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*Racismo em universidades: professores e alunos negros relatam

ataques criminosos no interior de SP.*

Em Sorocaba, a Polícia Federal abriu investigação por ameaças de morte e


mensagens racistas deixadas em banheiros da UFSCar. Casos também foram
registrados na região de Bauru e Itapetininga.

*Por Carlos Dias e Paola Patriarca, G1 Sorocaba e Jundiaí. 05/07/2019


07h01  Atualizado há 7 meses.*

O banheiro feminino da UFSCar, em Sorocaba (SP), está sem uma das portas
desde quarta-feira (3). Ela foi retirada pela Polícia Federal como parte da mais
recente investigação aberta para tentar identificar o responsável de mensagens
de ódio e de morte contra negros encontradas no local.

O caso é só mais um entre uma série de registros no interior de São Paulo. Em


maio deste ano, pichações com referência ao nazismo e com as frases "white
power" e "morte às aberrações" foram encontradas no campus da Unesp, em
Bauru. A direção registrou um boletim de ocorrência.

No dia 6 de novembro de 2018, pichações também foram achadas no campus


da UFSCar contra uma estudante negra do curso de engenharia florestal.

No mesmo dia, só que a 200 quilômetros de distância, uma estudante do


Instituto Federal de São Paulo (IFSP), em Avaré, registrou boletim de
ocorrência após encontrar bananas em sua mochila. Quatro estudantes foram
suspensos.

Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, por meio da Lei de


Acesso à Informação, o estado de São Paulo registrou no ano passado um
caso de injúria racial em estabelecimentos de ensino a cada 5 dias.

O G1 ouviu relatos de quem já sofreu esse tipo de crime dentro de uma


universidade e o que tem sido feito para combatê-lo.

Nascido na zona norte de São Paulo, Juarez Tadeu de Paula Xavier, de 59


anos, conta que começou a trabalhar ainda criança em uma banca de jornal.

O pai era caminhoneiro e foi assassinado nos anos 70. A mãe, empregada
doméstica. Trabalhou como ajudante geral em uma fábrica até que ingressou
na PUC nos anos 80 para cursar jornalismo. Segundo ele, foi o primeiro da
família a entrar em uma faculdade.

Desde então, passou a ser militante do movimento negro. Hoje, com mestrado
e doutorado pela USP, Juarez é professor da Unesp Bauru e coordenador do
Núcleo Negro Unesp para a Pesquisa e Extensão (Nupe).

Contudo, mesmo com o currículo enriquecido de pesquisas e movimentos


contra a discriminação racial, teve sua primeira experiência de ser vítima de
racismo como professor, em 2015. A frase “Juarez macaco” foi achada em um
dos banheiros da Unesp Bauru.

“Fazia quatro anos que havia chegado à Unesp, sendo o segundo professor
negro de jornalismo. Eu comecei a discutir a questão racial desde quando
ingressei na universidade no inicio dos anos 80. Então, os enfrentamentos
começam desde aquela época e, por isso, não me espantou essas
manifestações. Porém, já tinha enfrentado como estudante, mas como
professor foi a primeira vez”, afirma.

Na época, segundo o professor, o que mais marcou foi o fato de que as


pichações foram achadas no banheiro contra ele e também contra mulheres
negras.

"Foi a covardia do ato que me marcou. Pichação no banheiro da universidade,


com ofensas extensivas às ou aos estudantes e ao pessoal da limpeza. A
forma vil e agressiva contra mulheres simples, trabalhadoras braçais", afirma.

Para ele, as manifestações encontradas é apenas um reflexo da sociedade.

“Não é um caso isolado que aconteceu em 2015 na Unesp ou o que aconteceu


este ano. O racismo é mais evidente porque você tinha menos negros nas
universidades, do ponto de vista numérico. Professores, alunos e gestores
negros eram poucos", diz.

*Combate.* 

Após as pichações, uma comissão de professores na Unesp foi formada para


investigar as frases encontradas no banheiro. Os professores ouviram algumas
pessoas durante quatro meses, mas não identificaram os autores.

O processo foi concluído e no relatório foram feitas 10 recomendações às três


faculdades que compõem o campus de Bauru.

Entre os apontamentos foram a criação de uma ouvidoria na Unesp para


receber denúncias relacionadas à discriminação, além de campanhas e
medidas socioeducativas dentro e fora das salas de aula e assistência
psicológica para quem sofrer discriminação dentro do campus.

A ouvidora da Unesp afirmou ao G1 que este ano nenhum caso de injúria racial
foi registrado. Contudo, em 2018 houve oito registros, sendo que sete desses
eram de um mesmo caso.

Conforme a assessoria de imprensa, a maioria das vítimas foi estudante e


todos os registros foram investigados por uma comissão interna da
universidade.

*Ameaça no campus.*
É em Sorocaba, no interior de São Paulo, que a jovem paulistana negra Thalita
Suzan se dedica há dois anos no curso de engenharia florestal da UFSCar. A
universitária é engajada na luta contra o racismo dentro do campus e tornou-se
alvo de ameaças graves desde o ano passado.

Ao G1, ela contou que soube por outros alunos que teve o nome estampado
em ameaças racistas em meio aos símbolos nazistas deixados no banheiro.

O autor dos ataques, em 2018, se escondeu por mensagens escritas com


caneta vermelha, como “Preta imunda” e “Vai morrer”. O receio de um possível
ataque fez a estudante mudar a rotina e frequentar lugares acompanhada por
amigos.

A família, na época, ficou preocupada e o curso quase teve que ser


interrompido. No entanto, o que teve a intenção de desanimá-la serviu para
inspirar e encarar de frente a situação. Atualmente, a universitária lidera grupos
de combate ao racismo dentro do curso e no campus.

"Não sei porque fizeram isso, talvez seja por causa das ações. Mas a gente
tem um coletivo para fazer palestras, vai em escolas e falamos da temática
sobre negros. O nosso grupo tem cerca de 15 pessoas", diz.

A experiência da ativista inspirou a irmã mais nova, de 19 anos. No próximo


ano, ela deve ingressar no curso de ciências políticas.

Quem acompanha de perto a situação na unidade em Sorocaba é o diretor do


Centro de Ciências Humanas de Biológicas da UFSCar, André Cordeiro Alves
dos Santos. Segundo ele, o campus instalou câmeras de segurança depois do
caso da Thalita.

Este novo sistema irá ajudar a sindicância interna e a Polícia Federal a


investigarem o caso registrado no fim do mês de junho deste ano.

"Nós temos cerca de 3.500 alunos, é muito difícil saber quem foi apenas pela
letra. Mas esperamos denúncias e o trabalho da polícia."

Em nota, a UFSCar afirma que para tratar de casos de desvio de conduta por
parte de servidores ou estudantes mantém um órgão denominado
Coordenadoria de Processos Administrativos Disciplinares e que para
promover orientação e facilitar denúncias mantém uma Ouvidoria e a Comissão
Permanente de Ética.

A universidade ressalta que tem uma posição clara contra a violência e atua
proativamente no combate a quaisquer formas de violência.

Sobre o recente caso registrado em Sorocaba, a UFSCar afirmou que as


denúncias recebidas foram para análise da Procuradoria Federal, órgão
vinculado à Advocacia-Geral da União, e que também será instaurada uma
Investigação interna.
*"Venci o preconceito."*

“O preconceito e as dificuldades não foram barreiras para mim. Só serviram


como trampolim para prosseguir com o meu sonho de ser professora”. A
afirmação é da professora aposentada de Bauru (SP) Gracinda Ferreira de
Souza, de 71 anos.

Negra e de família 
simples, Gracinda começou a trabalhar como empregada doméstica aos 10
anos de idade.

Apesar das dificuldades financeiras e raciais da época, ela conseguiu se formar


professora e chegou a ser diretora em uma escola municipal de Bauru. Porém,
acabou sendo vítima de racismo na faculdade nos anos 70.

“Como trabalhava para pagar a faculdade, tinha dias que chegava atrasada nos
estágios. Uma vez, a professora falou perto de todos que era para eu continuar
sendo empregada. Além disso, alguns colegas não queriam fazer trabalho em
grupo comigo. Mas decidi que ia ser a melhor da sala e fui me destacando”,
conta.

Quando criança, segundo ela, a família não tinha condições e passou por
muitas dificuldades. A mãe era empregada doméstica e a levava para ajudar na
casa como babá.

A paixão por ser professora começou desde pequena e, segundo Gracinda, o


preconceito também veio desde criança.

Ela trabalhou como doméstica ao longo da adolescência, quando passou no


vestibular para licenciatura em Educação Física em uma faculdade particular
de Bauru. Era uma das únicas negras da faculdade.

A professora se formou em Educação Física em 1973, deixou o trabalho de


doméstica e começou a trabalhar em uma escola particular como professora de
educação física.

"Quando me formei, tinha uma dívida na faculdade e não pude pegar meu
diploma. Mas uma mulher me contratou e falou que podia trabalhar na escola e
pagar meu diploma, foi assim que consegui."

“Venci preconceitos, venci a época, venci a vida. Eu vim do nada e me sinto


realizada ao chegar onde cheguei, de poder ter sido professora."

*Injúria racial ou racismo?*

Segundo o professor de direito Eduardo Munhoz, injúria racial consiste em


ofender alguém utilizando de elementos de raça, cor, etnia, religião ou
condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
"Cabe esclarecer que injúria racial não é racismo. Racismo é outro crime
previsto na Lei 7.716/89, que possui punições muito mais severas que injúria
racial. Crime de racismo ocorre quando a discriminação dirigida a grupos ou
coletividades, em sentido mais amplo."

De acordo com a professora de direito penal Juliana Saraiva de Medeiros, o


delegado registra o boletim de ocorrência de acordo com os fatos descritos, o
que pode mudar ao fim da investigação.

"Dependendo dos fatos apurados será o promotor de Justiça que decidirá por
qual crime oferecerá a denúncia. Isso depende do contexto e do conjunto
probatório."

No caso dos ataques em forma de frases em faculdade, a especialista afirma


que se trata judicialmente de injúria racial e não de racismo.

"Nesse caso o ofensor tem objetivo de humilhar e não de restringir direitos.


Seria racismo se alguém fosse impedido de participar de uma festa promovida
por alunos motivado pelo preconceito", detalha.

Para o professor da Unesp, Juarez Xavier, o ideal seria que os atos de


pichações racistas fossem classificados como racismo.

“Isso para nós é importante. Queremos recuperar a alma da lei de 89, que é
criminalizar o crime de racismo para permitir a punição severa. A ideia é
criminalizar a pratica de racismo ligada a questão étnica racial, origem e
religião”, ressalta.

*Conselho.*

Há 35 anos, o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade


Negra do Estado de São Paulo (CPDCN), órgão vinculado à Secretaria da
Justiça e Cidadania, tem a finalidade de articular, propor e monitorar políticas
públicas para a defesa dos direitos da comunidade negra.

Segundo o presidente, Ivan Renato de Lima, o Conselho é formado por 32


membros de todo o estado e uma das frentes é o combate ao racismo nas
universidades.

"Temos uma parceria com a Defensoria Pública e o S.O.S Racismo que tem
sido fundamental para fiscalizarmos as denúncias de racismo e de injúria que
chegam até nós", conta.

No caso recente da UFSCar, Ivan afirma que será acompanhado pelo órgão e
que serão cobradas providências.

"Acompanharemos de perto para que práticas arbitrárias como essas deixem


de inibir estudantes que só querem e exigem respeito e igualdade de
oportunidades."
Denúncias de ambos os crimes podem ser feitas pelos números 181 ou 190 da
polícia ou para o CPDCN. "É fundamental [denúncia] porque temos
conhecimentos dos instrumentos jurídicos para garantir a defesa dos direitos
da população negra", finaliza Ivan.

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