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AULAS ESPECIAIS

PORTUGUÊS
AS OBRAS DO ITA

SEMINÁRIO DOS RATOS


1. VIDA Procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São
Paulo. Além disso, presidiu a Cinemateca Brasileira.
Os livros de Lygia Fagundes Telles foram publicados
Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo, no dia
em diversos países e suas obras foram adaptadas para o
19 de abril de 1923. Filha do promotor Durval de Azevedo
cinema, teatro e tevê. Ela foi retratada no filme Lygia, uma
Fagundes e da pianista Maria do Rosário Silva Jardim de
Escritora Brasileira, de 2017, realizado pela equipe da
Moura, passou a infância em diversas cidades do interior,
TV Cultura. Seu acervo pessoal está sob tutela do Instituto
por exigência do trabalho do pai.
Moreira Salles.
Retornou à capital, fez o curso fundamental no
Lygia Fagundes Telles é membro da Academia
Instituto de Educação Caetano de Campos. Em seguida,
Brasileira de Letras, da Academia Paulista de Letras e do
ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São
PEN Club do Brasil. É a quarta ocupante da Cadeira nº
Francisco, onde se formou. Quando estudante do pré-
16, honra recebida em 1987.
jurídico, cursou a Escola Superior de Educação Física,
pertencente à mesma Universidade de São Paulo. A alta literatura produzida por ela evidencia uma
indissociável fusão entre realidade e ficção. Sua obra, que
Em 1947, casou-se com o jurista Goffredo Telles
trata de temas universais, revela também uma grande
Júnior, com quem teve um filho, Goffredo da Silva Telles
perplexidade diante da realidade brasileira, e Lygia
Neto, cineasta, que lhe deu as duas netas: Margarida e
Fagundes Telles não se omitiu diante de injustiças
Lúcia, mãe de sua bisneta, Marina. Em 1960, separou-se
presentes no nosso cotidiano.
do marido e, em 1963, já divorciada, casou-se com Paulo
Emílio Salles Gomes, crítico de cinema. Em uma entrevista, ela afirmou essa preocupação
sempre presente em suas obras: “Meu texto está engajado
O interesse de Lygia Fagundes Telles por literatura
nessa realidade de desigualdade e injustiça total; quando
despertou cedo. Aos 15 anos, com auxílio paterno, já tinha
o Brasil tiver mais creches e escolas, terá menos hospitais
publicado seu primeiro livro de contos, Porão e Sobrado.
e menos cadeias”. Sobre sua própria condição de escritora,
Estreou oficialmente na literatura com o livro de contos
num país que desvaloriza a produção intelectual, ela
Praia Viva (1944). Seu primeiro romance, Ciranda de
afirmou: “A proximidade da morte dá mais medo num
Pedra (1954), foi posteriormente adaptado para uma
país como este, onde viver é artigo de luxo”1. 
novela na TV Globo. Com essa obra, Lygia alcançou a
maturidade literária.
Lygia Fagundes Telles se tornou uma autora
consagrada como atesta o grande número de prêmios
2. “SEMINÁRIO DOS RATOS” (1977)
recebidos ao longo de sua carreira literária. Pelo livro de
contos Seminário dos Ratos, de 1977, recebeu o Prêmio
PEN Clube do Brasil. Sua consagração decisiva ocorreu Este conto pode ser considerado uma narrativa de
com o Prêmio Camões (2005), distinção maior em língua testemunho, que metaforiza o que ocorria no Brasil na
portuguesa pelo conjunto de obra. época do governo militar.
A bem-sucedida trajetória literária de Lygia Fagundes
1 https://piaui.folha.uol.com.br/materia/bela-engajada-e-do-laia-laia/ Acesso
Telles ocorreu paralelamente com sua carreira como
em 25/6/2020
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Nele, é notável a presença de ambiguidade. Já no do livro, em 1977, durante o governo do general Ernesto
título o sentido duplo se presentifica, pois o termo Geisel, quando a ditadura militar já se encaminhava
“seminário” pode se referir tanto a uma reunião que versa lentamente para a distensão política.
sobre ratos como a uma comandada pelos próprios
No conto, há referência a um “crepúsculo”, que
roedores.
parece aludir ao começo da dissolução da ordem
Essa ambiguidade torna possível uma leitura alegórica autoritária vigente na época e a um possível alvorecer,
do conto, que apontaria para a possibilidade de uma significativo da instauração de uma nova ordem de coisas,
transformação social capaz de subverter a ordem do poder representado pelo casarão iluminado do final do conto.
instaurado, no caso o regime ditatorial.
O espaço do conto é um casarão no campo,
A epígrafe do conto traz os seguintes versos de luxuosamente restaurado. Sua decoração revela a falta de
Drummond de Andrade: “Que século, meu Deus! – sobriedade dos convidados do seminário e seu apego a
exclamaram os ratos/e começaram a roer o edifício”. luxo e excessos patrocinados pelo dinheiro público, em
Nela, há duplo sentido, pois, apesar de ratos estarem contraste com a situação de desamparo da população
personificados, atuam como animais destruidores. famélica do país.
No conto, a ambiguidade se apresenta no fato de os Naquele lugar isolado, planeja-se a ocorrência do “VII
ratos, que começam atuando como ferozes animais, Seminário”, em que convidados se reúnem para
terminarem, por meio de um processo de personificação, debaterem estratégias para dar um fim a uma praga de
gerindo o seminário de que antes eram tema. Essa roedores. Coordenado pelo Secretário do Bem-Estar
ambiguidade sugere que não há diferenciação entre Público e Privado e seu subordinado, o Chefe das
animais-personificados e homens-animalizados. Relações Públicas, o grupo de convidados é formado pelo
Assessor da Presidência da RATESP, o Diretor das
O conto é narrado em terceira pessoa. Por meio de
Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas, a
um narrador onisciente, é apresentado um relato que
Delegação Americana (composta pelo Delegado
denuncia a ineficiência de nossas estruturas político-
Americano, de Massachusetts, acompanhado de sua
burocráticas e ocorre o desvelamento da mentalidade
secretária e um guarda-costas). Na casa, encontram-se
desprezível dos governantes da época e do desdém que
também o Cozinheiro-Chefe e outros empregados. Todos
eles sentem pela população desprivilegiada e oprimida.
apresentados de forma caricatural.
Há algo de assustador no conto. Como o momento
O Chefe das Relações Públicas é “um jovem de baixa
dramático em que o Cozinheiro-Chefe vê semelhança
estatura, atarracado, sorriso e olhos extremamente
entre um rato e um humano, ou, no final do conto, em que
brilhantes”, ruboriza-se com facilidade, trata seu superior
o Chefe das Relações Públicas supõe ter ouvido roedores
com deferência, é carreirista, tanto que fez um “curso de
reunidos num debate. É justamente a presença do insólito
inglês para executivo”, “domina o castelhano” e repete
que colabora para a persistência de uma indefinição entre
sempre a expressão “Bueno”. O uso dessa palavra
humanos e roedores.
evidencia sua participação em governos militares da
As ações do conto se desenvolvem numa curta América do Sul (Chile e Argentina). Apresenta deficiência
duração temporal. Começa por volta das 18 horas, e uma auditiva, sendo que seu problema de audição faz com que
hora depois ocorre uma interrupção brutal, que põe fim a ele não perceba a chegada dos ratos invasores, o que é
um jantar planejado como abertura dos trabalhos. risível, considerando seu cargo.
No dia seguinte, de acordo com um depoimento dado O Secretário do Bem-Estar Público e Privado é um
pelo Chefe das Relações Públicas, os ratos tinham-se homem descorado e flácido, de calva úmida e mãos
apossado definitivamente da residência onde ocorreria um acetinadas, tem o pé direito calçado, mas o esquerdo
seminário que, ironicamente, tinha sido planejado para metido num grosso chinelo de lã com “debrum de
combate de uma praga de roedores que infestava o país. pelúcia”, sua voz é “branda, com um leve acento
Esse percurso temporal pode ser interpretado lamurioso”. É a favor de que informações negativas sobre
alegoricamente, associando-o ao momento da publicação as mazelas sociais sejam omitidas, inclusive, orienta o

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Relações Públicas, seu subordinado, a esconder os As personagens têm uma orientação ideológica
problemas nacionais de um convidado estrangeiro. É autoritária. Alguns tiveram participação efetiva no regime
desconfiado, quase paranoico, teme que o delegado instalado no Brasil em 1964, bem como em outros
americano instale um gravador para espioná-lo. Ouve governos militares da América Latina. Alguns mostram
muito bem, por isso é quem primeiro percebe que há algo medo de perder o poder e de que seja instaurada uma
errado e tem um pé enfermo, acometido pela gota. Essa sociedade democrática e justa, como quando o Relações
dificuldade em se locomover, considerando sua função de Públicas lança um olhar suspeitoso para uma estátua da
organizar o evento, evidencia um humor irônico, pois justiça empoeirada que decorava a mansão recém-restau-
acaba por sugerir sua incapacidade de manter-se firme em rada.
seu papel de autoridade.
Pode-se dividir o conto em duas partes, referentes
O Delegado de Massachusetts é apresentado como cada uma delas a um momento. No primeiro, é
“um técnico em ratos”, mas também como um “expert em apresentado o Secretário, que se encontra recluso em seu
jornalismo eletrônico”. Sua presença não é bem-vista pelo gabinete, acometido de um ataque de gota. Ele pede
organizador do seminário, pois ele poderia desejar divulgar informações sobre o andamento dos preparativos para o
as mazelas nacionais nos EUA. Ele acha genial a escolha seminário ao Relações Públicas. No meio do diálogo,
da mansão no campo para o evento e, antes da invasão dos ocorre um forte barulho e o Chefe das Relações Públicas
roedores, aproveita bem o conforto da piscina térmica e da vai investigar de onde o ruído assombroso proveio.
água de coco, ao lado de sua secretária, “de cabelos presos
Num segundo momento, o Relações Públicas é
no alto por um laçarote de bolinhas amarelas”. É protegido
interpelado por convidados nos corredores da casa,
por um guarda-costas, descrito como “um ruivo de terno
também preocupados com o que ouviram. Após tê-los
xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado”.
tranquilizado, o Relações Públicas depara-se com o
O Assessor de Imprensa sofreu um pequeno acidente Cozinheiro-Chefe, que está muito assustado por ter
na noite anterior, sua preocupação é que o seminário seja presenciado um ataque feroz de ratos à cozinha.
um espetáculo midiático de final apoteótico. Impossibili-
Segue-se, então, a narração da invasão de roedores
tado de ir ao lugar do evento, dispõe-se a fazer sua tarefa
que termina na completa destruição dos cômodos da casa
por telefone.
de campo. Os ratos são destrutivos, roem dos fios de
O Diretor das Classes Armadas e Desarmadas “vinha telefone aos motores dos automóveis. Autoridades e
com seu chambre de veludo verde”, enorme como uma empregados fogem, somente o Relações Públicas
“montanha veludosa”. Quando inicia a invasão dos ratos, permanece ali, por certo tempo, escondido dentro de uma
há um enorme barulho e é dessa forma que ele sai para geladeira, em posição fetal, completamente desamparado.
saber do que se tratava. O narrador comenta que, à
No desfecho do conto, o Relações Públicas dá um
semelhança de um animal, talvez um roedor, ele “farejou
depoimento a autoridades, contando que ouviu murmúrios
o ar”.
vindos da sala de reunião. Eram os ratos que estavam
O Cozinheiro-Chefe é apresentado traumatizado pelo reunidos de portas trancadas. Relata também que, quando
ocorrido: “esbaforido, sem o gorro e com o avental saiu correndo pelo campo, o casarão estava iluminado.
rasgado”. Também há menção a sua ajudante de cozinha,
A ironia é um recurso estilístico que se evidencia no
única que no conto tem nome próprio: Euclídea. Os
conto. Por meio dela, critica-se a incapacidade do grupo
demais trabalhadores da casa não são nomeados.
político que está no poder. Também é ironizada a pretensa
As personagens do conto são alegóricas, não têm sofisticação desse grupo, obtida com o desperdício do
nomes próprios e, em algumas passagens, apresentam uma dinheiro público. As descrições evidenciam cafonice nas
ou outra característica de roedores. São referidas pelo vestimentas das personagens e no mobiliário da casa em
cargo que ocupam, designado em inicial maiúscula. que se reúnem.
Representam, na sua maioria, autoridades públicas,
A invasão dos ratos subverte a ordem dos
caracterizadas pela ineficiência de suas ações e apego ao
acontecimentos. A entrada feroz dos roedores em cena faz
luxo proporcionado pelo dinheiro público.
com que desmorone toda a ordem até então instituída. O
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Cozinheiro revela, horrorizado, ao Relações Públicas José Castello esclarece, contudo, que esse livro não
detalhes da tomada de poder dos roedores. A imagem final pode ser reduzido a mero retrato do mundo, pois essa seria
de “Seminário dos Ratos” sintetiza a lição maior desse uma leitura empobrecedora para a escrita de Lygia Fagundes
conto: a inevitável mudança de posições, em vez de um Telles, que efetua “uma escavação sutil sob a crosta da
seminário sobre ratos, tem-se um seminário protagonizado existência”. Assim, segundo ele, qualquer tentativa de
por roedores. classificação desse livro a partir de categorias como
“narrativa sociológica”, “realismo mágico”, acaba por ser
No conto “Seminário dos Ratos”, constata-se que as
aprisionadora. Para ele, são as “entrelinhas – e não o político
coisas mudam e que quem ocupa a posição passiva de
ou social – (...) o verdadeiro objeto de sua escrita” (p. 171).
objeto, em determinado momento, pode ocupar a posição
de sujeito. A canção de Chico Buarque, “Gota d’água”,
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
referida no texto, sugere a iminência da transformação da
ordem instituída.
BOSI, Alfredo. Narrativa e resistência. In: Literatura e
A tomada de poder pelos ratos produz uma hesitação, resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
desencadeada pela mistura de elementos da dimensão
racional e da irracional. O que é narrado já não é mais CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. São
apenas do domínio do conhecido, abrindo-se assim para a Paulo: Prancom. n. 5, 1998.
possível caracterização do conto como pertencente ao PAES, José Paulo. Ao encontro dos desencontros. In: IMS
gênero fantástico. – Instituto Moreira Salles. Cadernos de Literatura
José Castello, no posfácio do livro “Seminário dos Brasileira, n. 5: Lygia Fagundes Telles. São Paulo: IMS,
Ratos” (TELLES, 2009), afirma que os contos reunidos 1998, p. 75.
nessa obra “desenham uma difícil relação entre o homem
TELLES, Lygia Fagundes. Seminário dos Ratos, posfácio
e o poder” e que, pelo fato de a escrita e publicação do
de José Castello. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
livro terem ocorrido no momento em que a ditadura
militar arriscava passos modestos de abertura política, os TODOROV, Tzvetan.  Introdução à literatura
contos foram lidos “como metáforas de uma realidade fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello, 2. ed., São
ainda obscura, mas que começava a se esgarçar” (p. 171). Paulo: Perspectiva, 1992.

Exercícios
1. O conto “Seminário dos Ratos”, de Lygia Fagundes 3. No conto “Seminário dos Ratos”, há uma referência à
Telles, publicado no livro homônimo em 1977, pode censura. Comente-a.
ser lido como uma narrativa alegórica. Explique.

2. No conto “Seminário dos Ratos”, de Lygia Fagundes


Telles, publicado no livro homônimo em 1977, o que
revelam as descrições da roupa e do casarão em que
ocorrem as ações da narrativa.

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RESOLUÇÃO
PORTUGUÊS
AS OBRAS DO ITA

SEMINÁRIO DOS RATOS


1) Esse conto utiliza elementos insólitos, como a 2) A decoração do casarão denota falta de sobriedade dos
personificação de ratos, que de tema de um seminário participantes do seminário, e seu apreço a luxos e
passam a protagonizá-lo, para a ineficiência do regime excessos proporcionados pelo dinheiro público.
militar na resolução de problemas cruciais para a
sociedade brasileira da época. [Como afirma a própria 3) No conto “Seminário dos Ratos”, o Secretário do
autora, no conto “Seminário dos Ratos”, “diz uma Bem-Estar Público e Privado instrui o Chefe das
personagem: ‘A situação está sob controle’. Nessa Relações Públicas de que somente informações
hora, um rato atravessa a sala. É a metáfora exata do positivas sobre a condição sociopolítica do país
que acontecia naquela época do governo militar!” deviam ser veiculadas, tanto no âmbito nacional como
(Cadernos de literatura brasileira: Lygia Fagundes no estrangeiro. Apenas informações que podiam
Telles. São Paulo: Prancom. n. 5, 1988)]. engrandecer o país deviam ser divulgadas, as mazelas
deviam ser ocultadas.

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