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LEITURA EM CONTRAPONTO DA FÁBULA A CIGARRA E A

FORMIGA

Alexandre Ribeiro de Lima 1 - PUCPR

Grupo de Trabalho - Didática: Teorias, Metodologias e Práticas


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Muito apreciado pelas crianças atualmente, o gênero fábula em sua gênese não tinha este
público como alvo, e sim os adultos pertencentes a burguesia nos períodos históricos em que
circulava inicialmente. De origem incerta, atribui-se a Esopo, um escravo da Grécia Antiga, as
primeiras produções do gênero. Esse servo recolheu da oralidade e pôs no papel as produções.
Depois dele outros fabulistas seguiram o mesmo exemplo, entre eles o francês La Fontaine,
França. Considerado o modernizador do gênero, ele publicou de forma versificada as fábulas,
isso facilitou memorização e sua reprodução nas cortes francesas da época. Desde sua origem
a fábula se utilizou de animais para representar ações humanas, e como as pessoas mudam ao
longo dos tempos o gênero precisou se atualizar, isso explica a sua manutenção e, mesmo
depois de tantos anos de seu surgimento, escritores como Monteiro Lobato e, mais
recentemente, Glória Kirinus, ainda utilizaram esse gênero em suas produções literárias,
porém atualizadas de acordo com os respectivos contextos sócio históricos. Mesmo sendo
considerado um gênero voltado às crianças, a fábula apresenta reflexões importantes também
ao público adulto. Neste artigo, a evolução do gênero fábula é examinada por meio de um
procedimento de leituras em contraponto de quatro versões diferentes da fábula A cigarra e a
formiga, ou seja, as primeiras versões dessa história são comparadas com produções mais
recentes. Analisa-se também as concepções humanas representadas nas fábulas com o passar
dos anos a partir do recorte escolhido. Esse estudo conta com teorias que envolvem
concepções pós modernas da sociedade.

Palavras-chave: Literatura infantil. Fábula. Leitura em contraponto.

Introdução

Este estudo tem como objetivo revisitar a narrativa clássica A cigarra e a formiga.
Esse procedimento de resgate dos textos antigos é uma prática comum na literatura infantil
brasileira, principalmente depois de Monteiro Lobato. Este, já no início da década de XX no

1
Graduado em Letras Português pela PUC-PR. Especialista em Literatura brasileira e história nacional e
professor na rede particular de ensino. E-mail: parisalexandre80@gmail.com

ISSN 2176-1396
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Brasil, fazia uma atualização dos personagens clássicos, veja-se, por exemplo, a sua primeira
obra escrita para crianças Reinações de Narizinho, na qual é dita que as histórias estão
“emboloradas” e que é necessário compor outras. Foi o que fez o escritor. De lá para cá, esse
método foi adotado pela maioria dos escritores que direcionam a sua produção literária ao
público infantil. Este é um procedimento pós-moderno de criação, o qual não é novo, ocorre
desde os mais antigos escritores que recolheram da tradição oral as versões de suas histórias,
exemplo disso são os irmãos Grimm, La Fontaine, entre outros.
Neste artigo, o gênero selecionado foi a fábula, desse conjunto de textos A cigarra e
formiga é a narrativa escolhida. Sabe-se que este gênero foi bem aceito pela sociedade desde
sua gênese. O corpus selecionado para estudo está na obra de Esopo, La Fontaine, Monteiro
Lobato e Glória Kirinus. Pretende-se responder ao seguinte questionamento: A fábula A
cigarra e a formiga tem eco na sociedade atual, mesmo tendo sido criada há tantos anos? A
hipótese é de que sim, porém ela sofreu ajustes ao longo dos anos, para ser adaptada a
realidade de cada contexto sócio histórico no qual foi inserida. Esta proposição será testada
por meio de um contraponto entre as produções de séculos anteriores e atual a luz da teoria do
pós-modernismo e da obra Leituras em contraponto: Novos jeitos de ler, da estudiosa Sueli
Cagneti.

Da Grécia ao Brasil

Alguns estudos indicam que o gênero fábula surgiu inicialmente entre os sumérios,
isso porque foram identificados textos que datam do século XVIII a. C., nos quais animais
antropomorfizados, parecidos com o que se vê nas fábulas gregas e indianas, foram
identificados. De qualquer maneira, a fábula segue uma necessidade histórica do homem de
contar a sua história por meio da narrativa, o que muitas vezes se dá através de símbolos e
imagens. Nesse sentido, o gênero fabular consegue atender àquela necessidade.
A maioria dos estudos aponta para Grécia como berço da fábula com Esopo. A
literatura especializada no assunto define o gênero como uma narrativa breve e alegórica, na
qual os personagens são animais dotados de capacidade de pensar e agem como seres
humanos. Como a maioria das narrativas antigas, ela surgiu inicialmente na oralidade, até ser
escrita e tornar-se popular na sociedade grega.
Devido ao seu caráter de intervenção social, as histórias de Esopo sempre
apresentavam uma moral no final, pois devia mostrar, por meio do bestiário, a maneira ideal
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que a sociedade devia se comportar. Passados alguns anos o francês Jean de La Fontaine faz
uma revisitação do clássico grego e recompôs as fábulas, porém agora na forma de versos e
sem finalizar com a moral explicitamente expressa. Considerado o pai da fábula moderna, ele
é o responsável por dar uma aparência mais literária ao gênero.
No Brasil a fábula chegou com Monteiro Lobato na segunda década do século XX.
Sabe-se que o país passava por um período de consolidação (ou descoberta?) de sua
identidade cultural, que o diga os responsáveis pela Semana de Arte Moderna. Nesse
contexto, a fábula se encaixou perfeitamente, pois o autor se preocupou em adaptar as
histórias clássicas e conhecidas à realidade sócio histórica nacional e ao (novo) público leitor,
as crianças.
Com esta atitude, Lobato reforça a importância do gênero fábula para vida do homem
e essa importância se mantém até os dias atuais. É o que se pretende mostrar neste estudo,
tomando como base a narrativa clássica de Esopo, La Fontaine e Lobato A cigarra e a
formiga, fazendo um contraponto com a obra Formigarra Cigamiga, de Glória Kirinus.
Diferente dos anteriores, na história da escritora peruana os dois seres, tão diferentes,
aparecem juntos, fundem a sua personalidade, dando uma visão pós-moderna ao texto
clássico.

Revisão teórica

Em sua dissertação de mestrado, intitulada Amoras sem espinhos: a recepção de


Fábulas (1922), de monteiro lobato, por Crianças do ensino fundamental, a estudiosa
Adriana Paula dos Santos Silva apresenta um panorama e uma definição acerca do gênero
fábula. O objetivo de seu estudo é testar a recepção das fábulas de Monteiro Lobato por
crianças do primeiro ciclo do Ensino Fundamental. Para tal intento foi feita uma pesquisa
acerca do percurso histórico das fábulas, o qual será utilizado como contribuição para este
estudo. Diferente do que foi feito por Silva, neste artigo o que se pretende é examinar de
forma bibliográfica as fábulas de quatro escritores: Esopo, La Fontaine, Monteiro Lobato e
Glória Kirinus.
De acordo com a estudiosa o gênero fábula é breve, apresenta um caráter simbólico,
utiliza geralmente animais como personagens, esses pensam e agem como seres humanos.
Para Silva: “A fábula pode ter surgido junto com a necessidade de vencer a censura e
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questionar as injustiças.” (p.78). Essas situações humanas perpassam as relações sociais ao


longo da história, o que justifica a permanência desse gênero ao longo dos séculos.
Em relação a origem e a popularização do gênero, Silva reconhece que: “Embora já
difundida entre os assírios e babilônios, foi com o grego Esopo que o gênero foi consagrado.”
(p.80). Nesse período ela era contada nos palácios gregos, ou seja, era consumida pelos
nobres da época. O mesmo público tinha as fábulas do francês La Fontaine, que lançou a sua
coletânea de fábulas em 1668. Ele é considerado o “pai” da fábula moderna, pois deu um
caráter literário ao gênero. O fato de apresentá-las em verso significou uma vantagem para a
popularização do gênero, pois isso facilitava a memorização dos textos.
O brasileiro Monteiro Lobato reconhece o valor dos antigos fabulistas e os
homenageia em suas obras. O criador das personagens que contracenam no Sítio do Picapau
Amarelo faz em suas fábulas “... uma atualização, na qual agrega ao texto reescrito marcas da
nova leitura.” (SILVA, p. 87). Ou seja, Monteiro Lobato segue as características gerais do
gênero, mas utiliza elementos de seu contexto de produção para realizá-las, como já fazia La
Fontaine em relação às primeiras fábulas atribuídas a Esopo. O escritor de Taubaté fazia isso
já em 1922 e essa atitude seria seguida por Glória Kirinus em 1993 em sua obra Formigarra
Cigamiga.
Numa época em que as relações humanas em nível mundial se tornavam cada vez mais
próximas com o início, no Brasil, do neoliberalismo e a globalização atingindo o mundo todo,
não fazia mais sentido ver o homem da forma como era representado nas fábulas mais antigas,
nesse sentido a escritora peruana faz um amálgama de personalidades num mesmo ser. Nessa
obra a cigarra não é “só” cigarra, ela é uma formigarra, uma junção de sua personalidade com
a da formiga. É o que ocorre com as culturas em época de globalização, elas se fundem,
principalmente num país historicamente multicultural como o Brasil.
Essa postura pós-moderna dos escritores é examinada por Sueli de Souza Cagneiti em
sua obra Leituras em Contraponto: Novos jeitos de ler. A estudiosa afirma que é necessário
fazer um resgate dos textos anteriores e contrapô-los com os atuais, atualizados ao contexto
sócio histórico em que estão inseridos (cf. CAGNETI, p. 11-12). É este contraponto o tema
nevrálgico deste estudo, pois se acredita que essa é uma forma de contribuir para a formação
de um leitor literário competente, o qual recupera um contexto passado reelaborado no
presente. É desta forma que se constrói a identidade humana, aproveitando a tradição histórica
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dos povos do passado e a literatura “embarca” nessa viagem, pois os escritores colocam em
suas páginas o homem de seu tempo e sua história.
Representando a humanidade em seus escritos os autores contribuem com a formação
da identidade do povo. E se a fábula é uma representação alegórica do homem, mostrando seu
comportamento nas ações de animais, como foi visto antes; é preciso reconhecer que sua
mudança ao longo dos anos (Esopo, La Fontaine, Monteiro Lobato e Glória Kirinus) passa
pela transformação do homem e de sua identidade. Nesse sentido, a contribuição teórica de
Stuart Hall (2002) será esclarecedora. Em sua obra A identidade cultural na pós-modernidade
o estudioso apresenta as mudanças pelas quais a identidade humana passou ao longo dos anos.
Ele propõe três visões de identidade: sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-
moderno (cf. p. 10).
O sujeito do Iluminismo era centrado em si mesmo e não se modificava com o passar
dos tempos, ou seja, era imutável, estático e por consequência também não evoluía. Esse
sujeito é representado, conforme se observará mais a frente neste estudo, nas fábulas de Esopo
e La Fontaine. Já o sujeito sociológico é formado levando em consideração as outras pessoas
ao seu redor, dessa forma “a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade”
(HALL, p.11). A produção fabular de Monteiro Lobato, no exemplo selecionado para este
estudo, representa esse sujeito proposto por Hall.
A última proposição de sujeito feita pelo professor inglês é o sujeito pós-moderno,
esse é fragmentado e não tem uma identidade constante, inflexível. Ao contrário, é instável e
se transforma sempre, “o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos...”
(HALL, p. 13). Essa instabilidade toda é vista na obra de Glória Kirinus escolhida para este
estudo. Ela representa, como já foi dito, o contexto sócio histórico pelo qual o mundo passava
na década de 1990 e passa na atualidade, período de mudanças e inconstâncias.
Essas concepções propostas por Hall servirão de referência para este estudo no sentido
de tentar explicar as mudanças ocorridas nas fábulas ao longo dos anos, acredita-se que isso
ocorra devido às mudanças das identidades dos sujeitos, uma vez que eles são representados
pelos fabulistas nas histórias. É possível perceber esse processo por meio de uma análise em
contraponto, que será feita em seguida.
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A formiga e a cigarra: Esopo e La Fontaine

Na versão de Esopo2, as formigas aproveitam um dia azul do inverno para colocar os


grãos, guardados com muito cuidado durante a primavera e o verão, para secar, pois “ficaram
úmidos e corriam o risco de mofar”. Uma cigarra se aproxima e pede alimento às
trabalhadoras, pois passara as estações anteriores cantando e dançando. As formigas além de
não dividirem sua comida ainda riem da cigarra, a qual, de acordo com a moral proposta pelo
autor, não se planejou direito.
Mas o que se esperava da cigarra? Que comportamento ela deveria ter? Sabe-se, dos
estudos históricos, que a Grécia neste período tinha uma sociedade extremamente
estratificada, ou seja, cada um ocupava uma posição na pirâmide e não ascendia socialmente e
nem fazia outra coisa além de sua obrigação, quem era escravo era escravo, quem era rei era
rei e assim por diante. Caso a cigarra resolvesse deixar o seu ofício de lado para juntar os
grãos necessários à sua sobrevivência ela ocuparia uma função que não era a sua. No entanto,
a intenção do fabulista não era esta, e sim a de transmitir a mensagem de que cada um deve se
planejar para o futuro. E se o futuro da cigarra e das formigas estava condicionado ao fato de
juntarem comida para inverno, era o que deveria ser feito.
Alguns séculos depois La Fontaine lança a sua versão da fábula 3. Nesta a visão de
mundo já é outra, é possível perceber pelos termos referentes à cigarra: “Tendo a cigarra, em
cantigas,/ Folgado todo o verão,/ Achou-se em penúria extrema,/ Na tormentosa estação. (LA
FONTAINE, op cit).” É o narrador quem conta a ocupação da cigarra durante o verão, ela
“folgou”, ou seja, esteve dedicada ao ócio, por isso não teve tempo de juntar comida, como as
trabalhadoras formigas. Essa atitude a colocou numa situação de penúria. Essa visão contrasta
com a de Esopo, pois na versão do grego é a cigarra quem diz o que fez: “Estava tão ocupada
catando que não tive tempo (NAIDO, 2011)”.
Essa mudança de ponto de vista, ora do personagem, ora do narrador, diz muito do
período histórico. Enquanto La Fontaine produz sua obra num contexto em que as pessoas
não eram agentes de sua história, é a igreja quem dita às regras, Esopo produz numa fase
áurea para o povo grego. Sendo assim, cabe às formigas julgarem o comportamento da
cigarra, afinal cada um tinha sua obrigação na sociedade, porém a lei da sobrevivência é para
todos. Já em La Fontaine, o papel de sábio fica para o narrador, é ele quem julga a cigarra.

2
NAIDOO, Berverley. Fábulas de Esopo. São Paulo: Edições SM, 2011, p. 50.
3
LA FONTAINE, Jean de. Fábulas. São Paulo: Martin Claret, 2005., p. 43-44.
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Esta por sua vez, jura pagar direitinho e estabelece uma data para isso. Já “a formiga nunca
empresta,/ Nunca dá; por isso, junta.”.
É possível perceber nas duas versões que para ter sucesso nesta sociedade não basta
cumprir o seu ofício, suas obrigações, deve-se poupar, juntar, economizar, é uma lei de
sobrevivência. Em La Fontaine vive-se, um período em que o valor monetário dos objetos já
toma conta da sociedade, pois a cigarra barganha com as vizinhas.
Essas conclusões não são infundadas, afinal, de acordo com a biografia dos autores, La
Fontaine estudou Direito e Teologia e trabalhou no ministério das finanças na Paris de 1652.
Já Esopo era um escravo, tão sábio que deixou esta função para tornar-se conselheiro do rei.
Nesse sentido, é possível pensar que a vida de cada um teve influência em sua produção
fabular.
É possível perceber nessas duas versões da fábula A cigarra e a formiga que não há
espaço para a mudança e evolução do ser. Espera-se da cigarra e da formiga sempre o mesmo
tipo de comportamento, não cabe uma mistura ou uma troca de papéis. Portanto, nesse perfil
humano proposto, na alegoria de Esopo e La Fontaine é representado o sujeito do Iluminismo
sugerido por de Stuar Hall.
Essas mudanças ocorridas ao longo dos séculos nas versões da fábula selecionada
chegaram ao Brasil por meio de Monteiro Lobato. Este, seguindo o mesmo procedimento de
La Fontaine e outros escritores ao longo dos séculos, resgatou e adaptou as histórias clássicas
à realidade sócio histórica de seu país e as fábulas continuam cumprindo a sua função, colocar
os seres humanos, de maneira alegórica, diante das suas mazelas.

Monteiro Lobato

Diferente de Esopo e La Fontaine, Monteiro Lobato propõe duas versões para a fábula
A cigarra e a formiga. A primeira delas recebe o subtítulo de “A formiga boa”, nessa versão,
igual às antigas, a cigarra passa o verão todo cantando e não se previne para o inverno, como
as formigas. Doente, a cigarra pede abrigo às vizinhas que aceitam de forma bastante
hospitaleira e reconhecem o ofício de artista, ou seja, a cigarra não é vista como alguém que
atrapalhou o trabalho no formigueiro durante o verão, mas como alguém importante, pois nas
palavras da formiga “aquele chiado nos distraia e aliviava o trabalho” (LOBATO, p.12).
É possível perceber nessa versão da fábula que cada animal cumpre uma função no
mundo, e o fato de não estar economizando para o inverno não significa que a cigarra não
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estivesse trabalhando, ela estava, como reconhece a formiga, garantindo a felicidade e a


alegria nos momentos difíceis de labuta. Lobato propõe assim uma forma diferente de olhar as
pessoas. Isso está associado, certamente aos momentos históricos diferentes nos quais as
fábulas foram elaboradas, pois se elas são a representação simbólica do ser humano e este
muda com o passar do tempo, é certo que as versões das histórias também mudem.
A outra variante desta história recebe o subtítulo de “A formiga má”. Nessa versão a
formiguinha não aceita o fato de a vizinha não ter juntado provisões para o inverno e é taxada
de “vagabunda”, pois não trabalhou como as formigas. Além disso, o autor descreve o drama
da cigarra de forma mais acentuada: “Desesperada, bateu à porta da formiga e implorou –
emprestado, notem! – uns miseráveis restos de comida. Pagaria com juros altos aquela comida
de empréstimo, logo que o tempo permitisse” (LOBATO, p. 13). O autor coloca a situação da
cigarra de forma a comover a formiga, mas esta, impassível, não se deixa impressionar e
deixa a vizinha morrer de frio do lado de fora da casa.
Nessa variante, ainda não há um retono ao maniqueísmo dos fabulistas anteriores, o
escritor brasileiro constrói as duas personagens com características próprias, uma
extremamente avara e apegada aos seus bens, juntados com muito suor durante uma estação e
outra desesperada por sobreviver. Seu ofício não era juntar comida, mas cantar, mesmo assim
aceita a situação e pede por empréstimo o alimento o qual pagaria com juros. Essa negociação
estava presente também na versão de La Fontaine, lá fica claro que a formiga não negocia
com ninguém, “por isso, junta”. Essa situação de transação ilustra o contexto sócio histórico
do Brasil na época da publicação da obra. Sabe-se que o país passava por um período
conturbado e o trabalho duro, na visão do autor, era a única forma de conseguir ultrapassar as
dificuldades, junto com isso o lucro com a venda, ou empréstimo, de bens economizados
durante anos. É possível perceber nessas versões de Lobato que não faz mais sentido tratar o
sujeito de forma imutável, a sociedade o contexto o modifica, trata-se da representação do
sujeito sociológico, proposto por Stuart Hall. Portanto o autor brasileiro representa o homem
do seu tempo.

Glória Kirinus

É possível perceber na fábula de Esopo e na versão de La Fontaine, que a formiga é


símbolo do trabalho e a cigarra representa o ócio. Essas funções são imutáveis e quem não
cumpre sofre as consequências. E quem sofre é a cigarra, pois seu ofício não passa pela
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preocupação de juntar provimentos, ou seja, não pensa no futuro como a formiga. Monteiro
Lobato mostra que é possível manter as duas funções, mas sem que a cigarra pereça, ela ajuda
a formiga em seu trabalho cantando e distraindo a trabalhadora, porém é possível perceber
que, da mesma forma que seus antecessores, cada uma cumpre um papel, não cabe a formiga
sair cantando, nem à cigarra começar a trabalhar e juntar suas provisões para o inverno. Será
que essas duas personalidades podem conviver num mesmo ser? Em Formigarra Cigamiga 4
de Gloria Kirinus percebe-se que sim.
A cigarra, aquela que vive no ócio, “só cantadeira/ só seresteira/ só sonhadeira”, ao
tornar-se amiga da formiga e virar a Cigamiga não vive mais na “eira” “(...) do vento/ do
verde/ do arco/ da íris” agora ela “é também pipoqueira/ é também livreira/ é também
engenheira”. Já “a formiga cigarra/ a Formigarra” antes de juntar-se a cigarra “era uma
formiga/ só trabalhadeira/ de sol a soleira/ era uma formiga/ só carrancuda/ só enfiladeira/
era uma formiga/ sempre na beira” que não resistiu a esta vida tão tensa e acabou morrendo
“(...) de enfarte/ formigante/ Agora/ A formiga amiga da garra/ da cigarra/ A formigarra/ é
também feirante/ é também fogueteiraa/ é também/ dórémifásolásieira”.
Nessa união feita pela autora, pode-se perceber que trabalho e lazer podem andar
juntos. Em outra obra, Criança e poesia na pedagogia Freinet (1998), Kirinus afirma que os
momentos de ócio “(...) são tão necessários a índole humana como o são o alimento, o
conhecimento e o trabalho” (KIRINUS, p.45). É o que acontece com a formiga em
Formigarra Cigamiga. Ao deixar de ser apenas “(...) trabalhadeira/ de sol a soleira” ela não
abre mão do trabalho, ao contrário, agora, além disso, ela “é também feirante/ é também
fogueteira/ é também/ dórémifásolásieira”, ou seja, a sua personalidade de trabalhadora uniu-
se a personalidade artística da cigarra, que por seu lado também sofre a mesma metamorfose,
porém ao contrario, já que ela é “(...) só cantadeira/ só seresteira/ só sonhadeira” e acabou
morrendo balançando numa cadeira; e ao ressurgir ela não é mais “só artista”, agora, além de
cantar, tocar e sonhar, ela “é também pipoqueira/ é também livreira/ é também engenheira”.
Tem-se, portanto uma fábula do mundo moderno, no qual o trabalho do artista uniu-se
ao labor do engenheiro ou do pipoqueiro. Porém “os momentos de prazer, de lazer, de recreio
são duramente julgados pela sociedade do progresso que interiorizou em nós a postura da
formiga” (KIRINUS, p. 46). Para Gloria Kirinus, essas duas forças trabalho (=formiga) e ócio
(= Cigarra) podem se misturar, criando uma atmosfera favorável à criação artística.

4
KIRINUS, Gloria. Formigarra Cigamiga; ilustrações Guilherme Zamoer. Curitiba: Braga, 1993.
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Nesse preceito, sabe-se que na antiguidade o trabalho era algo destinado somente aos
escravos, que eram vistos como inferiores. Na atual sociedade, porém, trabalhar é sinônimo
de dignidade; e quem não o faz (por opção) é excluído do convívio social. Assim, existe uma
imposição para que o homem escolha se quer viver como um vadio e ser excluído –
marginalizado – ou como um trabalhador padrão, que acorda cedo, pega vários ônibus para ir
ao trabalho, ganha seu salário, paga suas contas e impostos em dia, porém com pouco ou
nenhum momento de lazer. Ou seja, o cidadão deve escolher entre um ou outro e não um “e”
outro como propõe a escritora Gloria Kirinus, através das personagens que fazem um
amálgama das duas características: trabalhadoras e vadias, levando no nome os traços de uma
e de outra.
A escritora peruana segue um procedimento pós-moderno, pois nesta visão não existe
mais espaço para o maniqueísmo de Esopo e La Fontaine, o qual começa a ser quebrado por
Lobato. Agora, o que existe é uma junção, cada um carrega em si a personalidade da formiga
e da cigarra. Decidir o momento de libertá-las é uma tarefa individual. Nas palavras de Sueli
Cagneti: “No contexto pós-moderno, os símbolos e os mitos aparecem de forma superficial e
passageira devido à efemeridade das atuais construções narrativas que revelam o próprio
ritmo que o tempo impõe à vida cotidiana”. A vida das pessoas está cada vez mais repleta de
obrigações, e estas cada vez mais urgentes, mesmo o artista acaba tendo que se submeter à
velocidade das mudanças e aos prazos. As obras refletem cada vez mais esta pressa do mundo
contemporâneo.
Nota-se que, diferente de seus antecessores, a escritora peruana concebe nesta obra um
sujeito pós-moderno. Nesse sujeito há espaço para as duas personalidades, a de cigarra e a de
formiga, pois o homem não é mesmo todos os dias, há uma série de influências e estímulos
vindos da sociedade que moldam o comportamento das pessoas. Isso, associado a história de
vida de cada um, faz com que o sujeito seja fragmentado, um pouco de tudo, trata-se de uma
exigência dos tempos atuais, pois a sociedade atual “.. está constantemente sendo
‘descentrada’ ou deslocada por forças fora de si mesma” (HALL, p.17). A depender da
situação é preciso ser mais formiga ou mais cigarra, ou ainda, como propõe Glória Kirinus,
amalgamar as duas personalidades.
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Considerações Finais

Ao longo desse estudo foi possível perceber que, apesar de sua origem tão remota
historicamente, o gênero fábula continua atualizado e cumprindo a mesma função
desempenhada outrora, representar de forma alegórica o comportamento humano. Porém,
devido às mudanças identitárias e sociais pelas quais o homem passa ao longo do tempo, as
histórias fabulares também precisaram ser adaptadas, seguindo a evolução humana.
Para perceber essas transformações uma leitura em contraponto de quatro autores
localizados em diferentes períodos sócio históricos foi bastante esclarecedora. O objeto de
estudo foi a fábula a Cigarra e a formiga, na qual diferentes concepções de identidade
proposta por Stuar Hall puderam ser verificadas atestando o caráter plástico da sociedade e do
gênero fábula ao longo dos anos. Confirma-se dessa forma a hipótese proposta no início deste
artigo, a de que essa fábula ainda representa de forma coerente a humanidade atual.
No entanto, este estudo não esgota a discussão ao contrário, vem como uma
contribuição para que outras investigações sejam feitas, utilizando-se de outras histórias,
outros autores, outros períodos históricos. Afinal, a humanidade está em constante
transformação, devido a sua grande capacidade de inventar e se reinventar; e nesse processo
os escritores de literatura estão inseridos, para representar da forma mais verossímil possível o
mundo ao seu redor.

REFERÊNCIAS

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; tradução Tomaz Tadeu da Silva,


Guaracira Lopes Louro – 7 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

KIRINUS, Gloria. Formigarra Cigamiga; ilustrações Guilherme Zamoer. Curitiba: Braga,


1993.

KIRINUS, Gloria. Criança e poesia na pedagogia Freinet. São Paulo: Paulinas, 1998.

LA FONTAINE, Jean de. Fábulas. São Paulo: Martin Claret, 2005.

LOBATO, Monteiro. Fábulas. Ilustrações de Alcy Linares. 3 ed. São Paulo: Editora Globo,
2012.

NAIDOO, Berverley. Fábulas de Esopo. São Paulo: Edições SM, 2011.


26596

SILVA, Ana Paula Santos. Amoras sem espinhos: a recepção de Fábulas (1922), de
Monteiro Lobato, por crianças do ensino fundamental. 2011. 273f. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2011. Disponível em: <
http://www.ple.uem.br/defesas/pdf/apssilva.pdf>. Acesso em 30 maio. 2013.

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