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SEMIÓTICA APLICADA NA MUSICA DE BELCHIOR

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar detalhadamente, usando a semiótica, todas
as canções do álbum Alucinação do cantor cearense Belchior e mostrar que elas são mais do
que apenas letras bonitas. Tratam-se de uma história pessoal, onde o compositor cria uma
personagem – provavelmente não fictício – para vive-la, fazendo críticas à política da época,
enquanto vive a procura de um futuro melhor, amando e resistindo até o doa da sua morte.
Para isso, foi necessário ouvir cada canção do álbum repetidas vezes e observar todas as
letras com atenção, observando todos os pontos importantes, em especial as três que mais se
destacaram no cenário musical.

Palavras-chave: Belchior. Semiótica. Alucinação.

1. Introdução
Antônio Carlos Belchior, conhecido popularmente como Belchior, foi
conhecido no Brasil inteiro como um cantor da Música Popular Brasileira. Além
de cantor, o Cearense de Sobral, também foi compositor, músico, produtor,
artista plástico e professor. E ainda iniciou um curso de medicina na sua
juventude. Sua voz marcante se destacou muito no cenário musical e acabou
se tornando um dos primeiros cantores de MPB nordestino a fazer sucesso
internacional na década de 1970.
Belchior nasceu em 1946 no interior do Ceará e faleceu em 2017 no sul
do país. Dos setenta anos que viveu, Belchior dedicou quarenta e três deles à
música. Antes de seguir esse caminho, estudou filosofia e completou seus
estudos no colégio de padres ainda quando criança e aprimorou seus estudos
em latim e italiano. Iniciou uma faculdade de medicina na capital cearense, mas
abandonou no quarto ano, em 1971, para seguir a carreira artística. Muitas de
suas canções foram cantadas em vozes muito conhecidas da MPB, como Elis
Regina, Fagner, Vanusa e Jair Rodrigues.
Em poucos anos como cantor, Belchior conseguiu uma grande legião de
fãs e prêmios nacionais. O álbum Alucinação gravado em 1976, seu segundo
álbum, foi considerando um dos maiores álbuns da Música Popular Brasileira1,
com destaque para as canções Como nossos pais, Apenas um rapaz latino
americano e Velha roupa colorida. Mostrando para o mundo que seria apenas
o começo do seu reconhecimento.

1
Alucinação de Belchior é um dos maiores álbuns da música popular Brasileira:
https://veja.abril.com.br/entretenimento/belchior-as-tres-grandes-cancoes-do-
discobfundamental/ último acesso: 16/082021 às 17:16.
Também é necessário levar em consideração a influência de Belchior
em composições de outros artistas. Recentemente, o cantor Humberto
Gessinger, ex-vocalista da Banda Engenheiros do Hawaii, cita Belchior
diretamente em sua canção Estranho Fetiche (2019).
Raul seixas, um dos maiores cantores do Rock Nacional, faz referência
indireta a Música Apenas um rapaz latino americano na canção Eu também
vou reclamar (1976), mesmo ano de lançamento do álbum Alucinação no qual
a canção de Belchior está inserida.
Belchior também usou de referências para muitas de suas canções. As
mais conhecidas foram as referências a Caetano Veloso, o famoso “antigo
compositor baiano” citado em Apenas um rapaz latino americano. Aparece
diretamente em Fotografia 3 x 4, contradizendo Veloso na canção Alegria
alegria (1968). E também em Baihuno, cantada por Belchior e Autoria de
Francisco Casaverde.
Além de Caetano, o cearense faz referência à literaturas nacionais e
internacionais. Autores nacionais como João Cabral de Melo Neto, Alvarez de
Azevedo e Euclides da Cunha, são lembrados pelo compositor alguma vez em
cento e cinquenta composições. Da literatura mundial, Shakespeare, Dante
Alighieri, Edgar Allan Poe, Baudelaire e muitos outros estão presentes na obra
do cearense.
Uma parte da infância de Belchior, como citada anteriormente, foi
dedicada a escola de padres, onde aprendeu algumas línguas. Em algumas de
suas composições são encontradas frases ou palavras em inglês, espanhol e
italiano. Além de colocar o seu poliglotismo em destaque, suas composições
passam mensagens importantes e reflexivas. É o que veremos adiante em um
estudo detalhado das suas principais composições usando a semiótica.
Olharemos a seguir com uma visão semiótica nas composições do
álbum Alucinação e veremos que Belchior cria um personagem para todas as
canções do álbum. Um personagem que encontra diversas pedras no caminho,
mas que apesar de todo o sofrimento que passa é apaixonado pela vida e
valoriza sempre as coisas boas dela.
Um ponto a se considerar é que o álbum foi lançado em 1976, em meio
a ditadura militar no Brasil, que teve início em 1964. Neste período vários
cantores e escritores foram perseguidos pelo governo, muitos exilados do país.
No álbum trabalhado há grandes referências indiretas às obrigações impostas
pelo governo ditador. E é em meio a isto que vive o personagem criado pelo
compositor.

2. O que é semiótica
A Semiótica é o estudo dos signos. Teve origem na mesma época que a
filosofia, porém só no século XX com os estudos de Saussure e Pierce, é que
começou a ganhar força. Mas o que é signo? Entende-se como signo qualquer
representação dotada de significado.

A Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as


linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos
modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno
de produção de significação e de sentido. (SANTAELLA;1983, p.9)
Tudo ao nosso redor tem significado, logo, tudo é signo. Um exemplo é o
cheiro de fumaça. Quando o sentimos, logo sabemos que há fogo nas
proximidades. O cheiro de fumaça é o signo, o fogo é o significado que o
acompanha. Podemos usar essa lógica para qualquer acontecimento do dia-a-
dia.
Partindo desse ponto, sabemos que vozes, falas, musicas, etc. são
também signos que também possuem um significado. Veremos adiante o
significado escondido nas canções do álbum Alucinação.

3. A criação do personagem
Para se contar qualquer história real ou fictícia, é necessário que haja
um ou mais personagens. Belchior não foge a esta regra e cria o seu já na
primeira canção do álbum, onde se apresenta como um rapaz simples e
humilde, que não tem muito a oferecer se não a sua voz para cantar. O cantor
abre o álbum com a canção Apenas um rapaz latino americano. No decorrer
dele, fala sobre sua vida, seus pensamentos e até sobre seus sentimentos. O
álbum contem dez canções, onde cada uma fala sobre experiências do
personagem e sobre a sua vontade de viver. A última canção é a mais curta do
álbum, a qual o personagem fecha sua história. Tendo como título Antes do
fim.

3.1. Apenas um rapaz latino americano


Primeiro vemos o personagem se apresentar. Um rapaz latino
americano sem dinheiro no banco e vindo do interior. Mas mostra que, apesar
de ser simples, é muito conceituado e interessado nas coisas da vida. Diz que
traz na memória uma canção de um baiano, a qual diz que tudo é lindo e
maravilhoso. Este compositor seria Caetano veloso, e a canção, divino e
maravilhoso.

É nítido que belchior faz muitas críticas à veloso nas suas composições.
Isto porque veloso, em suas canções, tenta passar uma aparência linda da vida
(divina e maravilhosa), enquanto Belchior quer passar que nem sempre a vida
é como o outro diz. Que também existem dias ruins, principalmente para os
menos favorecidos.
O personagem criado pelo compositor é um rapaz latino americano que
não tem dinheiro no banco nem parentes importantes. Este é o tipo de cidadão
que não tem uma vida maravilha, por ser pobre e de família humilde que sai do
Ceará para viver em São Paulo em um período de ditadura, como o que
acontecia na época, que é citado indiretamente.
O personagem relata que tem ouvido muitos discos e conversado com
muitas pessoas, mas ninguém acredita que a vida seja divina e maravilhosa.
Certamente, as pessoas que conversaram com o rapaz latino-americano são
da mesma classe social que ele. Logo, percebe que está certo em dizer que o
baiano que ouviu no rádio está errado.
Em seguida, o personagem faz mais uma referência à veloso, desta vez
à canção É proibido proibir. E também passa um leve sentimento de
esperança. Uma esperança de que ninguém o verá fazendo aquilo que é
proibido e assim não será punido pela sua ação. Mas sei que tudo é proibido /
Aliás, eu queria dizer / Que tudo é permitido até beijar você no escuro do
cinema / Quando ninguém nos vê. (BELCHIOR;1976)
Neste momento da canção o personagem encontra alguém por quem se
apaixona e beija no cinema. Mas logo percebe que este alguém não possui a
mesma visão de vida difícil que ele – Mais uma vez entra a questão de uma
possível diferença social. E logo diz para ela pedir que ele fale sobre coisas
bonitas, pois suas palavras são navalhas e que não pode falar sem ferir
ninguém. E ainda alerta para não se preocupar com aquilo que em que ele fala,
que o mundo real (ao vivo) é muito pior.

Como citado anteriormente, o nosso personagem vive em meio a


ditadura e não está entre os mais poderosos do país, sendo assim perseguido.
A canção narra um momento curioso.

(...) Por favor não saque a arma no Sallon / Eu sou apenas um cantor
/ Mas se depois de cantar / Você ainda quiser me atirar / Mate-me
logo, à tarde, as três / Porque a noite eu tenho um compromisso e /
não posso faltar / Por causa de vocês. (BELCHIOR;1976)

Este seria um momento em que o personagem da canção é pego pelos


ditadores e implora para que não o matem, pois ele é apenas um cantor e não
é capaz de fazer mal a ninguém. Mas se o quiserem matar, que façam logo. E
finaliza a canção dizendo que sabe que nada é divino e maravilhoso.

3.2. Velha roupa colorida


Esta é uma das canções em que o personagem conversa sobre o seu
passado. Dá a entender que ele está conversando com um amigo sobre as
diferenças, as mudanças, as violências do mundo atual. E sem deixar de
perceber um pouco esperança na sua fala.
Como mencionado, o ano de lançamento da canção foi 1976, quando
ocorria a ditadura militar no Brasil. Neste ano a ditadura começava a
enfraquecer. O presidente da Época, Ernesto Geisel havia revogou o AI-5 e
aboliu a censura. Vendo isso, o personagem começa a acreditar que a
democracia voltaria em breve.
Lembra, então, ao seu amigo das coisas que faziam quando eram livres,
das saídas de carro com sua menina, das saídas em grupo nas ruas, da
liberdade de viver em paz. Acreditando que esse tempo pode voltar, começa a
dizer: “No presente, a mente, o corpo é diferente e o passado é uma roupa que
não nos serve mais.”
Esta é, também, uma canção que contém referência à um grande artista.
Edgar Allan Poe. Poeta louco americano que fala pergunta para um pássaro
preto o seu nome e ele responde “never heaver” (nunca mais). O corvo (1845).

E assim o pássaro de ébano desenhou um sorriso em meu rosto


triste, / Pelo decoro solene e severo de semblante em riste. / “Embora
tenhas a crista curta e aparada”, disse eu, / “Certamente de covarde
não tens nada. / Então diga velho corvo mal-humorado, / Que da
noite sóbria e escura vaga, / Que nome levas por essas bandas ou
trevas?” / Disse o corvo: “Nunca Mais”. (POE;2018)
3.3. Como nossos pais
Esta foi umas das principais canções do álbum. Foi composta por
Belchior e imortalizada na voz de Elis Regina. A canção se inicia com uma
conversa entre duas pessoas, que logo podemos associa-las ao rapaz latino-
americano e à sua amada. Nota-se um tom de aconselhamento neste início de
canção.
Não quero lhe falar, meu grande amor / Das coisas que aprendi no
discos / Quero lhe contar como vivi / E tudo que aconteceu comigo
(BELCHIOR;1976). Vemos aqui que o rapaz da nossa estória é um homem que
já viveu bastantes coisas e estas lhe trouxeram muito aprendizado. Ele, então,
conta toda experiencia vivida para sua amada, e logo completa dizendo que
mesmo com tanta dificuldade – vimos nas canções analisadas acima – viver
ainda é melhor que sonhar e o amor é, de fato, uma coisa boa.
A segunda parte da canção, deixa um pouco o lado conselheiro e parte
para um viés mais crítico. A mudança acontece no trecho “Eles venceram/ E o
sinal está fechado pra nós que somo jovens”. Aqui, percebemos, que embora
tenha vivido muitas experiencias, o rapaz latino-americano sem dinheiro no
banco ainda é jovem, porém, teve a vida muito mais sofrida do que sua amada.
– Mais uma vez podemos associar à diferença social.
Não podemos esquecer do sujeito indeterminado presente na oração
“eles venceram”. Seriam eles os militares, que censuravam a maior parte das
ideias dos jovens, fechando, assim, o sinal para eles. Esse “fechamento” fez
com que grande parte dos jovens regredissem nas suas ideias, e parassem de
lutar pela sua liberdade. Mas volta a aconselhar sua amada dizendo que o seu
braço, seu lábio e sua voz foram dados com o propósito de lutar. E usa ele
mesmo como exemplo, falando que vai ficar na cidade grande, mesmo
sabendo que é mais violenta do que o interior, onde nasceu.
Na terceira parte da canção, lembra que já faz tempo que não ver
ninguém na rua reunido e volta a reviver o seu passado – antes da ditadura –
lembrando que, de todas as memorias, a que mais dói é a de quando era livre.
Em seguida o personagem fala sobre sua maior dor – desta vez,
emocional – que é, apesar de tudo que fez, viver como os seus pais, tendo até
os mesmos ídolos. Mas ainda não desiste, pois ainda tem esperanças de um
futuro melhor, um futuro novo. “O novo sempre vem”. E por fim, reconhece que
até mesmo quem lhe inspirou a lutar por um futuro melhor já desistiu de vencer,
mas ele é forte e não desiste ou talvez seja um sujeito de sorte.

3.4. Sujeito de sorte


Sujeito de sorte foi uma canção que não teve tanto reconhecimento na
época de lançamento. Mas na década de 2010 passou a ser ouvida pela nova
geração pelo seu famoso verso “ano passado eu morri, mas esse ano eu não
morro”.
O cantor logo no início da canção reforça o fato de ser moço e se sente
são e salvo e forte. Em outro contexto, esta expressão talvez não fizesse tanto
sentido, pois espera-se que seja apesar de muito velho se sinta são e salvo e
forte. Porém, dentro da canção é totalmente aceitável, já que ele é um rapaz
vindo do Norte e vive no Sul do país – reforça isso na canção fotografia 3x4 –
onde o regime militar está concentrado, pressionando, torturando e censurando
os jovens.
Mesmo vivendo tempos turbulentos, ele acredita em um novo futuro,
pois tem certeza que Deus está do seu lado. Está tão confiante em um novo
futuro que já pensa estar vivendo nele. “Assim não posso sofrer no ano
passado”. Aqui podemos lembrar do que foi dito na canção velha roupa
colorida, onde o cantor percebe um pequeno enfraquecimento na ditadura –
mesmo ainda estando distante do meu fim – e começa a acreditar. É daí que
sai a famosa frase que virou moda nas redes sociais da nova geração, virando
um lema para grande parte dos brasileiros. Tenho sangrado demais / Tenho
chorado pra cachorro / Ano passado eu morri, / Mas esse ano eu não morro.
(BELCHIOR;1976)
A canção Sujeito de sorte foi regrava em 2017 pelo cantor Danilo
Moralles no álbum Voodoo prazer. Em 2019, o rapper Emicida faz um sample
com a canção de Belchior e a Canção AmarElo ao lado de Majur e Pablo Vittar,
dando uma nova conotação à canção. E no ano de 2020, a cantora Ana Cañas
grava um disco cantando músicas de belchior. Entre elas está Sujeito de sorte.

3.5. Como o diabo gosta


Está é canção mais crítica do álbum. Logo a primeira estrofe é: “Não
quero regra nem nada/Tudo ‘tá como o diabo gosta ‘tá”. Primeiro vemos o
nosso personagem abertamente dizer que é contra ter regras, o que não é
mais novidade a essa altura do texto. O que é novo é a comparação feita pelo
mesmo.
No cristianismo, a figura do diabo representa uma força negativa, do
mal. O compositor usa desta definição para descrever a situação que se
encontra o país. Dominado pelo mal. É assim que se refere à ditadura militar.
Logo em seguida, o personagem criado pelo compositor conta que tem
um peso que lhe fere as costas – mais uma vez faz alusão ao seu passado
doído – e não vai atar as próprias mãos. Está seria uma resposta à tentativa
dos ditadores em conquistar mais seguidores.
Na segunda parte da canção, sugere uma saída. A desobediência.

O que transforma o velho no novo / Bendito fruto do povo será / E a


única forma que pode ser norma / É nenhuma regra ter / É nunca
fazer nada que o mestre mandar / Sempre desobedecer / Nunca
reverenciar. (BELCHIOR;1976)

Segundo o personagem estudado o “remédio” para o fim da ditadura é


nunca fazer o que o mestre (o diabo) mandar. E, para se opor a ideia de o
diabo dominar, parafraseia a oração cristã O pai nosso “Bendito o fruto do
vosso ventre, Jesus”. Mas antes percebemos mais uma vez a ideia de novo e
velho criada na canção Velha roupa colorida fazendo uma ligação entre as
canções. O velho, neste contexto, é o modo em que vivam seus pais, que
relembra na canção Como nossos pais. O novo é uma forma completamente
nova de se viver, podendo ser livre pela primeira vez, considerando que o
personagem viveu quase toda a sua vida sobre uma ditadura.

3.6. Alucinação
Não diferente das outras canções do álbum, esta carrega fortes críticas
nas entrelinhas. Para compreender cada detalhe desta composição
precisaríamos de uma análise especial. Mas, como o intuito deste trabalho é
analisar o álbum completo, seguiremos adiante.

Eu não estou interessado em nenhuma teoria / Em nenhuma fantasia,


nem no algo mais / Nem em tinta pro meu rosto, ou oba-oba, ou
melodia / Para acompanhar bocejos, sonhos matinais / Eu não estou
interessado em nenhuma teoria / Nem nessas coisas do oriente,
romances astrais / A minha alucinação é suportar o dia a dia / E meu
delírio é a experiência com coisas reais. (BELCHIOR;1976)

Logo no início, o personagem comenta que não está interessado em


pintar rostos – referência aos manifestantes que saiam na rua com caras
pintadas – nem em “oba oba” – sinônimo de comemorações e festejos. Ele
simplesmente quer ter o delírio de viver a realidade sendo livre.
No desenrolar da autoria, o nosso personagem cita algumas pequenas
coisas que parecem não fazer sentido, mas, na verdade, têm o seu significado.
“Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha”. Estes são exemplos
de quem mais sofriam na época. O preto sofria com o racismo estrutural, o
pobre com a desigualdade social e os projetos do governo que ajudava cada
vez mais os ricos, as mulheres, com desigualdade de gênero.
Em seguida, comenta sobre a violência nas ruas e a solidão das
pessoas. E coloca aqui um trecho interessante, “Um rapaz delicado e alegre
que canta e requebra é demais”. Acredita-se que aqui, ele se ferira a Ney
Matogrosso, que, com sua postura inovadora, quebrou padrões da música
popular brasileira. E faz uma leve referência aos Beatles, do álbum revolver.
Outra frase que caiu no gosto popular está nesta composição. “Amar e
mudar as coisas me interessam mais”. Aqui, ele repete de novo que não se
interessa por teorias e fantasias e nem nas profecias da laranja mecânica.
Vale um destaque para este termo. Laranja mecânica é um filme
britânico-americano de 1971 que contem imagens fortes e violentas para
comentar sobre a delinquência juvenil e outros problemas sociais em um futuro
próximo. Mas, para ele, nada disso importa. O que realmente o interessa é
amar e mudar as coisas.

3.7. Não leve flores


Percebemos nesta canção tons de aconselhamento também. Mas desta
vez não parece conversar com um amigo, mas com um ex-amigo. Dando a
entender que este está certo de uma vitória próxima. Nesta canção vemos o
nosso personagem falar sobre experiencias mais pessoais.

Tudo poderia ter mudado, sim / Pelo trabalho que fizemos, tu e eu /


Mas o dinheiro é cruel / E um vento forte levou os amigos / Para
longe das conversas, dos cafés e dos abrigos / E nossa esperança de
jovens não aconteceu. (BELCHIOR;1976)
Nesta estrofe fala sobre a traição do seu amigo, que abandonou os
planos com ele em troca de dinheiro, fazendo, assim, a esperança por
mudança desaparecer. O que fortalece ideia anterior de que quem lhe escuta
foi amigo um dia.
É interessante pontuar que esta é a primeira vez que o nosso
personagem parece estar sem esperanças de um futuro melhor, mas só
parece. Logo em seguida ele nos tira esta ideia. E ainda afirma que sempre é
dia de ironia no seu coração

E eu sigo, sim / Faço o destino com o suor de minha mão / Bebi,


conversei com os amigos ao redor de minha mesa / E não deixei meu
cigarro se apagar pela tristeza / Sempre é dia de ironia no meu
coração. (BELCHIOR;1976)
Ainda, em uma terceira fala, o personagem diz a sua amada que não
sabe o que acontecerá, mas está pronto para qualquer coisa que vier, pois já
conhece bem o seu inimigo, sabe nome, rosto e endereço.
Nesta canção vemos o nosso personagem frente a frente com o líder
ditador, desafiando-o e duvidando da sua vitória. É a canção em que vemos o
nosso personagem mais confiante do que nunca. Mas essa confiança acaba se
quebrando um pouco logo na próxima canção.

3.8. À palo seco


À palo seco é uma expressão da língua espanhola que significa sem
companhia ou sem acompanhamento.

A palo seco
1. loc. adv. Mar. Dicho de navegar uma embarcación: Com las velas
recogidas.
2. loc. adv. coloq. Sin nada accesorio o complementario.
3. loc. adv. coloq. Sin um complemento que acompañe una comida o uma
bebida, generalmente para suavizar su ingesta. Tomaré um ron a palo
seco. Se comió el bocadillo a palo seco.
4. loc. adv. En el cante flamenco, sin acompañamiento instrumental.
(RAE – Real Academia Española)2
A expressão espanhola apareceu antes no poema Canto a palo seco de
João Cabral de Melo Neto no livro Quaderna, publicado no final da década de
50. A palo seco é uma tradição musical da Andaluzia, é um canto “a capela”, ou
seja, sem instrumentos, sem acompanhamento.

2
Disponível em https://dle.rae.es/palo?m=form2#7Nb6QN2. Ultimo acesso: 22/08/2021 às
17:26.
Diferente das demais, esta canção já havia sido gravada anteriormente,
no disco Mote e glosa, em 1974. Porém, não coincidentemente ela está contida
no álbum estudado. Partimos, então, para À palo seco.
Em 1973, o Brasil já estava sofrendo nas mãos de ditadores desde
1964, assim como o Paraguai governado pelo general Alfredo Stoessner desde
1954. Naquele ano, mais um país sul-americano sofreu um golpe de estado.
Desta vez, Augusto Pinochet derruba o governador Salvador Allende e começa
sua ditadura no Chile. No ano seguinte, belchior lança a música À palo seco,
como dito anteriormente.
Em março de 1976, os militares argentinos tiraram a, então, Presidente
Isabelita Perón e se iniciou um governo de militares no país. Belchior no
mesmo ano faz uma nova versão de À palo seco e regrava a canção.
O nosso personagem já viveu dias difíceis e cansativos, porém sem
nunca desacreditar de um futuro melhor. Nesta canção algo começa a mudar.
Vemos o nosso personagem, pela primeira vez, desesperado. Este desespero
acontece por ver que o terror das ditaduras está se espalhando. O que parecia
estar perto do fim, agora parece ter mudado com mais um país latino
americano sendo dominado.
Como em todas as canções do álbum, notamos o personagem
conversando com um amigo. O assunto desta vez é o seu descontentamento
com o modo como a vida está acontecendo. Nesta canção o personagem
revela sua idade pela primeira vez. De fato, é ainda jovem. Tem apenas vinte e
cinco anos e uma longa história de vida.
Depois de explicar para o amigo o motivo do seu desespero - de forma
muito indireta, pois é importante lembrar que, na época, muitas canções foram
censuradas por criticarem o governo – ele torce para que o seu canto faça com
que as pessoas entendam o que ele quer dizer.
É nesta estrofe da composição que mais se percebe a expressão
espanhola. O personagem parece ser o único que está desesperado pela
situação em que a américa se encontra, ele está à palo seco e deseja que seu
canto torto corte a carne das pessoas para que elas sintam na pele o que ele
está passando.

3.9. Fotografia 3x4


Nessa canção o personagem conta como foi a sua saída do nordeste
para o sul e a diferença das regiões. Relata que nas esquinas do Rio de janeiro
ele sempre era parado pelos oficiais do governo, que sempre o tratavam com
repressão. Algo comum na época.
Também vemos nesta composição duas passagens interessantes. A
primeira, logo no início. Os pés cansados e feridos de andar légua tirana/ De
lágrimas nos olhos de ler o Pessoa/ E de ver o verde da cana.
(BELCHIOR;1976). Aqui vemos que o personagem estudado é um leitor de
Fernando Pessoa. E a segunda está na quinta estrofe. Veloso, o sol não é tão
bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua. (BELCHIOR;1976). Essa a
referência à canção Alegria alegria de Caetano Veloso.
E vemos um pouco mais adiante que o personagem retoma sua
esperança em um futuro melhor, de coisas novas. A noite fria me ensinou a
amar mais o meu dia/ E pela dor eu descobri o poder da alegria/ E a certeza de
que tenho coisas novas/ Coisas novas pra dizer. (BELCHIOR;1976).
Fotografia 3x4 é a penúltima música do álbum. Como em todas as
outras, dá a entender que o nosso personagem conversa com alguém. Para
este alguém ele abre o seu coração e detalha sua vida.
E agora partimos para a última música do álbum.

3.10. Antes do fim


Esta é a canção mais curta do álbum, dura apenas cinquenta e nove
segundos, mas não é menos especial. Ela passa um tom realmente despedida,
não só do álbum, mas da vida. Notemos que desta vez, o nosso personagem
parece estar com pressa para falar, como se tivesse pouco tempo. E, de fato,
tem menos de um minuto. Como em todas as outras canções, o personagem
conversa com alguém, e esta parece ser a sua última conversa. Podemos
associar esta canção ao momento da morte do nosso personagem. Quero
desejar, antes do fim, / pra mim e os meus amigos, / muito amor e tudo mais; /
que fiquem sempre jovens / e tenham as mãos limpas / e aprendam o delírio
com coisas reais. (BELCHIOR;1976)
Vemos que ele transmite em sua fala uma suplica. Como se dissesse
“eu estou indo, mas continuem acreditando em algo melhor. Na última parte da
canção essa ideia se fortalece. Não tome cuidado. / Não tome cuidado comigo:
/ o canto foi aprovado / e Deus é seu amigo. / Não tome cuidado. / Não tome
cuidado comigo, / que eu não sou perigoso: / - Viver é que é o grande perigo
(BELCHIOR;1976)
“O canto foi aprovado” se refere ao fato de suas canções terem passado
pela censura. O que mostra para seus amigos que ficam que ainda há
esperanças de que os ditadores caiam e o novo venha.

4. Considerações finais
Diante das análises básicas de cada canção podemos observar que o
compositor, antes de qualquer coisa quis fazer uma crítica ao regime militar da
época. Para isso, criou um personagem. Um rapaz latino americano de vida
humilde que saiu do Norte para o sul e morou na rua, mas se considera um
sujeito de sorte. Que sente saudade do passado, mas reconhece que ele não
lhe serve mais. E apesar de acreditar sempre no novo, sente medo de viver
como os seus pais. Que acredita que a única forma que deve ser norma é não
ter regras e vive delírios de uma vida real. Por um tempo se desesperou e se
sentiu sozinho, mas antes do seu fim, recuperou as esperanças.
Seria interessante levar em consideração a possibilidade de que esse
personagem criado pelo compositor seja inspirado em si próprio, já que
algumas características, como ser contra a ditadura, ter saído do interior para a
cidade grande, acreditar que Deus anda do seu lado e diversas outras se
coincidem com as do compositor.

Referencias
BELCHIOR; Antônio Carlos. Apenas um rapaz latina americano. Alucinação.
Universal Music;1976.
______. Velha roupa colorida. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Como nossos pais. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Sujeito de sorte. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Como o diabo gosta. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Alucinação. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Não leve flores. Alucinação. Universal Music;1976.
______. A palo seco. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Fotografia 3x4. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Antes do fim. Alucinação. Universal Music;1976.
POE; Edgar Allan. O corvo e outros contos [tradução Marta Fagundes/ Fatima
Pinho]. 1º Ed. Pandorga. 2018.
SANTAELLA; Lúcia. O que é semiótica [Livro digital]. Editora Brasiliense. 1983.

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