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Soraia Livramento, 32 anos, é uma mulher negra de baixa renda nascida em Contagem, na
Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Convivendo há anos com a esquizofrenia e o
abuso de drogas, ela vivia nas ruas, onde envolveu-se numa briga para defender o ex-namorado,
esfaqueando o agressor. Foi presa por homicídio em janeiro de 2023, quando contava dois meses de
gravidez, e encaminhada ao Centro de Referência a Gestante, em Vespasiano, também na RMBH.
Seu sofrimento, já grande, só fez aumentar a partir daí, muito em função dos alegados maus
tratos que sofreu nas mãos dos agentes penais responsáveis pela sua custódia. Quinze dias depois de
um parto de alta complexidade, foi separada do filho, segundo ela contra a própria vontade, e
transferida para uma prisão comum, a penitenciária Belo Horizonte 1.
Lá, sofreu surtos psicóticos, que teriam sido interpretados pelos agentes penais como atos de
desrespeito. Soraia afirma ter apanhado dos agentes, recebido jatos de spray de pimenta nos olhos e
ter sido levada, duas vezes, para o confinamento solitário. Em cada uma dessas vezes, teria
permanecido 20 dias separada das demais detentas numa cela escura, sem ventilação ou colchão,
materiais de higiene pessoal e os cinco diferentes remédios psiquiátricos de que faz uso
diariamente. Sua saúde mental, por óbvio, deteriorou-se.
Todas essas denúncias foram confirmadas por outras detentas ouvidas pelas advogadas da
Assessoria Popular Maria Felipa (APMF), dedicada, entre outras coisas, a combater a tortura nas
prisões brasileiras. A APMF pediu a prisão domiciliar humanitária de Soraia, mas em setembro de
2023 o pedido foi negado. A alegação de maus tratos análogos à tortura foi desconsiderada na
decisão do juiz.
No dia 8 de março, dia internacional da Mulher, essa série de supostas ilegalidades que
compõem o relato de Soraia, bem como o crítico estado em que se encontra o sistema carcerário
brasileiro, foram denunciados pela advogada mineira Isabela Cordy na 55a Sessão do Conselho de
Direitos Humanos da ONU, em Genebra, Suíça, para quem a história de Soraia não constitui uma
exceção, mas é quase uma regra.
“Os casos de suicídio, violações sexuais, as chamadas faltas disciplinares e as transferências
de prisões são os instrumentos para silenciar as presas que denunciam torturas. O Ministério
Público e o Poder Judiciário brasileiros guardam silêncio ante essas denúncias”, discursou Cordy,
sob os olhares da comunidade internacional ali reunida.
Cordy é uma das fundadoras da Assessoria Popular Maria Felipa. O foco de sua fala na
ONU foram as mulheres em privação de liberdade, sobretudo mães, cujos direitos estariam sob
sistemático desrespeito por parte do Estado.
Em um documento de 40 páginas, cada etapa da trajetória de Soraia no sistema carcerário é
detalhada, traçando as relações entre a sua condição e "um padrão estadual e nacional de violação à
integridade pessoal e à igualdade de gênero, racial, social e de saúde nas unidades prisionais no
Brasil”.
Anexo ao caso de Soraia, consta o relatório de inspeção do sistema prisional de Minas
Gerais, produzido por cinco peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura,
publicado em agosto de 2022. Em suas 280 páginas, o relatório compila ilegalidades, que vão da
escassez de trabalho para as detentas à má qualidade da comida, onde inclusive lesmas já teriam
sido encontradas, passando pela falta de protocolos para a denúncia de maus tratos e por diversos
relatos de violência contra presos e presas – que incluem espancamentos com o uso de soco inglês,
afogamentos no sanitário das celas e violência psicológica.
As mais de 300 pessoas atendidas pela APMF em 2023 (cujo público prioritário são
mulheres e pessoas LGBTQIA+) não deixam dúvidas sobre o perfil das denunciantes: 81% são
mães, e a maioria têm três filhos ou mais; 74% são pretas, 70% já sofreu violência policial ou
doméstica, 31% não concluiu o ensino fundamental 19% é composto por analfabetas.
Segundo a APMF e outros grupos ligados à defesa dos direitos humanos em Minas Gerais,
como a Plataforma Desencarcera e o Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de
Liberdade, grande parte das irregularidades apontadas no relatório de 2022 não foram sanadas pelo
governo de Minas.
A intenção da APMF é estimular a ONU a pressionar o Brasil a adotar um programa de
proteção às vítimas efetivo, que abarque, entre outros pontos, o direito às denunciantes presas à
prisão domiciliar humanitária e o estabelecimento de canais dento das unidades prisionais para
denunciar tortura.
O ineditismo da ação está na figura jurídica que aciona: o “apelo urgente”, mecanismo
semelhante ao usado pela defesa do presidente Lula (PT) quando da tentativa de reaver seus direitos
políticos nas eleições de 2018. Caso a ONU atenda ao apelo da APMF, a repercussão seria geral,
potencialmente beneficiando pessoas em situação parecida à de Soraia. Os juízes brasileiros,
embora não sejam obrigados a acompanhar as orientações do Conselho de Direitos Humanos da
ONU, teriam de reportar-se a decisão, ainda que para rebatê-la.
Advogadas criminalistas como Fernanda Oliveira, outra das fundadores da APMF e que
desde 2007 atua no enfrentamento à tortura nas prisões, lidam diariamente com relatos dolorosos
como o de Soraia. Comparecer a audiências judiciais e redigir pedidos de soltura para detentas cujas
vidas encontram-se em risco é parte de seu cotidiano.
No início de fevereiro deste ano, Oliveira, junto de outras advogadas, trabalhava para
garantir a liberdade de mais uma vítima de tortura no sistema prisional. Tratava-se de uma jovem
mulher trans, de 19 anos de idade, presa em flagrante por roubar um eletrodoméstico no valor de
R$350. Os fatos transcorreram em meados de 2023 na cidade mineira de Juiz de Fora.
Embora possua nome social feminino, a jovem foi trancada numa cela comum, que dividiu
com vários homens. Certa noite, dois deles a estupraram. Sem antecedentes criminais, ela ficou oito
meses presa preventivamente, isto é, sem ter sido julgada e condenada pela Justiça.
A APMF expôs a situação ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais num pedido de habeas
corpus que, no fim de fevereiro, foi acolhido pelo desembargador responsável. A jovem, assim,
pôde ser solta. Soraia Livramento, por sua vez, continua encarcerada.