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PORTUGUÊS
AS OBRAS DO ITA
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Relações Públicas, seu subordinado, a esconder os As personagens têm uma orientação ideológica
problemas nacionais de um convidado estrangeiro. É autoritária. Alguns tiveram participação efetiva no regime
desconfiado, quase paranoico, teme que o delegado instalado no Brasil em 1964, bem como em outros
americano instale um gravador para espioná-lo. Ouve governos militares da América Latina. Alguns mostram
muito bem, por isso é quem primeiro percebe que há algo medo de perder o poder e de que seja instaurada uma
errado e tem um pé enfermo, acometido pela gota. Essa sociedade democrática e justa, como quando o Relações
dificuldade em se locomover, considerando sua função de Públicas lança um olhar suspeitoso para uma estátua da
organizar o evento, evidencia um humor irônico, pois justiça empoeirada que decorava a mansão recém-restau-
acaba por sugerir sua incapacidade de manter-se firme em rada.
seu papel de autoridade.
Pode-se dividir o conto em duas partes, referentes
O Delegado de Massachusetts é apresentado como cada uma delas a um momento. No primeiro, é
“um técnico em ratos”, mas também como um “expert em apresentado o Secretário, que se encontra recluso em seu
jornalismo eletrônico”. Sua presença não é bem-vista pelo gabinete, acometido de um ataque de gota. Ele pede
organizador do seminário, pois ele poderia desejar divulgar informações sobre o andamento dos preparativos para o
as mazelas nacionais nos EUA. Ele acha genial a escolha seminário ao Relações Públicas. No meio do diálogo,
da mansão no campo para o evento e, antes da invasão dos ocorre um forte barulho e o Chefe das Relações Públicas
roedores, aproveita bem o conforto da piscina térmica e da vai investigar de onde o ruído assombroso proveio.
água de coco, ao lado de sua secretária, “de cabelos presos
Num segundo momento, o Relações Públicas é
no alto por um laçarote de bolinhas amarelas”. É protegido
interpelado por convidados nos corredores da casa,
por um guarda-costas, descrito como “um ruivo de terno
também preocupados com o que ouviram. Após tê-los
xadrez, tipo um pouco de boxer, meio calado”.
tranquilizado, o Relações Públicas depara-se com o
O Assessor de Imprensa sofreu um pequeno acidente Cozinheiro-Chefe, que está muito assustado por ter
na noite anterior, sua preocupação é que o seminário seja presenciado um ataque feroz de ratos à cozinha.
um espetáculo midiático de final apoteótico. Impossibili-
Segue-se, então, a narração da invasão de roedores
tado de ir ao lugar do evento, dispõe-se a fazer sua tarefa
que termina na completa destruição dos cômodos da casa
por telefone.
de campo. Os ratos são destrutivos, roem dos fios de
O Diretor das Classes Armadas e Desarmadas “vinha telefone aos motores dos automóveis. Autoridades e
com seu chambre de veludo verde”, enorme como uma empregados fogem, somente o Relações Públicas
“montanha veludosa”. Quando inicia a invasão dos ratos, permanece ali, por certo tempo, escondido dentro de uma
há um enorme barulho e é dessa forma que ele sai para geladeira, em posição fetal, completamente desamparado.
saber do que se tratava. O narrador comenta que, à
No desfecho do conto, o Relações Públicas dá um
semelhança de um animal, talvez um roedor, ele “farejou
depoimento a autoridades, contando que ouviu murmúrios
o ar”.
vindos da sala de reunião. Eram os ratos que estavam
O Cozinheiro-Chefe é apresentado traumatizado pelo reunidos de portas trancadas. Relata também que, quando
ocorrido: “esbaforido, sem o gorro e com o avental saiu correndo pelo campo, o casarão estava iluminado.
rasgado”. Também há menção a sua ajudante de cozinha,
A ironia é um recurso estilístico que se evidencia no
única que no conto tem nome próprio: Euclídea. Os
conto. Por meio dela, critica-se a incapacidade do grupo
demais trabalhadores da casa não são nomeados.
político que está no poder. Também é ironizada a pretensa
As personagens do conto são alegóricas, não têm sofisticação desse grupo, obtida com o desperdício do
nomes próprios e, em algumas passagens, apresentam uma dinheiro público. As descrições evidenciam cafonice nas
ou outra característica de roedores. São referidas pelo vestimentas das personagens e no mobiliário da casa em
cargo que ocupam, designado em inicial maiúscula. que se reúnem.
Representam, na sua maioria, autoridades públicas,
A invasão dos ratos subverte a ordem dos
caracterizadas pela ineficiência de suas ações e apego ao
acontecimentos. A entrada feroz dos roedores em cena faz
luxo proporcionado pelo dinheiro público.
com que desmorone toda a ordem até então instituída. O
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Cozinheiro revela, horrorizado, ao Relações Públicas José Castello esclarece, contudo, que esse livro não
detalhes da tomada de poder dos roedores. A imagem final pode ser reduzido a mero retrato do mundo, pois essa seria
de “Seminário dos Ratos” sintetiza a lição maior desse uma leitura empobrecedora para a escrita de Lygia Fagundes
conto: a inevitável mudança de posições, em vez de um Telles, que efetua “uma escavação sutil sob a crosta da
seminário sobre ratos, tem-se um seminário protagonizado existência”. Assim, segundo ele, qualquer tentativa de
por roedores. classificação desse livro a partir de categorias como
“narrativa sociológica”, “realismo mágico”, acaba por ser
No conto “Seminário dos Ratos”, constata-se que as
aprisionadora. Para ele, são as “entrelinhas – e não o político
coisas mudam e que quem ocupa a posição passiva de
ou social – (...) o verdadeiro objeto de sua escrita” (p. 171).
objeto, em determinado momento, pode ocupar a posição
de sujeito. A canção de Chico Buarque, “Gota d’água”,
3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
referida no texto, sugere a iminência da transformação da
ordem instituída.
BOSI, Alfredo. Narrativa e resistência. In: Literatura e
A tomada de poder pelos ratos produz uma hesitação, resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
desencadeada pela mistura de elementos da dimensão
racional e da irracional. O que é narrado já não é mais CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. São
apenas do domínio do conhecido, abrindo-se assim para a Paulo: Prancom. n. 5, 1998.
possível caracterização do conto como pertencente ao PAES, José Paulo. Ao encontro dos desencontros. In: IMS
gênero fantástico. – Instituto Moreira Salles. Cadernos de Literatura
José Castello, no posfácio do livro “Seminário dos Brasileira, n. 5: Lygia Fagundes Telles. São Paulo: IMS,
Ratos” (TELLES, 2009), afirma que os contos reunidos 1998, p. 75.
nessa obra “desenham uma difícil relação entre o homem
TELLES, Lygia Fagundes. Seminário dos Ratos, posfácio
e o poder” e que, pelo fato de a escrita e publicação do
de José Castello. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
livro terem ocorrido no momento em que a ditadura
militar arriscava passos modestos de abertura política, os TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura
contos foram lidos “como metáforas de uma realidade fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello, 2. ed., São
ainda obscura, mas que começava a se esgarçar” (p. 171). Paulo: Perspectiva, 1992.
Exercícios
1. O conto “Seminário dos Ratos”, de Lygia Fagundes 3. No conto “Seminário dos Ratos”, há uma referência à
Telles, publicado no livro homônimo em 1977, pode censura. Comente-a.
ser lido como uma narrativa alegórica. Explique.
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RESOLUÇÃO
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