projeto político pedagógico da educação Popular são: a
formação humana vinculada como um projeto emancipatório; educação como instrumento
de participação coletiva, educação como exercício da devolução das temporalidades aos
sujeitos; educação vinculada ao trabalho e a cultura; educação como instrumento de
participação coletiva. Além disso, a metodologia da pesquisa-Ação possibilitará a inserção
da INCUBES/PRAC/UFPB na tentativa de criar uma identidade territorial e cultural com os
demais segmentos da sociedade local e Estadual atrelando sua permanência no território
paraibano ao desenvolvimento sócio-econômico e cultural do estado.
228
Por fim, esse trabalho propõe uma análise do uso de elementos representativos de
território Quilombola, da Educação Popular e da cultura popular através do estudo de caso
sobre a construção da identidade e a preservação da cultura na região do Conde - PB, a
fim de descobrir nos participantes da pesquisa-Ação suas potencialidades, defendendo o
diálogo como método usado numa educação que promova a autonomia dos sujeitos. O
sonho de que a filosofia pode libertar, oferecendo confiança para defenderem as suas
idéias, Trabalhar com a temática escolhida é um desafio para o qual se faz necessário
arregimentar todas as forças atuantes na área da Educação Popular, destacando a
importância do Grupo de Cultura Popular Coco de Roda na contribuição do mesmo, para
a Educação Popular nos comunitários de Gurugi e Ipiranga.

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229
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VAZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis; - 1ª ed. – Buenos Aires: Consejo Latino
americano de Ciências Sociales- CLACSO; São Paulo: Expressão Popular, Brasil, 2007.

Anexos:

230
Foto: Rio Gurugi

Fonte: arquivo pessoal do autor.


As comunidades quilombolas do vale do Gurugi se encontraram dentro de uma série
de conflitos com os proprietários “legais” daquele território que acusavam para si a
propriedade plena daquele terreno a despeito de haverem relatos de família que habitam
essa região há quatro gerações.
Popular Viva Dona Lenita (reconhecida pelo Ministério da Cultura).

Foto: Encontro de gerações.

231
Fonte:Arquivo pessoal do autor

A comunidade Quilombola Ipiranga-PB organiza no último sábado de cada mês a


festa do Coco de Roda, que reúne mais de 300 pessoas entre brincantes e simpatizante
considerado como um dos mais tradicionais da Paraíba, é brincado nesta comunidade e
nos arredores há mais de 200 anos, segundo participantes do Grupo de Coco de Roda
Novo Quilombo. O grupo, que conta atualmente com 1 cantor, 24 dançantes e 3 tocadores,
foi fundado há anos pela Mestra da Cultura Popular Viva Dona
Lenita (reconhecida pelo Ministério da Cultura). Dele também faz parte a Contra-Mestra
Ana Lúcia Nascimento, filha de Dona Lenita e presidente da Associação da Comunidade
Negra do Ipiranga. Apesar do tempo de existência, o Grupo de Coco ainda encontra
numerosos obstáculos para divulgar o seu trabalho fora dos limites da comunidade
quilombola.

232
Foto: Educação Musical Popular

Fonte:Arquivo pessoal do autor.

As apresentações são abertas à participação dos visitantes chegando a compor


rodas de até cinquenta brincantes num espaço para abrigá-los assim como os
percussionistas, cantores, aparelhos de som e mesas.

Foto: Alunos dançando Coco de Roda

233
Fonte:Arquivo pessoal do autor.
As apresentações mensais do grupo de coco de roda Novo Quilombo, é uma manifestação
cultural típica da cultura quilombola brasileira. Onde é observado as definições da
existência da Educação popular:
1. Pelas relações com os sujeitos.
2. Pela intencionalidade de educar.
3. Pelo processo de ensino aprendizagem de transmissão de conhecimentos dos mais
velhos para com os mais jovens.
4. Pelos planejamentos, deliberações e organizações das idéias pedagógicas realizada
pela coordenadora e integrante do grupo, a Contra-Mestra Ana Lúcia Nascimento, filha
de Dona Lenita e presidente da Associação da Comunidade Negra do Ipiranga.

234
CORES DA IDENTIDADE DO INDÍGENA TRUKÁ

Rinaldo José da Silva Junior


Sociólogo Especializado em Gestão Pública – Pesquisador do Instituto IADIS –
Mestrando Aluno Especial do PPGCEI/UFRPE/FUNDARJ
(rinaldojsjr@hotmail.com)

Regina Pontes Marçal


Licenciada em Pedagogia Especializada em Gestão de Negócio
– Pesquisador do Instituto IADIS – Graduanda em Ciêcias Sociais pela UFRPE –
Mestrando Aluna Especial do PPGCEI/UFRPE/FUNDARJ
(reginamarcal20111@hotmail.com)

Dr. Alexandro Cardoso Tenório


Professor Tutor do PET Políticas Públicas e Ações

Afirmativas da UFRPE (actenorio@gmail.com)

RESUMO

O projeto de pesquisa-ação realizado na Comunidade Indígena Truká Tapera, no sertão nordestino,


no Vale do São Francisco em Pernambuco-PE, foi viabilizado a partir de ações integradas do PET –
Programa de Educação Tutorial / Politicas Púbicas e Ações Afirmativas UFRPE e o Instituto de Apoio ao
Desenvolvimento e Inclusão Social – IADIS, tem como proposta saber como dar-se o processo de
identificação étnica das crianças indígenas Truka? Desenvolvido para o público de crianças indígenas de
3 a 9 anos, com objetivo pedagógico de empoderamento étnico da cultura local, fazendo uma diagnose
etnográfica dos saberes das crianças sobre identidade indígena. A educação indígena é diferente dos
padrões tradicionais reproduzidos até hoje no Brasil, é embasada nas experiências cotidianas passada
de pais para filhos como uma tradição, mas não propicia um ensino coletivo, e sim uma educação artesanal
na qual se fomenta o fazer, aprender fazendo. Trata-se de uma pesquisa-ação, com o enfoque qualitativo,
sendo portanto fundamental a desmonumentização da visão epistemológica do colonizador viabilizando
uma nova construção de conhecimentos sobre a identidade Truká a partir do olhar dos “curumins”. Foi
observado que, embora exista influência da educação formal/bancária na comunidade indígena truká,
acredita-se que há uma resistência na conservação culturaindígena a partir da educação não-formal guiada
pelo senso comum das representações sociais no cotidiano das crianças indígenas.

235
PALAVRAS CHAVE: Crianças; Conservação cultural; Identidade.

1. INTRODUÇÃO

A pesquisa pretende analisar a visão da criança indígena a respeito da própria


conservação cultural sendo esta visão fundamental para a sensibilidade, a reflexão e a
imaginação, intensificando as relações dos indivíduos consigo mesmo e com os outros e
com o mundo. Para tanto, é fundamental a construção de novos conhecimentos,
embasados em conceitos que não são pronunciados em língua colonial, que por sua vez
somará para enriquecer e aprimorar a ciência sobre a manutenção da identidade dos
povos tradicionais.
A investigação será realizada no ambiente da comunidade no vale do São
Francisco sertão nordestino - comunidade Indígena Truká. Nesse ambiente de pesquisa
há uma suposta relação de preconceito racial que se retroalimenta da relação de poder
histórica, das condições da educação oferecida e de uma suposta postura de timidez dos
indígenas no que tange a sua cultura. A reflexão sobre o juízo de conservação cultural
indígena partindo do próprio índio fornecerá pistas essenciais para auxiliar o
aprimoramento das relações sociais combatendo o preconceito racial a partir da
educação.
A multicausalidade dos dilemas sociais dessa convivência absorvem a influência
(ou a falta) da educação oferecida as comunidades que são receptoras do mesmo
sistema educacional público precário e ineficaz. É no ambiente escolar onde se ver os
personagens mais marginalizados vítimas do suposto preconceito racial, no caso as
crianças indígenas, quando se constata que os docentes disponíveis na localidade não
necessariamente são indígenas, ou seja, por falta de profissionais de origem indígenas é
fomentada a educação bancária/tradicional, que por sua vez compromete as
reinvindicações da conservação da cultura local.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Metodologia

236
Analisando comportamentos de indivíduos em processos dinâmicos a pesquisa
abordará conhecimentos sobre conservação cultural indígena partindo do próprio índio.
Sendo essa análise pouca explorada, carece ser valorizada e focada por seu caráter de
reinvenção da realidade - no caso a realidade indígena. Para tanto a tipologia de pesquisa
de caráter exploratório conduzira os trabalhos. Gil ensina que,

A pesquisa exploratória desenvolve uma visão geral acerca de determinados fatos


pouco explorado, se aprofundando em conceitos preliminares sobre determinada
temática não contemplada de modo satisfatório, esclarecendo questões
superficialmente abordadas sobre o assunto. (GIL, p.80).

Segundo Metring (2009, p. 61), a pesquisa descritiva visa essencialmente,


descrever características de determinadas populações. Sendo assim, esse estudo teve
como propósito detalhar os problemas relacionados ao objeto de estudo, analisando em
profundidade na realidade pesquisada. No projeto será utilizada uma metodologia
quantitativa com questionários e sondagem dos resultados, após a finalização das
oficinas. E, qualitativa na análise dos discurso das crianças ao final das oficinas realizada
em um ciclo de três encontros, no no intervalo de trinta dias de uma para outra. Nas
seguintes etapas: Momento apresentação dos mediadores as crianças e comunidade pra
uma boa harmonização; Organizar o local que será realizada a oficina com os materiais
didáticos a serem usados; Organizar as crianças em abaixo da árvore que será realizada
a oficina; Introdução e vivência da dança “Toré” com as crianças usando os chocalhos
confeccionados pelas crianças; Sondagem e sobre identidade e identificação indígenas
que as crianças tem de si mesmas e confecção das máscaras; Confecção das pinturas
em telas guiadas pelos conhecimentos prévios das crianças e as figuras simbólicas para
elas em seu cotidiano, exemplos, o rio, peixes , aves, família etc. Tudo de livre escolha
das crianças para fazermos uma análise de identidade etnográfica, do que é ser um índio
da comunidade Truká.

2.2 Discussão e Resultado Parcial

É no recinto de aprendizado onde se dá o processo de socialização infantil no


qual se estabelece relações com crianças de diferentes famílias, favorecendo as múltiplas
identidades, sendo portanto o primeiro espaço de diálogo das vivências das tensões
raciais. É por meio do conhecimento que é forjado o sujeito sociológico, por meio da
interação entre o “eu” e a sociedade e suas críticas, competições, perdas, realizações,
valores éticos e democráticos. O saber passa a ser um grande mosaico de informações
que alimentam as formatações das identidades. Hall afirma,

A identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem


um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado
num dialogo continuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que
esses mundos oferecem” (HALL, p.11).

237
Construir conhecimentos mais complexos sobre as identidades e conservação
indígena passa por questões particulares no seio de sua sociedade, que por sua vez
podem sofrer alterações provocadas pelos dilemas das realidades gerando conflitos com
a visão do colonizador. Por tanto é essencial empreender em reflexões que transcendem
o alcance dos pretensiosos pensamentos de conservação cultural reportados aos povos
colonizados. Souza Santos pontua que,

A desmonumentização da visão epistemológica do colonizador viabiliza uma nova


construção de conhecimentos a partir de uma diversidade epistemológica
democrática e plural considerando a participação de outros conhecimentos,
abrindo espaço para uma espécie de saber ecológico, construindo a conservação
cultural numa visão de mundo onde o índio se sinta auto representado, na
monumentalização de novos conhecimentos fundados em informações que não
são pronunciados em língua colonial. (SOUSA SANTOS, p.38).

A visão indígena sobre conservação cultural de seu povo supostamente passa por
formas de organização estrutural que diverge da visão de mundo do colonizador. Segundo
Ribeiro,

O índio na sua concepção sábia e singela, tem e expressa valores de vida


diferente do europeu. Para os indígenas a vida é uma dádiva e o mundo que é um
“luxo” de se viver não é o mundo idealizado pelo colonizador. (RIBEIRO, p.45).

A compreensão etnográfica a partir de uma relação democrática e interativa


pautada na troca de conhecimentos a respeito da conservação cultural com os próprios
indígenas, fugindo da arcaica visão do colonizador que rotula o povo indígena como uma
civilização inferior historicamente previsível e estática, erguerá caminhos para a educação
racial e justiça social. Munanga ensina que,

Um projeto nacional de construção de uma verdadeira democracia não pode


ignorar a diversidade e as múltiplas identidades que compõem a sociedade
brasileira. (RIBEIRO, p.54).

Para a construção de conhecimentos sobre a real visão de conservação cultural


indígena se faz imprescindível conversar com, e na, cultura indígena misturando saberes,
abolindo “caricaturas” de conhecimentos produzidas na ótica do homem branco. Segundo
Souza Santos,

A descolonização da ciência que estuda as sociedades permite novos arranjos de


conhecimentos e saberes alternativos, plurais e convenientemente participativo

238
na formação do pensamento crítico, desaguando assim numa vasta visão de
mundo, rompendo a visão ocidental de mundo ideal. Devemos navegar para além
do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. (SOUSA
SANTOS, p.32.).

Darcy Ribeiro diz: “não se pode negar que culturas indígena e africana são a base
da formação da sociedade brasileira pela influência, transferência e reprodução de
hábitos cotidianos, linguagens verbais, culturais e religiosa” (RIBEIRO, p.275).

A multicausalidade dos dilemas sociais local absorvem, supostamente, a influência

- ou a falta dela - de fatores como por exemplo a educação oferecida por meio de uma
política pública educacional precário e ineficaz.
O referido dialogo costura a perspectiva da exploração da compreensão de
conservação cultural do povo indígena a partir de seu entendimento e a partir de seu
querer real, sendo tal visão não estereotipados na visão do colonizador e primordial para
uma educação eficiente, fazendo com que o índio se sinta auto representado e estimulado
à valorizar possíveis políticas públicas de conservação cultural implementadas no seio de
suas relações, cooperando com equidade de conhecimentos provocando avanços de
justiça e desenvolvimento social no combate a vários modelos de exclusões e
vulnerabilidades sociais.
Os resultados obtidos evidenciam que embora exista influência da educação
formal/bancária na comunidade indígena truká, acredita-se que há uma resistência na
conservação cultural indígena a partir da educação não-formal guiada pelo senso comum
das representações sociais, ou seja, no saber ecológico no cotidiano das crianças
indígenas truká.

3. CONCLUSÃO

A educação pode ser uma via de acesso ao empoderamento da identidade


cultural, da autoestima e autonomia do indivíduo. É na atmosfera da educação que se
cogita os encontros e os embates das diferenças étnicas contribuindo para diminuir e
prevenir o processo de exclusão social e a incorporação do preconceitos. Por tanto é
essencial empreender em reflexões que transcendem o alcance dos pretensiosos
pensamentos de conservação cultural reportados aos povos colonizados. A educação

239
formal que é ofertada para as crianças Truka ainda não é satisfatória para atender as
necessidades éticas desta comunidade, todavia o aldeamento indígena Truká persiste em
fazer prevalecer suas memorias por meio do conhecimento interativo do saber ecológico.

4. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FALCÃO, J. T. da R.; RÉGNIER, J. Sobre os métodos quantitativos na pesquisa em


ciências humanas: riscos e benefícios para o pesquisador. Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos, Brasília, v. 81, n. 198, p. 229-243, maio/ago. 2000.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A


Editora, 2005.

RIBEIRO, Matilde. Políticas de Promoção da Igualdade Racial no Brasil (1986-2010).


Rio de Janeiro: Editora Garamond Universitária, 2014

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:


Companhia das Letras, 1995.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul. São Paulo: Editora Cortez,


2010.

. Pela Mão de Alice: o social e o político na Pós-Modernidade/12ed. São


Paulo: Editora Cortez, 2008.

240
A NEGAÇÃO DA COR DE CRIANÇAS NEGRAS NA COMUNIDADE ALTO SÃO
SEBASTIÃO, CAVALEIRO, JABOATÃO DOS GUARARAPES-PE

Regina Pontes Marçal


Licenciada em Pedagogia Especializada em Gestão de Negócio – Pesquisador do
Instituto IADIS – Graduanda em Ciêcias Sociais pela UFRPE – Mestranda Aluna
Especial do PPGCEI/UFRPE/FUNDARJ (reginamarcal20111@hotmail.com)

Rinaldo José da Silva Junior


Sociólogo Especializado em Gestão Pública – Pesquisador do Instituto IADIS –
Mestrando Aluno Especial do PPGCEI/UFRPE/FUNDARJ
(rinaldojsjr@hotmail.com)
Dr. Alexandro Cardoso Tenório
Professor Tutor do PET Políticas Públicas e Ações Afirmativas-UFRPE
(actenorio@gmail.com)

RESUMO:

O presente projeto de pesquisa-ação realizado na Comunidade do Alto São

Sebastião, localizada na Regional (02) em Cavaleiro, Jaboatão dos Guararapes- PE, foi viabilizado a partir
de ações integradas do PET – Programa de Educação Tutorial / Politicas Púbicas e Ações Afirmativas
UFRPE e o Instituto de Apoio ao Desenvolvimento e Inclusão Social - IADIS. Aborda a temática
central de reconhecimento e empoderamento étnico. Como as condições sociais de um determinado grupo
étnico influência na construção da identidade de crianças em sua singularidade? A falta de valorização da
identidade negra, mestiça, indígena que compõem a sociedade, brasileira, em particular na Comunidade
do Alto São Sebastião em Cavaleiro, reforça a violência, racismo. Com objetivo de propor uma
reflexão através de atividades lúdicas voltadas para problemática da identidade afro-brasileira; Mediar
saberes pertinentes aos temas de racismo, violência, uso de drogas, violência doméstica, direitos da criança
e adolescentes; Fazer analise críticas com as crianças para começar um processo de identificação étnica.
Trata-se de uma pesquisa-ação contendo um estudo descritivo, com o enfoque qualitativo. Ao analisar os
resultados obtidos ao fim de cada encontro e oficinas, mediados por um tema chave relacionado à
etnicidade, racismo, violência e drogas, o feedback foi o desconhecimento das crianças da cultura afro
brasileira, a quebra de paradigmas e racismo de si próprio.

PALAVRAS CHAVE: Crianças; Identidade; Racismo.

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho realizado na Comunidade do Alto São Sebastião, com as crianças


que participam das atividades do “Projeto Vida” que é um espaço doado por uma

241
moradora a senhora Fátima Maria da Silva, para voluntários realizar trabalhos sociais
voltados para as crianças que residem na comunidade, localizada na Regional (02) em
Cavaleiro, Jaboatão dos Guararapes- PE. Aborda a temática central o não
reconhecimento racial e a falta de empoderamento étnico-racial das crianças do Alto São
Sebastião.
A falta de reconhecimento e valorização da identidade negra que compõem a
sociedade, brasileira, em particular na Comunidade pesquisada, pelo olhar das crianças.
A pesquisa mostra as fragilidades do meio em que estas crianças estão inseridas, o não
empoderamento de sua cor, à representação social sobre raça herdada do colonizador, a
discriminação nas escolas, onde as mesmas mencionam, que, por ter cabelos crespos e
a cor da pele escura (negra), são consideradas “feias”, estereótipos esses, ditado por um
padrão imposto pela sociedade onde o ‘’ FEIO ou LINDO” está associado nesse contexto
a ‘COR’ diante dessa problemática é importante uma dialética que buscam compreender
os fatores psicossociais do Racismo no Brasil, em particular com as crianças do Alto São
Sebastião. “O racismo, que como relação de dominação, tem sua origem na criação de
estereótipos e descriminações negativas de um grupo social sobre outro” (CAMPOS,
1996, P, 93).

A escola é um grande reprodutor do racismo, percebe-se que desde os primeiros


anos escolares, os discentes negros são marcados pela discriminação. “Ocorre no
cotidiano da educação um racismo factual sistêmico que acarreta consequências graves
na vida das crianças negras”. (SANTOS, 2001, P. 110). É um reforço ao preconceito que
é a atitude de se julgar uma pessoa com base nas características reais ou imaginarias de
seu grupo. Que vem acompanhado pela discriminação que é o tratamento injusto de
pessoas devido ao fato de pertencerem a um determinado grupo.

“É no contexto grupal que nos identificamos com o outro e é nele também


que nos diferenciamos deste, e assim construímos nossa identidade,
sendo o grupo condição para sua manutenção ou metamorfose. ”
(CAMPOS, 1996
,P. 32).

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Metodologia

242
Trata-se de uma pesquisa-ação, com o enfoque qualitativo. Segundo Metring
(2009, p. 61), a pesquisa descritiva visa essencialmente, descrever características de
determinadas populações. Sendo assim, esse estudo teve como propósito detalhar os
problemas relacionados ao objeto de estudo, analisando em profundidade na realidade
pesquisada.
Segundo Elliot (1997, p 17) “A pesquisa-ação é um processo que se modifica
continuamente em espirais de reflexão e ação”. Os procedimentos metodológicos foram:
A) Diagnostico etnográfico da comunidade com entrevistas e rodas de diálogos com as
crianças para identificar os temas de mais relevância no processo de conscientização de
identidade. B) Formular estratégias de ação e integração atuando por meio de oficinas,
fóruns de debates, cine debates e atividades lúdicas diversas que contemplaram o objeto
de estudo para discussão.
Quanto à utilização da abordagem quantitativa, tem por objetivo nesta pesquisa,
trabalhar as informações de forma numérica, quantificando os dados coletados através
da técnica de coleta de dados com a aplicação de questionário na amostragem de 50%
das crianças, retirada do universo de 60 crianças cadastrados no “Projeto Vida”, no
município de Jaboatão dos Guararapes-PE. De acordo com Falcão e Régnier (2000, p.
232),

A quantificação abrange um conjunto de procedimentos, técnicas e


algoritmos destinados a auxiliar o pesquisador a extrair de seus dados
subsídios para responder à(s) pergunta(s) que o mesmo estabeleceu
como objetivo(s) de seu trabalho.

2.2 Resultado Parcial e Discussão

A apresentação parcial e a análise dos dados desta pesquisa estão apresentadas


aqui de maneira a permitir a compreensão de como ocorre à negação da cor (etnia) das
crianças do Alto São Sebastião? Para a coleta de dados, aplicou-se um questionário com
a amostra de 50% crianças cadastradas no “Projeto Vida”, no município de Jaboatão dos
Guararapes (n=30), possibilitando encontrar os seguintes dados:
Constata-se o mito da democracia racial no Brasil, propagando as relações entre
o colonizador e os povos indígenas e africanos eram harmoniosas, inviabilizando
as políticas de ações afirmativas, advindo este pensamento com o clássico “Casa Grande
e Senzala” de Gilberto Freire. (RIBEIRO 2014). As respostas das crianças entrevistadas
afirma que o racismo é algo presente em suas vidas. Dados demonstra que 97% das
crianças afirmam saber o que é racismo enquanto 3% afirmam não saber, quando
243
perguntadas se Já sofreram alguma vez racismo 82% afirmaram que sim, 17% que não,
provando que o racismo é um fator estruturante da sociedade brasileira.
As crianças da Comunidade do Alto São Sebastião são vítimas do preconceito e
discriminação, infelizmente começa muitas vezes na escola, local onde deveria ser o início
formal de uma construção étnica e empoderamento de saberes multiculturais das raízes e
grupos étnicos que formaram a cultura brasileira. Por outro lado dados demonstram que o
local onde as crianças negras sofrem mais discriminação é a escola, com 85% das
respostas destacando a escola como um ambiente de vulnerabilidade no que tange o
racismo.
Santos (2001) afirma que,

“A familiaridade com a dinâmica da escola permite perceber a existência de um


tratamento diferenciado e mais afetivo dirigido às crianças brancas. Isso é
bastante perceptível quando analisado o comportamento não-verbal que ocorre
nas intenções professor/aluno branco, caracterizadas pelo natural contato físico
acompanhado de beijos, de abraços e de toques. Isso é bastante visível no
horário da saída, quando os pais começam a chegar e pegar seus filhos.
Observando o término de um dia de aula, foi possível contabilizar um número três
vezes maior de crianças brancas sendo beijadas pelas professoras em
comparação às crianças negras: dez crianças brancas para três negras.”(
SANTOS,2001,P 110).

Em todo o mundo, segundo diversos estudos e pesquisas realizados, 6,84% de


negros e 43,80% de afrodescendentes sofreu alguma forma de preconceito durante a
vida, sendo o autor, geralmente, um membro de sua própria escola. Com a Lei no 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida do seguinte artigo, art.26-A. “Nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”.

Uma estratégia de resgate e valorização de identidade negra no Brasil, porém, na


prática pouco é vivenciado pelos estudantes brasileiros. apenas 2% dos entrevistados
sabem o que é cultura afro-brasileira e 98% não sabem, dos mesmo 98% relatam nunca
terem estudado na escola formal sobre esse tema que esta legitimado pela lei. Em 10 de
dezembro de 2008 a lei 11.465 altera a lei 10.639, que estabelece incluir no currículo
oficial a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira e Indígena”.
Para entender a institucionalização do racismo e a falta de empoderamento étnico
na cultura nacional, resquícios das teorias do branqueamento e eugenia bastante
difundidas por Oliveira Viana em meados do século XIX e XX com a obra “A Evolução do
povo Brasileiro”, ao perguntar às crianças qual é sua cor, 75% das crianças entrevistadas
afirmam que sua cor é morena, mesmo com fenótipos negros não se reconhecem como
negras, é uma reprodução das representações sociais, a criança não é apenas produto
de determinações sociais nem produtor independente, pois as representações são
244
sempre construções contextualizadas, resultados das condições em que surgem e
circulam, ou seja, a partir das funções simbólicas e ideológicas a que servem e das formas
de comunicação onde circulam (SPINK, 1993). A mídia é um reprodutor destas
representações simbólicas advindas do colonizador reforçando a eugenia no cotidiano
das crianças, mesmo negras negam sua cor por falta de empoderamento étnico-racial da
população brasileira, desenvolvendo mecanismos de defesa contra o racismo, não se
reconhecer como negras camufla inconscientemente as discriminações sofridas pelas
mesmas. Para entendermos melhor, considerando Bourdieu (2011), percebe-se desta
forma, que este conceito possui como base a ideia de que o sujeito articula-se e se
constrói sobre um sistema socialmente constituído de disposições estruturadas e
estruturantes que são adquiridas através de uma aprendizagem duplamente composta,
pois, implícita e explicita ao mesmo tempo, e dela são geradas práticas individuais e
esquemas de percepção, pensamento e ação.

O reconhecimento dos indivíduos ou grupos em sua identidade étnica é um fator


para descontruir a institucionalização do racismo no Brasil. Elemento estruturante da
sociedade brasileira composta por uma elite dominante de homens brancos, um
patriarcado, tornando-se o racismo o sustentáculo do capitalismo. Hall define etnia “pelas
características culturais- língua, religião, costumes, tradição, sentimento de lugar que são
partilhados por um povo” (HALL, 2015). No Brasil a diversidade étnica pela construção
histórica é marcada pela exploração e trabalho escravo, entretanto em sua memória
coletiva, não tem um reconhecimento de identidade étnica-racial tornando-se refém da
história dos exploradores colonizadores.
“... No Brasil não se assume que as desigualdades sociais tem um
fundamento racial, que influi de maneira decisiva nas variações
encontradas nos indicadores relativos à renda, à educação e
a saúde da população brasileira” (SILVÉRIO, 2002).

É vivenciado um racismo nivelado, o brasileiro diferente do americano não assume


o racismo, não se aceita como racistas pela diversidade étnica do país, algo bem
implantado para manter a elite nas relações de poder desde a colonização até a
atualidade. Segundo Florestan Fernandes: “Uma espécie de preconceito reativo:
preconceito de ter preconceito”. Entretanto os estigmas, preconceito e discriminação
sobre raça persistem na sociedade brasileira, aumentando a vulnerabilidade social,
danos psicológicos causados pelo racismo, neste contexto faz necessário um diálogo
interdisciplinar entre os saberes multiprofissionais, reforçando as práticas
socioeducativas, corroborando no âmbito das políticas públicas e ações afirmativas
(RIBEIRO,2014).

3. CONCLUSÃO

245
Educação transcende os muros da escola, está fortemente arraigada a vida do
indivíduo, a aprendizagem deve nortear temas reflexivos, sobretudo manter
constantemente, e, em forma massificada o diálogo sobre a temática “racismo”, discutindo
de forma clara a essência do tema em suas diversas formas de manifestações,
descontruindo ideias cristalizadas, rompendo paradigmas, desenvolvendo um olha
holístico de docentes e discentes, desprendendo-os de preconceitos raciais e quaisquer
outros. Empoderando-os de identidade pessoal e cultural, transformando-os em
indivíduos autônomos e livre para fazer suas escolhas ancorada em uma educação
transdisciplinar, livres de amarras discriminatórias, estereótipos.

O projeto realizado na comunidade Alto São Sebastião, foi possível ter uma prática
construtivista na perspectiva de mediar saberes sobre etnicidade, identidade e cultura,
reduzindo danos sociais causados pela vulnerabilidade do meio em que se encontram. As
políticas públicas de ações afirmativas são essenciais para transformar o conhecimento em
práticas efetivas promovendo a igualdade e combatendo o preconceito, garantido o
princípio de equidade.

4. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BOURDIEU, PIERRE. A distinção: crítica social/ tradução Daniela Kern. 2ed, Rio de

Janeiro, Zouk
2011.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações


Étnico– Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Brasília: MEC,
2005. 35p. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação: Lei nº 9.394/96 – 24 de dez.
1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1998. CAMPOS,
Regina Helena de Freitas Campos. Psicologia Social Comunitária: Da

Solidariedade à autonomia. ED, 16.- Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

FALCÃO, J. T. da R.; RÉGNIER, J. Sobre os métodos quantitativos na pesquisa em ciências


humanas: riscos e benefícios para o pesquisador. Revista Brasileira de Estudos
Pedagógicos, Brasília, v. 81, n. 198, p. 229-243, maio./ago. 2000.
HALL, Stuart Hall. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro.
DP&A,2006.

246
MESSIAS, Elizama Pereira Messias. Educação, Escolarização e Identidade Negra: 10
anos de pesquisa sobre relações raciais no PPGE/UFPE. Editora Universitária UFPE,
2010.

PEREIRA, Edmilson de Almeida Pereira. Malungos na escola: questões sobre culturas


afrodescendentes e educação. São Paulo. Ed Paulinas, 2007.
RIBEIRO, Matilde Ribeiro. Políticas de Promoção da Iguladade Racial no Brasil (1986-
2010). Rio de Janeiro. 1-ed. Gramound, 2014.

SILVEIRA, Maria Lúcia da Silveira, Tatau Gordinho (orgs). Várias autoras. Educar para a
Igualdade: Gênero e Educação Escolar. São Paulo. Coordenadoria Especial da Mulher.
secretaria de Educação , 2004.
SANTOS, Sales Augusto dos Santos. Ação afirmativa e mérito individual. DPEA

editora,2003, Rio de Janeiro.

247
A PERPETUAÇÃO DO RACISMO NO AMBIENTE ESCOLAR:
Lei 10.639/03 e as barreiras para sua efetivação

Gabriely Nascimento Varela


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
email: gabriely-
varela@hotmail.com

Resumo:
O presente artigo busca fazer uma análise acerca da lei 10.639/03, que regulamenta e torna obrigatório o
ensino da História e da Cultura Afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino e as dificuldades em
sua efetivação nas escolas brasileiras, entendendo-a como uma forte arma no combate à discriminação racial
no ambiente escolar e, por conseguinte social. A pesquisa foi construída a partir de reflexões teóricas, e tem
como objetivo geral: Analisar a importância da criação e da aplicação da Lei10.639/03 no ambiente escolar
e como objetivos Específicos: Discutir as problemáticas raciais no contexto escolar; Compreender as
condições sociais e objetivas que atualmente contribuem para a não efetivação dessa lei; Discutir a
necessidade de um ambiente escolar mais inclusivo e de respeito à diversidade e valorização da matriz afro
brasileira. Os objetivos gerais e específicos determinados acima foram alcançados através de pesquisas
bibliográficas realizadas em livros, artigos, dissertações, sites relacionados à temática. O artigo busca trazer
uma discussão que embora não seja tão recente, ainda é extremante invisibilizada dentro e fora dos espaços
de ensino básicos, fundamentais e acadêmicos, e é tentando romper com essa histórica invisibilidade que o
construímos.

Palavra Chaves: 1 Diretrizes curriculares; Lei 10.639/03; 2 Combate ao racismo; 3 Ambiente Escolar.

Introdução

É na escola que as crianças negras começam a se perceber “diferentes” das


demais, isso acontece quando não conseguem se enxergar nos livros didáticos que os
professores trabalham, quando começam a receber apelidos de conotação racista, e
também quando a única referência sobre a população negra que possuem é figura dos
negros e negras sendo escravizados e submissos durante o período de escravidão.
É partindo dessa realidade que a análise trazida nesse artigo torna-se importante,
pois busca trazer uma discussão que embora não seja tão recente ainda é extremante
invisibilizada dentro e fora dos espaços de ensino. Tendo como Objetivo Geral: Analisar
a importância da criação e da aplicação da Lei 10.639/03 no ambiente escolar e como
Objetivos Específicos: Discutir as problemáticas raciais no contexto escolar;
Compreender as condições sociais e objetivas que atualmente contribuem para a não
efetivação dessa lei; Discutir a necessidade de um ambiente escolar mais inclusivo e de
respeito a diversidade

Metodologicamente o presente artigo foi construído a partir de reflexões teóricas,


sendo assim os objetivos gerais e específicos determinados acima foram alcançados através
de pesquisas bibliográficas realizadas em livros, artigos, dissertações, sites relacionados à
temática.

248
Desenvolvimento

Discutir a temática das questões raciais no âmbito da realidade social brasileira é


indispensável para compreendermos como se deu o legado do racismo pós escravidão,
porque ao longo da história do país foi sendo construída a ideia de que vivenciamos uma
democracia racial1, essa ideia alimenta o imaginário social na sustentação da seguinte
afirmação: “somos todos iguais”, e as diferenças de oportunidades, sejam elas quais forem,
entre negros e brancos são encaradas como “falta de esforço próprio” ou aquilo que
conhecemos como meritocracia.

Qualquer estudo sobre o racismo no Brasil deve partir do princípio de que


aqui o racismo é um tabu, pois os brasileiros se imaginam numa
democracia racial. Essa ideia de civilidade tem raízes profundas na
história do Brasil e pode ser verificada desde que foi abolida a escravidão
(GUIMARÃES, 1999 apud EURICO, 2013, p. 294).

Como esperar um nível de desenvolvimento social equivalente de uma população que


após quase 400 anos de escravidão foi literalmente jogada nas ruas sem nem uma
expectativa de vida, sem trabalho, sem acesso a educação e a alimentação dignas? De
maneira sintética essa foi a realidade da população negra após a “abolição da escravatura”,
e foi nesse contexto de extrema vulnerabilidade que essa população resistiu e aos poucos
foi conquistando novos espaços sociais.
É preciso destacar que embora a dinâmica social do Brasil seja diferente hoje, muitas
das relações sociais que vivenciamos ainda sustentam-se nos resquícios deixados pela
escravidão, e que grande parte dessa população negra ainda sobrevive sem as condições
necessárias para uma vida saudável e que lhe garanta equidade social.

O que poderia ser considerado como história ou reminiscências do


período colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e
adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente
democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor
ou a raça instituídas no período da escravidão. (CARNEIRO, 2010. P.1)

Diante dessa triste realidade a escola se apresenta como uma grande potência no combate
às discriminações, porém acaba agindo como um reflexo da realidade que vive. Uma educação de
qualidade precisa ser uma educação cidadã que valorize a diversidade dos sujeitos, essa
valorização não pode acontecer apenas em datas comemorativas, mas deve ser uma prática diária
que envolva professores e alunos tendo como maior objetivo a construção de uma sociedade mais
justa para todos e todas onde possamos reconhecer que a diferença não é algo negativo.

1 Para Petrônio Domingues (2005, p. 116) “Democracia racial, a rigor, significa um sistema racial desprovido de
qualquer barreira legal ou institucional para a igualdade racial, e, em certa medida, um sistema racial desprovido de
qualquer manifestação

249
É da relação entre educadores/as, entre estes/as e os/as educandos/as e
entre os educandos/as que nascerá a aprendizagem da convivência e do respeito
à diversidade. “A diversidade”, devidamente reconhecida, é um recurso social dotado
de alta potencialidade pedagógica e libertadora. A sua valorização é indispensável
para o desenvolvimento e a inclusão de todos os indivíduos. (PASSADOR, 2009)

A falta de representatividade nos mais diversos âmbitos e espaços sociais e o


bombardeamento de ideias negativas sobre o ser negro/negra são verdadeiros inimigos
na construção de uma identidade positiva, essa construção começa ainda na infância e
para uma criança negra sentir orgulho de si torna-se muito mais complicado vivendo em uma
sociedade que diz que sua cultura e ancestralidade são inferiores e menos importantes.

A história oficial do Brasil reservou ao negro um espaço que


começa e termina na escravidão e sobre a civilização negro-
africana espalhou-se uma nuvem de preconceito, exotismo e
esquecimento, que é reproduzida até hoje quando ainda apontam-
se as culturas africanas e indígenas como primitivas. Assim, afirmar
a identidade negra faz parte de um processo de ruptura com os
estigmas históricos dessa população que foi inferiorizada e
subjugada diante de um ideal estético-cultural eurocêntrico, desde
o Brasil colonial. (SANTOS, 2012).

É nesse contexto que a Lei 10.639/03 se insere para trazer um debate diferenciado
sobre a história do negro no Brasil, reconhecendo as desigualdades étnico-raciais e auxiliando
os alunos na construção de uma postura crítica diante dessa realidade, fazendo-os pensar
em estratégias de combate ao racismo e a reflexão do que é ser negro em nosso país. Para
os professores e professoras é indispensável que se faça uma releitura dos processos
históricos que deram origem a nossa sociedade e que possam reconhecer e valorizar as
formas de luta e resistência dos povos negros e indígenas para que assim possam elaborar
planos de ação para a inclusão desses temas no espaço escolar.
A lei nº 10.639 de 9 de Janeiro de 2003, provem da alteração da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LBD), estabelecida na lei nº 9.394 de 20 de Dezembro de 1996,
na forma do Art. 26, para somar ao currículo oficial o ensino obrigatório da “História e Cultura
Afro -Brasileira” dentro da Rede de ensino dos níveis fundamental e médio à instituições da
rede púbica, e particular. Ao que se refere ao conteúdo dado em sala de aula, devem ser
abordados além da história da África, a luta dos Negros no Brasil, a cultura negra, tal como a
papel dos negros na formação do Brasil, e suas contribuições em diversas áreas: social,
econômica e política.
É papel do Estado, como também de toda a sociedade, acadêmica ou não, fomentar
medidas reparadoras que procurem desconstruir a cultura do racismo que está impregnada
nas raízes sociais do Brasil, num leque de cor, classe e gênero, construído desde o século

250
XVI com o tráfico atlântico negreiro, o que constrói indiscutivelmente uma dívida história com
o povo negro a sua inserção nos piores índices sociais do país.
Não é por falta de luta e de militância negra, que os projetos políticos e sociais de viés
reparatório não alavancam tanto quando poderiam e deveriam. Sido a lei promulgada ao início
de 2003, já apresenta mais de 13 anos de atividade e até agora são poucas as escola que a
pões devidamente em prática. É de se pensar que esta seria demasiada recente, por tamanha
falta de aplicabilidade nos centros educacionais destinados.
É uma conquista constitucional, mas trava nas armações duras do sistema educacional
quanto a funcionamento, repasse de material didático e principalmente preparo profissional.
É importante destacar que essa lei ainda foi formulada primeiro do que a Lei 12.288/10 que
institui o Estatuto da Igualdade Racial que entra em vigor só no ano de 2010, esse estatuto
tem um papel importantíssimo para o combate à discriminação racial em suas mais diversas
esferas, pois busca garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades,
a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às
demais formas de intolerância étnica.
A lei não estende obrigação do ensino “História e Cultura Afro-brasileira” ao nível
superior, em qualquer graduação, e isso é uma falha. Resta o bom senso de compreender
que, se existe uma demanda amparada legalmente para o ensino deste tema na escola, é
indissociável que se tenha uma base de formação acadêmica que sustente essa
necessidade.
Esta lei também está para necessidade de desfazer a clara intolerância que roga dentro
das escolas quanto a religiões de matriz africana, como Candomblé e Umbanda, por exemplo.
Como no caso dos alunos evangélicos do Amazonas, que se recusaram a apresentar um
projeto sobre a temática numa feira literária da escola sob a justificativa de que esta fere
preceitos bíblicos de sua crença. Se fazendo negar um debate étnico cultural e pluralmente
religioso dentro da escola. Outro caso noticiado é o da professora da Escola Estadual Antônio
Caputo, de São Bernardo, que pregou o evangelho cristão, mas praticou descriminação ativa
a um aluno candomblecista que se negou a participar de seus cultos ilegítimos dados a
laicidade estatal.
Umas das grandes dificuldades de efetivação devida da Lei 10.639/03 está na
manutenção de uma concepção estereotipada que se tem do continente africano e da cultura
afro -brasileira. Desconstruir esse imaginário é desafiante, mas fundamental para o
entendimento dos movimentos históricos que fizeram da cultura africana o que é hoje em
nossa realidade contemporânea. É comum crianças nos níveis iniciais, acharem que África é
um país. Isso não acontece com a Europa.
Desfazer a suposta heterogeneidade étnica, e assumir sua imensa pluralidade africana
é o primeiro passo para entender sua cultura, e por tanto entender a nossa cultura. Contudo
alguns elementos da cultura de matriz africana são muito destoantes, mesmo com um forte
sincretismo ainda sofrem uma carga de preconceito muito forte, como as religiões afro
brasileiras, Um pais de predominância católica 64,6% da população, e ascensão evangélica
com 22,2%, segundo o Censo de 2010. E que comumente não desassocia o campo da sala
de aula da vida privada, tende a se negar a trabalhar assuntos fundamentais a cultura negra
brasileira, como candomblé, umbanda e tatas outras religiões de matriz africana.
Apesar de África e de seus filhos estarem intrinsecamente ligados a nossa história e a
formação do povo brasileiro, sua presença atual é abafada e distanciada. Consideramo
251
-nos herdeiros do Império Português, mas não sabemos, em grande medida, de quais países
africanos saíram nossos antepassados. Assim como não sabemos quais grupos indígenas
eram donos das terras que hoje habitamos. A desinformação somada a estereótipo
construiu um preconceito que deixa esses assuntos identitários, velados. Os negros são
mascarados e os índios folclorizados. Enquanto não deixarmos claro nas séries iniciais, a
nossa pluralidade ética, projetos como esse serão um apêndice pouco funcional.
Não à toa esta lei se destina a instituições de ensino fundamental e médio, a escola é
um dos primeiros centros de ampla convivência social da criança, mas também é o primeiro
centro de preconceitos e discriminações concentradas e compartilhadas. É um engano pensar
que o racismo que está presente nas escolas, nasce de uma sociedade externa ao campo da
educação, pois estas estão diretamente relacionadas.

Conclusão

Ir de encontro a um discurso hegemônico construído e reconstruído por séculos


não é tarefa simples, ainda mais quando uma lei como essa está voltada para a valorização
de pessoas em grande parte, de baixa renda, que historicamente foram invisibilizadas,
demostrando o porquê da desigualdade social de que são vítimas.
A falta de educadores preparados para discutir este tipo violência em sala de aula é
um problema tamanho que acaba por naturalizar o racismo e suas problemáticas, com o
agravo do apoio institucional. Se professores de graduação não estão preparados para
debater essas questões, professores que já estão em sala de aula a muito tempo, não o farão
melhor.
A lei não entra em prática, porque nossos profissionais não têm amplo discurso pra
desconstruir o racismo em sala de aula e principalmente dentro de si mesmos, embora
entendamos que esse não é um problema apenas individual, mas sim estrutural da sociedade
em que vivemos.
O objetivo desta lei em longo prazo assim como muitas das ações afirmativas que
foram criadas, é desfazer a cultura racista do Brasil e mostrar a importância da população
negra na construção da sociedade brasileira, compreendendo as dívidas históricas e tentando
repara-las. A lei não voga, por que o Brasil ainda é um país extremamente racista que não se
abre para tratar de assuntos de sua própria identidade, fazendo-se negar o povo negro. E é
tendo em vista tudo isso que precisamos juntos construir no ambiente escolar um discurso de
valorização do negro, gerando uma educação emancipatória de valorização da diversidade e
de respeito para todas e todos.

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RICHARDSON, J.R etall. Pesquisa Social- Métodos e Técnicas. Cap. 3 p. 52. Cap. 5 p. 79.
São Paulo, 1999.

253
O MULTICULTURALISMO NA EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE O CONHECIMENTO

UNIVERSAL E RELATIVO NO FILME “ENTRE OS MUROS DA ESCOLA”.

Susi Anny Veloso Resende

Mestre em Sociologia e Antropologia. UFRJ

RESUMO: O presente artigo visa trazer uma reflexão sobre a questão do conhecimento universal e do
conhecimento relativo em relação a nossa realidade globalizada. Em um contexto em que várias culturas
emergem, ganhando força social e política, como a escola consegue lhe dar com o processo educativo em
que vários modos de viver e várias culturas se relacionam dentro do ambiente escolar. O que se ensinar, como
se ensinar e para quem se ensinar são algumas questões levantadas ante ao multiculturalismo. Nesse
contexto o conhecimento universal em contraposição ao conhecimento relativo acaba sendo cerne de
discussão de vários autores que percebem o fenômeno multicultural na escola. A partir da análise do filme
“Entre os muros da escola”, tento refletir acerca dessas questões que repercutem não apenas no âmbito
reflexivo e teórico, mas também repercutem dentro da sala de aula. O filme retrata uma sala de aula de uma
escola de periferia de Paris em que uma professora de francês, passa por vários desafios ao se confrontar
com uma sala de aula heterogênea em que nem todos os alunos pensam de formas iguais, possuindo modos
diferentes de operar em relação a educação.

Palavras-chave: multiculturalismo; currículo, universalismo e relativismo;

Introdução

Ao se fazer um resgate histórico acerca do currículo, percebemos que este elemento


do sistema educacional só começou a fazer parte de reflexões muito tardiamente.
Historicamente os conceitos dados ao currículo só surgem no contexto da educação escolar
a partir do final do século XVI. A partir da apropriação pela educação o currículo no começo
era apenas significado de matéria e só posteriormente que ele veio a ter outros significados
e a ser também objeto de estudo e análise.
No começo do século XX duas correntes de pensamento importantes sobre o
currículo: uma que se preocupava em dar importância aos interesses dos estudantes,
chamada de escolanovismo; a outra que veio a partir do 1° livro sobre currículo, defendendo
que o currículo é uma série de experiências que os alunos devem ter para se “prepararem”
para a vida adulta. É a partir dessa ultima conceituação de pensamento que surge o
currículo de caráter tecnicista e instrumental. Autores como Ralph Tyler, Jerome Brunner,

254
dão ênfase à eficiência do currículo, defendendo um planejamento racional e rigoroso do
currículo.

Na década de 70 em diante, vendo-se que a utilização do currículo era apenas para


a formação técnica e cientifica, surge um movimento de reconceitualização. Até esse
momento a analise do currículo era feita apenas pela psicologia, se tornando objeto da
sociologia nos anos 70 com o surgimento na Inglaterra da Nova Escola de Sociologia (NSE)
se contrapondo ao uso funcionalista do currículo. Além disso, a sociologia crítica também
lança seu olhar sobre a educação, dando uma perspectiva crítica em que a educação como
fazendo parte de uma sociedade em disputas seria também um local de disputas em que a
classe dominante tentaria impor sua cultura. Nos Estados Unidos na mesma época também
surge estudiosos como Michael Apple que procuravam analisar através de uma lente
sociológica o currículo evidenciando que este, pelas formas de seleção e organização
dos conhecimentos, fortalecia a dominação de classes dominantes.

Na década de 80 surge uma nova reflexão acerca da educação tendo em vista as


diferenças culturais que começavam a conviver no mesmo território nacional. Após o
processo de descolonização da África, e com o aumento dos fluxos migratórios a questão
do multiculturalismo vem a ser parte das discussões sobre os conteúdos no currículo e sobre
a educação de modo geral.

A análise de todo o processo histórico que ocorre com a conceitualização e


formulação do currículo nos faz perceber que a estruturação, a forma que se pensou o
currículo e a forma como ele é utilizado sempre foi influenciado por valores e contextos
sociais específicos:

Enfim, para discutir currículo de uma forma crítica, é necessário saber que essa
discussão de currículo precisa ser realizada num sentido amplo e abrangente,
não se limitando aos problemas técnicos como aconteceu em muitos
momentos da história, mas sim extrapolando esses problemas técnicos
entendendo-se que o campo especifico de currículo está altamente influenciado
por um conjunto de valores educacionais a respeito dos quais é extremamente
necessário que se defina, dentro de um quadro de referência teórica, histórica
e política (SCHIMIDT, 2003: 68).

Percebendo o caráter histórico e contingente da elaboração do currículo e de sua própria


conceitualização, percebemos hoje que no contexto de globalização pensar a formulação dos aparelhos
educativos perpassa refletir também como no contexto em que estamos inseridos devemos formular e
executar o currículo no nosso sistema educacional. Em meio ao processo de multiculturas, fluxos
migratórios, coexistência de vários modos de viver e ver o mundo, qual será nosso referencial teórico, politico
e histórico? Mais que isso, quais serão os valores educacionais que se coloca na estruturação do sistema
educacional e do currículo? Para tentar não responder, mas refletir sobre essas perguntas vamos analisar o
filme Entre os muros da escola (2008) à luz de alguns autores que refletem sobre o currículo em época de
globalização, e desconstrução de verdades universais e valorização de questões multiculturais na hora de se
pensar o ensino.

255
Universalismo e relativismo

Muitos autores como Forquin (2000) tentam defender o ensino de conhecimentos


mais gerais e universais como proposta de dar ao sistema educacional e ao currículo uma
roupagem mais neutra e menos refletida nas relações sociais de poder. Para o autor os
conhecimentos universais serviriam para tirar o peso da cultura dos dominantes em
relação à cultura dos dominados, dando assim à escola e ao currículo um caráter mais
emancipador e equalizador das diferenças sociais.

A questão que quero abordar nesse artigo está relacionada com a questão do
universalismo e relativismo no universo escolar. O universalismo está presente nos
conteúdos transmitidos em que estes são vistos como públicos, gerais, possíveis de
apropriação de todos e livre de interesses particulares. Essa visão da estruturação que do
currículo a partir de conhecimentos gerais visaria assim tirar todo o peso ideológico e todas
as possíveis relações da educação com as relações de poder existentes na sociedade. A
proposta do ensino de saberes universais seria as de dar aos estudantes tratamento iguais
fazendo com que estes tenham a capacidade de se apropriar dos conhecimentos obtidos
fazendo com que a escola cumpra o papel de democratizar os saberes dando iguais
oportunidades a todos que por ela venham a estar. Assim, os saberes mais gerais seriam
livres de especificidades de cada aluno, em que cada aluno poderia ser tratado como igual
em relação aos outros.

O saber relativo levaria, por outro lado, em consideração as especificidades de uma


dada nação, fazendo com que o universo multicultural em que o sistema educacional está
sendo aplicado fosse levado em consideração ao se estruturar e colocar em prática um
currículo. Dessa forma, o conhecimento relativista levaria em consideração as diferenças
culturais mostrando a validade não apenas de um tipo de conhecimento, mas sim uma
possibilidade de vários conhecimentos serem dignos de aprendizado.

Através dá análise do filme Entre os muros da escola, vamos tentar refletir acerca da
questão do universalismo e do relativismo no processo escolar, tentando mostrar em que
aspecto a contribuição dos estudos sobre multiculturalismo e educação podem ser levados
em consideração no processo de globalização que vivenciamos.

Os muros do filme

O filme que irei analisar se chama Entre os muros da escola. De produção


francesa, o filme que estreia em 2008 com a direção de Laurent Cantet, retrata o cotidiano
de uma sala de aula com alunos da 7ª série de um colégio público da periferia de Paris. O
filme que é baseado no romance “Entre les murs” de François Bégaudeau está baseado nas
experiências vividas pelo próprio escritor como professor.

O enredo do filme se dá em torno dos desafios pedagógicos em uma sala de aula


bastante diversificada, em que a questão cultural passa a ser importante no processo de
256
aprendizado e de diálogo entre professores e alunos. O conteúdo realista do filme se dá
justamente na caracterização da sala de aula como bastante heterogênea. Várias culturas
são retratadas no filme em que se dá ênfase como as diferenças nas origens dos alunos
irão vir a influenciar o aprendizado na escola. Alunos que são franceses, mas que possuem
origem africana e asiática, por exemplo, vivem cotidianamente na mesma sala
de aula, tendo suas diferenças e dificuldades de diálogos entre si e principalmente com o
professor.

O filme que se passa na França, mais especificamente em Paris, retrata uma


realidade comum a aquele país. Depois do processo de descolonização das colônias
francesas na África, um grande fluxo migratório acontece em direção ao país francês. Dessa
forma, várias culturas do continente africano, com diversas religiões, crenças e modos de
viver habitam hoje a França, fazendo com que a sala de aula seja um lugar de convivência
das diferentes culturas vindas de fora com a cultura tipicamente ocidental, europeia e
francesa.

Não só o processo histórico advindo das relações da França com suas ex-colônias,
mas também com o processo de globalização ocorre uma mistura de etnias e culturas que
antes não se tinha. O fluxo migratório de um país para outro em que as culturas se
comunicam e convivem sobre um mesmo país trazem questões sobre a forma de lhe dar
com as variedades culturais.

A maior parte do filme se passa em uma sala de aula, tendo como ambiente maior a
escola como o todo. As características da escola são interessantes de serem ressaltadas:
a escola possui cores monocromáticas, é um local grande, e a sala de aula em específico
possui as cadeiras dos estudantes dispostas de forma com que o professor fique a frente
dos alunos, como que em um auditório. A primeira vista quando se vê a arquitetura do
ambiente retratado no filme, não se percebe que aquele local é uma escola. As cores
básicas –entre branco, preto e cinza- as grades nas janelas, os muros altos delimitando o
espaço escolar trazem mais uma ideia de prisão.

Dentro da escola e mais especificamente na sala de aula o professor de língua


francesa Francês François Marin, passa por vários conflitos com os alunos no momento do
ensino. O professor de Francês François Marin em seu cotidiano escolar passa por várias
questões pedagógicas ante uma variedade de culturas, com diferentes modos de viver e de
olhar para a escola. Os dilemas do ensino diante de uma diversidade dos alunos, a questão
da disciplina, dos conteúdos ministrados em relação à realidade dos alunos serão alguns
pontos destacados durante esse trabalho.

O filme, apesar de mostrar um contexto específico, traz na verdade um debate sobre


uma questão comum ao sistema escolar hoje: como colocar dentro da escola as diferenças?
Como perceber as diferenças não mais como deficiências ou incapacidades, mas como
formas diferentes de se apropriar da realidade e de tecer relações sociais diferentes? Com
isso trazemos uma reflexão sobre a problemática do conhecimento universal e do
257
conhecimento relativista - em que se leva em consideração o multiculturalismo – no âmbito
da educação e mais especificamente no currículo.

O pós-modernismo e a questão educativa

Que cultura é transmitida na escola? Quem transmite essa cultura? Essas


perguntas ao olharmos o filme com as lentes do texto são dignas de respostas. Em várias
passagens do filme ficava claro que a cultura que era transmitida na sala de aula muitas
vezes não correspondia com a cultura das crianças de modo geral. Exemplo disso foi
quando o professor pediu às crianças para colocarem um verbo no imperfeito do subjuntivo.
As crianças ao errarem e ao estranharem tal uso da língua, caracterizam aquela forma de
falar como algo da Idade Média, acrescentando que ninguém nas ruas falava daquela forma.
Nesta parte do filme fica claro que tipo de cultura se ensina em sala de aula não a mesma
cultura vivenciada pelas crianças. Como já colocado acima, o colégio retratado no filme se
encontra em periferia de Paris. A educação como algo que ás vezes se torna
desinteressante para muitos alunos está relacionado muitas vezes com o contexto de
marginalidade em que estão inseridos. A diferença de realidade dos alunos retratados no
filme em relação aos franceses de classe média e de classe alta influencia em grande parte
a percepção sobre a necessidade do conhecimento de uma linguagem rebuscada.

A reflexão pós-moderna sobre o processo educativo moderno nos dá algumas


indagações sobre a partir do quê se constrói o projeto de educação. Silva (1995) ao retratar
a escola como um lugar em que o projeto moderno e iluminista tomam corpo, onde se faria
a educação para a existência de um sujeito autônomo, racional, emancipado politico e
socialmente, nos traz o debate pós-moderno sobre a educação. A racionalidade defendida
no projeto moderno, por exemplo, é vista como universal e fundacional no sentido de não
perceber que o conhecimento e a racionalidade valorizada fazem parte de um cenário social
e histórico específico em que as relações de poder influenciariam na determinação dos
conhecimentos válidos como universais.
Outra crítica que o Silva traz é o domínio de grandes narrativas que viriam a trazer
explicações universais sobre os fatos ocorridos na humanidade. Para os pós-modernos, as
narrativas mestras seriam tentativas de ordenar e controlar a interação social oprimindo
e excluindo grupos e sociedade que não estariam sendo contados nas grandes histórias.

258
Exemplo interessante para ilustrar o domínio das grandes narrativas de análise do
filme é quando o professor ao exemplificar um conteúdo usa o nome Bob em uma frase. Os
alunos nessa hora começam a questionar o uso de tal nome, e o professor responde que
aquele nome era um nome comum. Os alunos em resposta dizem que para eles aquele
nome era nome de francês rico. O professor então pedindo para que os alunos dessem
outro nome teve como resposta um nome de origem africana. A diferença cultural imprimida
nesse exemplo mostra como a educação como produtora de cultura não levou em
consideração as diferenças culturais, transmitindo apenas a cultura dominante, que neste
caso é a cultura ocidental:

As grandes narrativas – da ciência, da religião, da política – nascem do desejo de


conter o fluxo constante e a complexidade do mundo e da vida social. Elas
representam tentativas de ordenar, classifica, controla a organização e a interação
social. Em sua vontade de poder e controle, entretanto, assim reza a contestação
pósmodernista, elas frequentemente, têm contribuído para oprimir, para suprimir, para
excluir (SILVA, 1995:247).

As grandes narrativas suprimem e excluem outras histórias criando nesse processo


relações desiguais de poder. No filme o nome tido como normal para o professor era “Bob”
nome de origem da língua inglesa que comumente se usa nos Estados Unidos. A não
utilização de um nome africano, asiático ou até mesmo latino nos leva a acreditar que as
relações de poder tecidas na sociedade influenciam não só as relações na escola como o
conteúdo que será ensinado dentro dela.

Debruçar-se acerca da questão do multiculturalismo e do universalismo no âmbito da


educação são umas questões que se ressalta no filme. As questões sobre o conhecimento
universal em relação ao conhecimento que leva em consideração as especificidades
culturais se torna importante para a estruturação de todo sistema educacional e mais
especificamente do currículo, ferramenta que dá as principais diretrizes do tipo de ensino
a ser lecionado.

Outra cena que se pode destacar é uma cena final do filme. O ano letivo na escola
acabou e o professor pede para os alunos dizerem o que eles aprenderam. Muitos alunos
levantam a mão e dizem de forma resumida o que eles tinham aprendido nas ciências

259
naturais, na matemática e na história. Depois desse momento, todos os alunos ao
ouvirem o toque final da aula saem e apenas uma menina fica na sala e vai falar com o
professor. A menina se aproxima calmamente do professor e diz que não aprendeu nada.
O professor assustado tentando amenizar a colocação da garota, diz que ela aprendeu sim,
mas que era normal não se lembrar na hora. A menina em resposta diz que não compreende
aquilo que eles fazem na escola. Este momento, um dos mais marcantes, fecha a trama do
filme e traz a reflexão sobre a justificativa do ensino. Só se ensina por algum motivo, alguma
importância deve ter para a sociedade a veiculação de um determinado conteúdo. Se para
aquela menina e para muitas outras crianças do filme o ensino não faz sentido, não fala da
realidade, “das ruas”, dos seus cotidianos e das suas culturas, então para quê ensinar?

Considerações finais

A aceitação de uma separação entre ciência e cultura, seria uma das principais
características de um conhecimento universal e neutro:

Aqui, a ciência, inquestionável, o reino do universalismo; ali, a cultura,


campo de um possível (e relativo) relativismo, espaço onde se pode,
limitadamente, atendidos certos critérios universalistas, fazer alguma
concessão à variabilidade e à invenção social. Em nenhum dos dois,
como veremos, há qualquer consideração da presença de relações de
poder e muito menos da possibilidade de que os dois possam estar
vinculados precisamente por essas relações (SILVA, 2000: 72).

O currículo segundo essa visão seria dividido em saberes neutros, os científicos, e


os saberes culturais, que seriam dotados de especificidades históricas e sociais. A
questão é que o próprio saber cientifico possui influências do contexto social e histórico com
que está relacionado, se não o fosse, os saberes neutros seriam fáceis de domínio ede
absorção dos alunos já que estes não estariam sendo influenciados pelos contextos próprios
em que vivem.

Interessante é a afirmação de Silva (2000) ao dizer que tratar a questão do


universalismo/relativismo na educação não é apenas uma questão epistemológica e sim
uma questão política. A forma como se ensina e principalmente o que se ensina tem um
caráter político na medida o discurso de um conhecimento universal cria diferenças reais na

260
sociedade. Os incapazes de ter ou de compreender um determinado conhecimento que se
diz universal são excluídos dando a universalização da educação através de conhecimentos
universais um caráter contraditório. O universal afinal vem de uma situação específica
e foi produzido e reproduzido dentro de um contexto cultural e político específico.

Com a globalização várias minorias surgem reivindicando um lugar na história e os


debates sobre multiculturalismo na educação ganham força colocando a necessidade de
um conhecimento que leve em consideração as diferenças étnicas, culturais e sociais que
fazem parte de uma mesma nação. Até a própria noção de cidadania é influenciada por
esse processo de polifonia de novos atores na cena social e política. Dessa forma, a
educação como garantia de cidadania deveria então estar preocupada com os grupos
minoritários.

O entendimento de que o conhecimento quando tido com universal naturaliza a forma


como foram feitos estes conhecimentos e a razão deles terem sidos elegidos como
universais. Poderia se perguntar, tomando exemplo do filme, por que o conhecimento que
é transmitido como universal não é o conhecimento dos países de origem das crianças
retratadas no filme. Mais que isso, se os conhecimentos lecionados na sala de aula tivessem
realmente o valor de universais então as crianças nãos os veriam como inútil de aprender.

Tem-se, além do que foi colocado acima, uma necessidade também de se analisar
discursivamente, tendo em vista que toda a enunciação de verdade tem por trás uma
construção de uma realidade social desejada baseada em relações de poder. Torna o
conhecimento universal como o melhor a ser ensinado tem em sua essência o objetivo
também de ser este conhecimento universal visto como único, verdadeiro, objetivo, longe
de qualquer influência social ou política. O discurso que se tem de neutralidade deste
conhecimento universal acaba estabelecendo uma verdade e reproduzindo que esta
verdade é única:

O currículo sanciona socialmente o poder através da maneira pela qual (e as


condições pelas quais) o conhecimento é selecionado, organizado e avaliado
nas escolas. Fazer história como um estudo de epistemologia social é ver as
cambiantes divisões de verdadeiro/falso em suma sociedade como
relacionada a relações de poder ao invés de como um resultado direto da
existência de uma dada realidade (POPKEWITZ, 2010: 205-206).

261
O cuidado que se deve ter com o currículo que visa ter um caráter universal é de não
só abafar outras culturas e modos de viver, mas de levar isso a uma reflexão política em
que as relações de poder na sociedade teriam interferência total no ensino nas escolas. A
legitimação de uma verdade unívoca camufla relações de desigualdade, pobreza e
exclusão.

Atentar para as questões multiculturais é antes de qualquer coisa atender às novas


vozes que surgem no novo contexto político e social de globalização, de fluxos
migratórios em que questões raciais e de gênero, por exemplo, são pautas de luta de vários
grupos que procuram por reconhecimento na história e no conhecimento. Ter um currículo
longe de uma perspectiva minimamente relativista cria na verdade um conhecimento
abstrato que não tem ligação nenhuma com tempo e espaço.

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SILVA, Tomaz Tadeu e MOREIRA, Antonio Flávio B (2005). Sociologia e teoria crítica do
currículo: uma introdução. In: Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo, Cortez

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POLÍTICAS EDUCACIONAIS: REFLETINDO O POVO CIGANO

Caroline Leal Dantas do Nascimento36

RESUMO:
Este trabalho tem por objetivo recuperar embates enfrentados no âmbito da formulação de políticas públicas de
educação para populações ciganas, a partir de levantamentos bibliográficos e pesquisas etnográficas no sertão
paraibano e pernambucano, em um exercício comparativo de análise contrastiva com políticas públicas educacionais
aplicadas à outras comunidades tradicionais, como indígenas e também em outros países, como Portugal, com
populações ciganas. Refletindo alguns desafios e limites para se pensar uma educação inclusiva e outras perspectivas
pedagógicas.
Palavras-chave: ciganos, políticas educacionais, etnicidade.

INTRODUÇÃO:
O presente trabalho tem por objetivo trazer questões enfrentadas no âmbito das pesquisas
sobre ciganos e seus desdobramentos nas políticas públicas, aqui abordarei a educacional - os
desafios que vem se enfrentando e os limites para se pensar políticas públicas educacionais
voltadas para tais populações. Tendo em vista os direcionamentos que a pesquisa do mestrado foi
tomando, esse objetivoo se sobressaiu como base para apreensão da realidade cigana, esse é um
recorte recente e compõe um investimento para o projeto que irá se desenvolver no doutorado.
Pesquisas sobre povos ciganos ainda representam um caminhar recente, se comparados,
por exemplo, com outras populações tradicionais como povos indígenas e quilombolas. Os
primeiros esforços de pesquisa etnográfica completam pouco mais de duas décadas, em 1994 com
o professor Frans Moonen em Sousa-PB, no entanto, apenas em 2007, com a instituição do decreto
assinado pelo então presidente Luís Inácio Lula da Silva em reconhecimento à contribuição da
etnia cigana na formação da história e da identidade cultural brasileira, é que fomentou as
discussões de políticas públicas e representações políticas nessas comunidades37.
Há dois anos, seminários são realizados no intuito de dialogar com tais povos, em 2014 e
2015 foram realizados na UFPE, o 1º e 2º Seminário sobre os Povos Ciganos em Pernambuco,
viabilizando interlocução entre gestores públicos, entidades e representações ciganas. Em 2015
foi realizado em Sousa – PB, o 1º Encontro de Ciganos do Nordeste, reunindo representantes
ciganos de alguns estados brasileiros (PE, PB, CE, SP, DF) em diálogo com articuladores da

36
Mestre em Antropologia pela UFPB, pesquisadora no grupo de pesquisa GEC (Grupo de Estudos Culturais), coordenado
pela Prof. Dr. Patrícia Goldfarb. Email: carolinelealdn@gmail.com.
37
Ver SEPPIR http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/copy_of_povos-de-culturacigana (acessado:
05/10/2016).
264
Secult-PE e Fundarpe, através da Coordenação de Povos Tradicionais e Populações Rurais, da
Coordenação de Cultura Popular, representantes da secretaria de Desenvolvimento Social,
Criança e
Juventude, da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade, do Ministério Público Estadual, de
professores do Departamento de Antropologia da UFPE e UFPB, e por fim, de integrantes da
Associação dos Ciganos de Pernambuco (ACIPE), constituindo a comissão pernambucana
formada para o encontro.
Os encontros trouxeram à tona os desafios enfrentados em todos os eixos temáticos de
condições básicas de reprodução social, física e cultural de tais comunidades, cujo enfoque aqui
será pensar os desafios voltados à educação, uma vez que as populações ciganas mantém ainda
um alto índice de analfabetismo e de abstemia escolar.
Em conjunto com antropólogos e pesquisadores (educadores), nos reunimos para discutir a
elaboração de políticas públicas, desde questões mais estruturais como moradia, saneamento
básico, saúde e acesso a educação. Compreendendo a partir das interações dadas nas fronteiras
interétnicas, segundo Fredrik Barth (1969), os ciganos enquanto grupos étnicos organizam as
diferenças culturais através das fronteiras simbólicas com as sociedades envolventes.
Os ciganos estão no Brasil desde o período colonial, deportados desde a política de degredo
em expulsão de Portugal, chegaram aqui João Torres e sua família, em 1574. Apenas nos últimos
dez anos começam paulatinamente a representar um objeto de debate público no país, indicando
portanto, que se passou a debater quem são e que lugares ocupam nas narrativas nacionais.
Percebendo que mesmo escapando aos livros de história, os ciganos compõe o cenário nacional
desde as lendas urbanas, carregadas de seus mitos até nas práticas comerciais e formações de
redes informais nos mercados de comercialização de escravos, desde o Brasil colônia, por exemplo
e também no judiciário carioca, como demonstra o trabalho de MELLO, VEIGA, COUTO & SOUZA
(2009).
Todavia, permaneceram silenciados nos livros de história e no reconhecimento da formação
multicultural e plutiétnica da identidade nacional. Seguiram silenciados na história do país e em se
tratando de reivindicação de direitos específicos para minorias étnicas, essas comunidades entram
recentemente no cenário. Por essas e outras emblemáticas que vem sendo levantadas, como
carência de documentação, resultante da relação de perseguição com as sociedades envolventes
e uma tradição na oralidade, observa-se uma formação de indivíduos a partir da educação no lar,
nos acampamentos, apreendendo do que CASA-NOVA (2006) chamou em “A relação dos ciganos
com a escola pública”, à partir do conceito de habitus38, de habitus étnico.
Compreendido como sendo,
“Construído durante os processos de socialização primária, numa educação familiar fortemente influenciada pela
etnicidade e nas relações de sociabilidade intra-étnicas entre crianças e adultos e “é definido, não pela posse de capital
económico, mas antes na base de uma importante homogeneidade no que concerne aos estilos e oportunidades de
vida, tendo subjacente uma certa
‘filosofia de vida’. Esta filosofia é condicionadora das suas formas de actuação,
moldada por um ethos transversal e comum por relação ao qual os comportamentos e atitudes desta comunidade são
largamente definidos, nomeadamente no que diz respeito ao capital cultural no estado institucionalizado (Bourdieu,
1979) e à instituição escolar e também aos sistemas de trabalho da sociedade maioritária” (Casa-Nova, 1999 ; 2006).

38
Ver Bourdieu (1979).
265
Os estilos de vida moldados com base na própria cultura, mas também em resposta a
relação interétnicas, os ciganos costumam ter espaços delineados para atuação, como feiras e
centros comerciais, assim como enquanto músicos e dançarinos. A relação com o universo cigano
unindo ao formato escolar, nos termos freirianos, apresentando uma relação hierárquica e uma
pedagogia pouco reflexiva e assimétrica, corroborando para uma formação escolar primária, para
o domínio da escrita e da matemática básica, mas que ainda resulta em um índice elevado de
abstemia escolar. Em detrimento dos desafios enfrentados pelas crianças para se adaptar em
grande medida aos formatos escolares, a desconfiança histórica dos ciganos para com as
sociedades envolventes na relação de resposta a um processo histórico de perseguições.
É importante destacar que embora existam fatores que são comuns para a maior parte dos
ciganos, como um histórico de perseguições, hoje no Brasil estipula-se uma média de 800 mil a 1
milhão de ciganos, variando em diversos grupos, como os Sinti (grupos Eftavagaria - também
conhecido por Manush e Estraxaria; subdivisão Galshkane manush, Piemontesi manush,
Prajshtike manush, Valshtike manush) Roma (nações Calderara, Machvaia, Lovara, Boiash,
Xoraxane) e Calón39 que representam o clã com maior número de acampamentos e uma situação
econômica precária. Entretanto, no país há também clãs com uma conjuntura de classe distinta,
portanto, além de heterogêneo os grupos também são dinâmicos, como a própria cultura 40 .
Portanto, observar as circunstâncias pelas quais as comunidades ciganas tem sido afastadas
secularmente da escola, não sendo essa uma característica isolada da sociedade brasileira, como
também foi observado nos trabalhos de Maria José Casa Nova em Portugal e analisado por ela em
outros países europeus como é o caso da
Espanha, França, Alemanha, Holanda, Áustria, Bélgica, Suécia, Grécia, Bulgária e Roménia 41.
Representando um “denominador comum” os baixos índices de escolaridade e um acentuado
absentismo escolar.
Analisar as razões para tais índices passa pela análise histórica de perseguição e
migração desses grupos, o modelo e formato escolar e a sua relação com a diversidade étnica,
perpassa a tradição dos ciganos na oralidade, que mesmo obtendo uma língua tais povos eram
ágrafos. Ou seja, apreender as razões pelas quais tais índices ainda permanecem acentuados
passa pelo conhecimento da etnicidade cigana e seus processos de socialização e educação
familiar. Observando os papéis sociais, suas formas, as expectativas e perspectivas de vida, reitera
Casa-Nova, onde:

As relações familiares e redes de sociabilidade intra-étnica, a relação com o mercado de trabalho e a forma como se
processa a inserção dos/as jovens ciganos/as na vida activa, desempenham um papel fundamental. Passa também
pelo conhecimento e compreensão das formas e processos de a escola, enquanto instituição e enquanto organização,
trabalhar com a diferença cultural, seja esta de origem endógena (portugueses de cultura portuguesa, portugueses de
cultura cigana), seja de origem exógena (imigrantes e portugueses de cultura cabo-verdiana, angolana, indiana…).
Permite-nos concluir estarmos em presença de dois sistemas culturais estruturalmente diferenciados: de um lado,
uma cultura ágrafa, de transmissão oral, valorizando o pensamento concreto e o conhecimento ligado ao desempenho
de actividades quotidianas que garantem a reprodução cultural e social do grupo (a cultura cigana); do outro, uma
cultura letrada, de transmissão escrita, valorizando o pensamento abstracto e o conhecimento erudito (a cultura da
sociedade maioritária) (CASA-NOVA, 2006).

39
Ver site da Embaixada Cigana: http://www.embaixadacigana.org.br/etnicidades_ciganas_no_brasil.html (acessado 10/10/2016).
40
Ver MOONEN (2013).
41
Ver CASA-NOVA(2006).
266
Na ótica freiriana, o sistema cultural cigano se ligaria ao modelo de educação libertadora,
uma educação que proponha libertar e não domesticar como propõe o formato escolar prussiano,
ou seja, o modelo tradicional. Libertando então o homem da opressão impositiva da sociedade,
através da libertação da sua consciência, capaz de inserir-se de modo efetivo na sociedade e
desenvolver um pensamento crítico.
E como o principal objetivo de Paulo Freire era o combate à dominação e opressão dos
desprivilegiados, penso que os círculos de cultura atuariam como expansão da educação étnica
nos próprios espaços do terreiro, onde os acampamentos são erguidos e a vida é compartilhada
em comunidade. Observando a transmissão de conhecimento, na oralidade, como um veículo de
formação humana, que na perspectiva de Paulo Freire (2000) é exatamente esse o cerne da
questão para se compreender a educação libertadora, em um movimento dialógico de recepção
do conhecimento e transmissão, sem hierarquias.
Sabemos pois que esse desafio é recorrente nas comunidades tradicionais e grupos cuja
diversidade religiosa ou étnica sobressaem, cada um à sua maneira expressa-se diante desse
formato escolar, enfrentando desafios e evasão. Aqui nos baseamos nas comunidades indígenas.
Dessa forma, enxergamos na aplicação de metodologias participativas e em outros formatos
de partilha do conhecimento, caminhos para diminuir tais disparidades, como também por
questionar o modelo de formação proposto à todos os demais. Compreendendo, como nos mostra
Paulo Freire (1968), que a própria pedagogia replica as opressões de classe da sociedade, nos
levando a buscar uma educação que gere reflexão, questionamento e uma “pedagogia que faça
da opressão e de suas causas objeto de reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu
engajamento necessário na luta por sua libertação, em que está pedagogia se fará e refará” (
FREIRE,1968, 34).
CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Refletindo o quão recentes são os temas referentes à formulação políticas pensando o povo
cigano e na antropologia, com pesquisas sobre ciganos e sobre educação cigana. Se faz
necessário não só um investimento em trabalhos etnográficos, como diálogos, círculos de cultura
e formação de representações políticas, que diferentemente das chefias, dialogam pra fora,
reconhecendo e reivindicando esses direitos, junto ao Estado.
Investigar as razões da abstemia escolar, compreendendo como a experiência escolar reflete
no ambiente familiar e como as crianças conjecturam as vivências de escolarização, atuando no
processo de diálogo entre as famílias ciganas e a escola representam segundo Casa-Nova um
desafio por se tratar de um contexto complexo e multidimensional. Destaco então eixos de
investigação a que proponho aprofundar em um exercício de maior investidura, como pensar a
questão da educação e o formato escolar pouco inclusivo, refletir o histórico de perseguição dos
ciganos e sua relação de pouca confiabilidade com as sociedades envolventes. Atuar em aplicação
de pedagogias que reflitam a multiculturalidade, pensar o habitus étnico e a transmissão de
conhecimentos e saberes tradicionais nos espaços de sociabilidade doméstica em que se
estendem à vida profissional.
Não obstante, é possível lançar questionamentos, sobre os parâmetros estabelecidos
de inserção da diversidade a um modelo escolar rijo, que pretende uma universalização
cultural, pautada em princípios ocidentais. A escola representa uma prioridade nessa

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reformulação, pois é certo, que a partir da educação, uma nova lente se configurará
paulatinamente na sociedade.
Pois, nesse contexto atual, é possível construir diálogos entre as minorias e a sociedade
majoritária? As minorias se reconhecendo enquanto diferentes a partir de suas próprias lentes? Há
possibilidades da escola se tornar de fato um espaço de inclusão da diversidade em sua
multiplicidade? Se não houver tal movimento de descentralização de uma cultura imponente
sobre as demais minoritárias, seguirão sempre à margem.
São inúmeras as dificuldades que emergem diante de tal projeto de abertura democrática à
diferença. Como seria um princípio de participação igualitária em conjunto com uma percepção
de igualdade que implica em uma ação diferencial em função de características culturais,
quando sabemos que a grande maioria dos profissionais não dispõe de um treinamento para
lidar com a diferença, implicando por exemplo na pedagogia aplicada na sala de aula, o que
demonstra apenas um ponto das inúmeras ineficiências que requerem revisão.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT &STERIFFFENART.
Teorias da Etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Trad. De
Elcio Fernandes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1988.
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu:
Sociologia. Trad. de Paula Montero e Alícia Auzmendi. São Paulo: Ática, 1983 a, p. 46-81.
CASA-NOVA, Maria José. A relação dos ciganos com a escola publica: contributos para
compreensão sociológica de um problema complexo e multidimensional. INTERAÇÕES, nº2,
PP. 155-182, Portugal, 2006.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade (1967); Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1967.
_____________Pedagogia da Autonomia (1996); Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
_____________ Pedagogia do Oprimido (2005); Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005,
42.ª edição.
GOLDFARB, Maria Patrícia Lopes. O Tempo de Atrás: um estudo sobre a construção da
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Sociologia. (UFPB), 2004.
MOONEN, Frans. Anticiganismo e políticas ciganas na europa e no Brasil. Acessado (10/10/2016).
http://docplayer.com.br/10903486-Anticiganismo-e-politicas-ciganas-naeuropa-e-no-brasil.html .
NASCIMENTO, Caroline L.D. Pensar os ciganos em Patos. In: Ciganos em PatosPB: o
desafio atravessado por geração e gênero. Monografia de Bacharelado em Antropologia.
Unidade acadêmica de Sociologia e Antropologia. UFCG, 2013. SULPINO, Maria Patrícia Lopes.

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Ser viajor, ser morador: Uma análise da construção da identidade cigana em Sousa – PB.
Dissertação de Mestrado pelo Programa de pós-graduação em antropologia social (UFRS), 1999.

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