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A LEITURA DA FÁBULA NA LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA

ROSA MARIA GRACIOTTO SILVA


DEPARTAMENTO DE LETRAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

Quando uma literatura específica para crianças surgiu, por volta do final do século
XVII, os contos de fadas, principalmente os divulgados por Charles Perrault (França,
1697), passaram a ser sinônimos de literatura infantil. Entretanto, antecedendo os contos de
fadas, encontramos um outro tipo de texto endereçado ao leitor-mirim. Trata-se das fábulas,
gênero muito antigo, com raízes na literatura oriental e que se estendem à ocidental com
fabulistas que se tornaram famosos como o grego Esopo (540 a.C.), o romano Fedro (10
a.C.–69 d.C.) e o francês La Fontaine (1621–1695).
Se em Esopo e Fedro não havia a preocupação explícita com o público infantil,
este passa a centralizar a atenção de La Fontaine que, em 1668, ao publicar seu primeiro
livro de Fábulas, dedica-o a sua alteza o Delfim da França, na época, com seis anos.
Apresentando duas dedicatórias, uma em prosa, outra em versos, La Fontaine
revela seu propósito educativo ao se dispor a recriar as fábulas de Esopo, afirmando que
estas espalham “na alma, sem que se sinta, as sementes da Virtude, ensinando-nos a nos
conhecer sem que disto nos apercebamos”(La Fontaine, v.1, p.30).
Evidenciando que a preocupação com textos apropriados à criança advém de
tempos antigos, La Fontaine recorre a Platão (428-347 a.C.) que em sua “República”
recomenda que as fábulas, por conterem sabedoria e virtudes, deveriam ser contadas para as
crianças, desde a mais tenra idade, junto mesmo com o leite materno (La Fontaine, V.1,
p.37).
As considerações de La Fontaine mostram que as fábulas contêm elementos
essenciais para a formação da criança. Ao mesmo tempo que cativam o ouvinte/leitor, estas
histórias centralizam-se na transmissão de um ensinamento, uma lição de vida, uma
verdade de cunho geral, a que La Fontaine denomina de “a alma” da fábula, em torno da
qual o fabulista estrutura o “corpo”.

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A crítica literária em busca de uma sistematização teórica sobre esse gênero
narrativo é unânime na constatação de que a “moralidade”, implícita ou explícita, é parte
intrínseca da fábula, não sendo, porém, fator decisivo capaz de diferenciá-la de outras
narrativas como a parábola e o apólogo, que também priorizam o ensinamento e a lição de
vida. Se como querem alguns, entre eles Nelly Novaes Coelho (1981, p.77-79) que afirma
que a fábula diferencia-se do apólogo e da parábola porque centraliza as ações em torno de
animais, enquanto o apólogo privilegia objetos inanimados e a parábola as ações entre seres
humanos, podemos observar que entre os fabulistas tal distinção não ocorre. Esopo, o mais
famoso fabulista da literatura ocidental, privilegia os animais como pólo de suas fábulas,
mas não deixa de apresentar histórias em que as ações se passam entre seres humanos,
animais com seres humanos, animais com deuses, deuses com seres humanos, somente
entre deuses e, ainda, entre seres inanimados. Os seguidores do mestre, recriando as fábulas
esópicas ou criando suas próprias, como Fedro e La Fontaine, contemplam todas essas
diversidades. Fedro, por exemplo, anuncia no prólogo de seu primeiro livro, que tratará em
versos senários da matéria que Esopo inventou e, para isso, fará uso da personificação não
só de animais, como também de árvores (Fedro, p.24, 25).
É, ainda, neste prólogo que Fedro indica a dupla finalidade de suas fábulas:
provocar o riso e advertir a vida com prudente conselho. Essas funções explicitadas por
Fedro (séc. I d.C.), sem endereçá-las a um público específico, são retomadas por La
Fontaine (séc. XVII), tendo, agora, como centro de suas atenções, a criança.
As fábulas, também denominadas de apólogos por La Fontaine, teriam a função
de formar “o juízo e os costumes”, tornando a criança “capaz de grandes coisas”. Além do
ensinamento moral, estariam expondo o próprio homem, pois
somos a síntese do que há de bom e de mal nas criaturas irracionais. As
fábulas, portanto, são um quadro onde cada um de nós se acha descrito. O que
elas nos apresenta confirma os conhecimentos hauridos em virtude da
experiência pelas pessoas idosas e ensina às crianças o que convém que elas
saibam. E como estas são recém-chegadas neste mundo, não devemos deixá-
las nessa ignorância senão durante o menor tempo possível. Elas têm que saber
o que é um leão, o que é uma raposa, e assim por diante, portanto às vezes se
compara o homem a um destes animais. Para isto servem as fábulas, pois é
delas que provêm as primeiras noções desses fatos. (La Fontaine, V.I, p.39)

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O que se constata em Esopo, Fedro e La Fontaine é que as personagens
selecionadas tanto podem fazer parte do mundo animal, quanto do vegetal ou mineral.
Homens, animais, vegetais, seres inanimados e divindades se associam representando
situações que refletem ações próprias do convívio humano. Segundo Portela (1983, pp.133-
137) a atribuição de comportamentos, qualidades e características dadas aos animais não se
fundamenta em conhecimentos científicos e, sim, na observação popular. E, por isto
mesmo, a associação entre o comportamento do homem e do animal não tem validade
absoluta, apresentando variações pertinentes à mesma época ou a tempos distantes. Portela
cita, como exemplo, o lobo que ora representa a prepotência (“O lobo e o cordeiro”), ora a
ânsia de liberdade (“O lobo e o cão”), ora a ingratidão humana (“O lobo e o grou”) e, ainda,
a “grossura e sandice” quando divide a cena com a raposa.
Se em Fedro e La Fontaine encontramos as explicitações da dupla finalidade da
fábula: distrair e ensinar, observamos que tal propósito permanece em fabulistas do século
XX. É o que constatamos, por exemplo, em Monteiro Lobato (Brasil, 1882-1948) que, em
carta a seu amigo Godofredo Rangel, datada de 08/09/1916, revela seu propósito de “vestir
à nacional” as fábulas de Esopo e La Fontaine, adequando-as à realidade brasileira, quer
com relação às moralidades, quer a respeito dos animais a serem selecionados:
Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e
La Fontaine, tudo em prosa e mexendo com as moralidades. Coisa para crianças.
Veio-me diante da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fábulas
que Purezinha lhes conta.
Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos – sem, entretanto,
prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos fica
no subconsciente para ir-se revelando mais tarde, à medida que progredimos em
compreensão. Ora, um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos,
se for feito com arte e talento dará coisa preciosa. (Lobato, “A barca de Gleyre”,
1972, pp.245-246).

O “talento” e a “arte” concretizam-se no conjunto de 74 fábulas publicadas em


1922. Além de proceder às inovações anunciadas na carta a Rangel, Lobato insere as
fábulas no universo ficcional do Sítio do Picapau Amarelo, fazendo com que Dona Benta
seja a leitora das fábulas para um público determinado: Tia Nastácia, as crianças do sítio

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Narizinho e Pedrinho, juntamente com a boneca Emília e o sabugo Visconde de Sabugosa.
Após a leitura de cada fábula, as crianças solicitam esclarecimentos à Dona Benta sobre o
que não entenderam e passam a discutir e refletir sobre a moralidade em questão, tentando
decifrar e trazer para o mundo em que vivem a alegoria que permeia a narrativa. Com esse
recurso Lobato intensifica a dupla função da fábula: divertir e educar. Recriando no mundo
ficcional um ambiente doméstico em que uma avó dispõe-se a entreter seus netos com
pequenas histórias, Lobato recupera a marca da oralidade das fábulas esópicas. O leitor se
vê projetado nesse ambiente, tão próximo ao seu e, seduzido pela tagalerice de Emília e
pelo humor que se estabelece nos diálogos, tem suas possíveis dúvidas esclarecidas e, com
isso, a aprendizagem torna-se mais efetiva.
Como se vê, a fábula, neste longo espaço de tempo, atravessando, desde Esopo,
cerca de 2500 anos, continua a ser um gênero apreciado. Ganhando nuances
diferenciadoras, quer pela época em que está inserida, quer pela peculiaridade estilística de
seu criador, a fábula permanece, entretanto, enfática quanto à verdade de cunho geral que
se corporifica na narrativa em forma de moralidade implícita ou explícita, conservando,
portanto, a lição moral. E isto se pode constatar no estudo de fábulas de Esopo, Fedro, La
Fontaine e Monteiro Lobato. Como em todos esses fabulistas há a preferência por animais,
selecionamos aquelas em que o pavão é a personagem privilegiada. Tendo como objeto
final as fábulas presentes na literatura infantil brasileira, verificamos, primeiramente, quais
as fábulas de Lobato que dão destaque ao pavão e, a partir delas, rastreamos as fontes em
Esopo, Fedro e La Fontaine.
Entre as 74 fábulas lobateanas há duas que privilegiam o pavão: “A gralha
enfeitada de pavão” e “O corvo e o pavão”. A fonte mais remota encontra-se em Esopo,
sendo que a primeira sustenta-se em “A gralha e os corvos” e a segunda em “O pavão e a
grua” e “O pavão e a gralha”. Começamos nosso itinerário pelas fábulas de Esopo e
seguimos para Fedro, La Fontaine até chegarmos, novamente, a Monteiro Lobato.

1. Esopo

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La Fontaine em “A vida de Esopo, o frígio” (1989, v.I, pp.43-47), fornece-nos a
imagem de um homem muito sagaz que vivendo como escravo na Grécia do séc. VI a.C.,
soube usar a palavra de forma prodigiosa, perpetuando verdades e ensinamentos de vida,
através de histórias curtas que se tornaram conhecidas como fábulas. Citadas por Platão,
Aristóteles, Aristófanes e outros filósofos, as fábulas de Esopo constituíam-se como parte
essencial dos discursos, quando havia necessidade do exemplo edificante, de “despersuadir
empresas perigosas, cometimentos iníquos ou resgatar contra vexações tirânicas”.
(Gonçalves, 1957, pp.16-17)
A preferência pela máscara dos animais fez que estes se tornassem conhecidos por
atributos, em que o homem sentir-se-ia por eles representados. Dentre estes animais
encontra-se o pavão que, no universo das aves, destaca-se pela sua extrema beleza e, com
isso, sintetiza a vaidade, o orgulho, justificando o conseqüente desprezo que nutre pelos
seus semelhantes. Nas fábulas selecionadas, outros animais se destacam, como o corvo e a
gralha.
Reportando-nos às 352 fábulas atribuídas a Esopo, encontramos oito em que o
corvo se presentifica: “A gralha e os corvos”; “O asno, o corvo e o lobo”; “O medroso e os
corvos”; “O corvo e a raposa”; “O corvo e a serpente”; “O corvo e Hermes”; “O corvo
doente”; “A gralha e o corvo”. O pavão, por sua vez, aparece apenas em duas: “O pavão e a
grua” e “O pavão e a gralha”.
Tomamos, para exemplo, neste nosso estudo, as fábulas “O pavão e a grua”, “O
pavão e a gralha”, “A gralha e os corvos”. Todas as três primam pela brevidade da
narrativa, apresentando uma unidade de ação, espaço e tempo, traços peculiares a esse
gênero. A moralidade fecha a narrativa, sintetizando a verdade alegorizada pela fábula.

O pavão e a grua

O pavão zombava da grua por causa da cor de sua plumagem:


— Minha roupa é de ouro e púrpura, já a tua plumagem não tem nenhuma
beleza.
— Só eu — respondeu a grua — canto entre as estrelas, e meu vôo me leva às
alturas; tu, igual a um galo, caminhas pela terra como a galinhada.
Melhor a glória em andrajos que a desonra no fausto.

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(Esopo, 1997, p.49)

O caráter antitético desta fábula surge desde o título ao opor duas aves que
primam pelo contraste de suas plumagens: o pavão com suas penas “de ouro e púrpura” e a
grua de cor cinzenta.
Sem qualquer indicação temporo-espacial, a fábula expõe um brevíssimo diálogo
entre as duas aves que, de acordo com o estudo de Portela (1983:129), estrutura-se da
seguinte forma: situação + ação (do pavão) + reação (da grua) + resultado.
Se o pavão em seu discurso apresenta como argumento a beleza de sua plumagem
em contraste com a ausência desse atributo na grua, esta, por sua vez, contra-argumenta
com o enaltecimento de sua capacidade de cantar e de voar nas alturas, enquanto o pavão,
equiparado a um galo, está fadado a caminhar pela terra.
A moralidade que encerra a fábula, “melhor a glória em andrajos que a desonra no
fausto”, permite que se proceda à identificação da grua com a glória e o pavão com a
desonra. Voar e cantar nas alturas são, portanto, características superiores que merecem ser
vangloriadas, enquanto que a ausência destas duas qualidades demonstra a inferioridade do
ser, mesmo que este, aparentemente, tenha maior brilho.

O pavão e a gralha
Os pássaros discutiam:
— Quem será nosso rei?
— Por minha beleza, serei eu — disse o pavão.
Todos o aprovaram. Mas a gralha argumentou:
— Vejamos. Tu és nosso rei, uma águia nos ataca. Como vais nos salvar?
Previdência é sabedoria.
(Esopo, 1997, p.140)

Nesta fábula o caráter antitético não reside no contraste de plumagens, uma vez
que as duas aves são belas, mas, sim, no grau superior de inteligência e de racionalidade da
gralha.
A estruturação desta fábula segue os mesmos parâmetros da anterior:
situação+ação do pavão+ reação das aves e da gralha+resultado. Um narrador em 3ª pessoa

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introduz a situação, sem qualquer referência ao lugar e à época em que ocorrem os fatos:
“Os pássaros discutiam: — Quem será nosso rei?” Segue-se a ação do pavão que
vanglorizando-se de sua beleza, elege-a como requisito para ser escolhido rei dos pássaros.
A reação das demais é de concordância, com exceção de uma gralha que, sem desmerecer a
beleza do pavão, lança um desafio: “Tu és nosso rei, uma águia nos ataca. Como vai nos
salvar?”
Tal como a fábula precedente, não há espaço para a provável argumentação do
pavão. A inserção abrupta da moralidade revela o ponto de vista do narrador que se mostra
identificado com o da gralha. A moralidade premia o procedimento da gralha, levando o
leitor à dedução de que a sabedoria, e não a beleza física, é fator essencial para quem se
propõe a governar.

A gralha e os corvos

De um número de oito fábulas em que o corvo divide espaço com outras


personagens, selecionamos esta, uma vez que serviu como objeto de recriação para Fedro,
La Fontaine e Monteiro Lobato.

A gralha e os corvos

Uma gralha de tamanho descomunal olhava seus semelhantes com desdém.


Partiu então em busca dos corvos para morar com eles. Mas os corvos, que
nunca a tinham visto, expulsaram-na sem piedade. Rejeitada por eles, a gralha
voltou para os seus. Mas estes não lhe perdoavam o orgulho: não a aceitaram
de volta. E ela não pôde viver nem com uns nem com outros.
Não troques tua terra por uma outra: nesta serás rejeitado por ser
estrangeiro e naquela o teu desprezo será devolvido em ódio.
(Esopo:1997, p.12)

As fábulas de Esopo são sintéticas, usando os adjetivos com parcimônia na


caracterização das personagens enfocadas. Quando ocorre uma qualificação é porque é
imprescindível. É o que ocorre com a gralha, caracterizada como uma ave de tamanho

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descomunal, descrição necessária para frisar a superioridade que esta julga ter frente às
outras aves de seu convívio e que, ao mesmo tempo, mostra que isto não se constitui em
motivo relevante ou distintivo para alçá-la a um patamar de superioridade.
Na estruturação da fábula um narrador em 3ª pessoa usando discurso indireto
conta um fato acontecido com a gralha, seguindo o esquema: situação+ação da gralha+
reação dos corvos+ação da gralha+reação das outras gralhas+resultado.
O abandono do “habitat” natural e a procura de um outro por motivo fútil
acarretou à gralha conseqüências graves: a rejeição em terras alheias e o repúdio de seus
pares. A moralidade que fecha o texto enfatiza o ensinamento sob um tom de ameaça:
aquele que despreza sua terra natal tem como resultado a rejeição de uns, o ódio de outros,
tornando-se um ser à margem da sociedade.

2. Fedro

Dotado de grande inteligência e espírito satírico, Fedro, “o escravo liberto de


Augusto”, fustigou com suas fábulas a sociedade de sua época, angariando ferozes
inimigos, como Lúcio Sejano, primeiro-ministro do Imperador Tibério que, vendo-se
representado em algumas fábulas (“As rãs pedem um rei” e “As rãs e o sol”), perseguiu-o
implacavelmente (Gonçalves, 1957, pp.18-20).
Das 123 fábulas que compõe os 5 livros de Fedro, o corvo aparece em duas: “A
raposa e o corvo” e “O corvo que saúda”; o pavão surge também em duas: “O gralho
soberbo e o pavão” e “O pavão a Juno”. Interessa-nos aqui “O gralho soberbo e o pavão”,
pela sua fonte que se encontra em Esopo, e por ser modelo para La Fontaine e Monteiro
Lobato.
O gralho soberbo e o pavão
Para que não nos gloriemos dos bens alheios e nos sintamos felizes com a
própria condição, Esopo apresenta-nos o exemplo que segue:
“Um gralho, cheio de soberba, apanhou as penas que haviam caído aos
pavões e enfeitou-se com elas. Em seguida, abandonando o bando dos seus,
passou-se para o formoso gurpo de pavões.

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Estes, mal o reconhecem, arrancam-lhes as penas e expulsam-no às
bicadas, obrigando-o a voltar, triste e acabrunhado, para a sua grei. Ao
reaparecer, porém, dizem-lhe os gralhos que havia abandonado: — Se te
houvesses julgado contente com a nossa condição e tivesses aceitado o que a
natureza nos concedeu, não terias sofrido esse insulto, nem agora, infeliz, te
exporias à nossa humilhação.
Síntese moral: Julga-te feliz na tua própria condição.”
(Fedro, trad. livre em forma de prosa por Gonçalves, 1957, p. 37)

Fedro, considerado o introdutor das fábulas de Esopo na literatura latina, faz


referências ao seu mestre em vários momentos de sua obra, inclusive na apresentação desta
fábula, quando se reporta ao exemplo esópico de que ninguém deve se glorificar dos bens
alheios, mas antes contentar-se com a sua condição.
Os seis séculos que separam Esopo de Fedro promoveram modificações que se
refletem no “corpo”, mas não na “alma” da fábula. Fedro retoma a fábula de Esopo “A
gralha e os corvos”, adaptando-a à sua inventividade. Dentre as modificações realizadas
destaca-se a da moralidade que em Esopo finaliza a narrativa, e em Fedro aparece tanto no
início, como no final. O esquema estrutural é semelhante: situação+ação do gralho+ reação
dos pavões+ação do gralho+reação dos gralhos+resultado.
A gralha de Esopo, de tamanho descomunal, é substituída por um gralho
destituído de atrativos, necessitando enfeitar-se com penas de pavão, para assim julgar-se
superior. Desprezando os seus, introduz-se não em um bando de corvos, mas de formosos
pavões, que o maltratam e o repudiam. Como em Esopo, a ave não é mais aceita em seu
“habitat” natural.
Aumentando a extensão da narrativa, o narrador cede a voz a uma das aves que
havia sido desprezada, para que indique ao gralho repudiado os posicionamentos de vida
que deveriam ter sido adotados a fim de evitar os castigos que lhe foram infligidos: rejeição
e humilhação. Intensifica-se ainda mais o ensinamento instrutivo com a síntese moral: —
“Julga-te feliz na tua própria condição”.
Adequando o conteúdo à forma, Fedro escreveu suas fábulas em versos senários
jâmbicos, tipo de pé apropriado para marcar a crítica à sociedade, denunciando os erros e
indicando procedimentos para atenuar as mazelas da vida.

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Tanto em Esopo, quanto em Fedro busca-se a acomodação do ser ao convívio com
os seus semelhantes, condenando-se qualquer tentativa de ruptura deste quadro. O não
cumprimento desta regra, gera o castigo maior: ser considerado um pária da sociedade.

3. La Fontaine

No século XVII da era cristã, La Fontaine retoma, na França, as fábulas do grego


Esopo e do romano Fedro. Ao todo são 232 fábulas publicadas em doze livros. Destas o
corvo aparece em três: “O corvo e a raposa”; “O corvo que quis imitar a águia”; “O corvo,
a gazela, a tartaruga e o rato”. Já o pavão protagoniza duas: “O pavão que se queixou a
Juno” e o “O gaio enfeitado com as penas de pavão”, que é objeto deste estudo:

O gaio enfeitado com as penas do pavão

Com as penas de um pavão que estava em muda, um gaio tolo se adornou;


Depois, entre os pavões, ele se apresentou,
E então foi um deus-nos-acuda!
Embora empavonado, foi reconhecido, vituperado e escarnecido,
Despojado das plumas e das próprias penas.
Retornando a seus pares, foi de lá banido,
e nunca mais quis fazer cenas.
Como o gaio, outros bípides conheço bem
Que se adornam com os restos do que foi de alguém:
O povo os chama de “plagiários”.
Mas como mencionar tal tema não convém,
Evitemos os comentários.
(La Fontaine, 1989, V.I, p.257)

No prefácio que acompanha sua obra, La Fontaine aborda as modificações a que


procede, alertando que não seguirá as recomendações de Fedro concernentes à brevidade e
à elegância de estilo. Em compensação acrescentará um toque de alegria, seguindo a
recomendação de Quintiliano de não exagerar nesse propósito (La Fontaine, V.I, p.36).
Como Fedro, La Fontaine cria suas fábulas em forma de versos, mas ao contrário
daquele que os marcou com seis pés jâmbicos, La Fontaine dá preferência aos versos de

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métrica livre, associados a uma seqüência de rimas entremeadas, sucessivas e alternadas,
recursos adequados para mostrar uma visão moderna deste gênero clássico.
Em “O gaio enfeitado com as penas do pavão”, La Fontaine aproxima-se de
Esopo pelo estilo conciso e pela inserção da moralidade no final. Entretando, afasta-se do
mestre pelo acréscimo do toque de humor que dá graça e leveza ao texto. Além disso, o teor
da moralidade marca a distância tanto das fábulas de Esopo, quanto das de Fedro.
A gralha de Esopo e o gralho de Fedro são substituídos por um gaio, ave do
tamanho de um corvo e que tem penas mosqueadas. Esta escolha mostra-se adequada,
justificando o adorno do gaio com as penas coloridas do pavão.
Ao contrário de Esopo e Fedro que contrapõem as duas aves no título da fábula,
La Fontaine centraliza-se na ação praticada pelo gaio. Caracterizado como um tolo e não
mais como soberbo, o gaio, tal como a gralha e o gralho, também foi repudiado pelos
pavões e por seus pares. Acrescenta-se, entretanto, que este gaio aprendeu a lição “e nunca
mais quis fazer cenas”.
Se em Esopo e Fedro a moralidade prega o conformismo a uma situação de vida e
apregoa castigos pela desobediência ao pré-estabelecido, La Fontaine, concentrando-se na
atitude do gaio de apoderar-se das penas (os restos) do pavão, aproveita para compará-lo
aos bípides (homens) que também “se adornam com os restos do que foi de alguém”.
Saindo do âmbito dos animais, e fazendo a ligação dos ensinamentos da fábula com o
mundo dos homens, La Fontaine, diferentemente do autoritarismo de Esopo e Fedro, deixa
que o leitor proceda às reflexões necessárias. Este ao substituir o “gaio” por um plagiador,
formará a imagem do que acontece àquele que se vale do que não é originariamente seu. E,
no final, nos três fabulistas, o castigo aparece como alerta aos possíveis infratores.

Monteiro Lobato

Vindas a público em 1922, as fábulas de Lobato vêm se somar à sua obra “A


menina do narizinho arrebitado” que, em 1920, já indicava novos rumos para a literatura
infantil brasileira. Até então aliada à escola na intenção de apregoar civismo, virtudes e

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bons costumes, a literatura primava pelo excesso de ensinamentos e, destituída de atrativos,
tornava-se cansativa e enfadonha.
Diante deste quadro, a obra lobateana surge como algo novo, capaz de retirar o
leitor da inércia e da mesmice. É o que observamos com relação às fábulas. Se o cerne
deste gênero literário reside em verdades fundamentais para o ser humano e que há séculos
continuam a ser transmitidas, Lobato retoma-as, retirando-lhes a aridez de sua origem.
Aprimorando as diretrizes de La Fontaine que, no século XVII, introduziu o humor, dando
graça e leveza ao texto, Lobato vai além pela inserção do riso não somente nas fábulas,
como nas intervenções que as personagens do sítio do Picapau Amarelo promovem, após a
leitura de cada fábula.
Das 74 fábulas publicadas por Lobato, há duas que privilegiam o pavão: “A gralha
enfeitada com penas de pavão” e “O corvo e o pavão”.

A gralha enfeitada com penas de pavão

Como pavões andassem em época de muda, uma gralha teve a idéia de


aproveitar as penas caídas.
— Enfeito-me com estas penas e viro pavão!
Disse e fez. Ornamentou-se com as lindas penas de olhos azuis e saiu
pavoneando por ali a fora, rumo ao terreiro das gralhas, na certeza de produzir
um maravilhoso efeito.
Mas o trunfo lhe saiu às avessas. As gralhas perceberam o embuste, riram-
se dela e enxotaram-na à força de bicadas.
Corrida assim dali, dirigiu-se ao terreiro dos pavões pensando lá consigo:
— Fui tola. Desde que tenho penas de pavão, pavão sou e só entre pavões
poderei viver.
Mau cálculo. No terreiro dos pavões coisa igual aconteceu. Os pavões de
verdade reconheceram o pavão de mentira e também a correram de lá sem dó.
E a pobre tola, bicada e esfolada, ficou sozinha no mundo. Deixou de ser
gralha e não chegou a ser pavão, conseguindo apenas o ódio de umas e o
desprezo de outros.
Amigos: lé com lé, cré com cré.
(Lobato, 1982, p. 11)

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Se o título da fábula recriada por Lobato assemelha-se à elaborada por La
Fontaine “O gaio enfeitado com penas de pavão”, observamos que a sua estruturação passa
por mudanças, seguindo o esquema: situação+ação da gralha+reação das gralhas+ação da
gralha+reação dos pavões+resultado.
Afeito a novidades, Lobato inverte a trajetória da gralha disfarçada de pavão. Se a
gralha de Esopo, o gralho de Fedro, o gaio de La Fontaine desprezam os seus semelhantes e
partem para o convívio com outras aves, Lobato faz com que sua gralha vá se pavonear
entre as próprias gralhas. Desmascarada e enxotada dirige-se, agora, ao terreiro dos pavões,
crédula de que sua aparência atual é de pavão e assim será aceita. Descoberta, novamente é
enxotada.
O seu final, entretanto, é idêntico ao das fábulas anteriores, recebendo “o ódio de
umas e o desprezo de outros”.
A moralidade “Amigos: lé com lé, cré com cré” encontra-se explicitada no
comentário do pessoal do Sítio do Picapau Amarelo, quando Dona Benta dá exemplos
retirados da comunidade em que vivem, mostrando o que acontece com as pessoas que
pretendem ser o que não são. Por fim, satisfaz a curiosidade de Narizinho sobre o
significado de “lé com lé, cré com cré”:

— Isto é o que resta duma antiga expressão portuguesa que foi perdendo
sílabas como a gralha perdeu as penas: “Leigo com leigo, clérigo com
clérigo”. Em vez de clérigo o povo dizia “crérigo”. Ficaram só as primeiras
sílabas das duas palavras.
(Lobato, 1982, p.12)

O corvo e o pavão

O pavão, de roda aberta em forma de leque, dizia com desprezo ao corvo:


— Repare como sou belo! Que cauda, hein? Que cores, que maravilhosa
plumagem! Sou das aves a mais formosa, a mais perfeita, não?
— Não há dúvida que você é um belo bicho — disse o corvo. Mas,
perfeito? Alto lá!
— Quem quer criticar-me! Um bicho preto, capenga, desengraçado e, além
disso, ave de mau agouro... Que falha você vê em mim, ó tição de pernas?
O corvo respondeu:

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— Noto que para abater o orgulho dos pavões a natureza lhes deu um par
de patas que, faça-me o favor, envergonharia até a um pobre diabo como eu...
O pavão, que nunca tinha reparado nos próprios pés, abaixou-se e
contemplou-os longamente. E, desapontado, foi andando o seu caminho sem
replicar coisa nenhuma.
Tinha razão o corvo: não há beleza sem senão.
(Lobato, 1982 p.30)

Inspirado na fábula esópica “O pavão e a grua”, Lobato substitui a grua, ave de


arribação e de cor cinzenta, por um corvo, de coloração preta e tida como de mau-agouro,
que entra em contraste com o pavão de penas coloridas.
Seguindo os passos de La Fontaine, Lobato abandona o estilo conciso de Esopo,
não só alongando o diálogo entre as personagens, mas acrescentando-lhe uma boa pitada de
humor.
Se em Esopo o grau de inferioridade do pavão devia-se ao fato de não poder alçar
vôos, estando condenado a caminhar desonradamente como a galinhada, Lobato vai além
discutindo uma outra questão. Adentrando na fábula esópica “O pavão e a gralha”,
acrescenta ao corvo a perspicácia da gralha. Tal como Esopo que exalta a sabedoria da
gralha como um requisito que supera o da beleza física do pavão, Lobato mostra a
superioridade do corvo explícita em suas sábias intervenções. Ao ser chamado de “bicho
preto, capenga, desengraçado [...], um tição de penas” o corvo não refuta essas
qualificações, ao contrário, aceita-as, como se percebe pela autocaracterização “um pobre
diabo como eu”. Semelhante à gralha esópica, o corvo além de ser capaz de reconhecer a
beleza do outro, deixa evidente o seu discernimento crítico da realidade. Ciente de sua
condição, o “pobre diabo” aponta ao seu interlocutor a verdade até então desconhecida pelo
pavão. No meio de tanta formosura, os “pés” ou então as “patas” do pavão seriam o senão,
o toque de desarmonia. Ao constatar a veracidade da perspicaz observação do corvo, o
orgulhoso pavão, desapontado, segue seu caminho.
A exaltação à sabedoria emanada pela fábula intensifica-se nos comentários feitos
pelas personagens do Sítio do Picapau Amarelo, que buscam aplicar a moralidade “não há
beleza sem senão” em situações do cotidiano. Lobato transcende, portanto, a moralidade

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esópica, pois além de enfatizar a sabedoria, seu mérito recai na reflexão a que leva o leitor,
indicando-lhe que na busca da perfeição há os “senões” que precisamos aprender a
reconhecer em nós mesmos e não somente nos outros.
Com a estratégia lobateana, as personagens do Sítio do Picapau Amarelo
adquiriram conhecimento de vida, desvendaram verdades antigas e souberam transpô-las
para o presente do mundo de sua vivência, atingindo, com isso, o propósito educativo da
fábula, que se processa duplamente: com as personagens e com os leitores. Estes, desta
feita, tomando contato com duas realidades: a da fábula e a do Sítio do Picapau Amarelo,
sentem a intensidade dos ensinamentos adquiridos. Nos diálogos entabulados pelas
personagens do sítio, o leitor apreende aspectos formais peculiares a esse gênero narrativo
e, principalmente, é levado a refletir sobre as moralidades e a verificar os seus efeitos no
mundo real.

Referências bibliográficas

ESOPO. Fábulas Trad. de Antônio Carlos Vianna. Porto Alegre: L&PM, 1997.
FEDRO. Fábulas de Fedro. 5ª ed. Trad. e estudo por Maximiano Augusto Gonçalves. Rio
de Janeiro: Livraria H. Antunes, 1957.
LA FONTAINE. Fábulas de La Fontaine. Trad. de Milton Amado e Eugênio Amado. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1989, II volumes.
LOBATO, Monteiro. Fábulas. 32ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
________________. A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1972.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: história, teoria, análise. 1ª ed. São Paulo:
Quíron; Brasília: INL, 1981.
GONÇALVES. Maximiano A. Fábulas de Fedro. Texto latino, ordem direta, tradução
justalinear e literária, com anotações da obra completa de Fedro. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Livraria H. Antunes, 1957.
PORTELLA, Ovaldo, A fábula. Revista Letras, UFPR, Curitiba, nº 32, pp.119-138, 1983.

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