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“Só entra autoajuda e Bíblia”: o que se lê (e não se lê) no cárcere

Literatura auxilia na ressocialização de presos, mas é vista com desconfiança por carcereiros, que
decidem quais livros entram nos presídios

por Leandro Aguiar

Sempre que visita o filho encarcerado num dos seis presídios de Ribeirão das Neves, na
Região Metropolitana de Belo Horizonte, Julia* leva a ele um livro. As regras básicas ela conhece:
publicações de capa dura, que façam apologia ao crime ou com conteúdo pornográfico são vetadas.
As regras não escritas, porém, podem variar de um agente penal para outro, e nem sempre
coincidem com o que determina a Lei de Execução Penal (LEP).
Foi assim que, no fim de 2023, quando ela esperava presentear o filho com um exemplar de
“Os velhos marinheiros”, de Jorge Amado, ouviu de um carcereiro que literatura “não estava
entrando” no presídio. Ela quis saber porquê: “não temos autorização”, respondeu o homem. Mas,
então, nenhum livro podia entrar?, tornou a perguntar Júlia. “Só autoajuda e a Bíblia”, concluiu o
agente.
Júlia tentou argumentar: sob certo ponto de vista, os livros ajudavam o filho a passar o
tempo, servindo portanto como uma forma de autoajuda; questionou também se havia uma lista de
livros proibidos e se ficaria registrado que ela tentara entrar com um objeto vetado durante a visita.
Não haveria registro, não havia lista, e tampouco a literatura brasileira era vista pela direção da
unidade como benéfica ao preso. Com estas respostas, e o Jorge Amado debaixo do braço, Júlia,
que por temer represálias ao filho pediu para ter o nome trocado na reportagem, voltou para casa.
Cenas como essa repetem-se em diversos presídios de Minas Gerais, conforme relataram à
Agência Pública assistentes sociais e psicólogas penais que trabalham no sistema carcerário do
estado, bem como familiares de presos e egressos das prisões ouvidos pela reportagem.
Márcia Lopes, XX anos, trabalha há 15 anos como assistente social no sistema prisional de
Minas Gerais. Já foi diretora de atendimento e ressocialização no presídio Bicas 2, em São Joaquim
de Bicas, na região metropolitana de BH, voltado à população LGBTQIA+. Segundo ela, leituras
que não sejam religiosas são consideradas, por muitos policiais penais, como potencialmente
libertadoras e passíveis de “despertar a consciência” do preso, podendo, assim, “comprometer a
ordem e a segurança” nas colônias penais.
“Qualquer ação que envolva prazer, satisfação e conforto para a pessoa privada de liberdade
incomoda a segurança custodial”, resume Márcia.
No complexo penitenciário Estevão Pinto, casa de detenção que abriga mulheres em BH, a
censura aos livros não religiosos atingiu o paroxismo.
Na unidade, o doutor em Direito Virgílio de Mattos coordenou uma pesquisa sobre a
criminalização da pobreza e o encarceramento de mulheres, do que resultou o livro “A
invisibilidade do invisível”. Em 2020, o Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de
Liberdade (GAFPPL) resolveu distribuir a obra na penitenciária, para que as detentas pudessem ler
o que havia sido publicado sobre suas próprias experiências. A entrada do livro foi vetada.
“Livros que falem de política, cartilhas sobre direitos humanos, as publicações que nascem
dos seminários do nosso grupo e que discutem o encarceramento em massa, nada disso os agentes
penitenciários deixam entrar”, afirma Miriam Estefânia dos Santos, XX anos, uma das
coordenadoras do GAFPPL.
Segundo Márcia Lopes, entre as alegações da Polícia Penal ao vetar a entrada de livros está
a de que as brochuras seriam usadas para guardar drogas, suas folhas tornar-se-iam material para a
feitura de cigarros, e que por fim as unidades já contam com bibliotecas onde os presos podem
tomar livros emprestados – a existência de uma biblioteca em cada prisão, com efeito, é uma das
determinações da LEP.
Quanto a este argumento, o mestre em Segurança Pública e Cidadania Kalil Laur, 36 anos,
que trabalha como assistente social num presídio em Teófilo Otoni, faz uma ressalva.
“Muitas unidade não possuem bibliotecas, e, entre a Polícia Penal, prevalece a ideia de que
apenas livros religiosos podem ser aceitos. Consequentemente, os detidos são privados do acesso a
uma variedade de literatura”, conta o pesquisador.

Frestas

No início de 2020, Luan Souza, que aos 39 anos cumpria pena por tráfico de drogas num
presídio em Ribeirão das Neves, preparava-se para prestar o Enem. Para tanto, pediu a sua mãe que
levasse a ele um livro de gramática. Os carcereiros proibiram a entrada do livro, afirmando que
materiais didáticos tinham de passar pela vistoria da escola do presídio – que, no entanto, estava
fora de funcionamento.
A mãe de Luan insistiu, procurou a Diretoria de Humanização do presídio e enfim conseguiu
fazer com que o livro chegasse até o filho, que foi aprovado no Enem no mesmo ano.
José Lino, 48 anos, que desde 2008 trabalha na área educacional do sistema penitenciário de
Minas Gerais e é um dos líderes da categoria, afirma que desavenças entre funcionários da
segurança e do atendimento aos apenados são comuns nas prisões mineiras, o que gera situações
como a vivida por Luan e sua mãe.
“As carreiras que cuidam da ressocialização dos detentos estão relegadas à própria sorte. O
investimento nas prisões, quando há, é para as áreas de repressão. Não há um ponto de equilíbrio
entre a assistência humanizada ao preso e a repressão. Não atoa, os índices de reincidência em
delitos dos egressos continuam tão altos”, reclama Lino.
Mesmo com as barreiras impostas por uma parcela dos agentes penitenciários, há presos e
presas que conseguem acesso à literatura, o que os ajuda não só a passar o tempo e a abater parte de
suas penas por meio de programas de remissão por leitura; em alguns casos, os livros alteram
radicalmente suas perspectivas de vida.
Foi o que aconteceu a Samuel Lourenço Filho, 37 anos, condenado por homicídio no Rio de
Janeiro em 2007.
Antes da prisão, Samuel não era um leitor contumaz; foi no cárcere que, para fugir do ócio,
passou ler diariamente. Como tantos presos, começou pela Bíblia, convertendo-se ao
protestantismo. Poderia ter ficado nisso, mas, em 2008, Samuel trabalhou como bibliotecário da
prisão – ele não tinha acesso à sala dos livros, mas era o responsável por passar a lista das obras
entre os presos, que escolhiam seus títulos preferidos. O sucesso de público, lembra o ex-
bibliotecário, era o autor de autoajuda Augusto Cury.
Um dia, um dos títulos chamou sua atenção: “Crime e castigo”, de Dostoiévski. Iniciou a
leitura para não parar mais. “O que me impressionou foi o retrato da miséria humana. Tudo é muito
verdadeiro, e ler me ajudou a pensar o meu contexto pobre e hostil na prisão. Eu sentia o frio
siberiano, o abafamento dos locais superlotados, a escuridão, o gosto das sopas aguadas… era tudo
como no cárcere. Ele não traz um tom de esperança, mas fala da capacidade de suportar tudo aquilo.
Eu me enxergava ali”, diz.
Terminado o livro, Samuel escreveu a editoras, pedindo a doação de obras que não aquelas
normalmente encontradas na biblioteca da cadeia. Foi atendido algumas vezes, e descobriu outro
livro que o levou a querer registrar também suas experiências, “O Processo”, de Franz Kafka.
“Aquele processo avassalador, que nunca acaba e que não permitia ao sujeito compreender
porque aquilo acontecia com ele… Isso me fez entender que a prisão é uma estrutura que não
sabemos bem de onde vem, mas que ela vai nos fustigar o tempo todo. Diferente do K. [personagem
principal do livro], eu sabia o que estava acontecendo comigo, eu não fui condenado injustamente,
mas a minha pena era desmedida em relação ao que está posto na legislação”
Entretanto, ganhou fama escritor na cela, que chegou a dividir com outros 70 homens.
Escrevia cartas para os colegas analfabetos, ora para suas mães, ou para advogados, e também para
namoradas. Foi assim exercitando o seu estilo de escrita.
Samuel foi aprovado no vestibular de pedagogia quando estava preso, e em 2013 ganhou o
direito a saídas semanais da prisão para assistir aulas. Publicou suas crônicas do cárcere na internet,
e elas chegaram até o escritor Luiz Alberto Mendes. Morto em 2020, Mendes foi ex-detento no
Carandiru e amigo de Dráuzio Varella, sendo o autor de seis livros e colunista, à época, da revista
Trip. Os dois ficaram amigos, e Mendes, que viu em Samuel a veia de escritor, incentivou-o a
seguir no ramo.
Em 2018, um ano depois de alcançar a liberdade condicional, Samuel publicou, por
financiamento coletivo, seu livro de estreia, “Além das grades”, que reúne crônicas e contos.
Na época do lançamento, Samuel estava desempregado. Vendeu todas as 250 unidades num
mesmo dia, e, com o dinheiro, comprou cimento e areia e contratou um pedreiro para reformar a
casa que dividia com a namorada, hoje sua esposa. “A minha ressocialização eu devo, também, à
literatura”, conta.
Vieram mais três livros: “Gangrena”, de poemas, publicado em 2019, o ensaístico
“Ressocializando na cidade do caos”, de 2022, e outro volume de ensaios, “Penitência”, de 2023.
Todos trazem reflexões sobre o cárcere, o crime e a religião.
Samuel trabalha atualmente com projetos sociais voltados para a juventude no Rio de
Janeiro. Pensa em estudar Letras. O último livro que leu (e de que gostou) foi “A fé e o Fuzil”, do
jornalista Bruno Paes Manso.

Rodas de leitura

Em novembro de 2018, o poeta belo-horizontino Ricardo Aleixo aceitou um convite do


professor de literatura Alexandre Amaro para discutir a sua coletânea de poemas “Pesado demais
para a ventania” (Todavia, 2018) numa roda de leitura com internos de um presídio em Sete Lagoas,
na região central de Minas.
“Em um debate com acadêmicos, com outros poetas ou cineastas, sei mais ou menos o que
encontrar – os jargões, as frases feitas, as tiradas, as citações de autores com nomes
impronunciáveis. Já para o encontro com os apenados, fui sem expectativas. Simplesmente não há
como se preparar para isso. Eu apenas fui”, conta o escritor.
Ao ultrapassar os muros da prisão, encontrou leitores curiosos, cheia de perguntas sobre o
que o inspirava a escrever, as dificuldades de se publicar poesia no Brasil, o que era ficção e o que
era biográfico em seus versos. “Eram pessoas que se aplicaram a conversar com os meus poemas.
E, nessa conversa, esses poemas já não eram mais só meus. Sai de lá como quem tivesse
conquistado o Nobel”, lembra Aleixo.
Um ponto memorável deu-se após a leitura de “Poética”, poema de gosto concretista que,
explica o autor, “tira partido da palavra ruir dentro de construir”. Um dos detentos comentou de
pronto: “isso é a nossa vida. Estamos aqui para construir sobre ruínas”.
O comentário impressionou Aleixo. “Me pareceu maravilhoso que o poema tenha servido
para uma pessoa que está pensando a sua vida como matéria de refazimento – alguém que está a
querer outra vida, que quer sair de onde se encontra”, diz.
Também Alexandre ficou tocado pelas palavras, tanto foi assim que, em 2023, publicou um
livro sobre as suas experiências discutindo literatura com detentos de Minas Gerais – e o título do
livro não é outro senão “Construir sobre ruínas – leitura e escrita em ambientes de privação de
liberdade” (Autêntica).
Alexandre, que estudou as relações entre literatura e o cárcere em seu doutorado em Letras,
participava à época, como voluntário, do programa Rodas de Leitura, implementado em Minas
Gerais durante o governo de Fernando Pimentel (PT). A participação de Aleixo, porém, foi um dos
últimos lances do programa. Em 2019, quando Zema (Novo) assumiu o governo, o Rodas de
Leitura deixou de existir.
Mas mesmo sem o apoio do governo do estado, há voluntárias que levam a ficção e a poesia
aos presos e presas. É o caso do “LiLi – Literatura Livre”, projeto de extensão da UFMG iniciado
em 2022 pela professora Nayara Noronha, também autora da novela “Filha” (7Letras, 2023).
Há algum tempo a escritora tinha interesse em organizar um grupo de leitura com detentas.
A ideia era apresentar livros escritos por mulheres que, de alguma forma, dialogassem com as
realidades daquelas pessoas. Nayara passou mais de um ano em contato com a Secretaria de Justiça
de Minas até conseguir autorização para entrar numa unidade prisional, o Centro de Referência à
Gestante Privada de Liberdade, em Vespasiano, na Grande BH.
Como de costume, a maioria dos livros da unidade eram religiosos ou de autoajuda. Para
conseguir literatura produzida por mulheres, Nayara escreveu à editoras em busca de doações.
Conseguiu, e, desde então, uma vez por mês percorre em seu próprio carro os 40km que separam a
sua casa do centro de detenção.
A conversa com as detentas dura cerca de uma hora e meia, e, após a leitura, para
conseguiram o benefício da remição da pena as apenadas têm de escrever um diário com suas
impressões do livro da vez. Também estes diários Nayara deseja transformar em livro.
Alguns títulos causaram forte impressão nas leitoras. Em “Quarto de Despejo”, uma das
presas emocionou-se ao reconhecer em Carolina Maria de Jesus, a autora, uma mulher com a vida
árdua e os dilemas parecidos ao de sua própria mãe; “Tudo é rio”, de Carla Madeira, circulou de
mão em mão inclusive entre as detentas que, por estarem presas provisoriamente (isto é, sem terem
sido condenadas), não podiam participar do programa de remição da pena. Já a poética reflexão
sobre o luto de “Todo o mar vai ser você”, de Glaura Santos, foi o primeiro livro que uma das
presas leu do início ao fim em toda a sua vida.
Flávio Morais, conhecido no sistema carcerário mineiro como “Tio Flávio”, há mais de 10
anos realiza trabalhos voluntários em presídios do estado. Para ele, a literatura é uma meio efetivo
de resgatar o apenado de uma realidade violenta.
“O crime é um assunto corriqueiro nos presídios: quando chega alguém novo, o primeiro
assunto é 'e você, caiu por causa de quê?'. A literatura é algo que pode quebrar esse círculo. Quando
se discute um livro, não se trata mais de uma conversa entre presos, mas entre indivíduos que são
pais, filhos, que são irmãos de alguém. O objetivo é ampliar as perspectivas para além da
criminalidade. Mas falta muito, dentro do sistema, mais projetos como esses”, explica.
Já no livro “Pequeno vocabulário de afetos do cotidiano prisional”, reunião de cartas
comentadas de presos e presas organizada pelo Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e
Direitos Humanos da UFMG, é um detento quem comenta, numa original composição poética, a
importância que a leitura e a escrita têm para ele: “Essa ação provoca a minha reação e me inspira a
exprimir pensamento e sentimento que outrora estavam suprimidos no entre-seco de minha psiquê”.

Outro lado

A policial penal Maristela Esmério, 29 anos, é a diretora de Ensino e Profissionalização do


Departamento Penitenciário de Minas Gerais. Entre as suas atribuições, está a de zelar pelos
programas de remição de leitura nas 172 unidades prisionais do estado.
Em entrevista à Agência Pública, ela disse desconhecer a existência de casos de censura a
livros no sistema carcerário de Minas. Esmério afirmou que não há nenhuma lei ou regimento
interno que respalde o veto à entrada de livros nas prisões. O esforço do Depen, concluiu a diretora,
é “assegurar a diversidade de gêneros literários e autores” disponível às pessoas em privação de
liberdade.
Quanto aos supostos embates entre os técnicos e analistas do sistema penal (assistentes
sociais, psicólogas penais, pedagogas e outros) e os agentes de segurança, a policial penal garantiu
que todos os profissionais trabalham por um mesmo objetivo - “a custódia e a ressocialização” dos
apenados -, não havendo, pois, nenhuma discordância entre as áreas.
No que diz respeito ao fim do projeto Rodas de Leitura, Esmério destacou que ele foi
gestado pelo Serviço Social Autônomo (Servas), entidade sem fins lucrativos que, embora criada e
fomentada pelo governo de Minas, atua de maneira independente, não se tratando de uma
instituição governamental.
O Rodas de Leitura, explicou Esmério, operava em parceria com a administração prisional.
“Projetos costumam ter início, meio e fim”, considerou a diretora, para quem o Rodas de Leitura já
havia cumprido “o seu ciclo”, uma vez que, em sua avaliação, a remição por leitura já está
“consolidada” no estado.
Das 172 unidades prisionais de Minas, informou por fim a diretora, 50 não possuem
bibliotecas em funcionamento.

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