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Reprodução

Gonzaguinha
As faces do eterno aprendiz Pág. 11

Circulação Nacional Uma visão popular do Brasil e do mundo R$ 3,00

Ano 13 • Número 661 São Paulo, de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 www.brasildefato.com.br

Os perigos do fumo para


a agricultura do país
Nesta reportagem especial, mostramos que não são apenas os fumantes
que estão atrelados a um hábito do qual é difícil se livrar. O Brasil, líder
global na exportação de tabaco, oculta sob os dados econômicos um
quadro social de efeitos devastadores. Págs. 4, 5, 6, 7 e 8

Olimpíadas México
ISSN 1978-5134
No Rio, a privatização Jornalistas revelam como foi
do espaço público Pág. 9 o massacre de Iguala Págs. 14 e 15
Luiz Ricardo Leitão Frei Betto Silvio Mieli

De volta para o futuro? Turismo em Cuba Passou do ponto


Ávidos por postar algo “inusitado” nas Com o reatamento das relações diplomáticas Todo reality show condensa uma equação com
chamadas “redes sociais”, os cibernautas de entre EUA e Cuba, graças à mediação do as variáveis do neoliberalismo, darwinismo
plantão celebraram o dia em que Marty McFly papa Francisco, a ilha caribenha passa por social e hipervisibilidade. No programa
desembarca no futuro a bordo de sua máquina mudanças significativas. O país recebeu, ano Master Chef, acrescente-se o tempero
do tempo: 21 de outubro de 2015. Pág. 2 passado, 3 milhões de turistas. Pág. 3 culinário, devidamente gourmetizado. Pág. 3
2 de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015

editorial

E ainda não são os últimos degraus desta República


ENQUANTO nos bastidores na-
cionais e internacionais conspira-
do deputado de impedir que o pe-
dido de impeachment contra a pre-
Que os mais jovens de chegar ao ex-presidente e aos seus
mais próximos, sempre em nome de
quanto retardá-lo, disse: “Se eu for
bem tratado, pode ser que eu tenha
ções e articulações correm soltas na
disputa das riquezas (naturais e tec-
sidente Dilma avançasse, pergun-
távamos “em nome de quem ou do
aprendam, e nunca “defender a presidenta Dilma”, ele
tem buscado algum modo de pedir
boa vontade com o Governo, mas, se
não for, posso tomar minha decisão
nológicas) do nosso país, em espe-
cial no que diz respeito ao nosso pe-
que, articulava o ex-presidente?”.
Prosseguíamos: “E, se não se tra-
se deixem reféns moderação com relação ao deputado.
Quanto a firmar ou não acordos
mais rápido”. (in O Estado de S. Pau-
lo, 15.10.2015 - capa).
tróleo, a Petrobras e outras empre- ta de negociar o andamento do pro- de quem quer que formais..., esta não é a questão. Ho- Ora, há que haver um mecanismo
sas públicas, o Partido dos Trabalha- cesso de impeachment da presidenta, je, acordos podem ser feitos publica- legal (ou pelo menos uma delegacia
dores (PT) se dilacera internamen- que outra coisa (...) detém o deputa- seja e, menos ainda, mente, à viva voz daqueles neles in- de distrito) capaz de processar, punir
te, num processo de autofagia regi- do Eduardo Cunha para oferecer ao teressados: a primeira vez que o ex- e recolher chantagistas, do mesmo
do inicialmente por ambições pes- ex-presidente (...) que faz este último façam a classe -presidente foi a público pedir mo- modo que se tem para batedores de
soais e desencadeado publicamente atropelar toda a decisão do seu par- deração à bancada petista na Câma- carteira, exploradores do lenocínio,
em 2013. Desde então até o presen- tido, desconhecer a posição do nos- trabalhadora e todo ra, com relação ao deputado Cunha, etc. Como um presidente da Câmara
te, à ambição pessoal acrescentou-se so Governo e se expor do modo que foi já há alguns meses, quando este – fica impune, declarando publicamen-
o pânico de algumas figuras de proa, tem feito?” um povo reféns de sem qualquer cerimônia ou compos- te que sua decisão não se fundará nos
frente aos caminhos que vai toman- No que diz respeito à primei- tura – ameaçou que, caso a banca- ritos legais, mas na sua “boa vonta-
do a Operação Lava Jato. ra parte da pergunta “em nome de seus atos da do PT votasse contra ele para tirá- de”, a qual dependerá – não do direi-
Em nosso editorial da semana quem e do que articulava o ex-presi- -lo da Presidência da Câmara, ele re- to – mas do tipo de tratamento (be-
passada (Edição 660), “Por quem dente”, encontramos alguma respos- abriria o processo do sequestro, ma- nefícios) que venha a receber?
os sinos dobram?”, depois de cons- ta: em declaração ao jornal O Esta- nutenção em cárcere privado e as- – Sim, deveria ser caso de algemar,
tatar que nem a direção nacional do do de S. Paulo, ele explicou que não sassinato, em 2002, do então prefei- botar num camburão.
PT, nem a presidenta Dilma Rous- tinha qualquer mandado para as ne- to petista de Santo André (SP), Celso No entanto, é igualmente (ou
seff ou seu governo autorizavam ou gociações. Ou seja, era uma iniciati- Daniel, a partir de novos dados sur- mais?) grave, um ex-presidente da
concordavam com as iniciativas do va sua, pessoal. gidos das investigações da Lava Ja- República vergar-se refém perante
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Na sexta-feira (23), numa longa te disse entender que o PT não deve to, e que implicariam o ex-presidente tamanho canalha.
Silva de negociar com o presiden- entrevista à “Rádio Metrópole” (Sal- ter uma ação de “afundar o Cunha”, e seus ex-ministros José Dirceu e Gil- Mas, enfim, vivemos num país on-
te da Câmara – deputado Eduardo vador –BA), ele negou qualquer acor- acrescentando que o deputado “tem berto Carvalho. Desde essa primei- de vige o instituto jurídico da Dela-
Cunha, um acordo em que o ex-pre- do ou negociação no sentido de li- que ter o direito de defesa que eu ra ameaça (chantagem), muitas ou- ção Premiada...
sidente da República se comprome- vrar a barra do deputado Cunha, mas quero para mim, para Dilma, para tras semelhantes foram feitas – de Que os mais jovens aprendam,
teria a barrar no Conselho de Éti- fez sua (do deputado) defesa, pois – todo mundo. E se for culpado, vai pa- modo igualmente grosseiro, cafajes- e nunca se deixem reféns de quem
ca o pedido de destituição do depu- acrescentou – o governo da presiden- gar”. te e público. A mais recente, acon- quer que seja e, menos ainda, façam
tado Cunha da Presidência da Casa ta Dilma precisa dele (Cunha), para Vale a pena lembrar que, à medida teceu na quarta-feira (14). Afirman- a classe trabalhadora e todo um povo
e a cassação do seu mandato parla- várias votações do interesse do Pla- que a Operação Lava Jato vai se en- do que tanto poderá acelerar a aber- (povo = todos os explorados e opri-
mentar, em troca do compromisso nalto. Em nome disto, o ex-presiden- veredando por um caminho que ten- tura do impeachment da presidenta, midos) reféns de seus atos.

opinião Ademar Bogo crônica Luiz Ricardo Leitão

De volta para o futuro?


Norma Bates/CC

ÁVIDOS POR POSTAR ALGO “inusitado” nas chamadas “redes so-


ciais”, os cibernautas de plantão celebraram, na última semana, o
dia em que Marty McFly (o protagonista do filme De Volta Para o
Futuro 2), desembarca no futuro a bordo de sua máquina do tem-
po: 21 de outubro de 2015. Os leitores mais novos decerto não se
lembram da série dirigida por Robert Zemeckis, cujo primeiro tí-
tulo foi lançado no Brasil em 1985, ou seja, há trinta anos, com o
ator Michael J. Fox no papel principal. Pois ela ressurgiu com toda
a força no imaginário global, não só por causa das invenções tec-
nológicas que a ficção previu (monitor de tela plana, acesso biomé-
trico, sensor de movimento, cinema 3D, tablets, drones, skate voa-
dor, etc.), mas também pelo inevitável confronto que se impõe en-
tre o mundo futurista concebido pelo cineasta e a realidade esqui-
zofrênica que a sociedade hoje vivencia.
A julgar pelo atual panorama político-social de Bruzundanga, a
manchete do sempre mordaz “sensacionalista” é mais do que opor-
tuna: “Racismo, xenofobia, intolerância: McFly chega em 2015, mas
acha que é 1955”. De fato, sob a batuta de Eduardo Cunha na Câ-
mara e de Renan Calheiros no Senado, após décadas de tutela do

Acertar as contas
Congresso pelo imortal José Sarney, como imaginar que isto aqui
é o futuro? Para quem enfrentou a hipocrisia udenista nos anos de
1950/60, com sua prédica virulenta contra a corrupção e sua defesa
intransigente da tradição e da família, o que dizer do discurso mora-
lizante de figuras como Cunha, Bolsonaro, Feliciano & Cia (autores
NOS ÚLTIMOS DEZ ANOS, o go-
verno brasileiro pagou R$ 2,5 tri-
Governar em o que fazer. Surge então uma opo-
sição partidária que ataca medidas
de projetos tão retrógrados que fariam a Klu Klux Klan invejá-los
por tamanho retrocesso social)?
lhões em juros da dívida pública e,
pelo que indica, continuará a pa-
tempos de crise administrativas normais como se
fossem crimes, na intenção de pro-
gar porque os credores têm em su-
as mãos títulos que representam R$
é fazer acertos. teger os verdadeiros criminosos,
credores de uma dívida que já foi
Pelo visto, a regra de Lampedusa não
2,6 trilhões e não fazem questão ne- Essa é a hora da paga em juros. se alterou: a cada crise, muda-se para
nhuma em quitá-los. Sendo que o Nesse sentido, se o governo qui-
Brasil paga os juros mais altos do pressão social sesse honrar alguns compromissos não mudar
mundo, a dívida se tornou um gran- para os trabalhadores terem ainda
de negócio. Os dados mostram que acertar na política algum motivo para defendê-lo, de-
no primeiro semestre de 2015 o go- veria tomar duas medidas imedia-
verno pagou R$ 211 bilhões; 60% a e obrigar o governo tas: em primeiro lugar fazer uma Quem tem boca fala o que quer... Por isso, ao ser acuado pelas de-
mais do que pagou no mesmo pe- auditoria da dívida, apresentar os núncias da Justiça Federal sobre a sua participação visceral no me-
ríodo de 2014 e, se mantiver a taxa acertar as contas verdadeiros criminosos das pedala- gaesquema de corrupção da Petrobras, o “ilibado” Cunha não hesi-
de juros no patamar de 14,25%, pa- das econômicas e, enquanto reali- tou em propor uma lei que pretende inviabilizar as práticas legais
gará ainda mais no segundo semes- com os golpistas za a auditoria, estabelecer uma ta- de aborto já existentes no país (suspendendo a venda da pílula do
tre deste ano. xa fixa de juros para a dívida. dia seguinte e expondo à humilhação pública as vítimas de estupro).
Esse assalto aos cofres públi- capitalistas Sabemos que os bancos públicos Para cúmulo da desfaçatez, o fanfarrão ainda ousa declarar que o
cos por aqueles que se denominam e privados funcionam com diferen- aborto é “uma estratégia dos Estados Unidos para controlar a popu-
“credores financeiros”, se dá pela tes taxas de juros, com as quais os lação brasileira” (!).
concordância da política econômi- clientes contratam créditos para in- Convém frisar que a crescente reação sexista em Bruzundanga não
ca do país. No caso brasileiro, des- vestimentos, fazem empréstimos e é fato isolado. Conforme declarou a nadadora Joanna Maranhão, pro-
de que se criou o real, em 1º de ju- realizam os seus pagamentos. No cessada por seu treinador após denunciar que ele abusara sexual-
lho 1994, adotou-se a receita de entanto, o governo que considera mente da atleta na infância, “a vítima não tem voz”. De fato, intimida-
elevar a taxa de juros para contro- o débito com alguns poucos credo- das pela violência que sofrem, muitas não registram Boletim de Ocor-
lar a inflação, por isso é que, a ca- res uma dívida pública, paga a eles rência (BO) de estupro – e passam a responder a processos por da-
da decisão tomada pelo Banco Cen- uma taxa de 14,25% e, a dívida pú- nos morais movidos por seus próprios algozes. Infelizmente, a cultu-
tral, a variação dessa taxa, significa blica da caderneta de poupança, ra patriarcal da casa-grande não se dissolve no ar; que o diga a chapa
milhões de reais para mais ou pa- que beneficiaria milhões de poupa- apoiada pelo governador Pezão nas eleições à reitoria da UERJ, cujo
ra menos. dores, dispensa uma taxa que não candidato masculino possuía nome e sobrenome, ao passo que sua vi-
Com os juros altos e a crise eco- chega a 8,5% ao ano. Ora, se o go- ce exibia apenas o prenome (mais uma proeza de nossa modernização
nômica provocada pela queda dos verno quiser aumentar a arrecada- conservadora: conjugar o toyotismo com o coronelismo acadêmico).
negócios internacionais, fazem o ção para cumprir os seus compro- Aliás, se não bastasse a investida misógina, o ilustre parlamento da
Brasil produzir e exportar menos missos com a população, enquan- República ocupa-se também de gestar a sinistra Lei “Antiterrorismo”,
mercadorias. O governo, diante da to realiza a auditoria, basta estabe- cujo objetivo precípuo é criminalizar os movimentos sociais, amor-
queda da arrecadação, só viu duas lecer que a taxa de juro para os cre- daçando os que lutam contra a desigualdade e a exclusão na “Pátria
saídas: a primeira foi cortar os gas- dores da dívida será o mesmo da Educadora”. Pelo visto, a regra de Lampedusa não se alterou: a ca-
tos, principalmente das áreas so- trar soluções para os problemas, é caderneta de poupança. Em seis da crise, muda-se para não mudar. Meus pêsames a quem imagina-
ciais como saúde, educação, mora- o que estão fazendo as centrais sin- meses pouparia quase R$ 200 bi- va que as marchas de 2013 poderiam transformar a província. Como
dia, etc e, a segunda, aumentar im- dicais e movimentos sociais. No lhões de reais. escreveu Vladimir Safatle, a política brasileira se tornou “o ringue de
postos. Nada falou, nem vai falar, entanto, o hábito da democracia Então é isso, governar em tempos atores destituídos que lutam desesperadamente para impedir que al-
em cortar algum centavo do paga- representativa, reserva para a po- de crise é fazer acertos. Essa é a ho- go realmente novo aconteça”, ainda que, para justificar sua imobilida-
mento dos juros da dívida, que se- pulação o espaço das pesquisas de ra da pressão social acertar na po- de, tratem de inventar um impeachment.
ria a solução para manter o dinhei- opinião para avaliar as administra- lítica e obrigar o governo acertar as
ro em caixa. ções. Por isso, quando surgem as contas com os golpistas capitalistas. Luiz Ricardo Leitão é doutor em Estudos Literários
É muito importante quando uma crises, baixam as notas e fazem cair (Universidade de La Habana) e professor associado da UERJ,
nação está em crise que todos os ci- a popularidade, os governantes se Ademar Bogo é filósofo, é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil e
dadãos se empenhem em encon- escondem e a população não sabe escritor e agricultor. Aluísio Machado: Sambista de Fato, Rebelde por Direito.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG),
Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais: Achille Lollo (Roma – Itália),
Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP),Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper
(Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Le onardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ), Pilar Oliva (São Paulo – SP) • Ilustradores: Latuff,
Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Maria Aparecida Terra • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira •
Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Juliana Fernandes • Endereço: Alameda Olga, 399 – Barra Funda – São Paulo – SP CEP: 01155-040 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 4301-9590 – São Paulo/SP –
redacao@brasildefato.com.br • Gráfica: Taiga • Distribuição: Dinap Ltda. – Distribuidora Nacional de Publicações • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete
Monteiro, Beto Almeida, Dora Martins, Frederico Santana Rick, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Neuri Rosseto, Paulo
Roberto Fier, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sergio Luiz Monteiro, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131–0800 ou assinaturas@brasildefato.com.br • Para anunciar: (11) 2131-0800
de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 3

instantâneo Paulo Kliass

A recessão do
“austericídio”
PASSADOS 10 MESES de implementação de uma po-
lítica econômica marcada pela ortodoxia e pelo con-
servadorismo, os resultados continuam a vir à tona
com toda a sua intensidade. Desde que a presidenta
Dilma decidiu entregar o comando da economia a um
genuíno representante do sistema financeiro, os ris-
cos de que o governo conhecesse uma virada anti-de-
senvolvimentista tornaram-se elevados.
As propostas do ministro Joaquim Levy para o Bra-
sil se resumem basicamente ao chamado ajuste fiscal.
A obsessão em perseguir metas inatingíveis de supe-
rávit primário tem levado à política de cortes de gas-
tos orçamentários em áreas sensíveis e estratégicas.
Ao invés de reduzir as despesas com o pagamento de
juros da dívida pública ou com a garantia de reposição
das perdas dos especuladores no mercado de câmbio,
o governo comete um verdadeiro “austericídio”.
A diminuição dos valores atribuídos a programas
sociais essenciais vem acompanhada da queda tam-
bém nos recursos públicos destinados a obras em in-
fraestrutura. Na direção contrária, o Copom mantém
a taxa referencial de juros - Selic - nas alturas e isso
tem por efeito inibir o consumo das famílias e o inves-
timento das empresas. O Brasil continua ostentando
Frei Betto a medalha de campeão mundial nesse quesito e o im-
pacto dos gastos com juros no orçamento aumenta a
cada instante.

Turismo em Cuba Por outro lado, o Banco Central não cumpre com
sua função de órgão regulador e fiscalizador do siste-
ma financeiro. As taxas de juros cobradas pelos ban-
cos para as operações de empréstimo são elevadís-
RETORNEI A CUBA em meados de outubro para receber razões de saúde. A ilha oferece tratamentos a baixo custo simas, bem como as tarifas embutidas nos serviços
o título de Doutor Honoris Causa em Filosofia, da Uni- e tem expertises em ortopedia, oncologia, dermatologia e prestados. O resultado é que as instituições bancárias
versidade de Havana, fundada pelos frades dominicanos outras especialidades. Em 2012, o turismo de saúde aten- seguem apresentando lucros bilionários em seus ba-
em 1728. deu 8.500 pacientes, o que representou uma arrecadação lanços, enquanto todos os demais segmentos da eco-
Com o reatamento das relações diplomáticas entre EUA de 24 milhões de dólares. nomia real mergulham em suas perdas.
e Cuba, graças à mediação do papa Francisco, a ilha cari- O país está preparado para a avalanche estadunidense? A consequência desse quadro de incerteza e deses-
benha passa por mudanças significativas. Não. Precisa ampliar sua malha hoteleira, já melhorada tímulo é a redução da atividade econômica e o apro-
O país recebeu, ano passado, 3 milhões de turistas. por investimentos espanhóis, canadenses e ingleses. Toda fundamento da recessão. As informações das estatís-
Uma vergonha para o Brasil, se considerarmos que o nos- propriedade de grande porte é em parceria público-priva- ticas oficiais só fazem confirmar tais dificuldades. As
so país, 64 vezes maior, dispõe de um potencial turístico da: 49% capital estrangeiro e 51% Estado cubano. vendas no comércio apresentam quedas acentuadas
equivalente ao seu tamanho e recebe apenas 6 milhões de Um dos entraves a resolver é a existência de duas moe- a cada novo mês que passa. O desemprego apresen-
turistas por ano. das: o CUC para turistas e o CUP para cubanos. O primei- ta uma tendência de elevação, voltando a números de
Cuba tem política turística, o que não temos. Nosso tu- ro vale 25 vezes mais do que o segundo. Esse foi um recur- mais de 10 anos atrás. Os dados relativos às falências
rismo gira em torno do lazer (praias e Carnaval). Lá, além so para enxugar o mercado negro de dólares, já que en- de empresas confirmam esse quadro recessivo.
do lazer, se exploram turismos científico, cultural e ecoló- tram no país, vindo de cubanos residentes nos EUA, 1 bi-
gico. E pensar que abrigamos a Amazônia... lhão de dólares ao ano.
A previsão é de que a reaproximação dos EUA deverá
dobrar o número de turistas nos próximos anos: 6 mi-
Porém, fez crescer a desigualdade social entre os cida-
dãos com acesso ao CUC, em especial os que trabalham
Enquanto não houver uma
lhões. Metade virá dos EUA, que ainda hoje proíbe a seus
cidadãos o turismo individual a Cuba. Por incrível que pa-
no setor turístico, e os demais, embora tais diferenças
ainda não produzam moradores de rua, máfias de drogas,
mudança profunda na
reça, um estadunidense pode comprar, numa agência de
viagens, um pacote turístico para ir a Coreia do Norte ou
crianças fora da escola e dificuldade de acesso à saúde e
educação – que são gratuitas e de qualidade.
orientação da política econômica,
Irã. Não para Cuba. O bloqueio, que ainda vigora, impõe O que será de Cuba quando for suspenso o bloqueio im- o quadro só deve piorar
uma série de restrições aos ianques. Por enquanto, a eles posto pelo Congresso dos EUA? Para a maioria dos cuba-
só é permitido visitar Cuba em grupos de idosos ou por nos e a Igreja Católica presente no país, nem pensar em
razões de tratamento médico e interesses cultural, cientí- retornar ao capitalismo. Não querem que o futuro de
fico ou religioso. Cuba seja o presente de Honduras ou Guatemala. Para a Diante de tal realidade, a prática da chamada “aus-
Findo o bloqueio, acredita-se que haverá uma avalan- Revolução, o desafio é aprimorar o socialismo, flexibili- teridade fiscal” se revela uma medida equivocada,
che de estadunidenses na ilha caribenha. Sobretudo por zando a economia estatizada. pois apenas contribui para piorar a tendência da es-
tagnação. Como a nossa estrutura tributária é volta-
da, basicamente, para a produção e o consumo, a di-
Silvio Mieli minuição recessiva reduz também a capacidade de ar-
recadação do Estado. Com menos receitas, a lógica do

Passou do ponto
superávit primário conduz as autoridades governa-
mentais a buscarem maior redução ainda das despe-
sas com saúde, educação, previdência social e outras
semelhantes.
Assim, a postura austera da rigidez fiscal agrava a
TODO REALITY SHOW condensa uma equação com as O programa é turbinado por uma grande mobilização crise em todas as suas dimensões: social, política e
variáveis do neoliberalismo, darwinismo social e hipervi- nas redes sociais. E mensagens de assédio, de caráter cla- econômica. Revela-se um verdadeiro tiro no pé e um
sibilidade (sociedade do espetáculo). No mais recente su- ramente pedófilo foram registradas, gerando uma grande atentado contra a maioria da população, que não tem
cesso dessa modalidade, o programa “Master Chef” (TV mobilização e até a formação de uma rede a partir da tag como se proteger dos efeitos nefastos provocados pe-
Bandeirantes), acrescente-se o tempero culinário, devida- #primeiroassédio — quando homens e mulheres compar- la recessão e pelo desemprego. Trata-se de um “auste-
mente gourmetizado. tilham a primeira vez em que sofreram algum tipo de as- ricídio” cometido contra o povo brasileiro.
Que os marmanjos se submetam a estes rituais de so- sédio. Muito se discutiu, mas foi dada pouca ênfase a um Enquanto não houver uma mudança profunda na
frimento (na expressão cunhada pela socióloga Silvia Via- aspecto importante (sempre voltamos à questão da regu- orientação da política econômica, o quadro só de-
na) e mergulhem numa experiência de servidão voluntá- lação da mídia!). É razoável exibir das 10h às 12h da noi- ve piorar. A concepção que embasa a ação do minis-
ria, tendo como pano de fundo panelas e fogões, já seria te, na TV aberta, um programa que explora a participação tro Levy resume-se em propor tais cortes de despe-
questionável. Mas que esta experiência seja agora esten- e a imagem de menores de idade? sas, com a esperança de que isso provoque – por si só
dida a garotos de 9 a 13 anos (a versão júnior do “Mas- Num texto publicado originalmente no site Medium e – uma reviravolta nas expectativas e a economia vol-
ter Chef”), aí entramos no capítulo “pedagogia da servi- reproduzido na Carta Capital, a jornalista Carol Patroci- te ao crescimento de forma natural, como em um pas-
dão voluntária”. Sim, porque trata-se de seguir o líder co- nio pergunta, afinal de contas, o que deveria fazer a me- se de mágica.
zinheiro, submeter-se aos critérios éticos, estéticos e culi- nina do programa que foi assediada. “Abrir mão do sonho Na verdade, o momento exige uma postura bastan-
nários dos chefes de sucesso, que ensinam como as coisas, de ser chef? Esconder-se atrás de roupas masculinizadas? te distinta. O governo precisa demonstrar sinais de
afinal, “devem ser feitas” para se acertar o ponto de cozi- Encontrar maneiras de ser menos atraente? Essas são sa- que pretende ter mais iniciativa para sair da crise, es-
mento e atingir o sucesso, a glória, a fama. ídas que todas nós, mulheres, encontramos a vida toda, timulando a retomada da atividade da economia de
O desdobramento dessa fórmula às crianças não de- mas não são saídas que queremos oferecer para as meni- forma pró-ativa e não apenas no aguardo da solução
veria nos surpreender, já que em muitas escolas é exa- nas. Elas merecem um caminho melhor do que o nosso.” miraculosa provocada pela recessão.
tamente esta ladainha que se aplica. Ou seja: competi- Perfeito, mas será que as meninas não mereceriam um ca-
ção, liderança, empreendedorismo e educação financei- minho melhor do que o oferecido pela servidão e pela hi- Paulo Kliass é doutor em economia pela
ra. Mas no programa em questão, entre um filé de javali pervisibilidade midiáticas, que, de resto, sempre reduzi- Universidade de Paris 10 e integrante da carreira
e outro, é a imagem dos menores que passa a ser expos- ram a mulher ao papel de objeto sexual, desde a infância de Especialista em Políticas Públicas e Gestão
ta publicamente. até a terceira idade? Governamental, do governo federal.

fatos em foco
da Redação
Bancários conquistam 10% beu acampados e assentados de todo o Brasil, Espanha registra queda de integração vertical necessário a qualquer
e encerram greve que expuseram seus produtos da roça e da no desemprego empresa de petróleo e não se justifica sequer
Após 21 dias de paralisação nacional, ban- agroindústria, venderam gêneros da reforma O desemprego na Espanha registrou sob a lógica do preço de mercado.
cários e financiários aprovam retorno ao tra- agrária, ofereceram pratos da cozinha regional, queda no terceiro trimestre, chegando a
balho. Assembleias foram realizadas no dia 26 promoveram seminários e eventos culturais, 21,18%. É o melhor resultado desde dezem- “Lista suja” do trabalho escravo
de outubro. O índice obtido junto à Fenaban é atraindo mais de 150 mil pessoas ao local. bro de 2011, segundo dados do governo. é constitucional, afirma Janot
10% para salários, Pisos e PLR - inflação medi- Nos últimos 12 meses, o número de pessoas A chamada “lista suja” do Ministério do Tra-
da é de 9,88%. Para vales-refeição, alimenta- OMS classifica carne processada desempregadas caiu para 576.900. A previ- balho, que cita empresas relacionadas com a
ção e 13ª cesta, o aumento é de 14%. Caso saia como alimento cancerígeno são é que o desemprego retroceda a 21,1% prática do trabalho escravo, é constitucional,
acordo, prevê-se entre 63% e 72% de anistia Carnes processadas – como salsicha, pre- até o final de 2015, em relação aos 23,7% do segundo parecer do procurador-geral da Re-
dos dias parados. “Os banqueiros queriam sunto, linguiça, hambúrguer e bacon – foram ano anterior. (AFP) pública, Rodrigo Janot, divulgado dia 26 de
impor reajuste abaixo da inflação. Nossa luta classificadas como alimentos cancerígenos outubro pela PGR. O documento foi enviado
fez com que o índice dobrasse, saindo de 5,5% para seres humanos, conforme divulgado dia FUP ingressa com Ação Civil Pública ao STF, que aprecia uma ação direta de incons-
para 10%”, afirmou a presidenta do Sindicato 26 de outubro pela Organização Mundial da para impedir venda da Gaspetro titucionalidade contra portarias interministe-
de São Paulo, Juvandia Moreira. Saúde (OMS). Já a carne vermelha, incluindo No dia 26 de outubro, a Federação Única riais que estabelecem regras para inclusão de
partes do boi, porco, carneiro, bode e cavalo, dos Petroleiros (FUP) ingressou com uma pessoas jurídicas no cadastro. Janot, inclusive,
Feira do MST vende 220 toneladas foi classificada como alimento de provável Ação Civil Pública na Justiça Federal contra a não reconheceu legitimidade na entidade que
e reforça a causa dos sem-terra risco cancerígeno. A decisão foi tomada pela Petrobras, na tentativa de impedir a venda de entrou com a ação, a Associação Brasileira de
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Agência Internacional de Pesquisa do Câncer 49% das ações da subsidiária Gaspetro. Se- Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) – que
Terra (MST) realizou sua 1ª Feira Nacional da e levou em consideração evidências de que o gundo a FUP, a venda anunciada após a últi- no final de 2014 conseguiu suspender a divul-
Reforma Agrária entre os dias 22 e 25 de outu- alto e frequente consumo de carne processa- ma reunião do Conselho de Administração da gação da lista, por decisão liminar – por não
bro no Parque da Água Branca. O evento rece- da provoca câncer colorretal. empresa, dia 23 de outubro, rompe o modelo provar sua representatividade nacional.
4 de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 brasil 5

Sob a fumaça, a dependência Fotos: Gustavo Nunes


A doença do suicídio
ESPECIAL Não são de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do
apenas os fumantes que Sul e Venâncio Aires (RS)
estão atrelados a um O Rio Grande do Sul é um dos esta-
hábito do qual é difícil dos que reúnem os melhores indicado-
res sociais no Brasil. Na contramão dis-
se livrar. O Brasil, líder so, está à frente também em suicídios,
causa de tragédias familiares e debates
global na exportação efervescentes entre pesquisadores. As
de tabaco, oculta sob os estatísticas do povo gaúcho atingem o
dobro da média nacional. Entre 2007 e
dados econômicos um 2011, o estado teve 10,2 mortes por sui-
cídio a cada 100 mil habitantes. Dados
quadro social de efeitos do Ministério da Saúde mostram que
devastadores nove das vinte cidades acima de 50 mil
habitantes que tiveram mais casos pro-
porcionais estavam no Rio Grande do
Sul. A maioria, no Vale do Rio Pardo.
João Peres e Moriti Neto Apesar de estar entre os municípios
de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do mais ricos do estado, Venâncio Aires,
Sul e Venâncio Aires (RS) com 69 mil habitantes, teve 79 casos em
da Agência Pública cinco anos, o que equivale a 23,1 para
cada 100 mil habitantes, na média ex-
DIFÍCIL ACREDITAR que o solo de on- traída do período pesquisado pelo mi-
de antes só brotava fumo, hoje dê mo- nistério. Isso deixa a cidade numa pre-
rangos tão saborosos. Nem é necessá- ocupante e mórbida segunda colocação
rio açúcar: basta colher e experimentar na contagem dos suicídios no país e na
o fruto saído direto da terra. Isso é ape- primeira em solo gaúcho.
nas parte do trabalho liderado por um Em uma cidade que possui baixo ín-
rapaz de 20 anos – e que aparenta ter dice de criminalidade, a polícia se ocu-
menos idade. O nome é Anderson Ro- pa muito da investigação de suicídios. E
drigo, membro da família Richter. A as- a hipótese predominante ao senso co-
cendência é alemã, algo que fica expres- mum é a influência da cultura alemã e
so no sotaque. Os antepassados che- o rigor trazido por ela. Do ponto de vis-
garam ao Brasil durante o grande flu- ta da saúde, a informação é que 10% dos
xo imigratório de alemães no século 19, leitos do principal hospital local são re-
caso da maioria das pessoas que mora servados para a psiquiatria e a prefei-
na região do Vale do Rio Pardo, no inte- tura investe em programas de preven-
rior do Rio Grande do Sul, especialmen- ção, com internações e grupos de ajuda.
te nos municípios de Santa Cruz do Sul Uma unidade do Centro de Valorização Folhas de fumo se espalham pelas terras de 4 mil famílias em Santa Cruz e 37 mil em Venâncio
e Venâncio Aires. Os dois são uma espé- Resistência e libertação: Anderson e Micaela saíram do cultivo do fumo para a agroecologia da Vida (CVV) foi instalada na cidade.
cie de capital informal da produção de Contudo, abrir o leque dos motivos de até a exportação, gera riquezas anuais uma série de fatores. Assim, um grupo anos de 1990, a tomar medicamentos
fumo do Brasil, sede das principais em- gente se libertou com isso. Tiramos os nas plantas, se mais ou menos do que ras que não a abandonam. “A fumagei- suicídios com os moradores, autorida- superiores a R$ 600 milhões, o que re- de médicos não tem condições de ana- fornecidos pela prefeitura para conter
presas do setor. Venâncio, com pelo me- agrotóxicos das nossas vidas e das vidas em outros tipos de lavoura, era neces- ra defende que é a nicotina que tem na des e associações é um tabu. presenta cerca de 70% do valor adicio- lisar alterações no campo eletromagné- os efeitos da depressão. “Como as la-
nos 3,7 mil famílias envolvidas na cul- das pessoas que compram nossos pro- sário encarar a realidade: os agroquími- folha do tabaco que faz mal, mas a gente A Associação dos Fumicultores do nado do município”, defende. tico (pequenos campos magnéticos que vouras envolvem toda a família na pro-
tura, segundo estimativas da prefeitura dutos. E saímos da cultura do fumo, que cos fazem entrar num ciclo penoso, pes- sabe que o agrotóxico tem parte aí”, lem- Brasil (Afubra), que tem sede na re- dão estabilidade e equilíbrio às molé- dução, porque o cultivo é muito traba-
da cidade, é conhecida também por ser tira a autonomia do agricultor, descon- soas adoecem e a terra também. Não so- bra a jovem, que relacionou seus estudos gião, rejeita a relação dos suicídios com Estudos culas do corpo humano) de pessoas ex- lhoso, as crianças também participam
a capital da erva-mate e carrega ainda o sidera o saber dele. A empresa fumagei- bra matéria orgânica para o solo. “Con- universitários a pesquisas sobre o tema. o uso de agrotóxicos, mas, ainda assim, Entretanto, ainda nos anos de 1990, postas a praguicidas ou agrotóxicos e, se e ficam expostas”, explica o agrônomo.
incômodo posto de ser uma das líderes ra que faz contrato com ele decide tudo. forme não tem matéria orgânica, o solo Aos poucos, os pais de Mica, como a faz questão de afirmar que, hoje, o com- o primeiro arejamento de ideias sobre eles não têm capacidade de avaliar isso, Segundo Pinheiro, o trabalho com o fu-
de suicídios no país. O agricultor não é dono do processo que vai se degradando e a planta não conse- moça é chamada pelos familiares, dimi- posto é pouco utilizado nas lavouras. Já essa questão veio com uma pesquisa da o resultado do trabalho destoa da reali- mo é algo que necessita de muito esme-
O terreno na comunidade de Linha pratica na própria terra. Ele é só mão de gue se desenvolver. Os próprios adubos nuíram a produção de tabaco. Nos úl- o Sindicato Interestadual da Indústria Universidade Federal do Rio Grande do dade”, sentencia Sebastião Pinheiro. ro do agricultor. “O agricultor que culti-
Santana em que se localiza a proprie- obra”, critica Anderson Rodrigo. sintéticos perdem a eficácia, pois se es- timos anos, plantam, em média, “ape- do Tabaco (SindiTabaco), que repre- Sul (UFRGS), que trouxe para o centro va o fumo tem uma mão de obra muito
dade de Anderson, em Venâncio, era Entre a década de 1950 e o início dos palham pela terra e a planta absorve só nas” 60 mil pés. Passaram, assim co- senta as empresas, divulga a posição de do debate o uso de agrotóxicos chama- qualificada, mas é mal remunerado e fi-
grande quando Adolfo Richter, o pri- anos 2000, o fumo carregou “tempos no ponto em que está a raiz. Então, tem mo Heitor, a investir no leite, mas ain- que “atrelar casos de suicídio ao uso de dos organofosforados como causa para “A classificação é enganosa para atender ca exposto a doenças terríveis. Enquan-
meiro antepassado de que ele tem no- dourados” para Venâncio Aires e região. que aumentar a dosagem para chegar da têm medo: não estão certos de que agrotóxicos na cultura do tabaco é uma o alto número de suicídios entre fumi- to isso, uma associação como a Afubra
tícia, chegou. As casas, a igreja, muito O tabaco dava dinheiro e, segundo os Ri- ao que ela precisa para crescer. E, co- “vai dar” se abolirem o fumo de suas vi- afirmação inconsistente”. O argumen- cultores. O trabalho indicava a perspec- aos interesses da indústria do veneno. enriquece com o ciclo produtivo do ta-
se construiu em torno dela. Outros Ri- chter, era mais fácil se concentrar “só em mo o fumo toma todo o espaço da terra das e partirem para outra cultura. “Eles to de que lança mão a entidade é que, tiva de o veneno causar distúrbios com- baco. Vá até uma loja da associação, tem
chter vieram, formaram as próprias fa- uma coisa”. “Era como o cara da fábri- e as empresas colocam metas de tempo têm muita dívida, de compra de máqui- dos dez municípios com maior índice portamentais no agricultor.
Assim, a periculosidade e a insalubridade supermercado, eletrodomésticos. Já vi
mílias. Dividiram a terra. E o fumo se ca que aperta só um botão. As pessoas se e quantidade para o agricultor entregar, nas. Mesmo a terra, ainda estão pagan- de tentativa de suicídios no Rio Gran- Passadas duas décadas, a Pública en- a que estão expostos os agricultores não vendendo até automóvel”, diz.
espalhou por todos os pedaços. Ander- especializam em plantar fumo, sem per- o raciocínio é usar agrotóxico o tempo do para a empresa”, esclarece a jovem. de do Sul, “apenas” três possuem “gran- trevistou o engenheiro agrônomo e flo- Autor do livro Fumo: servidão mo-
son não escapou a essa herança. Con- ceber que nem isso é de verdade, porque inteiro”, detalha Anderson. Anderson acredita que a dificulda- de” produção de tabaco – Venâncio Ai- restal Sebastião Pinheiro, hoje aposen- têm tamanho no Brasil, literalmente” derna e violação de direitos humanos
ta que, quando se deu por gente, esta- chegam os técnicos das empresas e di- Mesmo nessas condições, Heitor só de em encontrar alternativas ao taba- res, Santa Cruz do Sul e Canguçu. tado do cargo de professor da UFGRS, (Terra de Direitos, 2005), o também
va cercado por tabaco. “Nem vi aconte- zem como e quando tem que fazer”, diz o saiu do plantio do fumo em 2010. Atu- co passa pela falta de organização. Pa- mas ainda ativo no Núcleo de Economia pesquisador Guilherme Eidt Gonçalves
cer. Quando eu nasci, já era assim fa- jovem produtor. Anderson se refere à fi- almente, cria gado leiteiro e auxilia os ra ele, os agricultores engolem o siste- Alternativa da universidade. Ele foi um de Almeida, especialista em direito sani-
zia muito”, conta. E foi com a presença gura do orientador das fumageiras, que, filhos nos cultivos agroecológicos. Ele ma imposto pelas fumageiras e se aco- “O agricultor que cultiva o dos responsáveis pela pesquisa, divul- De acordo com o engenheiro, a maio- tário pela Fiocruz, chama atenção para a
intensa desse monocultivo que ele cres- na realidade, é quem dita as regras de queria ter parado antes, mas tinha dívi- modam. E, se buscam uma saída, vão gada em 1996, que já avaliava a relação ria dos agrotóxicos é responsável por al- conexão entre os meses de uso mais in-
ceu. Ao lado dos pais, Heitor e Marilei, como o plantio tem de ser durante todo da com uma fumageira, feita na aquisi- geralmente na direção de outra cultu- fumo tem uma mão de obra entre o índice de suicídios, o cultivo de terações no comportamento das pesso- tenso de agrotóxicos nas lavouras de fu-
auxiliou no plantio até os 14 anos, em o ciclo produtivo. “É esse cara que che- ção de produtos e equipamentos previs- ra que os empurra para condições se- fumo em Venâncio Aires e os agrotóxi- as, o que, entre diversos males, leva à mo (outubro, novembro e dezembro) e o
2009. Foi então que começou a virada. ga e diz ao agricultor: ‘Por que você vai ta em contrato com a empresa. “Sempre melhantes, com a perda da autonomia
muito qualificada, mas é mal cos. Pinheiro diz que novos estudos não predisposição ao suicídio. Ele conta que período com maior número de suicídios.
Naquele ano, começou os estudos de plantar horta, se você pode plantar fumo quando eu tinha dívida, o preço que pa- e do saber camponês. “Isso não é saída. remunerado e fica exposto a chegaram a nenhuma conclusão porque analisou documentos internacionais ci- O mês de abril, que apresenta também
agroecologia na Escola Família Agrí- naquele pedaço de terra?’. E aí, quando gavam pelo fumo não era bom, foi difí- O agricultor tem que ser o dono do pro- “destoam da realidade”. O pesquisador vis e militares e encontrou elementos índices altos de suicídio, coincide com a
cola de Santa Cruz do Sul (Efasc), on- você vê, já não faz nada de diferente do cil de sair.” cesso e só vai ser se usar aquilo que ti- doenças terríveis” diz que a causa do aumento de casos de científicos que comprovam a existência época da preparação dos canteiros pelos
de se formou, em 2011. Atualmente es- que a empresa manda fazer e outras cul- A saída se deu com o leite dado pe- ver de experiência em diversas culturas. suicídio e depressão na região é clara: da depressão causada por intoxicação, plantadores de fumo, afirma Eidt.   
tudante do curso superior de Tecnolo- turas são abandonadas”, comenta. las vacas da propriedade e a diversifica- Se sair do fumo de um ano para o ou- “As pessoas, adultas ou não, colhem fu- desencadeadora de suicídios. Sebastião Pinheiro lembra que o grau
gia em Agroecologia na Horticultura, na ção da produção, estimulada pelos estu- tro porque viu que tem uma doença e mo com as mãos e carregam as folhas A pesquisa da UFRGS aqueceu o de- de toxidade dos agrotóxicos utilizados
Universidade do Estado do Rio Grande dos de Anderson na Efasc. O débito, em for para um cultivo que traz um pacote A tentativa de atenuar o sofrimen- embaixo dos braços, o veneno entra no bate, mas, sozinha, pôde fazer pouco. no país não é medido corretamente. “A
do Sul (Uergs), o rapaz fez uma aposta “Lembro de olhar em volta quando 2009, quando o jovem ingressou na es- igual, vai acabar voltando, já que o fumo to dos agricultores da cultura do taba- corpo e provoca depressão. Depois, a Um projeto de lei que tenta banir o uso classificação é enganosa para atender
para escapar à cultura do tabaco e aos cola, já estava perto de ser quitado. “A tem a venda certa, ainda que de acordo co também parte das autoridades. Foi o doença se agrava e vêm os suicídios”. de agrotóxicos organofosforados chegou aos interesses da indústria do veneno.
agrotóxicos. De início, contou com o era pequeno e só ver folhas de dívida, se a gente tivesse feito mais, não com contratos ruins”, aconselha. que demonstrou, em setembro do ano Após essa pesquisa, o Conselho Na- a ser encaminhado ao Congresso Nacio- Assim, a periculosidade e a insalubrida-
apoio de duas jovens: a irmã mais nova, ia ter como parar. É nisso que muito passado, o prefeito de Venâncio Aires, cional de Desenvolvimento Científico e nal, tomando-a como base. A proposta, de a que estão expostos os agricultores
Andressa Rafaela, de 16 anos, e a namo-
fumo. Não só na propriedade da agricultor entra e perde, cada vez mais, Airton Artus (PDT), que está no segun- Tecnológico (CNPq) financiou um no- no entanto, está parada desde 2011. não têm tamanho no Brasil, literalmen-
rada, Micaela Hister, de 19, que conhe- minha família, mas nas que estão o poder de decisão”, salienta Anderson. “O começo foi duro, mas a do mandato. Durante a disputa à Presi- vo estudo, com médicos e pesquisado- Nas andanças pela região, Sebastião te. E os mais vulneráveis são os que não
ceu na Efasc. “Quando começamos, tí- Micaela, a namorada dele, mora na dência da República, ele procurou diá- res, mas Pinheiro não participou. Al- descobriu também que crianças em ida- podem mecanizar a produção, como os
nhamos apenas um pedacinho de terra no entorno. Tinha uma sensação propriedade da família Richter, mas é gente se libertou com isso. logo com a então candidata Marina Sil- guns levantamentos foram feitos, mas de escolar, no município vizinho de San- que trabalham com as folhas de taba-
na propriedade dos meus pais, que não nascida em Sobrado, outra cidade da va durante um evento em Porto Alegre. restaram inconclusivos. “Suicídio não ta Cruz do Sul, onde se concentram as co”, enfatiza. (JP e MN) (Agência Pú-
acreditavam que daria certo. Agora, já de opressão por isso” região. De lá, foi para General Câmara,
Tiramos os agrotóxicos das Artus não hesitou em aproveitar a opor- tem uma origem única e direta. Pode ter sedes das fumageiras, chegaram, nos blica- www.apublica.org)
conseguimos ampliar e eles estão aju- a 66 quilômetros de distância de onde nossas vidas e das vidas tunidade de falar sobre a “importância
dando”, conta o jovem, que sonha com a reside hoje. Foi nesse lugar, desde os 10 do setor fumageiro para as famílias de
criação de lavouras demonstrativas pa- anos, que passou a ajudar no cultivo do das pessoas que compram agricultores” e “desmistificar” as infor-
ra espalhar a cultura agroecológica em Cadeia do tabaco fumo, no qual continuam seus pais, Jor- mações correntes sobre o segmento.

Outro estado, mesma tragédia


Venâncio Aires. O rapaz sabe do que fala. Viveu na pele ge e Traudi Hister. “A propriedade que nossos produtos” Ao entregar um documento sobre o se-
os efeitos da prisão que é a cadeia do ta- meu pai tem hoje [em General Câmara] tor, ele mencionou a relevância social e
baco. Trabalhou, ainda criança, nas la- é um local que uma pessoa comprou e econômica do fumo. Basicamente, o que
“Quando começamos, tínhamos apenas vouras de fumo. Viu a família sofrer, in- não conseguiu pagar a dívida com a fu- se fez foi compilar dados ofertados pelo
clusive fisicamente, e abrir mão de mui- mageira (a Alliance One, de origem nor- Para mudar de verdade, são funda- SindiTabaco e pela Afubra. “Em 2013, o
um pedacinho de terra na propriedade to. Heitor, o pai de Anderson, hoje com te-americana). Meu pai assumiu a dívi- mentais a paciência e a persistência, o tabaco representou 1,3% do total das ex- de uma pesquisa do Núcleo de Estudos mais que seja ruim a relação, o agricul-
45 anos, foi um caso. Começou a plantar da e ficou com o lote”, afirma Micaela. que garantiria uma boa transição. “Cla- portações brasileiras, com US$ 3,27 bi- de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do em Saúde Coletiva da Universidade Fe- tor plantou, sabe que vai vender.”
dos meus pais, que não acreditavam fumo aos 14 e passou 26 anos no culti- ro que não é fácil, tem que modificar lhões embarcados. Da produção de mais Sul e Venâncio Aires (RS) deral do Paraná (UFPR). Após seis anos, A fala de Paulo Perna resume o que
que daria certo. Agora, já conseguimos vo. “Já não ia mais pra escola, nem con- Metas hábitos, aperfeiçoar a terra, mas dá pa- de 700 mil toneladas, mais de 85% fo- os resultados preliminares do trabalho, pensam muitos agricultores, inclusive
cluí o ensino fundamental. Não dava pa- Mais uma linha do modo de atuar das ra melhorar a qualidade de vida e tam- ram destinados ao mercado externo. Pa- Há dez anos, começou a apresentar cedidos à Pública, dão conta do proble- Lídia: como escapar a essa cultura do
ampliar e eles estão ajudando” ra conciliar. O tabaco desgasta muito e fumageiras está exposta. Na época do bém, com o tempo, ganhar melhor do ra o Sul do país, a cultura é uma das ati- náusea, perda de força muscular, des- ma. A avaliação médica e toxicológica de fumo? Quando não se escapa, acaba-
eu tinha que ajudar meus pais”, recorda. loteamento feito pela empresa, quem que com o fumo, posso garantir. As pes- vidades agroindustriais mais significati- maios, falhas de memória. Os primeiros 46 fumicultores da região central do Pa- -se expulso. Ela relata que algumas ve-
Heitor e a família chegaram a cultivar comprava uma porção de terra era obri- soas que plantam no sistema oferecido vas. No Rio Grande do Sul, a participa- médicos, sem saber o que fazer ou sem raná mostra que em 20 deles há sinais zes chegou a ter paralisia dos músculos
94 mil pés de fumo nos picos de produ- gado a pagar plantando fumo. Muitos pelas fumageiras são acostumadas a tra- ção do tabaco representou 9,3% no to- querer entender o problema, davam claros de relação entre intoxicação crô- dentro da empresa que lhe comprava o
No entanto, a mudança não foi fácil. E ção. E os problemas de saúde vieram. pequenos produtores não conseguiram balhar com o corpo e não com a mente. tal das exportações; em Santa Catarina, uma dose de soro e a mandavam de vol- nica e o trabalho na roça. Desses, 18 so- tabaco, durante o processo de pesagem.
não só pela resistência inicial dos pais, Dores de cabeça, indisposição, vômi- dar conta das metas impostas pelos con- A empresa traz tudo pronto. Quer sair? 10,2%.” O Brasil é o maior exportador ta para casa. “Já cansei de passar mal e frem de transtornos de humor e dois Ninguém lhe ofereceu auxílio. Pelo con-
mas pelo caldo de cultura que influen- tos e manchas na pele eram recorren- tratos e perderam os terrenos. Os pais Então, o agricultor tem que pensar sua de fumo, posto disputado palmo a pal- apagar, não lembrar de nada”, conta Lí- apresentam problemas musculares e de trário. Acabou descadastrada e, de que-
cia toda a comunidade. Um contexto er- tes, mas o trabalho não podia parar. A de Micaela não chegaram a passar por produção”, argumenta Anderson. mo com a Índia há duas décadas. Quase dia, que é de Rio Azul, no centro-sul do bra, terminou com uma dívida que não
guido a partir da planta do tabaco, que dura época da colheita, entre novembro isso. De qualquer forma, confrontaram Delicada de tocar, faltava abordar 90% da produção é enviada a uma cen- Paraná, terceiro maior estado produtor tinha mais como saldar.
fez brilhar os olhos de uma indústria ao e janeiro, ficou marcada como o pior pe- situações que também os levam a querer uma questão com os Richter. Eles te- tena de países, China à frente. de fumo. “É difícil porque você tem fi- “A indústria quer falar Quatro anos depois do encontro ten-
enxergar a região. “Lembro de olhar em ríodo. Com chuva forte ou sol escaldan- parar com a atividade. “Meu pai come- riam informações dos suicídios de agri- Em julho de 2015, Artus foi eleito o lhos, quer lutar e dar o melhor para eles. so em Rio Azul, telefonamos a Lídia. A
volta quando era pequeno e só ver fo- te, era preciso colher as folhas e secá-las çou a plantar porque era a tal história da cultores em Venâncio Aires? A respos- novo presidente da Câmara Setorial da Mas não posso mais dar o meu melhor.” que foi o produtor que tristeza continuou a ser a marca da con-
lhas de fumo. Não só na propriedade na estufa. Depois, as plantas secas fica- cultura que tinha venda garantida. Che- ta vem demolidora, nas palavras de An- Cadeia Produtiva do Tabaco, grupo téc- Quando tinha 9 anos, o pai morreu. E versa. “Eu pensava que ia ter uma cura.
da minha família, mas nas que estão no vam depositadas em um pequeno depó- gou a ter oito hectares de fumo, 210 mil derson: “Meu bisavô se suicidou em ju- nico ligado ao Ministério da Agricultu- a garota assumiu tarefas pesadas da pro-
não usou equipamento Pelo menos voltar a andar, ter uma vida
entorno. Tinha uma sensação de opres- sito quase sem ventilação. A família se pés por safra”, conta a moça. nho, aqui pertinho, nas terras dele”. ra. A se levar em conta: o prefeito é mé- dução de fumo para que a mãe não so- de proteção, mas, mesmo normal. Com o tempo, as coisas piora-
são por isso”, explica Anderson. reunia nesse local para classificar o fu- A fumageira, então, colocava mais me- Waldemar Richter plantou fumo prati- dico de formação e, além de pretender fresse tanto. “Eu dormia em cima das sa- ram e agora já estou numa situação que
Hoje, as terras dos Richter não têm mo de acordo com a qualidade, o que tas e novos “investimentos” eram exigi- camente a vida toda. Fazia tempo, era “desmistificar” a relação entre o culti- cas que deixavam no paiol. A mãe cozi- usando, não protege” não tem mais o que fazer.” Sem poder
um só pé de fumo. Os jovens produzem definia o preço. “Não podíamos atrasar dos. Vieram as dívidas e a necessidade vítima da depressão. Matou-se por en- vo do fumo e o sofrimento dos traba- nhava dentro do barracão. A gente ficava sustentar a vida no campo, ela e o mari-
morango, hortaliças, temperos. Entre- uma fornada. Senão, não conseguíamos de muita mão de obra. Jorge passou a ir forcamento, aos 85 anos. lhadores, quer mostrar ao governo fe- lá a semana inteira, nas terras arrenda- do se mudaram para a cidade, onde ti-
gam em feiras e para iniciativas de com- mais o ponto certo do fumo e perdía- até a periferia de General Câmara para Anderson crê que o suicídio do bisa- deral que não existe relação direta en- das. Misturava o veneno com a mão, sem ram o sustento apertadinho do auxílio-
pras públicas, como o Programa Nacio- mos o trabalho”, descreve Heitor. juntar gente que aceitasse trabalhar na vô se deu por dois motivos: uma longa tre a produção e o consumo de tabaco. luva. Falavam que o veneno só fazia mal coordenação motora. “A indústria quer -doença da Previdência Social e do salá-
nal de Alimentação Escolar (Pnae). Na A utilização de agroquímicos na plan- colheita. Lotava uma Kombi com mora- vida lidando com agrotóxicos e dívidas. Ele diz que, se o Brasil deixar de plan- pro bichinho. Nunca a gente pensou que falar que foi o produtor que não usou rio de servente de pedreiro. “Fiquei tão
busca por diversificar receitas, tam- tação de tabaco foi compreendida pelos dores de áreas pobres do município. Pa- “O veneno te leva para o precipício e o tar, outro país assumirá esse mercado. ia fazer mal pro ser humano.” equipamento de proteção, mas, mesmo abalada. É difícil. Você leva uma panca-
bém vendem a professores da Uergs. O familiares como algo que atacava a saú- ra agravar a situação, a filha e a esposa ti- endividamento te dá o ultimo chute”, “A fumicultura tem considerável im- Mas faz. Lídia é a prova disso. Em usando, não protege”, constata Paulo de da. Pensei várias vezes em acabar com
esterco de suas vacas e porcos é a fon- de e também degradava o ambiente. O veram a saúde fragilizada. Micaela con- diz, encerrando com um alerta: “Na co- portância socioeconômica no Rio Gran- 2009, depois de muitos anos de pere- Oliveira Perna, coordenador do núcleo a minha vida, mas continuo aqui pe-
te para o adubo, em que aplicam um cultivo manual, a retirada folha por fo- ta que, quando morava com os pais, es- munidade, tem outros casos de suicídio, de do Sul e em toda a região Sul do Bra- grinação hospitalar, finalmente médicos e professor do Departamento de Enfer- las minhas filhas.” (Esta reportagem
composto que reduz a presença de me- lha, deixava evidente que, independen- tava “sempre mal”, com náuseas. Trau- também com plantadores de tabaco”. sil. Em Venâncio Aires, o setor tabagis- começaram a descobrir de que se trata- magem da UFPR. “Qual é a cultura que continua nas págs. 6, 7 e 8) (JP e MN)
tais pesados. “O começo foi duro, mas a temente do quanto se usa de veneno di, a mãe, tem dores de cabeça e tontu- (Agência Pública- www.apublica.org) ta, desde a produção, beneficiamento va o caso. E ela virou o ponto de partida tem garantia de compra? É o fumo. Por (Agência Pública- www.apublica.org)
6 de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 brasil

Sem saída é a regra


ESPECIAL A herança faz com co em Venâncio Aires. Porém, a persis- frequente com o veneno, essencialmente do trabalha e relembra que seu corpo
tência de Hugo e Glacy não é sinônimo as mãos. Entre outubro e janeiro, a época não foi o único a reagir negativamen-
que gerações sigam a espalhar o de querer. Aos 63 anos, o marido reco- é da colheita, que se dá por etapas. Veri- te na família. “Eu já ia para a roça com
monocultivo das folhas de fumo por nhece que herdou automaticamente há- fica-se o amadurecimento de cada folha. o pai desde os 10 anos, para colher fu-
bitos dos quais mal se recorda de como e Debaixo de forte calor, o agricultor as re- mo.” Em seguida, confidencia ter dois
quilômetros de solo. Na maioria das quando começaram. Sabe o ano de nas- tira meticulosamente para garantir que irmãos que também sentiram o baque.
cimento do pai, 1916. E que, antes dis- tenham boa qualidade e aparência, algo “Eles iam parar na cama com o mesmo
vezes, sem pensar nas consequências so, com o avô, ainda no século 19, o fu- de que vai necessitar muito no momento problema, os mesmos sintomas. Aí, o
mo já dominava o cotidiano da família. de negociar preços com os representan- pai e a mãe tinham que fazer sozinhos,
Do pouco que se lembra sobre o início do tes das empresas. porque não dava pra ficar nem em pé. A
próprio trabalho, diz que ao menos des- São três meses no trabalho de colher. gente não conseguia esticar os braços,
João Peres e de os 13 anos já se envolvia na produção. O dia é longo. Horário de verão. E a noi- as pernas. A dor começava na cabeça e
Moriti Neto “São pelo menos 50 anos trabalhando”, te não traz refresco, principalmente por- tomava todo o corpo.”
de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do murmura, com ar cansado. que, depois de retirada do solo, a plan- O questionamento é inevitável: por que
Sul e Venâncio Aires (RS) O casamento tem 37 anos. Dele, vie- ta é levada a fornalhas, para secagem. voltaram, então? Entreolham-se. “O fu-
da Agência Pública ram três filhos, todos homens. Ho- Além de trabalhar o dia todo na terra, mo dá um pouco mais de dinheiro que o
je adultos, preferiram cortar os laços é necessário cuidar do forno. O fumo é milho, um pouco mais”, comenta Hugo.
DE VOLTA A VENÂNCIO Aires, vem a com a lavoura. Depois de auxiliarem no pendurado numa estufa. A lenha man- Contido, ele admite que não diversifica-
dureza de constatar que Anderson Ro- cultivo até a adolescência, desistiram tém a temperatura alta, o que permite a ram cultivos na propriedade. “Aí, o cus-
drigo Richter e sua família são exce- de plantar fumo e foram procurar no- qualidade do processo de cura. De ma- to da produção [do milho] foi aumentan-
ções. A ideia predominante entre os vos ares, migrando para áreas urbanas. drugada, o agricultor deve acordar vá- do e não tivemos como escapar”, expli-
moradores da região do Vale do Rio “Os filhos ajudavam. Agora, estão tra- rias vezes para verificar a quentura da ca. Saíram de uma monocultura e pula-
Pardo é que não existe porta de saída balhando fora. Ninguém quis saber da fornalha, que, a depender do momento, ram para outra. Aposentaram-se há três
da cultura do fumo. Talvez as proprie- propriedade”, explica Hugo, sem escon- varia de 90°C a 170°C. O tempo para o anos, mas voltaram ao tabaco para com-
dades antigas que guardam lembranças der o pesar. No entanto, o casal admi- descanso é mínimo. Até sirenes são ins- plementar a renda.  
dos avós e bisavós ou mesmo de ante- te que, recentemente, também “tentou taladas nas estufas para garantir que o Porém, o discurso de que o tabaco po-
passados mais distantes que iniciaram sair”, como se tivessem buscado uma produtor não perca a hora. de aumentar a renda se comparado a ou-
as lavouras de tabaco expliquem. Ali, o fuga. E assumem: foram recapturados. Nesse conjunto árduo de atividades, tras culturas não sai da boca com convic-
trabalho está cravado em mentes e cor- “Faz três anos, deixamos o fumo, tenta- Glacy é quem sente mais. E revela os ma- ção. Não é o argumento de que o preço
pos como parte da genealogia. Idosos, mos plantar milho”, conta Glacy. Volta- les que lhe atacam o corpo. Ela não o faz, é melhor o que fez o casal retornar “sem
jovens e crianças. Mulheres e homens. ram ao tabaco, mas sem vontade. Hugo contudo, em tom de desabafo. Conta a si- querer”. Foi um contrato com a fumagei-
A herança faz com que gerações sigam tenta brincar com a situação: “Voltamos tuação quase como uma confissão de cul- ra Alliance One, que trouxe a “certeza” de
a espalhar o monocultivo das folhas querendo sem querer”. pa. Dá a impressão de se responsabilizar venda, o que os empurrou a plantar 20
de fumo por quilômetros de solo. Na O voltar “sem querer” é explicável, as- por ser “frágil”. “Fico ruim se colher fu- mil pés de fumo neste ano. Já foram 55
maioria das vezes, sem pensar nas con- sim como o desinteresse dos filhos do ca- mo molhado de sereno. Tenho ânsia de mil, em outros tempos, quando “a guri-
sequências. Doenças, suicídios e traba- sal em permanecer no campo. Os agri- vômito, dor de cabeça, acabo de cama. zada ajudava”. “Eles eram obrigados a fa-
lho infantil são exemplos de questões cultores revelam que o cultivo do taba- É a nicotina [liberada pela folha], acho, zer, tinham que ajudar, era trabalho da
naturalizadas por um sistema que vio- co exige muito. O trabalho é todo ma- quando a folha do tabaco está verde.” família”, ressalta Glacy.  
lenta os saberes de milhares de famí- nual, delicado. Não há mecanização que Aponta para o marido: “Ele nunca teve A naturalidade com que Glacy e Hugo
lias de agricultores, provocando abalos possa assessorar o produtor. Geralmente nada, o problema é só comigo. Não sei se Bohn encaram o trabalho infantil que já
emocionais e fragilidade física, além de em maio, no caso gaúcho, inicia-se a fei- é porque sou mulher, mais fraca”. existiu em sua família resulta da mesma
uma nociva dependência econômica in- tura dos canteiros, o que dura até junho. A agricultora de 59 anos responsabi- força que os fez voltar a plantar o taba-
dividual e coletiva. De julho a setembro, milhares de mudas liza, além de si mesma, o sereno e a ni- co e negligenciar os riscos à saúde. Estão
Em 22 hectares de terra localizados na são plantadas, uma a uma. Na sequência, cotina pelo mal-estar que a persegue há presos a um esquema poderoso que en-
comunidade da Linha Olavo Bilac, o ca- vem o ciclo de manutenção e a aplicação anos. Ela não considera os agrotóxicos, redou toda uma região. (Agência Públi-
sal Bohn persiste com o cultivo de taba- de agrotóxicos. O corpo fica em contato mas, num repente, expõe desde quan- ca- www.apublica.org)

Adianta dizer não?


Gustavo Nunes
foram apresentadas, a indústria do ta-
de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do baco correu para deslocá-las a Brasília
Sul e Venâncio Aires (RS) sob o argumento de que apenas na capi-
tal federal se poderiam delimitar regras
Enxada nas mãos, em meio a folhas de comuns que teriam validade para todo o
fumo, Maicon Inácio Wagner mora tam- Brasil. As empresas sabiam que, no Sul,
bém na comunidade. Vê-se que idade a chance de vitória era reduzida. No Pa-
não é critério para atrelar a vida ao cul- raná, o juiz Cássio Colombo Filho havia
tivo do tabaco. Ele tem somente 33 anos. concedido liminar suspendendo os con-
Os avós foram os primeiros a se insta- tratos de compra e venda.
lar na localidade. “Que eu sei, sempre foi Pouco depois, o magistrado teve de
com o plantio do fumo que trabalharam. aceitar o deslocamento do caso para a
Meus pais continuaram e, depois, eu”, distante Brasília. “Ora, se o Ministério
recorda. Público do Trabalho já investigou a fun-
As respostas são rápidas. Maicon conta do a questão e ajuizou esta demanda, há
que seu único irmão decidiu sair da “ro- pelo menos um razoável indício de pro-
ça” e foi trabalhar “na cidade”, mais pre- va de que os contratos são celebrados de
cisamente em Bento Gonçalves, muni- forma abusiva e necessitam ser IMEDIA-
cípio da Serra Gaúcha. “Eu não tive es- TAMENTE revistos”, protestou, em seu
sa alternativa”, faz questão de destacar. último despacho, no qual o juiz registrou
Sobre gostar do trabalho que restou, bre- a existência de pressões econômicas, so-
ves palavras: “Decidi seguir. Não adian- ciais e políticas envolvendo o assunto.
ta dizer que não gosto”. E ele segue, faz Em 2011, o caso chegou à capital. E foi
21 anos. Está desde os 12 na lida com a resolvido de maneira quase imediata.
terra e o tabaco, que o levou a interrom- “Os procuradores de Brasília não parti-
per os estudos no 6º ano do ensino fun- ciparam da investigação, que foi uma in-
damental. Ele vende o que produz para vestigação cuidadosa, que demorou mui-
a norte-americana Universal Leaf Taba- Mais uma amostra de poder e influência em Santa Cruz – bicicletários têm formas de folhas de fumo to tempo para a gente amadurecer, de-
cos, líder mundial no comércio de tabaco cidir qual tipo de ação seria apresenta-
em folha, que tem sede na cidade vizinha segue, realmente, a previsibilidade e a se- quem diz: “Eles levam a sério. Rejeita- do. Em menos de 15 dias, fizeram acor-
de Santa Cruz do Sul. A empresa, como gurança, mas não para o trabalhador do ram todas as propostas que foram fei- do. Minha investigação era de dez anos”,
fazem também as concorrentes, fechou campo. As garantias são voltadas para o tas. Não tinha como conciliar. Nenhum critica a procuradora, claramente medin-
contrato com o agricultor, o que o obri- cumprimento dos contratos de exporta- ponto era fácil de chegar a acordo. De do as palavras na tentativa de evitar no-
ga a comprar todos os insumos e equipa- ção de fumo em folha com o mercado in- um início de conversa, a gente passou vos problemas.
mentos necessários para o cultivo do fu- ternacional. O sistema integrado, como a divergências sérias”. O “eles” com O que o acordo expressa é, basicamen-
mo somente dela. “É o ano inteiro, dire- foi batizado pelas empresas, é a prisão quem a procuradora tinha – e tem – di- te, a linha de argumentação das empre-
to. Vendem tudo”, diz. dos camponeses. vergências sérias é a indústria do taba- sas em seguidos pareceres, documentos,
Quando a conversa parecia se enca- O ritual de assinatura dos contra- co. Em 2007, após um longo período de materiais de divulgação. Os produtores
minhar para o fim, ele se abre um pou- tos se repete todos os anos. Nos meses investigação, a procuradora apresentou passam de vítimas a culpados por tudo o
co mais. Avisa que já passou mal na co- de abril e maio, o agricultor, procurado três ações contra as empresas, em si- que ocorra de ruim na produção de fu-
lheita do fumo, mas busca ponderar: foi por funcionários chamados de “orienta- multâneo a seus colegas de Santa Cata- mo. Na questão dos agrotóxicos, de mo-
só uma vez. “Uma vez aconteceu, mas faz dores” das empresas, já acertou a ven- rina, que impetraram outras três ações do geral, o problema deixa de ser enten-
anos. Foi na lida com o fumo molhado, da de tabaco em folha, num acordo de com a mesma fundamentação. Em li- dido como uma consequência da falta de
logo depois de uma chuva que a gente foi prestação de serviços no qual não há ne- nhas gerais, argumentavam que o con- opção do camponês diante de custos al-
colher e senti um mal-estar. Sensação de nhuma possibilidade de negociação por trato estabelecido entre produtor e em- tos, e as dívidas passam a ser uma ques-
ânsia de vômito, tontura, dor de cabeça. parte do pequeno produtor. É um docu- presa configurava uma relação de tra- tão de ignorância que deve ser combati-
Nem foi aqui, estava ajudando um colega mento de adesão em que resta especi- balho, e não um acordo entre fornece- da mediante o oferecimento de cartilhas
meu”, descreve o agricultor. ficar o tipo de fumo (Virgínia, Burley e dor e comprador. de esclarecimento.
Uma mulher se aproxima. É a esposa Comum), o tamanho da área onde será Ao jogar luzes sobre os contratos de No Paraná, a Justiça do Trabalho já ha-
de Maicon, Sandra Beatriz Hochschei- feito o plantio, a variedade de semente a compra e venda do tabaco, não restou via reconhecido que a Afubra não tinha a
dt, de 34 anos. Iniciou o trabalho com o ser utilizada, a estimativa de pés que se- dúvida de que a relação era muito de- menor condição de representar os traba-
plantio do fumo quando conheceu o ma- rão cultivados e a quantidade de taba- sigual. Os produtores estavam obriga- lhadores. Em Brasília, a entidade voltou
rido, em 2003. Ainda mais calada do que co, em quilos, a ser entregue às fuma- dos a comprar das empresas um paco- a figurar como parte da cadeia de divul-
ele, não reclama. Ao contrário, diz que geiras. Do começo ao fim do processo, o te tecnológico. Para isso, tinham de fe- gação das boas práticas do setor, em par-
gosta: “Nunca passei mal e está bom as- agricultor está amarrado. Desde a com- char um acordo de financiamento que, ceria com o SindiTabaco. Ambas deixam
sim”. Mas e se mudassem de cultivo, di- pra de sementes, insumos, agrotóxicos e invariavelmente, era garantido por en- de ter responsabilidade central no caso,
versificassem? “Para mim, tanto faz.”  Ao equipamentos de proteção até a comer- tidades ligadas à indústria, sempre com devolvendo a bomba ao produtor.
lado dela, o filho de apenas 3 anos já cor- cialização das folhas de tabaco, que vai juros acima da média do mercado, nu- “Se fosse para fazer aquele acordo, eu
re entre os 50 mil pés que o casal plan- ocorrer, em média, a partir de março do ma trajetória que resultava em um endi- teria feito há muito tempo aqui”, afirma
tou este ano. ano seguinte, o dono da terra está com- vidamento que deixava agricultores to- Margaret. “Não é uma ação para ser re-
prometido, até mesmo correndo o risco talmente atrelados a determinada cor- solvida por acordo. São coisas inconci-
A prisão de se endividar com a empresa se não poração durante muitos anos. No fi- liáveis. O certo seria a indústria pagar
É difícil encontrar quem negue que o cumprir a meta prevista na estimativa. nal de uma safra dura, a comercializa- ao produtor como empregado, o que as
fumo é a principal fonte de renda das pe- Se entregar menos do que prometeu no ção era exclusividade da empresa, sem empresas não aceitariam jamais.” Sem
quenas propriedades agrícolas das cida- documento, cai em dívida, já que, além possibilidade de contestação dos preços poder mexer em um tema sobre o qual o
des do Vale do Rio Pardo, já que é o úni- de venderem grande variedade de itens apresentados. “Tudo é muito escabroso, MPT firmou um acordo, Margaret e ou-
co produto que tem garantia de compra, aos camponeses, as fumageiras, muitas muito impactante. Falam desse contra- tros procuradores do Sul buscam saídas
pela assinatura de contratos entre a in- vezes, exigem investimentos dos produ- to de integração como se fosse uma coi- para a situação dos produtores. Para ela,
dústria fumageira e os agricultores. É as- tores, como a construção de fornalhas sa tão comum, como se não tivesse ne- o que resta é tentar encontrar a porta de
sim que se constrói a cadeia que coloca os para secagem do fumo. nhuma ilegalidade. É muito naturaliza- saída dessa cultura, ampliando a ofer-
pequenos produtores na condição de em- Sobre os contratos, é a procuradora do”, queixa-se a procuradora. ta de ações de diversificação. (Continua
pregados na própria terra, num esquema Margaret Ramos de Carvalho, do Mi- A maior parte dos pontos do contra- nas págs. 7 e 8) (JP e MN) (Agência Pú-
imposto pelas empresas. Tal lógica per- nistério Público do Trabalho no Paraná, to continua em vigor. Quando as ações blica- www.apublica.org)
brasil de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 7

Sempre reféns Gustavo Nunes


ESPECIAL Os pequenos soal que tem área própria, que não usa
mão de obra de fora, que tem lenha pró-
agricultores são reféns dos pria, que produz com mais qualidade.
Estão fazendo esse tipo de seleção. Basi-
métodos das fumageiras camente, é quem tem menos custo”, re-
no que se refere ao sume Nelson Dias da Silva, presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de
ritmo do mercado e aos São João do Triunfo, vizinha a Palmeira.
O problema é que uma fatia expressi-
preços do fumo va dos produtores não está nesse seleto
grupo. Quase 30% não têm terras pró-
prias e outros 34,7% produzem em uni-
dades que têm entre um e dez hectares.
João Peres e De acordo com dados da Afubra, a esco-
Moriti Neto laridade é baixa: 89,9% cursaram o fun-
de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do damental incompleto e 6% terminaram
Sul e Venâncio Aires (RS) o fundamental.
da Agência Pública Silvana Rubano Turci, pesquisado-
ra do Centro de Estudos sobre Tabaco
ALÉM DE ACORRENTADOS ao siste- e Saúde da Fiocruz, considera que esse
ma integrado, os pequenos agricultores é um entre vários fatores que dificultam
são reféns dos métodos das fumageiras a migração para outras culturas. Ela e
no que se refere ao ritmo do mercado e seus colegas reforçaram, com um estu-
aos preços do fumo. E as empresas têm do conduzido com mulheres envolvidas
peso político. Em 2007, ao chegar ao na produção de fumo em Palmeira, uma
Ministério da Agricultura, o catarinen- impressão que já havia aparecido em
se Reinhold Stephanes, que fez carreira pesquisas e em conversas: a maior parte
política e empresarial no Paraná, firmou das pessoas deixaria a produção de ta-
portaria revogando os dispositivos váli- Em Santa Cruz do Sul, é a fumageira Souza Cruz quem dá as boas-vindas, mostra do poder das empresas na região baco se tivesse alternativa.
dos desde a década de 1990 para a clas- “As trabalhadoras são mulheres mui-
sificação do tabaco, o que baliza os pre- Quando se coloca na ponta do lápis, a “É um trabalho muito pesado. to inteligentes. Sabem a capacidade que
ços impostos ao produtor. O que deve- situação muda. O sindicato de Palmeira têm de transformar o ambiente em que
ria ser solução para antigas reivindica- fez, entre 2007 e 2008, um cálculo de ab- E isso acaba gerando um êxodo, vivem. É muito difícil para uma família
ções dos produtores acabou como na- solutamente todos os custos da produ- em pequena propriedade mudar de ati-
da mais que um remendo. A nova tabe- ção, começando no valor da hora de tra-
principalmente das filhas mulheres, vidade sem um apoio muito forte para
la de classificação de fumo manteve uma balho e terminando na construção da es- que vão para a cidade na esperança de que isso aconteça. Tem que ver qual a
margem enorme para que as empresas tufa e do paiol, passando por agrotóxi- vocação da família, qual a vocação do
decidam quanto vale o produto entre- cos, combustível, lenha e energia elétri- um emprego melhor” município”, diz. “É um trabalho muito
gue pelo agricultor. No caso da varieda- ca. Cada quilo de fumo custava à época pesado. E isso acaba gerando um êxodo,
de Virgínia, a mais comum no Brasil, há quase R$ 5 para um agricultor que ob- principalmente das filhas mulheres, que
41 classes diferentes para que se encai- tivesse uma produtividade considerada vão para a cidade na esperança de um
xe o produto. É um complexo e subjetivo boa, valor que subia para R$ 6 em caso mílias deixaram a cultura do tabaco. Na emprego melhor.”
cruzamento de grupos, subgrupos, clas- de algum imprevisto. No final, sobravam comparação com dez anos atrás, o núme- Esse êxodo dificulta ainda mais a mi-
ses, subclasses, tipos e subtipos. Difícil menos de R$ 2 por quilo para os produ- ro de 162 mil famílias envolvidas atual- gração para outras culturas. Uma lavou-
entender? Imagine ter de fazer isso em tores de melhor sorte e nem um centavo mente representa uma saída de 36 mil, ra agroecológica ou orgânica, sem aplica-
questão de segundos, enquanto o traba- para os que tinham gastos mais elevados. com 115 mil hectares a menos de plan- ção de venenos, demanda um esforço fí-
lho de um ano inteiro rola pela esteira Os cálculos não foram atualizados, mas tações. Motivo para comemoração? De- sico muito elevado, difícil de ser cumpri-
e o técnico da empresa define seu valor. a situação não se alterou em linhas ge- pende. Se todas estivessem envolvidas do pelos mais velhos. No ano de ratifica-
Se o representante da indústria dis- rais e os valores pagos por quilo de fu- em culturas menos agressivas e mais ção da convenção-quadro, o governo fe-
ser que as folhas têm mais de metade mo continuam mais ou menos na mesma rentáveis, sim. Não é o caso. deral lançou o Programa Nacional de Di-
da superfície tomadas por cores “cas- margem. No começo da última safra, os versificação em Áreas Cultivadas com
tanho-claro a castanho-escuro”, o fu- agricultores tomaram prejuízo devido a Redução Tabaco, sob a coordenação do Ministé-
mo terá um valor. Mas, se achar que a uma depreciação imposta pela indústria A redução no número de fumicultores rio do Desenvolvimento Agrário (MDA),
cor laranja predomina, passa-se a outro e considerada abusiva por alguns sindi- corresponde às mudanças na conjuntura com o objetivo de encontrar portas de
patamar. O problema é que ainda será catos. Quem deixou para vender no final, internacional. A Convenção-Quadro pa- saída para a produção do fumo.
preciso avaliar se o produto tem ou não porém, conseguiu mais. ra o Controle do Tabaco, que completa Segundo o MDA, até agora foram de-
elasticidade e qual o grau dessa elasti- “Esta é mais uma das estratégias das dez anos em 2015, tem levado a um de- senvolvidas atividades em 800 municí-
cidade. Avalia-se também se há man- empresas para fazer pressão sobre os sestímulo global ao consumo de cigarros. pios, num total de 45 mil famílias. Orga-
chas esverdeadas, pálidas, acinzenta- produtores. Quando vendem no come- Os pontos firmados entre a Organização nizações da sociedade civil têm sido con-
das, avermelhadas. Cruza-se tudo isso e ço da safra, geralmente é para pagar a Mundial da Saúde (OMS) e os 192 países tratadas para trabalhar diretamente com
tem-se o preço final da produção. Quem despesa. O produtor está há quase um signatários preveem restrições à publici- os produtores. A última chamada públi-
reclama está fora do jogo. ano sem receber. Então, precisa vender”, dade e à produção de variedades atrati- ca, realizada em 2013, prevê o repasse
“O principal problema é que o agri- afirma Cleimary Zotti, técnica do De- vas para o público jovem, além de esti- de R$ 53 milhões até o final de 2016. Em
cultor não tem chance de comerciali- partamento de Estudos Socioeconômi- mular o oferecimento de saídas aos agri- termos de quantidade de recursos, uma
zar o produto com o preço que deveria cos Rurais (Deser), sediado no Paraná. O cultores. No Brasil, a prevalência do ta- luta inglória: a indústria do tabaco no
comercializar”, constata Vilmar Sergi- Deser é uma referência no estudo sobre a bagismo na população adulta está em Brasil diz auferir uma renda anual supe-
ki, presidente do Sindicato dos Traba- cultura do tabaco. Desenvolve pesquisas, 10,8%, segundo dados do Ministério da rior a R$ 5 bilhões.
lhadores Rurais de Palmeira, na região trabalha com perspectivas futuras, inco- Saúde, uma redução de 30,7% em rela- O Deser trabalha a criação de alter-
central do Paraná. Há muitos anos, ele é moda a indústria. Nos últimos anos, no- ção a 2006, primeiro ano após a ratifi- nativas com 1.200 famílias no Para-
uma pedra no sapato da indústria devi- tou duas mudanças substanciais e inter- cação da convenção-quadro. No final da ná e tem sentido a necessidade de ace-
do a parcerias com organizações que cri- ligadas na relação entre empresas e pro- década de 1980, um em cada três brasi- lerar esforços à medida que aumenta o
ticam a produção do fumo e trabalham dutores. Primeiro, as corporações deixa- leiros fumava. número de dispensados pela indústria.
pela criação de portas de saída. “Não ram de avalizar processos de financia- À parte essa questão, a produção afri- “O resultado que temos mostra que as
tem abertura para o agricultor discutir o mento no Paraná. A consequência disso cana, em particular a do Zimbábue, cres- famílias têm diversos perfis. Em mé-
contrato, principalmente na questão do leva à segunda alteração. Antes, a queixa ce em ritmo chinês e já faz sombra à in- dia, a quantidade de terra não é muito
preço. Não tem um mínimo. A empre- eram os empréstimos a juros altos, com dústria brasileira. Diante disso, a Afubra grande. Temos uns 20%, 30% de famí-
sa rebaixa a classe do jeito que entende. endividamento quase inevitável. Agora, e o SindiTabaco, mais uma vez, resol- lias que têm um hectare, um hectare e
Eles rebaixam e o agricultor não tem au- o tema é a falta de crédito, que acaba ex- veram andar de mãos juntas. A tendên- meio, e agricultores que produzem fumo
tonomia nenhuma para discutir.” cluindo vários produtores. cia de bastidores é deixar ao Zimbábue a na terra alheia. Como a gente trabalha
Na prática, a existência de tantas clas- “A empresa trazia um pacote e o agri- condição de produtor em larguíssima es- diversificação nesse processo?”, ques-
ses serve para que a empresa opere so- cultor era praticamente o empregado. cala e reduzir a produção brasileira pa- tiona Cleimary, que conhece bem a difi-
bre o preço de acordo com o momento do Num processo de integração, o agricultor ra que passe a contar com melhor padrão culdade de lidar com um oponente que
mercado. Com demanda em alta, os valo- pagava pelo pacote. Agora, o agricultor de qualidade – melhor valor agregado, tem mais recursos e um escopo de ar-
res sobem. Com excesso de oferta, os va- tem de usar uma parte do valor da venda em linguagem mercadológica. A associa- gumentos que se renova a todo instan-
lores descem, o que comprova que não para já comprar da empresa os insumos. ção que reivindica o direito de represen- te. “Quando a gente fala da indústria do
se trata de uma questão técnica. Aqui- Para conseguir pagar as despesas, é um tação dos fumicultores emitiu comunica- tabaco, tem de saber que eles são profis-
lo que parece muito bom no começo de valor razoável. Não é qualquer família do no início da safra atual indicando sua sionais. São bons no que fazem. Me ad-
uma safra pode ser trágico ao final dela. que consegue”, avalia Cleimary. “A ten- solução imediata para o problema: redu- mira a falta de escrúpulos. Quando che-
No papel, o acordo soa perfeito: garantia dência da indústria do fumo é concen- zir em 12% a produção da variedade Vir- gam para argumentar com alguém que
de produção comercializada, assistência trar. Concentrar em um número menor gínia e em 20% a Burley – um total de não tem muita noção da situação, con-
técnica, crédito. A Afubra diz que o valor de municípios, concentrar em um núme- 607 mil toneladas, ou 90 mil a menos seguem comprar essa pessoa com muita
bruto médio por família é de R$ 72.200 ro menor de produtores.” que na colheita anterior. facilidade. Essa pessoa passa a depen-
ao ano, somando o fumo e outras cultu- Entre as safras de 2011 e 2014, a Afu- “Querem os produtores mais bem capi- der da indústria do tabaco.” (Agência
ras que se produza na propriedade. bra constatou que em torno de 25 mil fa- talizados, mais bem estruturados. O pes- Pública- www.apublica.org)

Família “feliz”
so pão. Tudo que você vê vem do fumo”, a hora que o fumo está mais enxuto, e ti- ma, usam mão de obra de terceiros, prin-
de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do afirma, apontando para uma imponen- ra. Daí, coloca roupa cumprida normal”, cipalmente na colheita, por três meses.
Sul e Venâncio Aires (RS) te caminhonete e às boas casas cons- comenta. Logo em seguida, o marido re- “No último ano, assinei até carteira para
truídas nos 23 hectares de terreno, on- toma a palavra, para cair em contradi- eles”, declara José, com o tom de quem
José Henrique, 49 anos, natural de Ve- de plantaram 85 mil pés de fumo para a ção: “Não dá pra ficar [com o EPI]. É fez um favor ao registrar quem trabalha,
nâncio Aires, hoje é quem comanda os safra 2015-2016. muito quente”. entregando mais uma evidência de que o
negócios na propriedade da família Ha- Apesar de reforçar os ganhos mate- Os Haas têm contrato de presta- normal na região – não exatamente no
as. Herdou do pai, Beno, o gosto pelas riais, o produtor não nega que o tra- ção exclusiva com uma das fumagei- caso isolado dos Haas – é a precarização
lavouras de fumo. “Vim para cá com 6, balho já lhe causou problemas físicos. ras, a  Souza Cruz, de origem brasileira das condições laborais.
7 anos, quando a família se mudou pa- “Quem não se cuida está sujeito. Quem e hoje subsidiária da British American O “normal”, também, é o trabalho de
ra esta propriedade. Sempre estava jun- vai colher o fumo molhado e não se pro- Tobacco no Brasil. “Só faço negócios menores de idade. Após uma pergunta
to na lavoura. Em épocas de escola, ia pa- tege pode passar mal. Você se molha e, com a Souza Cruz, nunca mudei. Desde sobre os motivos de os jovens da região
ra a aula e, quando podia, ajudava. Não até por causa do calor, por causa do sol, que eu comecei, meu pai já estava com não gostarem do plantio do fumo, a res-
tinha porque ficar sentado em casa”, diz dá reação. Tem alguma parte tóxica que eles e assim ficou. Tem outras, mas op- posta vem cortante: “Porque é um servi-
logo de cara. o corpo não resiste, mas nem todos têm tamos pela exclusividade”, explica José ço mais pesado. Se o jovem ficou até os
Sobre a comunidade onde vive, ele ga- problema. Eu já tive, mas agora estou Henrique, que agora arrenda terras pa- 18 anos sem fazer aquilo, vai no que é
rante ter testemunhado o crescimen- me protegendo, usando essas roupas pa- ra outras duas famílias de agricultores. mais fácil depois”, julga José Henrique.
to econômico proporcionado pelo taba- ra a colheita, o que não é muito bom pa- São os chamados “sócios”, pessoas que “Desde pequenino, eu ajudo, não deixei
co, que é o único plantio alcançado pelos ra usar, mas a gente usa”, confessa. Só plantam na propriedade alheia e pagam de estudar. Não fiz uma faculdade, mas
olhos por ali. Relata que antes havia a depois da menção de José sobre o uso com trabalho. estudei até o segundo grau. Ia para a au-
erva-mate, mas que o fumo criou condi- do equipamento de proteção individual Atualmente, dos membros da famí- la, chegava em casa e ajudava. Não me
ções para aumentar a renda dos produ- (EPI) é que a voz da sua esposa, Dulce, lia, somente José Henrique e Dulce vão fez mal nenhum esse meio dia na roça”,
tores e prevaleceu, engolindo outras cul- se apresenta: “A gente coloca [o EPI] e à lavoura de fumo. Beno, o patriarca, tem conclui. (Continua na pág. 8) (JP e MN)
turas. “Aqui está o nosso sustento, nos- chega certa hora, tipo nove, nove e meia, 80 anos e não planta mais. Dessa for- (Agência Pública- www.apublica.org)
8 de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 brasil

Quem está doente? Gustavo Nunes

ESPECIAL As crianças sofrem mais que os


adultos com os agrotóxicos e citam déficit
de crescimento e de cognição, além de
desnutrição, como consequências do
trabalho infantil nas plantações de fumo

João Peres e
Moriti Neto
de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do
Sul e Venâncio Aires (RS)
da Agência Pública

AS PALAVRAS mais contundentes di-


tas na propriedade da família Haas, po-
rém, ainda estavam por vir. Sandra He-
lena Wagner, secretária do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Venâncio Aires,
ligado à Federação dos Trabalhadores na
Agricultura no Rio Grande do Sul (Feta-
g-RS), estava presente à entrevista. E re-
solveu intervir na questão. “Hoje, as nos-
sas crianças não trabalham. Se vão aju-
dar, catam umas folhinhas que caem no Guilherme Padilha é membro de uma família de agricultores do tabaco que busca alternativas ao fumo na cidade de Sinimbu
chão. A preocupação dos pais é levar os

Noite de angústia, dia de alívio


filhos à aula. Se houve isso [trabalho in-
fantil] faz muitos anos, mas, mesmo as-
sim, as crianças que ajudaram na roça
aprenderam uma profissão. Eu sou um
exemplo, trabalhava na roça desde pe-
quenininha. Aprendi a ser gente, ter va- mental nascida da Igreja Evangélica da je, na mesma propriedade, cultivam ver-
lores, princípios, ter respeito pelos mais de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do Confissão Luterana. Sighard Hermany dura e frutas, fazem doces e criam ga-
velhos, pela sociedade”, defende. Sul e Venâncio Aires (RS) é quem coordena o projeto. Do hotel ao do de leite. “É outra qualidade de vida.
O discurso prossegue e o teor se acen- Capa, o caminho é curto e a distância é Agradeço a minha labuta de hoje, que dá
tua. Com uma crítica desmedida às ge- Já é noite de 1° de setembro em Ve- percorrida a pé. Logo, um homem alto, mais saúde para a minha família e garan-
rações mais jovens e a defesa nada su- nâncio Aires. O corpo sente o cansaço de barba e cabelos brancos, se apresenta. te a nossa renda. Se puder escolher, a úl-
til do trabalho infantil, a representante quem circula desde as primeiras horas É Sighard e, pela primeira vez em todos tima coisa que faço é voltar a plantar fu-
do sindicato arremata: “Sou uma cidadã da manhã e a mente está atordoada de- os contatos feitos em Santa Cruz, a res- mo”, ressalta o agricultor.
que trabalha, que tem carteira assinada, pois das declarações na propriedade dos posta sobre falar abertamente sobre a Nascido no município de Sinimbu, a
mas e a geração de hoje? Quer trabalhar? Haas. Ainda havia 31 quilômetros a per- cultura do tabaco é positiva. Alívio. 60 km de Santa Cruz do Sul, Guilherme
Estamos criando uma geração de vadios correr até Santa Cruz do Sul. Ao menos Santa-cruzense de nascimento, o co- Padilha, aos 19 anos, é estagiário no Ca-
que só tem estudo, que acha que não po- uma parada era necessária antes da par- ordenador da organização explica que pa, onde trabalha com assistência téc-
de mais trabalhar. E que geração vai ser tida. No bar, a conversa com o proprie- ele mesmo é filho de plantadores de fu- nica e extensão rural. Na cidade de ori-
essa, no futuro? Nem todo mundo pode tário tenta virar uma entrevista, barrada mo. “Os meus pais sempre plantaram, gem, mantém os laços com os pais, Pau-
ficar empregado no escritório. E se não sem cerimônias. “Falar o quê do fumo? tentaram um ou dois anos não plantar, lo Sérgio e Vera Salete, e os irmãos, Gus-
tiver pegado gosto de trabalhar em qual- É ele que faz girar meu bar, que faz girar mas voltaram”, diz o descendente de ale- tavo e Milena, família que ainda vive do
quer área? O que a gente mais vê hoje é esta cidade. Sem tabaco, isso tudo aqui mães que tem 62 anos. Engenheiro agrô- plantio de tabaco, algo que já foi dife-
um bando de vadios, se drogando, outros quebra. Você quer que eu fale dessas coi- nomo e com raízes familiares na cultura rente. “A atividade no cultivo de taba-
se prostituindo, uma sociedade doente sas delicadas?”, indaga o comerciante, do tabaco, Sighard sabe bem dos proble- co tinha uma pequena representação
por falta de se ocupar desde pequeno”. que nem chega a pronunciar seu nome. mas criados pelo monocultivo. Por isso, no trabalho da família, já que ela era,
Uma pesquisa concluída no ano pas- O que disse, entretanto, foi o bastante. partiu da cidade para vivenciar e estudar principalmente, produtora de alimentos
sado pela Universidade de Santa Cruz Trinta minutos de estrada e a marca da métodos agroecológicos de diversificação e diversificava as fontes de renda. Nos
do Sul (Unisc) identificou que 90% dos líder do mercado de fumo do país dá as de culturas. “Saí de Santa Cruz por um anos 1990, a produção de alimentos di-
agricultores da região não completaram “boas-vindas” a quem chega. As folhas de tempo. Voltei para cá no projeto do Capa, minuiu, em função das ações que a in-
o ensino fundamental. Entre as crian- tabaco esculpidas na madeira e o nome em 1984, para trabalhar em alternativas dústria fumageira realizou, oferecendo
ças, 150 mil são de famílias de agriculto- da Souza Cruz estampado logo nos pri- no campo, mas não é fácil. Nossa estru- crédito às famílias, que, em troca disso,
res de tabaco. Um levantamento do De- meiros metros de solo de Santa Cruz do tura é pequena e os poderes das indús- aumentavam a produção de tabaco”, re-
ser reforça o cenário. Feito com 1.128 fu- Sul já dão uma ideia do tamanho do po- trias são grandes”, observa. lata Guilherme.
micultores do Sul, em 2008, ele mostrou der. Do símbolo mostrado no portal de O coordenador do Capa fornece de- O jovem entra sem receio na polêmica
que 40% dos filhos homens e quase 20% entrada do município às lavouras culti- talhes da vinda do fumo ao Vale do Rio sobre o tabaco ser a principal fonte renda
das mulheres trabalham no cultivo. Além vadas por 4 mil famílias da cidade, on- Pardo. Com a chegada das primeiras fa- das pequenas propriedades no Vale do
disso, 9% dos filhos abaixo de 12 anos de o fumo se espalha sufocando gente e mílias alemãs, veio também o tabaco, em Rio Pardo. “Ele segue sendo o único pro-
contribuem na lavoura. Outros estudos outros cultivos, o cerco está imposto. E 1849. No ano seguinte, brota a primeira duto que tem garantia de compra, mas,
da Unisc indicam que as crianças sofrem ele aprisiona desde os agricultores até a safra. Em 1924, são introduzidos os pri- em um estudo que realizei sobre a pro-
mais que os adultos com os agrotóxicos economia regional, em que comerciantes meiros contratos da indústria fumageira dução de tabaco do meu pai, identifiquei
e citam déficit de crescimento e de cog- e trabalhadores urbanos são atingidos com os colonos alemães. Quem chega à que os custos de produção, com a mão de
nição, além de desnutrição, como conse- em cheio pelo discurso de que só há vida frente é a Souza Cruz, que já introduz a obra inclusa, chegavam a até 98% sobre
quências do trabalho infantil nas planta- porque existe tabaco. Rodeados pelas po- adubação química do fumo e o sistema o montante produzido”, menciona.
ções de fumo. derosas empresas fumageiras, os peque- integrado de produção. Guilherme, que trabalhou dos 14 aos 18
nos produtores têm apenas brechas para E Santa Cruz é o berço de tudo. A casa anos no cultivo de folhas de fumo, agora
contar a história a partir do ponto de vis- das fumageiras, o que faz entender tan- auxilia os parentes apenas aos finais de
“Uma pesquisa concluída no ano ta de quem trabalha na terra. E são pou- to medo e tamanha sensação de vigilân- semana, com poucas horas de trabalho,
cos os espaços que se abrem para quem cia. Mesmo nesse contexto, duas pesso- já que passa a maior parte do tempo em
passado pela Universidade de Santa deseja ouvi-los. as, além de Sighard, finalmente se candi- Santa Cruz. Feliz, o rapaz conta que a fa-
Passava das oito da noite e ainda havia datam a falar. Dois agricultores. Origens mília está em um quadro de conversão
Cruz do Sul (Unisc) identificou que trabalho pela frente. Um telefonema com e idades diferentes. Em comum, o fumo agroecológica, implementando outras
90% dos agricultores da região não hora marcada: 20h30. “Não posso ser que atravessou suas vidas. atividades, como pomar, criação de ca-
identificado e não vou poder te encontrar bras, árvores frutíferas nativas e cereais.
completaram o ensino fundamental” pessoalmente, mas vou te passar alguns Transição Aos poucos, constroem canais de comer-
contatos que podem render algo sobre o Laércio André Frantz nasceu em San- cialização para esses produtos. “Além
tabaco em Santa Cruz”, diz a pessoa do ta Cruz, no 3° distrito da cidade. Tem disso, toda a nossa alimentação é produ-
outro lado da linha. Angústia. Há dias, os 30 anos. Cultivou tabaco por boa par- zida na propriedade, o que diminui sig-
Também instituições internacionais contatos tentados nos sindicatos de tra- te desse tempo. Como tantos na região, nificativamente os custos fixos”, aponta.   
se debruçaram sobre o tema e mostra- balhadores da cidade, na Unisc e no Mi- os avós começaram, os pais herdaram Em um país que ostenta até hoje um
ram que o trabalho das crianças é so- nistério Público tinham dado em nada. e ele continuou. A diferença é que bus- ramo de fumo no brasão oficial da Repú-
mente um dos reflexos da perversida- Ninguém podia ou queria falar no muni- cou se libertar da indústria fumageira blica, evidência da ligação estreita e an-
de do sistema. Em 2003, estudo realiza- cípio que ocupa o 11° posto em números depois de um tempo. O ano da decisão tiga com a planta e o poder da indústria
do pela Christian Aid – organização de de suicídio no país. foi 2006. “Levei meu pai para o hospital fumageira, não à toa esta história come-
origem norte-americana e com sede no Pudera. A sensação na cidade é que pensando que estava morto, o médico çou a ser contada por Anderson Richter e
Brasil – afirmava que crianças brasilei- as fumageiras estão presentes em todos falou para ele: ‘Escolhe entre a sua vida terminou com Laércio Frantz e Guilher-
ras de famílias de agricultores do taba- os cantos. Uma atendente de farmácia e o fumo’. Mesmo assim, ficamos mais me Padilha. Enquanto algumas autorida-
co realmente vão à escola, mas a ajuda abaixa a cabeça e ignora a pergunta so- três anos plantando, só que mudamos des e a sociedade em geral não se aten-
nas plantações, resultado de fatores so- bre a dependência do comércio munici- para o fumo agroecológico, sem aplica- tam para o que está guardado dentro de
cioeconômicos e culturais, é fundamen- pal em relação ao tabaco. Outra moça, ção de agrotóxicos”, diz Laércio. cada cigarro, há quem resista e aponte as
tal para alcançar as metas impositivas dessa vez numa padaria, passa um bom A transição deu certo. Em 2009, a fa- portas de saída. (JP e MN) (Agência Pú-
da indústria. café, mas o olhar por cima do ombro do mília Frantz deixou de vez o tabaco. Ho- blica- www.apublica.org)
No Paraná, antes de mergulhar na in- interlocutor denuncia o temor de que al-
vestigação dos contratos feitos entre em- guém esteja à espreita sempre que se to-
presas e agricultores, o que chamou aten- ca no assunto. Não que exista uma pres-
ção da procuradora Margaret Ramos de
Carvalho foi a questão do trabalho infan-
são direta das empresas sobre a popula-
ção, porém é permanente o discurso de
Outros estragos
til na produção de fumo. No ano de apre- que qualquer crítica à indústria do fu- de Vale do Rio Pardo, Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires (RS)
sentação das ações contra as fumageiras, mo é um estímulo para que ela se vá da
o MPT calculava haver 80 mil crianças li- cidade, o que causaria um estrago sem Apesar dos avanços nos combates às doenças relacionadas ao tabaco, o Bra-
dando com essa cultura no Paraná e em precedentes na economia local. sil ainda tem um caminho longo pela frente. O Ministério da Saúde ressalta
Santa Catarina. “Quando fui discutir com Se a marca da Souza Cruz está es- que o hábito de fumar continua a ser a principal causa de mortes evitáveis e é
os produtores a questão do trabalho in- tampada na entrada do município, a da um dos fatores centrais nas causas de doenças não transmissíveis, como cân-
fantil, cobrando deles essa responsabili- americana Universal Leaf Tabacos está cer, enfermidades pulmonares e cardiovasculares, responsáveis por cerca de
dade, percebi que eles eram vítimas, tan- em destaque no principal parque públi-
to quanto as crianças e os adolescentes.” co da cidade. Os nomes delas, aliás, são
70% dos óbitos no país.
O acordo feito em Brasília, que atro- lidos em muitos lugares. E os de outras Estudo financiado pela Aliança de Controle do Tabagismo (ACT) mostrou
pelou a ação do MPT no Paraná, seguiu fumageiras também: a estadunidense que o custo do fumo para o sistema de saúde brasileiro é de R$ 21 bilhões ao
a lógica de colocar somente o pequeno Alliance One, a britânica Philip Morris, ano, ao passo que toda a arrecadação tributária com essa indústria fica em tor-
na linha de frente da culpa também nes- a chinesa China Tobbacos e a japonesa no de R$ 6 bilhões. A pesquisa feita pela Fundação Oswaldo Cruz e pelo Insti-
sa questão. Hoje, no caso de flagrante de JTI. Uma miríade de nomes e naciona- tuto de Efectividad Clínica y Sanitária, da Argentina, analisou 2,4 milhões de
trabalho de menores, só é prevista puni- lidades que confunde quem tenta enten- casos de doenças. Desse total, 34% eram atribuíveis ao tabaco. Em registros de
ção ao agricultor. Se isso ocorrer por du- der a situação. alguns tipos de câncer (laringe, boca e pulmão), esse percentual chegou a qua-
as vezes, o produtor deve ser automati- Enfim, chega o sol do dia 2. Acionado tro em cada cinco casos. De 458 mil óbitos, 28% foram relacionados à questão.
camente descadastrado pelas empre- o telefone anotado na noite anterior. Do A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima em 6 milhões o número de
sas. Além disso, os camponeses têm de outro lado, uma voz feminina confirma o mortos anualmente pelo hábito de fumar, número que pode crescer para até 8
se comprometer a apresentar às corpo- lugar e o nome do coordenador. “Aqui é milhões se mantidos os ritmos atuais. Globalmente, o fumo causa em torno de
rações comprovantes de frequência es- do Capa, sim, e o Sighard está.” Capa é 70% dos casos de câncer de pulmão, 40% das doenças respiratórias e 10% das
colar, também sob o risco de exclusão. o Centro de Apoio e Promoção da Agro- cardiovasculares. (JP e MN) (Agência Pública- www.apublica.org)
(www.apublica.org) ecologia, uma organização não governa-
brasil de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 9

Quem fica com o “filé”


no Rio das Olimpíadas? Anne Vigna

ESPECULAÇÃO Disputa
entre cidadãos e prefeitura
pela Marina da Glória revela
como agem os órgãos
em defesa do patrimônio
quando estão em jogo os
projetos “olímpicos”

Anne Vigna
do Rio de Janeiro (RJ)
da Agência Pública

POR TRÁS DA POLÊMICA “revitaliza-


ção” da Marina da Glória, localizada no
“filet-mignon do Rio”, como Lotta Ma-
cedo Soares se referia à sua criação, o
Parque do Flamengo, trava-se uma ba-
talha. De um lado, cidadãos que de-
fendem o caráter público da marina e
a integridade do parque tombado pelo
Iphan (e de sua espetacular paisagem,
tombada pela Unesco como Patrimônio
da Humanidade) e, do outro, os apoia-
dores do projeto dos concessionários da
marina – e do modelo de obras olímpi- Vista da Marina da Glória, no Rio de Janeiro: pressão política e interesses econômicos
cas “sem dinheiro público”, defendido
pela prefeitura. da baía reforçando a segurança “comuni- de tombamento”. Foi Sonia quem escre- mendação do Instituto de Arquitetos do
A BR Marinas – que adquiriu os direi- tária” com apoio dos comerciantes locais veu o capítulo sobre “tombamento” nos Brasil (IAB) de que fosse feito um “con-
tos de concessão da Marina da Glória do e de seu filho, Marcelo Maywald, que é regulamentos do Iphan. curso nacional ou internacional de arqui-
falido Eike Batista (em uma transação subsecretário de Ordem Pública. E foi o Iphan, um órgão federal, que tetura” para o projeto do parque.
questionada na Justiça por ferir as regras Do outro lado da disputa, com o apoio fez a balança pender para o lado do pro- Chama atenção, no relatório final da
do edital da prefeitura) – obteve também do deputado Marcelo Freixo (PSOL), es- jeto empresarial apoiado pela prefeitura comissão, a recomendação dos órgãos
o seu apoio “popular”. As associações de tão a Federação das Associações de Mo- ao autorizar as obras de “revitalização”, de preservação do patrimônio para re-
moradores dos valorizados bairros vizi- radores do Município do Rio de Janei- infringindo as próprias normas. Prova chaçar a sugestão do IAB: que houvesse
nhos, a Glória e o Flamengo, defendem o ro (FAM Rio), o SOS Parque Flamen- disso é que, em 2007, o mesmo órgão se “prudência com a realização do concur-
projeto, articuladas pela vereadora Leila go, a Associação de Usuários da Mari- opôs à construção de uma garagem de sos por entender que os projetos a serem
do Flamengo, do PMDB, partido do pre- na da Glória (Assuma) e o movimento barcos pela então concessionária EBTE desenvolvidos podem impactar de forma
feito Eduardo Paes. Ocupa Marina. Nesse front, a figura que para os Jogos Panamericanos, afirman- negativa a paisagem da Marina da Gló-
Nascida no Rio Grande do Norte, Lei- se destaca é a presidente da FAM, So- do que a obra estaria em área “non aedi- ria e do Parque do Flamengo”. Afinal, foi
la Maria Maywald construiu sua carrei- nia Rabello, professora de direito admi- ficandi” (que não permite construções). exatamente o que aconteceu em conse-
ra política no Rio ao se tornar presiden- nistrativo e Urbanístico da Uerj há 32 Agora, em um piscar de olhos, a mesma quência da obra realizada sem licitação e
te da Flama – Associação dos Morado- anos, ex-vereadora do Partido Verde e área passou a ser considerada “edificá- autorizada pelo Iphan. A altura máxima,
res e Amigos do Flamengo. Mudou o no- ex-procuradora e diretora de fiscaliza- vel”, acusa Sonia. que deveria ser de 12 metros acima do ní-
me em homenagem “a sua trajetória de ção do Iphan. Essa não foi a única regra quebrada pe- vel do mar, segundo a recomendação da
defesa do parque do Flamengo” e se tor- Leila e Sonia têm visões opostas da lo Iphan. Durante os debates na comis- comissão, foi ultrapassada pelas obras,
nou notícia por declarações controverti- situação: enquanto a primeira defen- são instituída pela prefeitura em 2013 que atingiram 14,7 metros. Mais grave:
das, como a que fez, em 2013, na Câma- de que a iniciativa privada é necessá- para formular diretrizes para a obra, o a diferença significa a perda de parte da
ra Municipal, afirmando ser “hipocrisia” ria para “valorizar o espaço”, a segun- Iphan (e o IRPH, Instituto Rio Patrimô- reverenciada vista do Pão de Açúcar, em
dizer “que mendigo tem o mesmo direi- da diz que a reforma é “uma privatiza- nio, ligado à prefeitura e responsável pe- flagrante desrespeito à paisagem tomba-
to que os cidadãos”. E angariou apoio de ção do espaço público, uma ilegalidade la preservação da paisagem tombada pe- da pela Unesco. (Agência Pública- www.
outras associações de bairros no entorno jurídica e um dano enorme ao conceito la Unesco) se posicionou contra a reco- apublica.org)

A toque Cenas de pressão explícita


de caixa do Rio de Janeiro (RJ)
convicções: “Tive que me aposentar do
Iphan, pois as ‘perseguições’ que vinham
me fazendo por causa da Marina da Gló-
tam do inquérito. Nelas também se sen-
te uma discreta pressão sobre o MPF.
Exemplo: em junho deste ano, a Autori-
Para Leila do Flamengo, “o projeto foi ria, do Maracanã e do Parque Nacional dade Pública Olímpica (APO) escreveu:
aprovado porque é um projeto excelente da Tijuca, pioraram bastante desde a se- “É competência do consórcio interfede-
do Rio de Janeiro (RJ) que não vai custar nada para a prefeitu- gunda metade do semestre do 2013 […]. rativo o acompanhamento de qualquer
ra”. Para Sonia Rabello, a história é ou- A pressão piorou em 2014, pois prepa- situação que pode comprometer a conti-
A pressa para aprovar o projeto come- tra: “Eu não tenho dúvida da pressão que raram um outro projeto para a Marina nuidade da execução do cronograma de
çou dentro da comissão que deveria ze- foi feita sobre o Iphan por causa dos Jo- da Glória, que também não me mostra- obras em curso na Marina da Glória, ge-
lar por sua preservação, composta tam- gos [Olímpicos]. O nível da pressão foi ram, e sabiam que eu ia me posicionar. rando riscos à preparação e realização
bém por membros da BR Marinas. Co- aumentado com o tempo. O Iphan é um […] Chegaram a me cortar três meses do dos Jogos Rio 2016”.
mo conta o presidente do IAB-RJ, Pe- órgão pequeno com funcionários mal pa- salário sem sequer abrir um processo ad- Os empresários do turismo levaram
dro da Luz Moreira, ao explicar por que gos, não é o Banco do Brasil. Então, com ministrativo. Para eles, foi uma espécie sua opinião ao conhecimento do procu-
os arquitetos defendiam o concurso, “a essa pressão dos Jogos, tinha que encon- de punição para colocar medo nos outros rador: “O Rio Convention & Visitors Bu-
prefeitura tinha uma urgência de tem- trar um jeito de aprovar o projeto”. funcionários”. reau é plenamente favorável ao projeto
po por causa dos Jogos [Olímpicos]”. A Pública obteve o inquérito civil aber- A Pública tentou, sem sucesso, en- de Revitalização da Marina, entenden-
No entanto, ele destaca: “Um concurso, to pelo Ministério Público Federal (MPF) trar em contato com Cláudia Girão e te- do que esta iniciativa é de vital importân-
em geral, faz ganhar tempo, porque vo- depois de uma audiência pública convo- ve seus pedidos de entrevista recusados cia para suprir a necessidade de espaços
cê analisa bem melhor um projeto du- cada pelo órgão no dia 17 de abril des- pelo Iphan. O procurador Leonardo Car- e instalações na zona sul”.
rante a fase do concurso, o que faz ga- te ano com o objetivo de obter subsídios doso de Freitas, que conduz a investiga- “Vital”, “riscos”, palavras fortes nas
nhar tempo depois. Com as audiências para fundamentar a investigação. Entre ção pelo MPF, ainda não se pronunciou. cartas, para dizer como o assunto é sé-
públicas, todo mundo analisa o proje- os documentos, constam denúncias de Há mais quatro ações judiciais em curso rio. A verdade, porém, é que a Marina
to, e as pessoas opinam, fazem reclama- “pressão política” e de “interesses econô- contra as obras na marina, todas movi- nem sequer necessitava de reforma pa-
ções, negociam, o que permite melhorar micos fortes” feitas pela assistente técni- das pela sociedade civil, mas é difícil re- ra ser a sede de competições de vela, co-
sempre o projeto”. ca Cláudia Girão, que era chefe da divi- verter a obra a esta altura do campeo- mo reconheceu o próprio Comitê Olím-
No entanto, as pessoas não tiveram a são de Estudos de Acautelamento e Re- nato. “Na melhor das hipóteses, virá um pico e foi comprovado nos eventos-teste.
chance de opinar. As organizações da so- gistro do IPHAN, e que sofreu diversas TAC [Termo de Ajustamento de Condu- A única carência constatada é a de sanea-
ciedade civil não puderam nem anali- tentativas de afastamento por ter agido ta], mas não acredito que a obra vai pa- mento, uma obra da Cedae que nada tem
sar o projeto. O pedido da FAM foi nega- contra as reformas propostas em 2007, rar nem que venha uma ordem para des- a ver com a tal “revitalização”, que, ao
do pela Superintendência do Iphan, que para os Jogos Panamericanos. truí-la”, diz a advogada do Ocupa Mari- que tudo indica, está mais voltada para
disse não ser “seu papel convocar audi- Em três e-mails enviados por Cláudia na, Natasha Zadorosny. a comercialização dos espaços no Parque
ências públicas”, contrariando o Decre- ao Ministério Público, ela relata ter so- O procurador do MPF recebeu cartas, do Flamengo depois da Olimpíada. (AV)
to 8.243, de maio de 2014, da presiden- frido represálias por ter mantido suas depois da audiência pública, que cons- (Agência Pública- www.apublica.org)
te da República sobre consulta popular,
principalmente por se tratar de um par-
que público.
Detalhe: quando o pedido foi respon-
dido, o projeto já tinha sido aprovado –
em tempo recorde. Entre os dias 3 e 5 de
novembro, foram feitos os pareceres de
“Um bom negócio para todo mundo”
um técnico e do superintendente do Rio,
então enviados para Brasília, e imediata- grega os usuários da marina. Para ele, a la Pública, a resposta foi: “No momento
mente aprovados pelo diretor de patri- do Rio de Janeiro (RJ) marina ideal seria voltada para os espor- é impossível prever”. O que é no mínimo
mônio e fiscalização do Iphan e, em se- tes de vela, com um lugar para reparar estranho para uma empresa grande e ex-
guida, pela presidente do órgão. Na pres- Segundo Pedro Guimarães, diretor da os barcos, enfim, um espaço público vol- periente, com três marinas em Angra dos
sa, a presidente deu a autorização “de pu- BR Marinas para a Marina da Glória, es- tado para a prática esportiva da popula- Reis e participação em marinas america-
nho próprio, em um ofício sem carimbo” tão previstos vários eventos para o novo ção, sem fins lucrativos – da maneira co- nas.
e “sem passar pelo Conselho Consultivo, espaço, entre outros o Cirque du Soleil e mo foi concebida quando o Rio ainda não Não há dúvida que o negócio será com-
contrariando a Portaria 420 do Iphan, o Rio Boat Show. Na edição de 2015, na era a Cidade Olímpica e a terra das par- pensador, já que faltam vagas para bar-
que diz que o projeto tem de ser aprova- Barra da Tijuca, o Rio Boat Show recebeu cerias público-privadas. cos na cidade e espaço para eventos na
do pelo Conselho Consultivo e que a pre- 30 mil visitantes, o que preocupa os que O certo é que a Marina da Glória que se zona sul. Pelo contrato de concessão, que
sidente é competente só em grau de re- se opõem ao projeto: “O Parque do Fla- desenha agora não será nada transparen- consta da representação ao MPF, a em-
curso”, detalha Sonia Rabello. mengo nunca teve como vocação sediar te, já que, apesar de o projeto dos novos presa BR Marinas tem de pagar apenas
Por que o Iphan aprovou tão rapida- os eventos. Imagina o número de carros, equipamentos ser ricamente detalhado – R$ 7.160 mensais, além de 2% de sua re-
mente um projeto tão polêmico? Por caminhões de lixo, de fornecedores que e o preço para os barcos ter quase tripli- ceita líquida, à prefeitura. O que Leila do
que não houve concurso nem audiên- vão ter que passar para assegurar a reali- cado –, a BR Marinas não revela quan- Flamengo chama de “um bom negócio
cias públicas? (AV) (Agência Pública- zação de eventos”, afirma Antonio Carlos to pretende lucrar com o negócio. Quan- para todo mundo”. (AV) (Agência Públi-
www.apublica.org) Cardoso, membro da Assuma, que con- do indagada diretamente sobre isso pe- ca- www.apublica.org)
10 de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 brasil

Paraná repete São Paulo e anuncia


fechamento de escolas estaduais Pedro Ribas/ANPr

MODELO TUCANO
Governo Beto Richa confirma
fechamento de até 40 escolas.
Sindicato fala em mais de 100 e
inicia mobilização contra medida

Tiago Pereira
de São Paulo (SP)
da Rede Brasil Atual

O GOVERNO do Paraná confirmou, no


dia 26 de outubro, o fechamento de até
40 escolas em todo o estado, de acordo
com o plano de “otimização”, que segue
receituário do seu colega de partido, o
governador Geraldo Alckmin, em São
Paulo. O número foi anunciado em en-
trevista coletiva pela superintendente
de Desenvolvimento Educacional da se-
cretaria, Vanda Dolci Garcia, que acom-
panhou o governador Beto Richa (PS-
DB), e a secretária de Educação, Ana
Seres Trento, na entrega de um prêmio
na capital.
O plano de “otimização” visa fechar
principalmente, mas não só, unidades
escolares que funcionam em prédios alu- Plano de “otimização” de Richa segue receituário do colega de partido, Geraldo Alckmin
gados. Levantamento inicial do APP-Sin-
dicato, que representa os professores e Ela afirma também que a decisão não ção (PEE), aprovado neste ano, a políti- ro de turmas, com a previsão de redução
funcionários de ensino público do Para- foi negociada com comunidade, como diz ca de “otimização”, para Walkíria, com- do número de turmas, por óbvio, é preci-
ná, chegou a aventar o fechamento de até a secretaria. Walkíria conta que as dire- promete outra meta, a ampliação do en- so de menos trabalhadores.”
150 escolas. Até mesmo a Secretaria de torias das escolas são chamadas, nas re- sino integral. Ainda mais grave que a situação dos
Educação chegou a falar em 71 escolas na gionais de ensino, e comunicadas da de- “O governo estadual estabeleceu meta professores é a dos funcionários das es-
semana passada. cisão, e, só então, a comunidade escolar de construção de 500 escolas de ensino colas, como inspetores, serventes, por-
Para a secretária educacional do APP- é avisada. integral e deveria, portanto, aproveitar teiros e merendeiras. “Se junto duas es-
-Sindicato, Walkíria Olegário Mazeto, o as unidades que apresentam capacidade colas, que passam a funcionar no mes-
número é impreciso, pois só das esco- Escolas atingidas ociosa para a implementação das escolas mo prédio, automaticamente reduzo a
las do interior do estado, onde o movi- A dirigente afirma que a proposta de de tempo integral”, propõe Walkíria. Por quantidade de funcionários”, explica
mento de fechamento foi iniciado há um otimização atinge mais fortemente as es- fim, o plano atual vai de encontro a ou- Walkíria. Ela diz que, mais uma vez, o
mês, o sindicato recebeu ao menos 60 colas rurais e as que se dedicam à moda- tra meta constante no PEE, que determi- proposto pelo governo vem na contra-
denúncias. lidade da Educação de Jovens e Adultos na a ampliação de vagas do ensino mé- mão das necessidades da comunidade
(EJA), essas últimas por funcionarem na dio, e não o fechamento. escolar, que sofre a falta de profissionais
sua grande maioria em prédios locados, desse tipo.
“Não é o primeiro ano que a e por contarem com menor número de Contudo, a secretária do APP-Sindi-
alunos. “Se junto duas escolas, cato relata que, a partir da mobilização
Secretaria de Educação tem essa Walkíria afirma que, ao atingir o EJA, da comunidade escolar, algumas escolas
a secretaria estadual ignora especifici- que passam a funcionar que seriam alvo de fechamento conse-
política. É o ano em que ela foi mais dades relativas a esse público, compos- guiram reverter a medida, como foi o ca-
no mesmo prédio,
incisiva e com o maior número de ta de adultos trabalhadores. “É um pú- so da Escola Estadual Dom Orioni, uni-
blico que você tem que buscar, que tem automaticamente reduzo a dade de referência em Curitiba. Outros
escolas para o fechamento” que insistir para que fique na escola. casos de resistência ocorreram em Ma-
São mais resistentes”, diz ela, que lem- quantidade de funcionários” ringá, Prudentópolis e Cascavel. Frente
bra ainda que dessa maneira, o governo à resistência de pais, alunos e professo-
estadual se desincumbiria de ir atrás da- res, a Secretaria de Educação recuou e
Para além das ações pontuais em ca- queles adultos analfabetos, ou semialfa- classificou o anuncio de fechamento co-
da unidade alvo de fechamento, a enti- betizados, comprometendo assim a bus- Impacto mo “equívoco”.
dade convocou manifestação unificada, ca pela erradicação do analfabetismo no Segundo o APP-Sindicato, nos últimos O APP-Sindicato propõe que, ao re-
na quinta-feira (29), às 10h, na região da estado. anos, o estado registrou queda no núme- ceber a notificação de fechamento da
Boca Maldita, centro de Curitiba, para Para as unidades de ensino regular, ro de matrículas, tendência que foi rever- escola, a unidade deve convocar a co-
denunciar os fechamentos. No interior, a “otimização” acarreta a superlotação tida, em 2015, com a migração de alunos munidade escolar, em assembleia am-
também estão previstas mobilizações. das salas de aula, já que o fechamento da rede particular para a rede pública, o pliada, reunindo não apenas pais e pro-
“Não é o primeiro ano que a Secreta- acaba na junção de salas com um bai- que não justificaria o fechamento. fessores e alunos, mas também aqueles
ria de Educação tem essa política. É o xo número de alunos (cerca de 35), mas Além do impacto para o alunado, que que ingressariam na escola no ano se-
ano em que ela foi mais incisiva e com o que somadas alcançam a casa dos 70. deve sofrer com a superlotação e aumen- guinte, para deliberar sobre a medida,
maior número de escolas para o fecha- “É uma política do olhar financeiro”, to no tempo de deslocamento até à es- e que façam uma ata da reunião e um
mento.” Contrariando o número oficial, afirma Walkíria. cola para aqueles que forem remaneja- abaixo-assinado e protocolem os dois
Walkíria estima que o total de escolas fe- Além da erradicação do analfabetismo, dos, Walkíria aponta consequências pa- documentos no Ministério Público Es-
chadas ultrapasse uma centena. que consta do Plano Estadual de Educa- ra os professores. “Como reduz o núme- tadual (MPE).

ENSINO

Câmara aprova PEC que permite à


universidade pública cobrar por pós-graduação
Luis Macedo/Câmara dos Deputados
PROPOSTA PRIVATISTA de entrada para processo de privatização
da educação pública. “É uma proposta
Mesmo sem consenso da privatista que reduz a responsabilidade
do Estado, intensifica a privatização e o
comunidade acadêmica, modelo de universidade gerencial. O mo-
projeto autoriza a delo de universidade com ensino-pesqui-
sa-extensão é o melhor modelo de uni-
cobrança em cursos versidade se quisermos construir uma
“lato sensu” e em proposta de futuro para o país”, disse.
Segundo o autor da PEC original, de-
mestrados profissionais putado Alex Canziani (PTB-PR), a moti-
vação para propor a alteração é a de que,
embora algumas universidades públicas
cobrem por cursos de pós-graduação la-
Luciano Nascimento to sensu, muitos alunos entram na Jus-
de Brasília (DF) tiça contra a cobrança, usando o texto
constitucional como argumento. “Se não
O PLENÁRIO da Câmara dos Deputa- aprovarmos essa matéria as universida-
dos aprovou, dia 21, em primeiro turno, Para Ivan Valente, medida quer criar porta de entrada para privatização da educação pública des vão deixar de ofertar esses cursos que
por 318 votos a favor, 129 contra e qua- são importantes, com medo das decisões
tro abstenções o texto-base da proposta rou a proposta inicial para incluir o mes- que aligeirar-se numa decisão onde a co- da Justiça”, disse.
de Emenda à Constituição (PEC) 395/14, trado profissional como passível de ser munidade universitária não tem consen- Antes da votação em segundo turno, os
que permite às universidades públicas cobrado. O tema foi o principal ponto de so sobre a questão?” deputados ainda devem votar um desta-
cobrarem por cursos de pós-graduação polêmica entre os deputados. Cleber Verde justificou com o argu- que do PCdoB que pede a supressão da
lato sensu (especialização), de extensão A deputada Alice Portugal (PCdoB- mento de que a cobrança por cursos de cobrança para mestrados profissionais.
e de mestrado profissional (o mestrado -BA), criticou a alteração, pois a cobran- pós-graduação já é realidade em algumas Antes da votação, Alice Portugal sugeriu
profissional objetiva capacitar profissio- ça em cursos de pós-graduação lato sen- universidades. “O que nos foi dito em au- que o assunto fosse debatido novamente
nais qualificados para o exercício da pro- su e em mestrados profissionais em uni- diências públicas é que esses cursos ser- pela Comissão de Educação, antes da vo-
fissão, buscando a inovação e a valoriza- versidades públicas não tem consenso vem não apenas para capacitar profis- tação em plenário.
ção da experiência profissional). dentro da comunidade acadêmica. Alice sionais, mas também permitem investi- “Não precisamos abrir a Constitui-
A proposta altera o Artigo 206 da citou como exemplo a Associação Nacio- mentos em laboratórios e em melhorias ção para regular o lato sensu. Devemos
Constituição que determina a gratuidade nal Dos Dirigentes das Instituições Fe- de infraestrutura”, afirmou. manter a matriz pública e gratuita da es-
do ensino público em estabelecimentos derais de Ensino Superior (Andifes) que trutura das universidades brasileiras e
oficiais. O texto aprovado foi um substi- não teria posição firmada sobre o tema e Privatização regular o lato sensu em regramento in-
tutivo do deputado Cléber Verde (PRB- a Associação Nacional de Pós-graduan- Para o deputado Ivan Valente (PSOL- fraconstitucional”, afirmou a deputada.
-MA), que relatou a matéria. Verde alte- dos (ANPG) contrária à cobrança. “Por- -SP), a medida significa criar uma porta (Agência Brasil)
cultura de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 11

A beleza de Gonzaguinha,
eterno aprendiz
MÚSICA
Divulgação
filhos mais velhos, do primeiro casa-
mento. “Ele era muito autêntico, verda-
Cantor e compositor deiro e transparente. É engraçado que
as pessoas sempre buscam clareza e au-
carioca, de personalidade tenticidade, mas quando encontram se
enigmática, ficou assustam”, diz Fernanda, prestes a fina-
lizar a gravação de uma série de inédi-
conhecido pela tas do pai.
Lelete concorda: “As pessoas têm me-
originalidade, do de conviver com a verdade, e ele era
muito verdadeiro, não criava situações
autenticidade e por não folclóricas pelo fato de ser famoso. Ho-
fazer questão de agradar je ele se daria melhor com aquele jeitão
dele”, afirma. “O ser artista compreende
nem público nem crítica muitas vezes estar do lado oposto do pú-
blico. Mas meu pai sempre teve uma po-
lítica diferente. Ele não se distanciava do
povo, ele gostava de estar perto do povo.
Danilo Di Giorgi Isso fazia ele estar em qualquer lugar e
de São Paulo (SP) ser a pessoa Gonzaguinha”, diz Daniel.
da Rede Brasil Atual A jornalista Regina Echeverria conhe-
ceu o músico em 1979, ano em que o ar-
ZANGADO, DIVERTIDO. Amargo, amo- tista se consolidava sucesso nacional.
roso. Mal-humorado, brincalhão, fecha- Regina havia sido escalada para fazer
do, delicado, antipático. Adjetivos tão uma reportagem para uma revista se-
díspares ainda hoje são citados para de- manal. E nasceu uma amizade que re-
finir uma das mais enigmáticas persona- sultou na biografia Gonzaguinha e Gon-
lidades da MPB: Luiz Gonzaga do Nasci- Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha zagão – Uma História Brasileira, pu-
mento Júnior, o Gonzaguinha, que teria blicada somente em 2012. “Cheguei na
completado 70 anos em setembro. turamente em um acidente automobilís- “Para saber do Gonzaga você precisa ouvir casa de shows para a entrevista e pedi-
O cantor e compositor carioca criou tico aos 45 anos? Ainda que fosse autor ram para esperar. Vi uma pessoa que
canções poderosas que marcaram os de canções ásperas, como Piada Infeliz e seus amigos mais próximos. Esses vão parecia ser ele no meio dos trabalhado-
anos de 1970 e 1980, daquelas que to- Erva, como imaginar “azedo” o autor de res carregando caixas, e fiquei em dúvi-
do mundo sabe cantar quando lembra- odes à alegria, como A Felicidade Bate à
falar da pessoa maravilhosa que ele era, da se aquela pessoa simples era mesmo
das em uma roda de violão. Algumas ce- sua Porta e Feijão Maravilha, sucessos brincalhão, bem-humorado, uma pessoa a grande estrela da MPB”, relata a jor-
lebrizadas em vozes como as de Maria em versões dançantes de As Frenéticas? nalista. “Era uma figura única, detesta-
Bethânia (Grito de Alerta, Explode Co- “Para saber do Gonzaga você preci- boníssima, que sempre ajudava os outros” va dar autógrafo, achava um absurdo a
ração), outras imortalizadas por ele pró- sa ouvir seus amigos mais próximos. Es- pessoa querer levar um papel assinado.
prio (É, Com a Perna no Mundo, San- ses vão falar da pessoa maravilhosa que Mas não negava simplesmente o autó-
grando, O Que é, O Que é, Começaria ele era, brincalhão, bem-humorado, uma grafo, ficava ali conversando com o fã,
Tudo Outra Vez). pessoa boníssima, que sempre ajudava “Era uma mala sem alça e sem rodi- explicando que valia mais a pena con-
Mas, afinal, quem era aquela figura os outros”, defende a viúva Louise Mar- nha”, brinca, carinhoso, o filho Daniel versar um pouco e levar um pouco da
mirrada, com seus 56 quilos distribuídos garete Martins, a Lelete, casada com o Gonzaga. O compositor e cantor Daniel pessoa dele. Ele era meio doutrinador”,
em 1,76 metro de altura, morta prema- artista de 1980 até o acidente fatídico. e a cantora Fernanda Gonzaga são seus conta, aos risos.

Paternidade
Rei do Baião. Ele teve motivos para colo- 16 anos, apesar dos desentendimentos casa. Era a referência que ele tinha de
de São Paulo (SP) car uma parede entre ele o mundo. Mas com a madrasta, resolveu mudar para a política do sertão, onde as coisas eram
por trás dessa parede havia essa pessoa casa do pai, na Ilha do Governador. “Ele diferentes”, afirma Lelete.
É certo que Luiz Gonzaga Júnior nas- maravilhosa e muito sensível”, diz Regi- não acreditava em mim pela minha for- As diferenças só vieram a ser resolvi-
ceu em 1945 no Rio de Janeiro. E que na Echeverria. mação, não tinha domínio sobre mim, das no início dos anos de 1980, com a
sua mãe se chamava Odaléia Guedes Com seus pais adotivos Leopoldina temia que eu não virasse boa coisa.” O turnê “Vida de Viajante”, que percorreu
dos Santos, cantora da boate Dancing de Castro Xavier e Henrique Xavier (o filho vivia trancado no quarto com o o Brasil por quase um ano com os dois
Brasil. E que ela e Gonzagão, este ain- Baiano do Violão), o menino cresceu no violão, não respeitava a rotina da casa lado a lado no palco. “Esse reencontro
da em início de carreira, apaixonaram- Morro de São Carlos, uma das mais an- nem interagia com a família. Discussões com o pai foi maravilhoso para ele. Ele
-se e tiveram um relacionamento amo- tigas favelas cariocas e um dos berços do eram comuns e o rapaz não tinha medo se tornou uma pessoa menos zangada,
roso. É de conhecimento também que samba, onde foi fundada a primeira es- de se expressar. O pai acabou levando o mais alegre, mais feliz, perdeu aquele
Odaléia morreu de tuberculose quan- cola de samba da cidade, a Deixa Falar. jovem para um colégio interno. hermetismo, se abriu para o mundo. O
do o menino tinha 2 anos. A partir des- Nomes como Luiz Melodia, Ângela Ma- Não se sabe ao certo por que Gon- pai finalmente o reconheceu como um
se ponto, as versões divergem. Muitos ria, Grande Otelo, Madame Satã e Aldir zaguinha resolveu estudar Economia, grande músico. Era o que ele queria”,
afirmam que Odaléia já estava grávida Blanc têm sua história ligada ao morro. se por desejo pessoal ou insistência do conta o amigo íntimo, o cantor e compo-
quando conheceu aquele que viria a ser Baiano do Violão tocava na Rádio Ta- pai, que fazia questão que o filho tives- sitor Ivan Lins. “Compusemos Debruça-
o Rei do Baião; outros sustentam que moio e foi quem ensinou ao filho adoti- se “anel no dedo”. Ingressou em 1967 do nas escadas da casa da Rua Jaceguai.
o filho é de Gonzagão. “Sempre houve vo os primeiros acordes. na Faculdade Cândido Mendes e nessa Aliás, eu fui o único com quem ele fez
desconfiança em relação à paternida- Gonzagão era pouco presente. “De época a divergência entre ele e o pai che- parceria. Isso era em parte pelo jeito de-
de biológica. E eu não tinha nenhuma tempos em tempos ele vinha me visi- gou ao campo da política. Ele se enga- le, mais reservado, mas também porque
prova concreta, já que os dois, em vi- tar, ia me levar pra comprar uma rou- jou em movimentos estudantis contra o ele era muito bom tanto na composição
da, não quiseram fazer o teste de DNA”, pa. Geralmente aparecia e eu não es- golpe de 1964, mas Gonzagão tinha vi- quanto nas letras, escrevia extraordina-
afirma a biógrafa. tava em casa”, disse Gonzaguinha em são conservadora. “Meu sogro tinha fo- riamente bem”, diz Ivan, padrinho de
Gonzagão separou-se de Odaléia logo uma entrevista de 1979. Quando tinha tos do Geisel e do Médici na parede de Daniel. (DDG) (Revista do Brasil)
depois do nascimento do menino. De-
pois viveu com Helena Cavalcanti até o
final de seus dias e não teve com ela fi-

Do MAU
lhos biológicos. Lelete acredita que a in-
fertilidade não seria problema de Gonza-
gão e sim de Helena, que nunca aceitou
Gonzaguinha. A madrasta teria inventa-
do ou estimulado a versão que ficou pa-
ra a história para prejudicar a relação en-
tre pai e filho. deve aprender a baixar a cabeça e di- sários e se tornou artista independente.
de São Paulo (SP) zer sempre muito obrigado/São pala- Em 1986 criou o selo Moleque, pelo qual
vras que ainda te deixam dizer por ser chegou a lançar dois discos.
“Sempre houve desconfiança em A casa da Rua Jaceguai era a residên- homem bem disciplinado/Deve pois só Gonzaguinha passou os últimos 12
cia do psiquiatra Aluízio Porto Carrero, fazer pelo bem da Nação tudo aquilo o anos de vida colecionando sucessos e vi-
relação à paternidade biológica. E eu na Tijuca, berço do Movimento Artístico que for ordenado”. vendo de forma tranquila com a família
Universitário (MAU). Aluízio fora ins- em Belo Horizonte. O músico dedicava-
não tinha nenhuma prova concreta, trumentista do Cassino da Urca e gos- -se a pesquisar novos sons e raramente
já que os dois, em vida, não quiseram tava de reunir amigos para conversas, Gonzaguinha era apenas passava longos períodos longe de casa. O
jogos de cartas e rodas de violão. Entre acidente que tirou sua vida aconteceu na
fazer o teste de DNA” os presentes sempre estavam Gonzagui- autêntico e verdadeiro, em manhã do dia 29 de abril de 1991. Gon-
nha, Ivan Lins, Aldir Blanc, Paulo Emí- zaguinha seguia a Foz do Iguaçu (PR),
lio e César Costa Filho. Servia-se duran-
busca permanente e sincera de onde tomaria um avião com destino a
te os encontros, com concha de sopa, de se tornar um homem e Florianópolis. Um ano e meio antes, em
“Seria estranho que um nordestino uma lendária batida de maracujá prepa- agosto de 1989, havia partido Gonzagão,
tradicional e conservador como meu rada dentro de uma grande panela. Os um artista melhor a cada aos 76 anos, vítima de uma parada car-
sogro colocasse seu nome em um filho violões passavam de mão em mão e as diorrespiratória.
que não era seu, você não acha? Eu te- pessoas cantavam em coro. Foi lá que dia. Como a vida devia ser “Eu acho que estou aprendendo aos
nho certeza de que o Gonzaga era filho Gonzaguinha conheceu Ângela, sua pri- poucos. Eu espero que agora eu agrida
biológico do Gonzagão”, afirma Lelete, meira mulher e filha de Aluízio. menos as pessoas do que há alguns anos.
lembrando que sua filha Mariana é a ca- “Éramos um grupo com pretensões Quanto menos eu agredir as pessoas no
ra do avô. “Ele fez uma música para a de romper as barreiras do mercado de O evento o projetou e chamou aten- futuro, para mim é melhor. Eu ainda te-
neta, e sempre falava que a boca dela ti- trabalho, com a consciência de que os ção da censura. Das 72 canções apresen- nho muita coisa pra aprender, devagar e
nha o mesmo formato e a mesma cor da festivais não projetavam ninguém”, diz tadas aos censores antes de gravar seu tal. Mas um dia, quem sabe, eu chego lá.
boca dele”, diz. Ivan Lins. O MAU acabaria sugado pela primeiro disco, 54 foram barradas. Sua Eu tenho paciência pra aprender.” Essa
O fato é que Gonzaguinha cresceu lon- TV Globo, que em 1971 lançava o pro- postura pouco dócil aos olhos dos meios declaração, feita pelo artista em dezem-
ge do pai – por conta da morte da mãe, grama Som Livre Exportação, o que de comunicação custaram-lhe naque- bro de 1990, talvez responda à questão
da rejeição da madrasta e das turnês em provocou desentendimentos entre os le início de carreira o apelido de “can- apresentada no início deste texto: Gon-
que Gonzagão passava longos períodos membros do grupo. Em 1973, Gonza- tor rancor”. Com a abertura política na zaguinha era apenas autêntico e verda-
longe. “Imagina a situação dele, crescen- guinha participou do programa de Flá- segunda metade dos anos de 1970, co- deiro, em busca permanente e sincera de
do no morro, por vezes com restrições vio Cavalcanti, apresentando a música- meçou a modificar o discurso e a com- se tornar um homem e um artista melhor
materiais e longe do pai. Ninguém acre- Comportamento Geral. Os jurados fi- por canções mais profundas e menos a cada dia. Como a vida devia ser. (DDG)
ditava quando ele falava que era filho do caram apavorados com a letra: “Você políticas. Em 1975, dispensou empre- (Revista do Brasil)
12 de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 cultura
Bob May/CC

Lanterna mágica
CRÔNICA A luz foi apagada e so trabalho diário, das 8 da manhã às 6 Na primeira noite que de três garotos magros que portavam
da tarde, consistia em preencher uma nos ombros uma cadeira de balanço.
vimos trinta minutos de Actualités cota diária de entrevistas com morado- passamos me informaram A luz foi apagada e vimos trinta minu-
res locais. A lista tinha dezenas de no- tos de Actualités Françaises, o jornal ci-
Françaises, o jornal cinematográfico mes. Uma entrevista normal tomava de onde era o cinema: perto nematográfico (com legendas em portu-
(com legendas em português), 40 a 50 minutos, prancheta em punho. da praça tal. Naquele guês), mostrando De Gaulle descerran-
De noite a gente jantava na pensão e es- do fitas inaugurais, etc. Finda a sessão, a
mostrando De Gaulle descerrando tava livre. tempo eu queria imitar plateia decampou para casa levando tu-
Na primeira noite que passamos me do. Conversei com o cara. Ele tinha sido
fitas inaugurais, etc informaram onde era o cinema: perto da Jean-Pierre Léaud (não porteiro do cinema local. O cinema fe-
praça tal. Naquele tempo eu queria imi- chou. O que tinha nos armários foi pro
tar Jean-Pierre Léaud (não só eu, aliás) e só eu, aliás) e me obrigava lixo. Ele salvou um caixote cheio de la-
me obrigava a ver um filme em pelo me- tas de película, e tempos depois quan-
Braulio Tavares nos um cinema de cada cidade que eu
a ver um filme em pelo do viu aquela garagem sem uso resolveu
fosse. E de tarde eu tinha visto passando menos um cinema de alugar. Estava juntando dinheiro pa-
EM MEADOS DOS ANOS DE 1970 eu no centro da cidade uma caminhonete de ra comprar seu primeiro longa de faro-
estudava no Campus II da UFPB (atual alto-falante chamando todos para o cine- cada cidade que eu fosse este. Quando juntasse, seriam sete ho-
UFCG) e de vez em quando apareciam ma às oito da noite. ras de ônibus até Campina Grande, pa-
uns trabalhinhos para ajudar os estu- Cheguei meia hora antes. O local era ra comprar das mãos do velho Expedito
dantes a descolar uma nota. Não era uma espécie de garagem retangular, va- um Trinity ou Sartana qualquer, sonha-
muita coisa, mas para quem vivia de ser zia, a parede do fundo pintada de branco. lá puxaram um fio comprido. Como por va ele, “e com isso eu vou ter em cinco
crítico de cinema qualquer “pingado” de Nem poltronas, nem cortinas, nem tela, acordo coreográfico, começaram a che- anos grana suficiente pra montar um ci-
fora dobrava a renda do mês. Fomos pa- nem música de orquestra, nem bombo- gar pessoas. Chegavam e iam entrando. nema de verdade”. (Texto publicado em
ra uma cidade do sertão, fazer uma pes- niere, nem cartazes e fotos nas paredes. Um trazia um tamborete, outro uma ca- sua coluna diária no Jornal da Paraíba
quisa. A equipe, dirigida por Bobó, con- Quinze minutos depois parou uma ca- deira de plástico de bar, outro uma ca- – Campina Grande-PB)
tava comigo e mais o saudoso Geraldo minhonete, uns caras armaram um pra- deira de palhinha, um casal trazia a qua-
Bode Rouco, e Hermano Babalu, além ticável, em cima dele uma bancada onde tro mãos uma poltrona de dois lugares, e Braulio Tavares é escritor, poeta e
do motorista da kombi, Erivaldo. Nos- pousaram um projetor IEC 16mm e de uma velhinha caminhava nobre à frente compositor de Campina Grande (PB).

www.malvados.com. br dahmer

PALAVRAS CRUZADAS
Horizontais: 1.Empresa alemã que denunciou um esquema de propinas pagas, há 20 anos, por
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18
11 transnacionais ao PSDB de São Paulo, para que elas vençam licitações, que envolvem o metrô 1
e os trens, com valores superfaturados – Primeiro papa latino-americano. 2.Segunda nota musi-
cal. 3.Proposta feita por Dilma para tratar da reforma política que em poucos dias foi engavetada. 2
4.Ordinário – Em alemão, diz-se “Farbe” – Doei – Interjeição de frustração. 5.A Organização Mun-
dial da Saúde – Computador pessoal – Presidente dos Estados Unidos. 6.Divisão de uma escola 3

de samba – Interjeição de nojo – Interjeição de dor. 7.Modinha – Na matemática, o MMC se re-


4
laciona com ele. 8.Diferentemente do referendo, que é convocado para que o cidadão ratifique
ou rejeite uma lei já criada, “ele” é convocado para sondar a opinião do cidadão antes de uma
5
lei ser criada – A capital deste estado (sigla) é a cidade de Rio Branco. 9.Vaso grande de barro,
ordinariamente destinado a armazenar água – Resultado de um processo criativo de seis anos, 6
esta é a última sinfonia completa composta por Beethoven, quando ele já se encontrava quase
totalmente surdo. 10.Maneirismo mineiro. 11.Críticos do PT insistem no discurso seletivo de que 7
ela não existia no Brasil antes de Lula e Dilma assumirem o comando do país – Ameno.
8
Verticais: 1.Mascote do PSDB – Maior organização de artes marciais mistas do mundo. 3.Fôrma.
4.O primeiro dos números inteiros. 5.Coordenação dos Movimentos Sociais – Organização das 9
Nações Unidas. 6.Repetição de um som – Partido dos Trabalhadores. 7.Jornal popular que era
conhecido pela expressão “se espremer, sai sangue” – Interpreta o que está escrito. 8.Pedido 10
de socorro – Placa de trânsito. 9.Trabalho de Conclusão de Curso – Em que há beleza. 10.Diz
o ditado popular que “a vingança é um prato que se come (?)”. 11.Recuos. 12.Quem nasce na 11

capital deste estado (sigla) é chamado de soteropolitano. 13.O contrário de “volta” – Na lingua-
gem informal “ter aparência de”. 14.Chamado de sétima arte, seu nome tem origem na palavra
grega que significa “movimento” – O nome deste estado (sigla) vem de um termo em tupi que 16.AR. 17.Placa. 18.Osso – Cama.
significa “bico de tucano”. 15.Em inglês, diz-se “aunt” – Um dos mais citados na história do Brasil 9.TCC – Belo. 10.Frio. 11.Retrocessos. 12.BA. 13.Ida – Pinta. 14.Cinema – TO. 15.Tia – Monte.
é o “Castelo”, tomado por tropas brasileiras durante a Segunda Guerra Mundial. 16.Aviso de re-
Verticais: 1.Tucano – UFC. 3.Molde. 4.Um. 5.CMS – ONU. 6.Eco – PT. 7.NP – Lê. 8.SOS – Pare.
11.Corrupção – Suave.
cebimento dos Correios. 17.Todo o carro precisa ter uma. 18.Na linguagem informal, diz-se de – PC – Obama. 6.Ala – Eca – Ai. 7.Onda – MDC. 8.Plebiscito – AC. 9.Pote – Nona. 10.Trem.
Horizontais: 1.Siemens – Francisco. 2.Ré. 3.Constituinte. 4.Comum – Cor – Dei – Pô. 5.OMS
algo “difícil” – Leito.
américa latina de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 13

Paraguaios convocam greve em


apoio aos trabalhadores crucificados Leonardo Wexell Severo
MOBIIZAÇÃO Sindicalistas denunciam
relação incestuosa entre deputado
dono de empresa de ônibus e ministro
do Trabalho, perseguindo e demitindo
trabalhadores que querem associar-se

Leonardo Wexell Severo


de Assunção (Paraguai)

ENORMES PREGOS de aço rasgam a


carne das mãos e vão ao encontro das
cruzes de madeira deitadas lado a lado
na calçada em frente ao Ministério do
Trabalho, Emprego e Seguridade Social
do Paraguai. Um gesto desesperado que
traz profundas recordações sobre a dita-
dura de Alfredo Stroessner (1954-1989)
e obriga a reflexões sobre o papel dos
poderes executivo, legislativo e judiciá-
rio em uma democracia, bem como da
imprensa, que tem servido aos seus se-
tores mais reacionários.
Mas tão marcante quanto a decisão co-
letiva de crucificar-se para denunciar a
criminosa e covarde perseguição patro-
nal é a solidariedade que emana dos tra-
balhadores de transporte da linha 49 de
ônibus de Assunção.

No total são 14 trabalhadores pregados Como último recurso, trabalhadores estão crucificados desde o dia 30 de junho

em cruzes – 11 acampados em frente nalização dos movimentos sociais ado- aplicado pelos empresários após terem tes mostra o seu humanismo”, ironizou
tada por Cartes, os deixou sem salários obtido subsídio governamental – e a es- o secretário-geral do Sindicato da Li-
ao Ministério do Trabalho – um deles nem direitos. truturação de uma política de transpor- nha 49, Miguel Garcete, também pre-
acompanhado de sua esposa, e três em No total são 14 trabalhadores pre- te com inclusão social. gado à cruz.
gados em cruzes – 11 acampados em Para Maria Candia, é evidente a sin- Com uma caixinha improvisada,
frente à Parada 49, clamando por justiça frente ao Ministério do Trabalho – um tonia fina existente entre o deputado e Adan Soto faz a sua parte na ação em
deles acompanhado de sua esposa, e o ministro “sempre em defesa dos in- frente ao Ministério. Ele recolhe con-
três em frente à Parada 49, claman- teresses da empresa”. “O fato é que os tribuições para sustentar o movimen-
do por justiça. Na retaguarda, ajudan- companheiros estão trabalhando até 18 to, comprar alimentos e remédios para
Eles foram demitidos pelo simples fa- do com a coleta de recursos para a sus- horas diárias, sem direito a dormitório, os companheiros, cada vez mais debili-
to de organizar um sindicato e persegui- tentação do movimento, um grande nú- sem sanitário, sem piso salarial, com os tados. “Nos ajudamos entre todos, pois
dos pela “lista negra” que fecha as por- mero de trabalhadores se reveza no en- ganhos arrochados. E em vez de agir pa- falta de tudo. Tenho dois filhos, Matias
tas para todo aquele que busca seus di- frentamento a problemas cotidianos, ra regularizar esta situação, os Ministé- e Kevin, com dez e sete anos. Para co-
reitos constitucionais. Com os filhos que vão desde a alimentação, a cuida- rios do Trabalho e do Transporte agem merem todo dia eles não estão indo à
obrigados a abandonarem os estudos dos básicos com a saúde e higienização. para encobrir as irregularidades”, de- escola, pois não tenho dinheiro para o
por falta de material escolar, vendo a fo- À medida que passa o tempo, os gas- nunciou a sindicalista. material”, explicou.
me bater à sua porta, a decisão foi toma- tos com os medicamentos – como so- Esposa de Marcos Deudan, Norma Bo- No país uma entidade sindical não
da. Tão dolorosa e dolorida quanto ine- ro e antibióticos – vão aumentando, as- gado disse que se somou ao movimen- pode representar o conjunto da cate-
vitável, creem. sim como o cheiro forte que toma con- to “sem pensar duas vezes”. “Acreditava goria, apenas uma microscópica par-
Assim, desde o dia 30 de junho estão ta do local. que pelo fato de ser mulher o meu envol- te dela, o que deixa a representação ex-
crucificados, embaixo de lonas, entre as “Estamos preparando uma greve geral vimento sensibilizaria mais o governo e tremamente vulnerável a chantagens e
ruas Herrera e Paraguari, no centro de do transporte para os próximos dias 2 e repercutiria mais nos meios de comuni- imposições. A insignificância numéri-
Assunção, para denunciar a criminosa 3 de novembro, onde além do reconhe- cação. Infelizmente o que posso ver, pas- ca – os sindicatos são formados a partir
ação antissindical tomada pelo dono da cimento da entidade da Linha 49, com sado tanto tempo, é que esse deputado, de 20 membros somente – faz com que
empresa, deputado Celso Maldonado. o respeito irrestrito à liberdade sindical, que deveria dar o exemplo, só pensa em os patrões e governos criem suas pró-
Contando com a imunidade emanada cobraremos a reincorporação de todos enriquecer, enquanto o governo tapa tu- prias entidades, com direções escolhi-
da cumplicidade do governo do presi- os demitidos”, afirmou a secretária-ge- do com dinheiro, contando com o apoio das a dedo para dividir a classe, nego-
dente Horacio Cartes, e particularmen- ral da Federação Paraguaia de Traba- da mídia”, acrescentou Norma. ciando o rebaixamento de salários e di-
te do seu ministro do Trabalho, Guil- lhadores no Transporte, Maria Candia. “Eu só queria saber o quanto deram reitos. Neste quadro perverso, o exem-
lermo Sosa, o parlamentar-proprietário Na pauta da paralisação, explicou, es- ao ministro para nos torturar assim. O plo dos trabalhadores da Linha 49 tem
demitiu 51 trabalhadores ilegalmente. E tão o rechaço ao aumento ilegal de pas- tratamento dispensado a nossas reivin- repercutido, com suas feridas expostas,
na mesma linha de perseguição e crimi- sagem de cerca de 50% – recentemente dicações pelo presidente Horacio Car- para quem quiser ver.

“Terrorismo de Estado no Paraguai é


para restituir a ordem oligárquica”
DENÚNCIA O sociólogo denuncia o controle dos
meios de comunicação, das emissoras de
“Crimes sob encomenda rádio e televisão, dos jornais, pelos seto-
res mais reacionários da política para-
buscam eliminar a luta guaia. “São núcleos familiares e de poder
social”, afirma o sociólogo econômico. Evidentemente que filtram
tudo o que sai. Não há como negar. Dese-
Ernesto Heisecke nham e configuram a realidade da forma
que querem”, frisa.
Estimulando o racismo e o preconcei-
to, avalia o sociólogo, o latifúndio midiá-
Leonardo Wexell Severo tico “traz problemas presentes e de ho-
de Assunção (Paraguai) rizonte futuro para uma ideia de nação”,
“já que a identidade paraguaia se cons-
“O TERRORISMO de Estado no Para- tituiu a partir do camponês e do idioma
guai é para restituir a ordem oligárquica. guarani e isso está sendo apagado”.
Com os crimes sob encomenda, com o si- É importante apontar que “pela pri-
cariato, os donos da terra se colocam por meira vez desde o último censo há mais
cima da capacidade e da soberania do Es- O sociólogo paraguaio Ernesto Heisecke gente na cidade que no campo”. Assim
tado, buscando eliminar a luta social.” a mídia passa a aprofundar ainda mais
A denúncia é do sociólogo paraguaio fiéis, contando com o silêncio cúmplice “Os crimes encomendados se instalaram, a sua campanha monocórdica contra os
Ernesto Heisecke, citando casos como o da imprensa comercial”. Uma das prin- que vêm do campo, “passa a falar mal dos
massacre de Marina Kue, em Curugua- cipais testemunhas do massacre, Vidal tendo os agentes da Justiça como aliados camponeses, passa a demonizá-los como
ty, onde morreram 17 pessoas, 11 campo- Vega foi morto em dezembro de 2012. fiéis, contando com o silêncio cúmplice vagabundos”. “Os camponeses chegam
neses e seis policiais, ocorrido no dia 15 Denunciando a conexão entre a concen- na cidade onde não há trabalho urbano,
de junho de 1012. O sangue derramado, tração de terra, o tráfico de drogas e a da imprensa comercial” numa mudança social forçada, terrível.
com uma operação conjunta entre a mí- proliferação dos conflitos – e da pobre- Cidades em que praticamente não há in-
dia e o Judiciário, lembra, “serviu para za – Heisecke ressalta que Blas Riquel- dústria, nenhum processo de desenvol-
tirar Fernando Lugo da presidência em me – que até sua morte se reivindicava vimento industrial. Onde o emprego fica
um julgamento flash, sem qualquer lógi- o “proprietário” de Marina Kue, “que é acampamento meninas que estavam de praticamente concentrado no setor servi-
ca, uma semana depois”. uma terra pública”, se fez milionário ao visita, que tinham ido encontrar os ir- ços e a informalidade é enorme, como os
“O brutal assassinato, a sangue frio e longo da ditadura de Alfredo Stroessner mãos. Eram alguns camponeses com cinturões de miséria”, condena.
na frente de seus familiares, do dirigente (1954-1989). escopetas velhas contra mais de 300 Em vez de investir no desenvolvi-
camponês Vidal Vega, principal colabo- “Toda a disputa de Curuguaty es- policiais com helicóptero, cavalos, es- mento, fortalecendo o mercado interno,
rador dos informes alternativos sobre o tá, evidentemente, bastante vincula- cudos, bombas. Há demasiadas coi- afirma o sociólogo, “o governo de Hora-
caso Curuguaty”, destaca o sociólogo pa- da à questão política. Não lhe importa- sas que não encaixam. E por que a pro- cio Cartes abre mão do patrimônio públi-
raguaio, “reafirma, senão confirma que va muito a lógica ao promotor Jalil Ra- motoria só colocou os camponeses nos co, numa economia de enclaves estran-
os crimes encomendados se instalaram, chid, outro filho do strosnismo”. “Por bancos dos reús e nem um único poli- geiros”. Desta forma, conclui, “o único
tendo os agentes da Justiça como aliados isso, após o massacre, foram presas no cial?”, questiona. Estado presente é o de abandono”.
14 de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 américa latina 15

Iguala, as horas do extermínio Fotos: Steve Fisher


21h40 | Encurralados
de Iguala – Cidade do México (México)
ou apoiar”, disse ao motorista, pedin-
do que descesse do ônibus. O motorista
desceu e avisou aos policiais que era ape-
MÉXICO Os três ônibus estavam chegando à nas o condutor.
avenida Periférico quando policiais mu- “Que nos importa quem é você! É um
Com base em nicipais de Iguala atravessaram uma pi- deles. É igualzinho a eles […] Também é
cape no meio da via. Pelo menos três de Ayotzinapa”, ouviu dos policiais.
documentos e relatos de carros bloquearam a retaguarda da cara- Quando o motorista desceu, os jovens
sobreviventes, jornalistas vana. “Já não podíamos avançar”, lem- o seguiram com as mãos atrás da nuca.
bra Carrillas. Foram colocados no chão, de bruços,
revelam como as forças Cinco jovens desceram do ônibus que em uma espécie de beco que se formava
ia à frente para tentar abrir caminho, na garagem de uma das casas. Carrillas
de segurança do governo entre eles Ángel. “Íamos ‘empurrá-los’ afirma que quem os colocou no chão fo-
quando começaram os tiros contra nós”, ram policiais estaduais e municipais.
Peña Nieto atacaram os conta. Assim o aluno Aldo Gutiérrez, de Lembra que eram aproximadamente 20.
19 anos, foi ferido com um tiro na cabe- Foi nesse momento que falaram sobre
43 estudantes ça que destruiu a metade do seu cérebro. matá-lo.
desaparecidos no México – Ele permanece em coma. Seu colega Jo- Ángel, do outro lado da rua, diz que
nathan Maldonado recebeu um tiro na pôde ver os colegas saindo do ônibus,
e participaram da matança mão e perdeu vários dedos. mas não pôde ver mais nada porque os
Os estudantes ficaram no meio do ti- policiais estavam jogando a luz dos fa-
roteio. Nesse momento eclodiu o terror, róis das picape sobre eles.
como atestam diversos vizinhos e clien- Cochiloco ainda resistiu a atirar-se no
Anabel Hernandez e tes do comércio local. Lanchonetes que chão. “Sabe o quê? Eu não vou deitar”,
Steve Fisher servem frango e tacos e mercearias, to- Fotos e nomes dos 43 desaparecidos de Ayotzinapa protestou. Em resposta os policiais bate-
de Iguala – Cidade do México (México) das fecharam as cortinas metálicas. Foi ram na sua testa com a culatra de uma
da Agência Pública mais de meia hora de tiroteio. polícia municipal vistoriada pela Fisca- Dentro do terceiro ônibus, se atiraram arma, deixando o muro salpicado de
“Já mataram um! Já mataram um!”, lía tinha esse equipamento. no chão do corredor para fugir das ba- sangue. Submeteram-no e atiraram-no
NA NOITE DE 26 de setembro de 2014, gritaram os meninos do primeiro ôni- “Se ouviam os R15 dos policiais, atira- las. Carrillas pegou o extintor de incên- no solo com os demais. Depois disso, já
Iguala, um povoado que se encontra a Dos cem estudantes, três foram assassinados, mais de dez foram feridos e 43 ainda estão desaparecidos bus. “Abaixem-se!”, foi o grito de outro. ram em todo mundo”, diz. “Mas depois dio e desceu do ônibus para tentar en- ninguém protestou nem gritou ou tentou
três horas da capital do México, se con- Os estudantes desceram e se refugiaram também se escutavam rajadas de maior frentar os policiais que atiravam. Acio- escapar. Não estavam armados.
verteu em um inferno. Mais de cem es- entre o primeiro e o segundo ônibus. Li- poder, já era outra arma”, lembra. Quan- nou o extintor, mas logo sentiu um im- “[…] O Botas, que estava ao meu lado,
tudantes da Escola Normal Rural Isidro garam para os colegas da escola para pe- do se ouviu o som da metralhadora na pacto no braço que o atirou no chão. Su- começou a chorar. Começou a chorar e
Burgos, no município de Ayotzinapa, fo-
ram atacados com armas de fogo duran-
te várias horas enquanto viajavam pelo
17h59| Saída de Ayotzinapa dir reforços. E seguiram gritando: “Cha-
mem a ambulância! Chamem a ambu-
lância!”. No chão, Aldo ficou agitando os
sua casa, todos se atiraram no chão.
“Não temos armas! Não disparem!”,
gritavam os meninos.
biu como pôde no ônibus. A cada passo
deixava uma poça de sangue.
“Neste momento minha mente pensa-
dizer: ‘O que vamos fazer? Por que estão
fazendo isso?’”, lembra Carrillas. “Tran-
quilo, compa. Agorinha vêm os nossos
povoado a bordo de cinco ônibus. Três braços no ar enquanto um jorro de san- Carrillas lembra que do ônibus pôde va que eu não tinha mais salvação. Ti- camaradas para nos tirar daqui. Não se
estudantes foram assassinados, mais de gue saía de sua cabeça. Os jovens do ter- ver que havia policiais municipais e esta- nham me acertado no braço, iam ma- preocupe. Não fique nervoso […]”, disse
dez ficaram feridos. E 43 estão, ainda de Iguala – Cidade do México (México) ceiro ônibus ficaram isolados, sozinhos. tais. Todos juntos no ataque. Ele distin- tar os meus companheiros naquela hora para tranquilizá-lo.
hoje, desaparecidos. O estudante Julio César Mondragón es- guiu perfeitamente os logotipos na parte […].” Então Carrillas sugeriu a Cochilo- No chão, Carrillas se contorcia de dor.
Os alunos, na sua maioria filhos de Fernando Marín ingressou em 2013 tava “gravando tudo com seu celular des- traseira dos uniformes. Os policiais mu- co que ligasse para La Parca, que era se- Ali jogado, deram-lhe chutes nas coste-
camponeses pobres, chegaram às ime- na Escola Normal Rural Isidro Burgos, de o primeiro momento”, assegura Ángel. nicipais estavam com o seu uniforme, e cretário-geral da escola e ficara em Ayot- las e no rosto. Depois, conta, chegaram
diações da cidade para sequestrar al- assim como seus primos e irmãos. Na Vizinhos e comerciantes entrevistados os estatais, com coletes à prova de balas. zinapa. Um aluno do primeiro ano, Mi- mais policiais, além da ambulância que
guns ônibus, uma prática comum en- tarde da sexta-feira, 26 de setembro de afirmam que não apenas os policiais mu- Metralharam os pneus e os vidros. “Os guel Ángel Hernández Martínez, conhe- os levou ao Hospital Geral de Iguala.
tre estudantes de escolas públicas me- 2014, encontrou o amigo Bernardo Flo- nicipais uniformizados dispararam, mas policiais queriam nos matar”, diz. cido como El Botas, foi quem lhe fez um Pela avenida Periférico chegaram
xicanas; geralmente não há violência e res Alcaraz, conhecido como Cochiloco, também homens vestidos de civis. Por sua vez, o secretário de Segurança torniquete no braço para estancar a he- mais ambulâncias para levar os estu-
os veículos são liberados depois da “ca- nas quadras cobertas da escola. Os dois “Uma das picapes dos policiais tinha Pública de Guerrero, tenente Leonardo morragia. dantes feridos e um homem que havia
rona”. Naquele dia, os jovens queriam eram colegas do segundo ano e tinham no capô o suporte para uma metralhado- Vázquez Pérez, declarou à PGR que seu Ao ver o amigo sangrando, Cochiloco tido um ataque de asma. Até então não
usá-los para viajar à Cidade do México e tarefas de responsabilidade na escola. ra e de lá disparava”, diz outra testemu- pessoal não saiu naquela noite porque se rendeu. “Sabe o quê? Temos que nos havia uma decisão explícita de exter-
participar da marcha anual em memória Carrillas era o responsável pela ordem e nha entrevistada, enquanto seus olhos não havia homens suficientes. Suposta- dar por vencidos. Balearam o Carrillas. miná-los. (AH e SF) (Agência Pública-
do massacre ocorrido na noite de 2 de disciplina; Cochiloco, o encarregado de revivem o trauma. Nenhuma picape da mente ficaram protegendo o quartel. Você já não vai poder nos acompanhar www.apublica.org)
outubro de 1968 em Tlatelolco, que viti- conseguir ônibus escolares e gasolina.
mou outros estudantes. Quarenta e seis Eram amigos inseparáveis.
anos depois, os massacrados foram eles. Bernardo convidou Fernando a ir a um
Naquela tarde, chegaram às imediações boteo – coleta de dinheiro – e para “to-
de Iguala cerca de cem estudantes para
sequestrar alguns ônibus com o objetivo
de ir à marcha de 2 de outubro. À noite,
mar” alguns ônibus para ir à marcha de
2 de outubro na Cidade do México. Iam
fazer um protesto em memória do mas- Cartaz estendido na Escola Normal Rural Isidro Burgos, onde os estudantes atacados eram alunos
22h30 | A Polícia Federal 24h00 | Os infiltrados
foram mortos pelo Estado. sacre estudantil de Tlatelolco. Ele res-
Fernando Marín estava debaixo de um pondeu que sim. onde estavam Carrillas e Cochiloco, ção, que se veste de civil para conduzir vam os policiais federais”, descreve Ro- têm presença e fazem operações secre-
ônibus banhado no próprio sangue, as- Desde o momento em que saíram da continuou até o posto de pedágio Igua- operações.) de Iguala – Cidade do México (México) sales. Todos os estudantes desse ônibus de Iguala – Cidade do México (México) tas em Iguala.
sim como seus colegas de escola. A bala escola, nos ônibus da empresa Estrella la-Puente, de Ixtla. Quando estavam no Depois da motocicleta passou outro também estão desaparecidos. Segundo o Fontes do Cisen confirmaram que a es-
que o havia acertado minutos antes des- de Oro, números de registro 1568 e 1531, pedágio, chegaram caminhonetes pi- carro, que também ficou rodeando o Um vizinho que vive numa rua próxi- advogado, havia ali pelo menos 20. Eram onze da noite. Quando os po- cola normal de Ayotzinapa é monitora-
troçara seu antebraço direito, e os ten- a polícia e o governo de Guerrero e a Po- capes da Polícia Federal e da Secreta- grupo. Quando Carrillas os viu, pensou ma contou à reportagem que, ao saber O comandante do pelotão de infor- liciais levaram os estudantes do tercei- da permanentemente por causa de ante-
dões, arrebentados, eram tirinhas bran- lícia Federal foram notificados através ria de Segurança Pública estadual, além que não iam poder conseguir sequestrar do tiroteio, foi buscar o irmão, que esta- mação do 27º Batalhão declarou à PGR ro ônibus para um local ainda desco- cedentes de vínculos com guerrilhas. A
cas que saíam do corpo. A ferida ainda do Centro de Controle, Comando, Co- de uma motocicleta vermelha com um os ônibus. Já estavam a ponto de abor- va numa lanchonete. Eram cerca de no- que estava presente, apenas observan- nhecido, chegaram finalmente um veí- 400 metros do Palácio da Justiça, onde
estava quente, mas não doía tanto. municações e Computação (C4) de Chil- só tripulante. “[Uma moto] começou a tar a missão quando ele recebeu uma li- ve e quarenta da noite e, ao chegar à es- do, quando supostamente a polícia mu- culo Chevrolet e uma caminhonete Su- “foi desaparecido” o outro grupo de es-
“Quer saber? Vá à merda”, disse um pancingo, a capital estadual, segundo patrulhar. Ficava rodeando o local onde gação de estudantes do ônibus que fica- quina com a rua Revolución, encontrou nicipal tirou os estudantes do ônibus Es- burban branca com outros estudantes tudantes, há uma casa que serve de es-
policial do estado de Guerrero, no lito- documentos da Secretaria de Seguran- estávamos”, conta Carrillas. ra em Rancho del Cura, avisando que al- um bloqueio da Polícia Federal. trella de Oro. Ele omitiu, porém, no seu da escola Isidro Burgos. Os reforços ha- critório do Cisen.
ral mexicano. ça Pública do Estado de Guerrero. A má- (O coronel José Rodríguez Pérez, co- guns colegas haviam ficado presos no Ele diz que a sirene não estava ligada, depoimento que a Polícia Federal tam- viam chegado tarde. Eles então impro- Durante a coletiva, na esquina da rua
“Mate-o de uma vez, porque ele es- quina do Estado foi posta a andar. mandante do 27º Batalhão de Infanta- terminal rodoviário. Tinham consegui- mas viu a poucos metros de distância e bém estava ali. visaram uma coletiva de imprensa com Juan N. Alvarez com a Periférico, che-
tá ferido, mate-o de uma vez!”, encora- Os ônibus iam cheios, conta Fernando ria, declarou à Procuradoria-Geral da do “tomar” um ônibus, mas o motorista distinguiu claramente os logotipos das Analisando documentos oficiais aos jornalistas que começavam a chegar. gou um grupo armado, trajando roupas
jou, no anonimato da rua desolada, ou- Benítez durante uma entrevista naquela República (PGR), no dia 4 de dezembro quis primeiro levar os passageiros até o caminhonetes que estavam estaciona- quais a reportagem teve acesso, foram de cor escura. Saíram de veículos civis.
tro policial. Nesse momento Carrillas, mesma escola, oito meses depois. “Meus de 2014, que o Exército mantinha dois terminal. Chegando lá, trancou os estu- das, formando um V, e as insígnias dos identificados pelo menos dois dos poli- “Primeiro dispararam para cima e de-
como o apelidaram na escola, sentiu o companheiros do primeiro ano iam com operadores de rádio na C4 de Iguala e dantes dentro do ônibus. uniformes. Estavam armados. ciais federais que atuaram nessa noite: “Um estudante salvou pois abriram fogo direto, muito inten-
metal da arma contra a testa, logo aci- os seus celulares, falando talvez com as que às sete da noite ele enviou um mi- Então, os estudantes do ônibus em que Rodeou pelas ruas próximas, mas não Luis Antonio Dorantes, comandante da so”, conta um dos jornalistas que ali es-
ma da orelha esquerda. Eram cerca de mães, os irmãos ou as namoradas… To- litar para vigiar os estudantes que esta- viajava Carrillas e aquele que vinha de pôde seguir até a Juan N. Alvarez por- base da Polícia Federal em Iguala, e o su- a vida de uma repórter tavam. Houve uma debandada geral; as
dez e meia da noite de 26 de setembro dos estávamos contentes.” vam nos ônibus de Carrillas e Cochilo- Rancho del Cura se juntaram para ir res- que todas as vias que desembocavam boficial Víctor Manuel Colmenares. Am- balas passavam assobiando por todos
de 2014, e àquela altura a rua Juan N. O ônibus 1531 parou em Huitzuco, na co. Disse também que existe um grupo gatar os colegas no terminal. (AH e SF) nela estavam fechadas por picapes poli- bos foram transferidos de base depois
jogando-se na sua os lados.
Alvarez, a apenas alguns quarteirões comunidade Rancho del Cura, e o 1568, chamado Órgão de Busca de Informa- (Agência Pública- www.apublica.org) ciais. Não conseguiu chegar mais perto; do ocorrido. A Polícia Federal se negou frente para que não Os homens avançaram em direção às
do centro de Iguala, estava deserta. Co- dali mesmo chamou o irmão, que saiu de a responder ao pedido de informação so- pessoas que fugiam, chegando até a es-
merciantes e clientes estavam aperta- uma casa onde havia se refugiado. O ir- bre eles, feito com base na Lei de Acesso atirassem contra ela” quina da Juan N. Alvarez e logo para as
dos atrás das cortinas metálicas das lo- mão lhe contou que vira carros de civis à Informação. Durante meses, negou até ruas paralelas, por onde corria um grupo
jas cujas portas haviam fechado quan- disparando contra os ônibus. mesmo que Dorantes trabalhasse na Po- de estudantes. Dois deles ficaram estira-
do começou o enfrentamento; os que
puderam correram para outras ruas. Os
vizinhos, entre idosos, adultos e crian-
21h12 | No terminal Aproximadamente às 22h30, a Polícia
Federal esteve presente em outro ataque
contra os estudantes na avenida Iguala-
lícia Federal, embora seu nome esteja em
documentos oficiais sobre aquela noite.
As testemunhas da rua Juan N. Alvarez
Uma pessoa que se encontrava ali
disse que durante essa entrevista havia
dos no asfalto: Daniel Solis, de 18 anos,
e Julio César Ramírez, de 23. Os demais,
dispersos, saíram correndo, gritando pe-
ças, se atiraram aterrorizados no chão -Chilpancingo, à altura do Palácio da dizem que os estudantes foram mantidos membros infiltrados do Centro de In- las ruas, pedindo ajuda.
dentro das casas, tremendo. Apenas em, e em dez minutos a polícia muni- minho. Os policiais municipais apontaram Justiça. Ali detiveram um ônibus da em- no chão por mais de meia hora. De acor- vestigação e Segurança Nacional (Ci- “Um estudante salvou a vida de uma
alguns se atreviam a espiar de vez em de Iguala – Cidade do México (México) cipal já está do lado de fora. Isso per- suas armas. presa Estrella Roja em que viajavam os do com vídeos aos quais a reportagem te- sen), o centro de vigilância e espiona- repórter jogando-se na sua frente pa-
quando, escondidos na escuridão atrás mite concluir que já os estavam se- “Somos estudantes. Por que apontam es- 14 estudantes normalistas que tinham ve acesso, as viaturas da polícia munici- gem do governo mexicano, e também ra que não atirassem contra ela”, nar-
das janelas. Para resgatá-los, os jovens quebra- guindo. Não se pode armar uma ope- sas armas para nós?”, perguntou aos poli- conseguido sair do centro de Iguala e pal ainda estavam ali às 23h11. (AH e SF) do Exército, vestidos de civis. Ela diz ra uma testemunha. (AH e SF) (Agência
Policiais estaduais, municipais e civis ram o vidro do ônibus. Depois se divi- ração dessas em dez minutos”, explica ciais o aluno Ángel de la Cruz, do segundo iam rumo à capital. Esse ônibus nunca (Agência Pública- www.apublica.org) que os conhecia e sabia que eles man- Pública- www.apublica.org)
armados haviam encurralado três ôni- diram: por um lado, saíram o ônibus da o advogado Rosales. ano, que viajava no primeiro ônibus. “Por foi mencionado nas perícias da Fiscalía,
bus em que viajavam cerca de 60 estu- empresa Estrella Roja e um da empresa Quando três dos cinco ônibus saíram que temos que descer?” Atirando pedras e o Grupo Interdisciplinar de Experts
dantes da escola normal do município de Estrella de Oro e, pela rua Galeana até pela rua Galeana, já havia viaturas po- nos policiais, conseguiram que as viaturas Independentes (Giei), enviado pela Co-
Ayotzinapa naquele ponto, pouco antes o centro da cidade, saíram dois ônibus liciais – que no México são picapes – à abrissem caminho. Porém, às nove da noi- missão Interamericana de Direitos Hu-
da esquina com a avenida Periférico. Al-
gumas quadras adiante, a Polícia Fede-
ral desviava o trânsito e os curiosos pa-
da empresa Costa Line, além de outro da
Estrella de Oro. Eram cinco no total.
“O curioso é que, quando eles che-
sua frente, atrás e dos lados. Carrillas
estava no terceiro ônibus da caravana.
Alguns estudantes desceram na pra-
te se escutaram na praça os primeiros tiros.
Houve disparos entre as ruas Bandera Na-
cional e Galeana. Não houve feridos. (AH e
manos para fazer uma investigação au-
tônoma, o aponta como a provável cha-
ve do mistério. Seu informe, apresenta-
12h50 | “Por favor, nos ajude! Estão nos matando!”
ra outras ruas. gam ao terminal, imediatamente sa- ça central El Zócalo para ir abrindo ca- SF) (Agência Pública- www.apublica.org) do no dia 6 de setembro, atesta que as
O policial tirou a arma da cabeça de forças de segurança do presidente Enri- Testemunhas que estavam nas ruas conseguira que um morador abrisse a
Carrillas e se pôs de lado. Chamou uma que Peña Nieto não só estavam presen- de Iguala – Cidade do México (México) paralelas afirmam que nesse momento porta da sua casa e o chamasse para en-
ambulância. O pessoal do resgate, po- tes como participaram do massacre. viram circular uma caminhonete Subur- trar, mas o jovem não escutou e seguiu
rém, não queria chegar perto porque ti- No documento, os peritos do Giei “Socorro! Estão nos matando! Socor- ban escura com algo como uma redoma correndo. No dia seguinte seu corpo foi
nha medo de que os estudantes, do ou-
tro lado da rua, atirassem. “Como meus
companheiros vão atirar se não temos ar-
21h30 | O tiroteio omitido na investigação oficial apontam a hipótese de que possivel-
mente o quinto ônibus levava, antes de
ser sequestrado, um carregamento de
ro!”, gritavam os jovens enquanto cor-
riam desesperados pela rua Juan N. Al-
varez em direção oposta à Periférico.
de vidro no capô, de onde desceram ho-
mens com porte militar, mas vestidos de
civis, perseguindo os normalistas.
encontrado na zona industrial de Igua-
la, na rua das oficinas do C4, esfolado e
sem os olhos, que haviam sido arranca-
mas, não temos nada?”, pensou Carrillas. drogas e que esse poderia ser o moti- Atrás deles se escutavam os tiros. “Então começa a acontecer uma ver- dos, segundo a necropsia.
A última coisa que ele viu enquanto “Eu pensei que eram militares, olha- ículo; foram em direção à avenida Peri- vo do ataque. E mencionam um proces- “Ninguém abriu a porta para eles”, re- dadeira caçada aos estudantes”, diz Em meio às negras horas de caçada,
era levado à ambulância foram os cole- de Iguala – Cidade do México (México) vam feio para a gente. Um era barbudo”, férico seguindo a pessoa com o paliaca- so que corre em Illinois, nos EUA, sobre lembra uma moradora com um vazio Rosales. A perseguição ocorreu sem medo e desolação, houve oito famílias
gas do terceiro ônibus, jogados ao solo. diz uma das testemunhas entrevistadas te. Os policiais foram atrás. Em seguida a organização criminosa Guerreros Uni- nos olhos, fixando as mãos também va- que nenhuma autoridade tivesse impe- que abriram a porta de suas casas aos
Desde aquela noite nunca mais os viu. Os comerciantes e clientes da esquina para esta reportagem. passaram os ônibus nos quais estavam dos, daquela região do México, que diz zias. Da sua janela viu correr os rapazes dido. “Os ataques foram uma confluên- estudantes normalistas. Salvaram a vida
Ele é o único sobrevivente desse veículo. entre as ruas Juan N. Alvarez e Emilia- Logo atrás, na viatura picape, chega- os estudantes. ser comum a gangue usar ônibus de pas- aterrorizados debaixo da chuva que co- cia de todos os níveis de governo que de 60 estudantes.
“Quem sabe foi o grande Deus que fez no Zapata, a uma quadra da praça cen- ram seis policiais vestidos de negro com Depois do incidente, chegou um au- sageiros para transportar droga. meçava naquela hora. Alguns deles esta- estavam ali naquela noite”, completa o Apesar das provas contundentes, o
que não me levassem, quem sabe. Não tral El Zócalo, não sabiam o que estava coletes à prova de balas e equipamentos tomóvel Focus azul-marinho, sem pla- “Os policiais federais apontaram pa- vam feridos. Ela não os ajudou. advogado. governo de Peña Nieto segue negando
sei o que deu no policial, de verdade não acontecendo até que uma pessoa com o antidistúrbios. “Parem, cabrones!”, gri- cas. Dele desceu um tipo também de ra eles e os obrigaram a parar, ameaçan- Entre os que corriam estavam Omar Era dez para uma, ou uma da manhã. a participação do Exército, da Polícia
sei. Sou o único”, contou à reportagem, rosto coberto com um paliacate – um pa- tou um policial aos da caminhonete. aparência militar, dizem as testemu- do disparar. Eles descem, jogam pedras, García, um dos líderes estudantis, que A tropa do capitão Martínez Crespo já Federal e do Cisen no massacre. Já se
o pesar palpável na voz. no estampado com padrões indígenas – Então começaram novos disparos. nhas, e recolheu as cápsulas de balas. acontece um enfrentamento ali com os chegou como reforço saindo de Ayotzi- estava na rua Juan N. Alvarez e havia ido passou um ano e o horror que viveram
Até as onze da noite, o tratamento aos parou no meio da rua, olhando em todas Uma testemunha gravou todo o áu- Nenhuma autoridade foi investigar o federais, e eles [normalistas] correm pa- napa, e um grupo que carregava o cor- ao Hospital Cristina, onde estavam algu- os estudantes e as testemunhas naque-
estudantes seguiu uma mesma diretiva. as direções. Ele vestia uma calça jeans e dio com seu telefone – a reportagem te- que aconteceu naquela esquina, nem ra os montes”, relata o advogado Rosa- po de Edgar Vargas, ferido. Entraram no mas vítimas, mas nos depoimentos que la noite permanece cravado na sua me-
A polícia estava enviando os feridos ao uma camisa rasgada na parte de trás. Es- ve acesso à gravação. Foram disparos se- há nenhuma referência sobre esse inci- les. Metros mais adiante, estão retirando Hospital Cristina. prestaram à PGR ele e seus homens omi- mória.
hospital, segundo Vidulfo Rosales, ad- tava alterado, segundo descreveram as cos e com uma breve pausa entre si. Nos dente nas investigações da Fiscalía Ge- outros 15 a 20 estudantes do ônibus Es- “Os estudantes batiam nas portas, de- tiram a caçada que ocorrera ali. Por quê? Quem levou os 43 estudan-
vogado dos estudantes e dos pais dos 43 testemunhas. Chegou então uma cami- 16 segundos de gravação ouvem-se 14 ti- ral do Estado de Guerrero (PGJG) ou trella de Oro 1531. Naquele local, só so- sesperados, queriam saltar as cercas. Nesse momento desapareceram mais tes? Para onde? Por que ele sobreviveu
desaparecidos, mas depois “houve uma nhonete Suburban de cor escura seguida ros. “Já se vão, já se vão”, diz a voz de da PGR. “As lojas fecharam, [assim co- braram pedras e roupas ensanguenta- ‘Por favor, ajude-nos, estão nos matan- estudantes, entre eles Julio César Mon- e os outros não? – são perguntas que
decisão, que não sei de onde veio, de por uma picape policial. Da caminhone- uma mulher no meio da gritaria. mo] todas as outras casas, porque fo- das, segundo a perícia feita pela Fiscalía do!’, gritavam, mas ninguém quis abrir.” dragón, do primeiro ano. Rosales afirma Fernando Marín, o único sobreviven-
apagar todas as pegadas dos estudantes. te desceram quatro ou cinco homens ar- Ninguém foi ferido, mas três carros so- ram vários disparos que ocorreram no no dia seguinte. Ela explica que a essa hora toda a sua que um grupo de oito ou nove estudan- te do terceiro ônibus, se faz constante-
E a partir de então começou a segunda mados, porém vestidos de civis, também freram o impacto das balas. Os homens Zócalo”, conta o sobrevivente Ángel de “Na mesma hora, o quarto ônibus Es- família já estava dentro de casa. Ela te- tes se escondeu entre os carros estacio- mente. Assim como o resto da socieda-
agressão, e a caçada”, diz. (Agência Pú- com o rosto coberto. Chamou atenção o da caminhonete saíram correndo, com la Cruz. (AH e SF) (Agência Pública- trella de Oro estava rodeado de policiais ve medo de abrir a porta. Podiam ma- nados em uma rua próxima à Juan N Al- de mexicana. (AH e SF) (Agência Públi-
blica - www.apublica.org) fato de que tinham cabelo muito curto. exceção de um, que saiu dirigindo o ve- www.apublica.org) municipais; atrás, como respaldo, esta- tar a todos. varz. Viram Julio César à distância. Ele ca- www.apublica.org)
16 de 29 de outubro a 4 de novembro de 2015 internacional

Na Itália, sindicatos de
trabalhadores preparam greve geral European Council

OPINIÃO Enquanto
o primeiro-ministro
Matteo Renzi dá “show”
em viagem pela América
Latina, sindicalistas
italianos organizam uma
greve geral

Achille Lollo
de Roma (Itália)

AS MANCHETES de todos os jornais


e revistas italianas – excluindo Il Ma-
nifesto e Contropiano –, os editoriais
dos noticiários e dos programas infor-
mativos produzidos pelas principais
TVs (RAI, Mediaset e LA7), bem como
os comentários de centenas de radia-
listas e um número indefinido de “au-
tores de Blog”, enaltecem, como nunca,
a viagem do primeiro-ministro italiano,
Matteo Renzi, ao Chile, como se fosse
matéria de campanha eleitoral.
Na realidade, o festival de bajulações
da “grande imprensa” italiana para com
Renzi é parte de um novo roteiro polí-
tico e midiático que o primeiro-minis-
tro introduziu no cenário político italia-
no para poder enfrentar, em novembro,
as eleições extraordinárias em Roma e
depois as legislativas em 2018.
Assim, ao visitar a central solar-eó-
lica que a ENI-Green Power (empre-
sa pública italiana) construiu no Chi-
le, Renzi se aproveitou para oficializar
a promessa que, em julho de 2016, se- O primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi
rão reduzidos os impostos que sobre-
carregam os proprietários da “primeira bilhões de euros serão extraídos da car- miserável que varia entre 400 e 600 eu- tenciaram o que estava em contraposi-
moradia”. Uma promessa que contra- teira dos trabalhadores, dos comercian- ros. Já a maioria dos que recebem boas ção com as regras do código penal ita-
ria o próprio programa do governo que, tes e dos aposentados com o aumento pensões, entre 1000 e 1800 euros, deve liano. E foi graças a esse erro que o Tri-
no mês de setembro, em ocasião de ou- de impostos, taxas e, sobretudo, com dividí-las com filhos ou netos por con- bunal de Apelação pôde mandar pren-
tra viagem ao exterior, havia anuncia- os cortes dos serviços públicos, princi- ta do alto nível de desemprego, que per- dê-lo novamente até o Tribunal Supre-
do que estava preparando um projeto palmente na saúde, no saneamento, na manece no teto de 12% da população mo (Corte di Cassazione) decidir apenas
de lei para reduzir o peso fiscal sobre a educação, na pesquisa e na cultura. ativa. Estima-se que 60% dos jovens sobre o pedido de extradição formulado
produção (que chega a 48%, dependen- Já foi anunciado que a nova Lei de Es- entre 18 e 38 anos continuam desem- “Ad Hoc” (para esta finalidade) pelo Tri-
do do setor). tabilidade, tramitando no Senado para pregados e devem recorrer à “paghetta” bunal Supremo do Brasil.
2016, prevê a arrecadação de cerca de (salariozinho) do pai ou dos avós. No entanto, durante a segunda passa-
dois bilhões de euros (perto de R$ 8 bi- gem de Pizzolato pela cadeia em Mode-
A Confederação dos lhões) impondo na conta da energia elé- na, membros dos serviços de inteligên-
trica, a partir de março, um acréscimo “Até o editorialista do jornal conservador cia dos dois países finalizaram um acor-
Sindicatos de Base (USB) de quase 100 euros (cerca de R$ 400) do que contentou o Planalto Central
como contribuição anual para a televi- britânico Financial Times, o italiano (Brasil) e o Palazzo Chigi (sede do go-
está organizando uma são pública RAI. O governo Renzi tam- verno italiano).
Ferdinando Giuliani, reconheceu o
greve geral que pretende bém pretende aumentar em 25% o cus- Isso porque os “companheiros petis-
to das consultas médicas, que passa- caráter eleitoreiro da proposta de tas” queriam a todo custo que Pizzolato
demonstrar que a classe riam de 26 para 32 euros (cerca de R$ fosse extraditado para o Brasil e fecha-
128), em 10% os exames médicos (os redução dos impostos nas moradias, do em uma prisão de segurança máxi-
trabalhadora ainda não mais simples, como sangue e urina, já ma para permanecer com a boca fecha-
alertando que o governo italiano pode
foi silenciada e tão pouco custam 56 euros), bem como uma par- da. Um dos advogados italianos que o
te considerável das intervenções cirúr- pegar um caminho sem retorno” governo brasileiro contratou a peso de
enjaulada pelo PD de Renzi gicas e das fisioterapias. ouro disse, após a confirmação da sen-
Diante desse abuso, o deputado do tença de extradição, que duvidava que o
Movimento Cinco Estrelas (M5E), Ales- réu se atrevesse a dizer que fora vítima
sandro Di Battista, denunciou no Par- Esta situação levou a Confederação de um erro judiciário.
Uma mudança que foi criticada por to- lamento a postura do governo e de seus dos Sindicatos de Base (USB) a organi-
dos, inclusive pela direita, que acredita novos aliados, que antes juravam fideli- zar uma greve geral que pretende mos-
que grande parte da postura política de dade a Berlusconi – como o grupo che- trar que a classe trabalhadora ainda não “Politicamente, o governo de Dilma
Renzi é uma reedição melhorada com as fiado pelo deputado Verdini – e que foi silenciada nem tampouco enjaulada
cores do Partido Democrático (PD) e do agora se venderam para Renzi. pelo PD de Renzi. O movimento pre- não podia ferir a imagem de Lula
marketing eleitoral de Silvio Berlusco- Após a denúncia do deputado, parla- tende mobilizar não só os trabalhado- trocando Battisti por Pizzolato.
ni. Até o editorialista do jornal conser- mentares começaram a questionar a no- res das fábricas e dos serviços públicos,
vador britânico Financial Times, o ita- va regulamentação baixada pelo Minis- mas também os comerciantes, os apo- Assim, deixaram passar o tempo até
liano Ferdinando Giuliani, reconheceu tério da Saúde, segundo a qual os médi- sentados, os estudantes, os artesões, os
o caráter eleitoreiro da proposta de re- cos de família não podem mais prescre- imigrantes e os desempregados, já que que uma alternativa se apresentasse
dução dos impostos nas moradias, aler- ver análises, exames radiológicos, res- estes serão os primeiros a serem tritu-
tando que o governo italiano pode pe- sonâncias, etc. Além disso, as visitas de rados pela nova Lei de estabilidade, tal
– o que aconteceu com a prisão
gar um caminho sem retorno já que, em controle em hospitais ou postos médi- como aconteceu na Grécia. do antigo chefe da Nova Camorra
dezembro de 2016, os italianos deverão cos públicos devem ser pagas pelo pa-
pagar uma “contribuição” de 12 bilhões ciente, enquanto muitos medicamentos A venda de Pizzolato Napolitana, Pasquale Scotti”
de euros (cerca de 48 bilhões de reais). que tinham preço controlado foram li- Em seu primeiro processo pela extra-
Em 2017, também haverá uma “contri- berados, passando a custar dez ou até dição, realizado em Modena, o ex-presi-
buição” de 10 bilhões de euros que, em vinte vezes mais! dente do Banco do Brasil, Henrique Pi-
2018, será reduzida para 8 bilhões. O deputado Di Battista qualificou o zzolato, ganhou e foi solto. Os juízes da Uma fonte do Planalto que, por trás
Segundo Ferdinando Giuliani, Ren- ato como “vergonhoso, imoral e inde- primeira instância cometeram um erro de um laisse-passer diplomático (li-
zi, tendo em conta o clima conflitivo e coroso” uma vez que, na Itália, um ter- jurídico ao reconhecerem a estranheza cença concedida ao estrangeiro porta-
a desconfiança no tradicional eleitora- ço dos aposentados recebe uma pensão do julgamento brasileiro, mas não sen- dor de documento de viagem não reco-
do progressista do PD, optou por garan- Antonio Cruz/ABr nhecido pelo governo brasileiro, expedi-
tir o voto dos moderados, também pro- do por países com os quais não se man-
prietários de pelo menos uma moradia. tém relações diplomáticas) acompa-
Vale lembrar que 70% dos italianos são nhou o processo, sugeriu que se Pizzo-
proprietários da própria moradia e que lato se comportar bem na prisão, fican-
68% desses são pessoas entre os 50 e 80 do com o bico calado, vai sair em dois ou
anos que ainda votam. Inclusive, nas úl- três anos. O problema, no entanto, é si-
timas quatro eleições, os proprietários lenciar quando se está pagando por coi-
votaram em Berlusconi porque o mar- sas que outros fizeram.
keting eleitoral da “Forza Italia” desca- Politicamente, o governo de Dilma
radamente prometia o corte dos impos- não podia ferir a imagem de Lula tro-
tos sobre a moradia. cando Battisti por Pizzolato. Assim, dei-
Portanto, mesmo sendo secretário- xaram passar o tempo até que uma al-
-geral de um partido progressista como ternativa se apresentasse – o que acon-
o Partido Democrata, quando se trata teceu com a prisão do antigo chefe da
de defender o “seu poder”, Matteo Ren- Nova Camorra Napolitana, Pasquale
zi faz de tudo e pouco importa se o mar- Scotti, que há 31 anos residia tranquila-
keting eleitoral é uma cópia das carti- mente no Recife.
lhas de Berlusconi ou se suas promes- O final se assemelha a uma novela da
sas trazem de volta as jogadas sujas da Globo, visto que, assim que o Tribunal
Democracia Cristã. Supremo Italiano, em Roma, confir-
mou a extradição de Pizzolato, também
“Contribuições” o STF, em Brasília, assinou o mandato
Conforme anunciado no Senado, nos de extradição de Scotti.
próximos três anos, os italianos deve-
rão apertar ainda mais o cinto com as Achille Lollo é jornalista italiano, corres-
chamadas “contribuições”, mesmo que pondente do Brasil de Fato na Itália, editor
elas não sejam utilizadas para fazer as do programa TV “Quadrante Informativo”,
reformas estruturais prometidas ou fi- colunista do Correio da Cidadania, cola-
nanciar o crescimento com novos proje- borador de L’Antidiplomatico e da revista
tos industriais. Nada disso. Aqueles 30 O ex-diretor do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, chega a Brasília, onde vai começar a cumprir pena Nuestra América.

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