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O Naturalismo

chega ao Brasil
Aluísio Azevedo: o autor das massas
Um caso particular: Raul Pompeia

[...] É preciso ir dando a cousa em pequenas doses [...] Um pouco
de enredo de vez em quando, uma ou outra situação dramática [...]
Depois, as doses de romantismo irão gradualmente diminuindo,
enquanto as de naturalismo irão se desenvolvendo; até que, um


belo dia, sem que o leitor o sinta, esteja completamente habituado
ao romance de pura observação e estudo de caracteres. [...]
AZEVEDO, Aluísio. Apud: GUIMARÃES, Hélio de Seixas.
Os leitores de Machado de Assis. São Paulo: Nanquin/Edusp, 2004. p. 79. (Fragmento).

• Esse texto mostra que, embora estivessem engajados na produção de romances que permitissem o estudo
de caracteres, os escritores tinham consciência da importância de conquistar o interesse do público.
• Para evitar a difícil decisão entre produzir obras para vender — e, portanto, de acordo com as
expectativas dos leitores — ou fazer uma opção radical e adotar a forma literária que mais lhes
agradasse, Aluísio Azevedo tenta conciliar as duas opções e, aos poucos, “educar” o gosto do público.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma

“ aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a


cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns
cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as
saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos


braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o
alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo,
ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força
as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. [...]

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 26. ed. São Paulo: Ática, 1994. p. 35-36. (Fragmento).

 O foco narrativo em 3a pessoa e as descrições são recursos que a linguagem do romance naturalista usa para
sugerir um olhar racional e objetivo para a realidade.
 A descrição dos cenários pretende recriar a realidade de maneira fotográfica, compondo um espaço formado
pela apresentação de várias imagens que se sobrepõem de modo a montar um quadro final bastante preciso.
• Nesse trecho, o narrador usa verbos e
substantivos para mostrar a animalização das
personagens, sendo que os termos escolhidos
podem ser todos associados a um mesmo
campo semântico. Assim, além de fazer
referência às personagens como “machos” e
“fêmeas”, o narrador ainda usa os substantivos
casco, pelo e ventas.
• Para descrever a higiene matinal, seleciona os
verbos fossar e fungar, que normalmente são
utilizados para nomear o ato de farejar ou
revolver a terra realizado por porcos e cães.
• O uso de todos esses termos provoca um efeito
hiperbólico, fazendo com que o resultado da
descrição dê um destaque exagerado para o
Cortiço. Ilustração de Angelo Agostini. Revista Ilustrada, ano 1878. comportamento animalizado das personagens.
A fermentação sanguínea e sensual de O cortiço
 O cortiço foi o último romance de Aluísio Azevedo e também o mais bem acabado. Nesse livro,
seu objetivo principal é demonstrar a tese de que o ser humano é fruto do meio em que vive.
 Dono de uma pedreira e de uma taverna, João Romão constrói em seu terreno umas casinhas
ordinárias, de aluguel barato, onde vêm morar as famílias dos trabalhadores da pedreira. Junto
com ele, mora a negra Bertoleza, trabalhadora incansável, supostamente alforriada, que vive
maritalmente com Romão.
 Ao lado do cortiço, há um sobrado onde mora a família do comendador Miranda. O sobrado
simboliza, na visão de João Romão, a ascensão social tão almejada. Miranda, por sua vez,
abomina a vizinhança.
 O que aconteceria se, naquele ambiente degradado, fosse inserido um homem honesto,
dedicado à família e ao trabalho? A tese a ser demonstrada é a de que o meio determina o
indivíduo. Esse homem honesto, o imigrante português Jerônimo, está portanto previamente
condenado à degradação moral.
“E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido

por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para

dançar. [...] Ela saltou em meio da roda, com os

braços na cintura, rebolando as ilhargas e

bamboleando a cabeça, ora para a esquerda,

ora para a direita, como numa sofreguidão de

gozo carnal, num requebrado luxurioso que a

punha ofegante; já correndo de barriga

empinada; já recuando de braços estendidos, a

tremer toda, como se se fosse afundando num

prazer grosso que nem azeite, em que se não

toma pé e nunca se encontra fundo. [...]”


Moradores à entrada de um cortiço no Rio de Janeiro, c. 1910.
 No Brasil, o Naturalismo conquistou vários seguidores. O principal deles foi Aluísio
Azevedo, que deu início ao movimento quando publicou, em 1881, o romance O mulato.

 Também tem destaque Júlio Ribeiro, que publicou, em 1888, A carne, narrativa que
TRADIÇÃO NATURALISTA NO BRASIL

tematiza um caso de histeria patológica. No romance, a personagem Lenita é dominada


por instintos de natureza sexual, comportando-se de modo animalesco. A obra provocou
violentas reações da sociedade da época, despreparada para abordagens mais
explícitas de temas ligados à sexualidade.

 Adolfo Caminha focaliza a decadência da sociedade de Fortaleza na história de Maria


do Carmo, protagonista do romance A normalista (1893), moça educada que é seduzida
pelo padrinho. Em O bom crioulo (1895), desenvolve a temática do homossexualismo
entre marinheiros.

 Houve ainda Domingos Olímpio, que em Luzia Homem (1903) trata da condição humana
e social do sertanejo; e Inglês de Souza, que procura expor os aspectos morais da
evolução de um sacerdote na sua obra mais conhecida, O missionário(1888).
Um caso particular:
Raul Pompeia
 Algumas vezes a história literária dá exemplos de autores que se
imortalizam pela publicação de uma obra em especial. Esse é o caso
de Raul Pompeia e do romance O Ateneu (1888), consagrado pela
crítica como uma das obras mais inteligentes da literatura brasileira.

 Com o subtítulo de “Crônica de saudades”, o livro conta a história


da formação do menino Sérgio no internato Ateneu e se assemelha
muito a um romance de memórias. O romance se diferencia das
narrativas da época por apresentar um foco narrativo em primeira
pessoa e por assumir um tom reflexivo que o afasta da objetividade.
“Vais encontrar o mundo”, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. “Coragem para a
luta.” Bastante experimentei depois a verdade desse aviso, que me despia, num gesto, das
ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor
doméstico, diferente do que se encontra fora.
[...] Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de nutrida
reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o estabelecimento,
pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar
com artigos de última remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na
preferência dos pais; sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamações o
bombo vistoso dos anúncios. [...]
 A escola funciona, no livro, como um microcosmo da sociedade. Assim como ocorria
no mundo burguês, para Aristarco, o diretor do colégio, o valor maior era o dinheiro; o
prestígio dos alunos, portanto, vinha da riqueza de suas famílias.
POMPEIA, Raul.
 As memórias de Sérgio, em O Ateneu, podem ser vistas como um contraponto literário
O Ateneu. 12. ed. São Paulo:
a outras célebres memórias: as de Brás Cubas. Ática. p. 11-12. (Fragmento)
Em uma favela à beira do rio Tietê, no
bairro do Canindé (SP), Carolina Maria de
Jesus registrava em cadernos a história de
uma mulher brasileira, negra e favelada,
lutando para sobreviver e sustentar a
família. Sua voz, no livro Quarto de despejo,
revela de modo forte e sincero a realidade
daqueles que enfrentam os obstáculos
impostos por uma sociedade cruel. A
semelhança entre sua vida e a das
personagens de O cortiço não é mera
coincidência: é o retrato das injustiças
sociais que, ao longo do tempo, só se
agravam em nosso país.
Carolina de Jesus em posto para autógrafo no cruzamento da Avenida Almirante Barroso com Rua México, no
centro do Rio de Janeiro, quando do lançamento da edição de bolso de sua obra Quarto de despejo.
Diário de uma favelada brasileira

15 DE JUNHO DE 1955 – Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia


comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos
impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de
vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.
Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei
com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do
papel. Recebi 65 cruzeiros. Comprei 20 de carne. 1 quilo de toucinho e 1 quilo de
çucar e seis cruzeiros de queijo. E o dinheiro acabou-se.

JESUS, Carolina de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed.


São Paulo: Ática, 1999. p. 60. (Fragmento).
Diário de uma favelada brasileira
21 DE JUNHO [...] Todos os dias é a mesma luta. Andar igual um judeu errante atraz
de dinheiro, e o dinheiro que se ganha não dá pra nada. Passei no Frigorifico, ganhei
uns ossos. Quando eu saí a Vera recomendou-me trazer os sapatos. [...] Percorri
varias ruas e não havia papel. Quando ganhei cruzeiros, pensei: já dá para pagar os
sapatos da Vera. Mas Vera já estava idealizando o cardapio de domingo. [...] Catei
mais um pouco de papel e recebi 10 cruzeiros. Fiquei com 71 cruzeiros. Dei 30 para
os sapatos, fiquei com 41. E não ia dar para comprar café, pão, açucar e arroz e
gordura. Pensei nos ossos. Eu ia fazer uma sopa. Tem um pouco de arroz, um pouco
de macarrão. Eu misturo tudo e faço uma sopa. E a Vera se quizer comer come, se
não que se aperte. A epoca atual não é de ter preferencia e nem nojo. [...]
JESUS, Carolina de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed.
São Paulo: Ática, 1999. p. 60. (Fragmento).
Diário de uma favelada brasileira
25 DE JUNHO [...] – Ouvi as crianças dizendo que estavam brigando. Fui ver. era a
Nair e a Meiry. A Nair é branca. A Meiry é preta. Já faz tempo que a Meiry anda
prometendo que vai bater na Nair. A Meiry é temida porque anda com gilete. E ela
foi bater na Nair e apanhou. A Nair rasgou-lhe as roupas , deixando-lhe nua. (...)
Atualmente as crianças não mais emocionam quando vê uma mulher nua. Já
estão habituadas. As crianças acham que nas mulheres os corpos são iguais. A
diferença é a cor. Os meus filhos vem perguntar-me porque é que o corpo da mulher
tem isto ou aquilo. Eu finjo que não compreendo estas perguntas incomodas. Eles
dizem:
– A mamãe é boba. Ela não compreende nada.
JESUS, Carolina de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed.
São Paulo: Ática, 1999. p. 60. (Fragmento).
“Vidas de Carolina”, curta dirigido por Jéssica Queiroz. Lançado no ano do centenário de Carolina Maria de Jesus (2014).
Quarto de desepejo, Maria Carolina de Jesus

JESUS, Carolina de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed.


São Paulo: Edição Popular.
Quarto de desepejo, Maria Carolina de Jesus

JESUS, Carolina de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed.


São Paulo: Edição Popular.

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