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E aí, Fausto?

Continuo a flutuar neste mar de especulações, buscando palavras para descrever o nosso
zeitgeist – o “espírito de época”, o perfil das ideias e costumes do momento, – panóptico
demais para ser sintetizado em uma única fotografia. E você dissecou essa realidade muito
bem com seu bisturi surrealista. Hoje eu gostaria identificar tendências e extrapolá-las para o
futuro. Adivinhar que capítulos o tempo presente há de escrever nos livros de história, que,
segundo nos ensinam, só contam a versão dos vencedores. “Aos vencedores, as batatas”, diria
Quincas Borba; com o adendo de que hoje as batatas são transgênicas e assam ao micro-
ondas, como ilustrarei adiante.

Na última carta eu me gabei de ter nascido na crista da onda da revolução digital e ter acesso a
mais informação do que qualquer pessoa do recente século passado jamais sonharia. Isso vale
não apenas para o acesso, mas também para a nossa capacidade de gerar uma enormidade de
dados, tão imperecíveis quanto esquecíveis, que deverão perdurar pelo mesmo tempo que
seus suportes digitais. Isso significa que cada um de nós, hoje, tem a capacidade de legar uma
pequena montanha de lixo digital para a posteridade – textos, fotos, vídeos, trabalhos, artes,
históricos de navegação, de chat, comentários em redes sociais, fofocas, abobrinhas, arquivos
e mais arquivos, ad infinitum, ad nauseam... Dados virtualmente eternos! A cada minuto,
milhares de usuários de internet depositam vultosos terabytes em buracos negros de
arquivamento exponencial encerrados em servidores que ninguém ao certo sabe onde ficam,
mas que são como las brujas: puedes no creer, pero que los hay, los hay.

Eu disse virtualmente eternos? Aposto que qualquer pessoa com um perfil no Facebook tem
pelo menos um “amigo virtual” já desconectado deste mundo, cuja foto permanece ali,
indeletável, em sua lista de contatos, como um sutil memento mori. Acho muito curioso ver
como os perfis de gente morta se transformam em uma espécie de lápide virtual, ou muro das
lamentações, contanto que, em vez de flores, são depositadas mensagens de parentes, amigos
(já vi até um caso em que os familiares kardecistas de uma falecida postavam suas atualizações
do “além”). Chega a ser arrepiante pensar que, daqui algumas décadas, o usuário que se
conectar a uma rede social velha e esquecida terá grandes chances de se deparar com uma
necrópole de rostos, perfis e postagens congelados num imenso arquivo morto. Pois esse é o
destino das redes sociais, ao menos até inventarem a cremação de dados – ou até o sol nos
dar de presente uma bonita tempestade magnética.

Mas por que esse meu devaneio tétrico? Porque o processo de mumificação da informação
viabilizado pela internet hoje possibilita que a existência virtual de cada indivíduo medíocre e
ordinário permaneça fossilizada e... vire história – e a história possa ser acessada do ponto de
vista de cada um. É o sinal de que todos vamos passar, mas deixaremos nossa arte rupestre
cyberpunk gravada, em tintas muito frágeis, nesta pitoresca caverna invisível. E um dia, quem
sabe, arqueólogos de uma era pós-digital resgatarão os fósseis dos nossos dados. Essa nossa
troca de correspondências, por exemplo, Fausto, talvez esteja destinada a mostrar a esse
desbravador das catacumbas digitais que este nosso tempo-e-lugar é mesmo muito estranho.

Você comentou que a internet foi delineada por uma elite militar universitária e hoje é um
poderoso negócio de empresas surgidas no Vale do Silício. Qualquer efeito liberador de massas
não é o que parece, e eu concordo, até uma pílula de pseudoconsciência política é um produto
vendável e lucrativo na medida em que ninguém quer ser cabide de apelidos contemporâneos
como “coxinha”. Também gostei demais dessa sua frase: internets vão surgir. Em um ponto, lá
na minha última carta, eu falei do meu temor de que alguém muito poderoso resolvesse
derrubar a rede, e isso foi ingenuidade minha. Tecnologias em geral; processadores, chips,
linguagens de programação, conexões e até redes sociais são como a invenção da roda: não é
nada que possamos desaprender, ou que deixaremos de reproduzir, reinventar, desdobrar em
diferentes escalas.

E por mais que Facebook e Google estejam surfando na crista dessa onda, bem lá no fundo dos
seus escritórios superdescolados eles sabem que a onda é efêmera, e que vai passar na
velocidade estonteante da renovação das mídias. Reinventar-se é preciso, mas nem sempre
funciona. Isso me leva a crer que talvez não seja falsa aquela minha profecia sobre o Facebook
e outras redes sociais: hão de cair no esquecimento até virar necrópole. E quanto à sua
profecia, Fausto, aposto que também é verdadeira: internets surgirão. Outras redes, múltiplas
e cada vez mais sutis. Cada vez mais especializadas. Até que... – vou extrapolar – até que os
descendentes dos nossos atuais smartphones operem suas conexões com comandos cerebrais
diretos e, por fim, nos dê acesso à maior rede social possível: uma sociedade global conectada
por algo muito semelhante à telepatia. A nós, vencedores, as batatas transgênicas: todo o
pesadelo e o deleite do que vier depois... Guiar-se por sistema de GPS interno? Ter o cérebro
hackeado? Ser permanentemente monitorado? Talvez esse seja o triunfo do Big Brother de
George Orwell [aproveito para mandar um beijo para a NSA e outro para a CIA, que estão me
espionando], ou talvez um mergulho em somarrelaxação e o desaparecimento do nosso senso
crítico no oceano interminável de ruído do Admirável Mundo Novo [beijo, Rede Globo].

Enquanto escrevo esta carta, acompanho o caso do brasileiro detido em Londres, namorado
do jornalista que vazou as informações de Edward Snowden sobre a espionagem cibernética e,
para não esquecer, também denunciou a bisbilhotagem norte-americana nas redes brasileiras.
(Aliás, o Glenn Greenwald mora no Rio e pode ser seu vizinho, Fausto, e é claro que você vai
me conseguir um autógrafo se encontrá-lo). O Brasil mais do que nunca, está no olho desse
furacão – ou melhor, do ventilador, onde pessoas corajosas andam atirando coisas –, e não há
melhor lugar para tirar a fotografia panóptica de 360° do que o centro da confusão. Vivemos
dias cyberpunks, assim meio Neuromancer, meio Cidade de Deus, meio 1984. Dias distópicos. E
apesar de vigiados, fiscalizados, monitorados, ainda somos todos Amarildos em potencial,
passíveis de desaparecer em uma névoa de gás lacrimogênio e legar um perfil para a
posteridade na rede social.

Eu ainda queria falar do não-lugar, da Utopia, ir da Ilha de Thomas More ao inferno de Dante,
mas é algo que vou guardar para o último capítulo da nossa correspondência.

Um beijo, Fausto

Cristina Lasaitis

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