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PEDAGOGIA DA DESATIVAÇÃO

Cidade luta para converter presídio em universidade

O produtor cultural Tiago Toth, de 298 anos, faz parte da minoria de adultos – só 2,43%,
segundo o defasado Censo de 2010 – com educação superior em Ribeirão das Neves,
município de 341 mil habitantes na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Para concluir o
curso de história, desdobrou-se entre as funções de garçom trabalhando em um restaurante e
como atendente de call center. Gastava trêsquatro horas por dia em ônibus lotados. Em uma
noite de 2016, voltando da faculdade em Belo Horizonte, Toth encontrou ambulâncias e
carros de polícia perto de sua casa: um amigo seu fora morto com sete tiros, em meio a uma
guerra de traficantes. “Quase todos os meninos que cresceram comigo estão presos ou
morreram”, lamenta. “Para a minha geração, o tráfico era uma opção mais realista do que
estudar.”
O realismo ganha ainda mais expressão em Ribeirão das Neves quando se sabe que há
seis presídios instalados ali, abrigando 8 355 pessoas – a maior população carcerária de Minas
Gerais. O estigma que pesa sobre a cidade é tamanho que, em 2013, o Diário Oficial do
estado cometeu um ato falho: referiu-se ao município por seu apelido depreciativo, Ribeirão
das Trevas.
Com o objetivo de trazer luz à cidade, um grupo de moradores – Toth entre eles –
juntou-se a ativistas do abolicionismo penal, políticos, membros do Judiciário e da academia
para reivindicar que a Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) monte uma sede em
Neves. Já indicaram onde querem instalar a universidade: nos prédios da Penitenciária José
Maria Alkimin (PJMA), a mais antiga do estado. Surgiu assim o movimento Desativa PJMA!,
cuja proposta é dupla: Neves precisa de uma universidade – e de uma prisão a menos.

Quando foi inaugurada pelo presidente Getúlio Vargas em 1938, a PJMA chamava-se
Penitenciária Agrícola de Neves (PAN). O jornal O Imparcial relatou então que a nova
penitenciária pretendia reintegrar os detentos à sociedade por meio do trabalho e do
tratamento humanizado. Em sua ronda no dia da inauguração, dizia o jornal, Vargas foi
informado de que todos os presos frequentavam o dentista e que, ao final da pena, “levam
dinheiro e roupa suficientes para os primeiros passos na nova vida, além de um passe para
todas as estradas de ferro”.
Na época, a população da localidade de Neves – que só ganharia status de município
em 1953 – comprava frutas e verduras produzidas na PAN. Também frequentava o teatro e o
cinema instalados na prisão, hoje desativados. O cartunista Henfil nasceu em Ribeirão das
Neves, em 1944, numa vila de funcionários dentro da PAN – seu pai trabalhava lá. Durante a
ditadura militar, a penitenciária abrigou um centro de tortura, como revelou a Comissão da
Verdade.
O presídio está localizado no Centro da cidade, contrariando a Lei de Execução Penal,
que orienta as detenções a funcionarem longe de centros urbanos. Suas condições não
lembram em nada os ideais humanitários de sua fundação. Membro do Conselho da
Comunidade da Vara de Execuções Penais da Comarca de Neves, Maria Tereza dos Santos,
63 anos, fez inspeções na PJMA e relata que encontrou o lugar infestado por ratos, baratas e até
cobras. Nos dias de chuva, os detentos ficam de pé nas celas superlotadas, com água pelas
canelas. “Certas coisas eu não podia nem relatar aos familiares, para que não sofram mais do
que já sofrem”, diz Santos.
Ela nada sabia do sistema carcerário até que, em 2007, um de seus cinco filhos foi
preso. A burocracia impediu a mãe de visitar o filho: a cada tentativa de Santos, os agentes
penitenciários diziam que era necessário apresentar mais documentos. Em sua quarta
investida, faltava só uma cópia do RG do detento, que estava retido no próprio presídio.
Quando Santos pediu ao agente que buscasse o documento, ele se pôs a xingá-la. “Quando me
chamou de vagabunda, perdi o controle”, ela conta. “Outras mães tentaram me acalmar,
falando que aquilo era normal. Para mim, não tem nada de normal.”
Desde então, Santos leu todo o Código Penal e frequentou cursos da Pastoral
Carcerária. Ao fim de um ano já remetia denúncias ao Judiciário mencionando incisos e
normas. Foi uma das fundadoras do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação
de Liberdade, que já ajudou 16 mil pessoas desde 2007, prestando assessoria jurídica,
distribuindo cestas básicas e arranjando trabalho para quem progride ao semiaberto. Como
seria de se esperar, Santos também faz parte do Desativa PJMA!

A ideia inspiradora do movimento surgiu de uma promessa que o então governador Antonio
Anastasia, à época no PSDB, teria feito em 2010 ao então prefeito de Ribeirão das Neves,
Walace Ventura (ex-PSB). Diz Ventura que Anastasia garantiu que se empenharia para
converter a PJMA numa universidade. Procurado pela piauí, Anastasia, hoje ministro do
Tribunal de Contas da União, não se manifestou.
O projeto do Desativa PJMA! propõe que o velho presídio pare de receber novos
detentos. Os mais de 2 mil presos que já estão lá seriam progressivamente libertados, à
medida que as penas cheguem ao fim. A maioria deles já está no semiaberto, e alguns se
encontram na situação conhecida como “cadeia vencida” – têm direito à liberdade, mas
seguem encarcerados. Em quatro anos, estima a deputada estadual Leninha (PT), que já se
reuniu com a reitoria da UEMG para apresentar a ideia, o presídio estaria vazio e pronto para a
reforma que converteria celas em salas de aula.
O governo de Romeu Zema (Novo) resiste à proposta. Alega que a desativação da
PJMA superlotaria os outros presídios. O Desativa espera engajar o governo federal em sua
causa. No ano passado, entregou uma carta detalhando sua proposta à deputada federal Duda
Salabert (PDT-MG), que compôs a equipe de transição do governo Lula.
Toth, que dá aulas em um curso pré-vestibular gratuito voltado para as classes
populares em Neves, conta que a ideia renovou o entusiasmo de seus alunos pela educação.
“Os meninos estão todos sonhando com uma universidade na cidadeaqui”, diz. “Se isso
acontecer, vai ser muito doido. Será um símbolo enormemuito poderoso de transformação.”
Leandro Aguiar

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