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Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar detalhadamente, usando a semiótica, todas
as canções do álbum Alucinação do cantor cearense Belchior e mostrar que elas são mais do
que apenas letras bonitas. Tratam-se de uma história pessoal, onde o compositor cria uma
personagem – provavelmente não fictício – para vive-la, fazendo críticas à política da época,
enquanto vive a procura de um futuro melhor, amando e resistindo até o doa da sua morte.
Para isso, foi necessário ouvir cada canção do álbum repetidas vezes e observar todas as
letras com atenção, observando todos os pontos importantes, em especial as três que mais se
destacaram no cenário musical.
1. Introdução
Antônio Carlos Belchior, conhecido popularmente como Belchior, foi
conhecido no Brasil inteiro como um cantor da Música Popular Brasileira. Além
de cantor, o Cearense de Sobral, também foi compositor, músico, produtor,
artista plástico e professor. E ainda iniciou um curso de medicina na sua
juventude. Sua voz marcante se destacou muito no cenário musical e acabou
se tornando um dos primeiros cantores de MPB nordestino a fazer sucesso
internacional na década de 1970.
Belchior nasceu em 1946 no interior do Ceará e faleceu em 2017 no sul
do país. Dos setenta anos que viveu, Belchior dedicou quarenta e três deles à
música. Antes de seguir esse caminho, estudou filosofia e completou seus
estudos no colégio de padres ainda quando criança e aprimorou seus estudos
em latim e italiano. Iniciou uma faculdade de medicina na capital cearense, mas
abandonou no quarto ano, em 1971, para seguir a carreira artística. Muitas de
suas canções foram cantadas em vozes muito conhecidas da MPB, como Elis
Regina, Fagner, Vanusa e Jair Rodrigues.
Em poucos anos como cantor, Belchior conseguiu uma grande legião de
fãs e prêmios nacionais. O álbum Alucinação gravado em 1976, seu segundo
álbum, foi considerando um dos maiores álbuns da Música Popular Brasileira1,
com destaque para as canções Como nossos pais, Apenas um rapaz latino
americano e Velha roupa colorida. Mostrando para o mundo que seria apenas
o começo do seu reconhecimento.
1
Alucinação de Belchior é um dos maiores álbuns da música popular Brasileira:
https://veja.abril.com.br/entretenimento/belchior-as-tres-grandes-cancoes-do-
discobfundamental/ último acesso: 16/082021 às 17:16.
Também é necessário levar em consideração a influência de Belchior
em composições de outros artistas. Recentemente, o cantor Humberto
Gessinger, ex-vocalista da Banda Engenheiros do Hawaii, cita Belchior
diretamente em sua canção Estranho Fetiche (2019).
Raul seixas, um dos maiores cantores do Rock Nacional, faz referência
indireta a Música Apenas um rapaz latino americano na canção Eu também
vou reclamar (1976), mesmo ano de lançamento do álbum Alucinação no qual
a canção de Belchior está inserida.
Belchior também usou de referências para muitas de suas canções. As
mais conhecidas foram as referências a Caetano Veloso, o famoso “antigo
compositor baiano” citado em Apenas um rapaz latino americano. Aparece
diretamente em Fotografia 3 x 4, contradizendo Veloso na canção Alegria
alegria (1968). E também em Baihuno, cantada por Belchior e Autoria de
Francisco Casaverde.
Além de Caetano, o cearense faz referência à literaturas nacionais e
internacionais. Autores nacionais como João Cabral de Melo Neto, Alvarez de
Azevedo e Euclides da Cunha, são lembrados pelo compositor alguma vez em
cento e cinquenta composições. Da literatura mundial, Shakespeare, Dante
Alighieri, Edgar Allan Poe, Baudelaire e muitos outros estão presentes na obra
do cearense.
Uma parte da infância de Belchior, como citada anteriormente, foi
dedicada a escola de padres, onde aprendeu algumas línguas. Em algumas de
suas composições são encontradas frases ou palavras em inglês, espanhol e
italiano. Além de colocar o seu poliglotismo em destaque, suas composições
passam mensagens importantes e reflexivas. É o que veremos adiante em um
estudo detalhado das suas principais composições usando a semiótica.
Olharemos a seguir com uma visão semiótica nas composições do
álbum Alucinação e veremos que Belchior cria um personagem para todas as
canções do álbum. Um personagem que encontra diversas pedras no caminho,
mas que apesar de todo o sofrimento que passa é apaixonado pela vida e
valoriza sempre as coisas boas dela.
Um ponto a se considerar é que o álbum foi lançado em 1976, em meio
a ditadura militar no Brasil, que teve início em 1964. Neste período vários
cantores e escritores foram perseguidos pelo governo, muitos exilados do país.
No álbum trabalhado há grandes referências indiretas às obrigações impostas
pelo governo ditador. E é em meio a isto que vive o personagem criado pelo
compositor.
2. O que é semiótica
A Semiótica é o estudo dos signos. Teve origem na mesma época que a
filosofia, porém só no século XX com os estudos de Saussure e Pierce, é que
começou a ganhar força. Mas o que é signo? Entende-se como signo qualquer
representação dotada de significado.
3. A criação do personagem
Para se contar qualquer história real ou fictícia, é necessário que haja
um ou mais personagens. Belchior não foge a esta regra e cria o seu já na
primeira canção do álbum, onde se apresenta como um rapaz simples e
humilde, que não tem muito a oferecer se não a sua voz para cantar. O cantor
abre o álbum com a canção Apenas um rapaz latino americano. No decorrer
dele, fala sobre sua vida, seus pensamentos e até sobre seus sentimentos. O
álbum contem dez canções, onde cada uma fala sobre experiências do
personagem e sobre a sua vontade de viver. A última canção é a mais curta do
álbum, a qual o personagem fecha sua história. Tendo como título Antes do
fim.
É nítido que belchior faz muitas críticas à veloso nas suas composições.
Isto porque veloso, em suas canções, tenta passar uma aparência linda da vida
(divina e maravilhosa), enquanto Belchior quer passar que nem sempre a vida
é como o outro diz. Que também existem dias ruins, principalmente para os
menos favorecidos.
O personagem criado pelo compositor é um rapaz latino americano que
não tem dinheiro no banco nem parentes importantes. Este é o tipo de cidadão
que não tem uma vida maravilha, por ser pobre e de família humilde que sai do
Ceará para viver em São Paulo em um período de ditadura, como o que
acontecia na época, que é citado indiretamente.
O personagem relata que tem ouvido muitos discos e conversado com
muitas pessoas, mas ninguém acredita que a vida seja divina e maravilhosa.
Certamente, as pessoas que conversaram com o rapaz latino-americano são
da mesma classe social que ele. Logo, percebe que está certo em dizer que o
baiano que ouviu no rádio está errado.
Em seguida, o personagem faz mais uma referência à veloso, desta vez
à canção É proibido proibir. E também passa um leve sentimento de
esperança. Uma esperança de que ninguém o verá fazendo aquilo que é
proibido e assim não será punido pela sua ação. Mas sei que tudo é proibido /
Aliás, eu queria dizer / Que tudo é permitido até beijar você no escuro do
cinema / Quando ninguém nos vê. (BELCHIOR;1976)
Neste momento da canção o personagem encontra alguém por quem se
apaixona e beija no cinema. Mas logo percebe que este alguém não possui a
mesma visão de vida difícil que ele – Mais uma vez entra a questão de uma
possível diferença social. E logo diz para ela pedir que ele fale sobre coisas
bonitas, pois suas palavras são navalhas e que não pode falar sem ferir
ninguém. E ainda alerta para não se preocupar com aquilo que em que ele fala,
que o mundo real (ao vivo) é muito pior.
(...) Por favor não saque a arma no Sallon / Eu sou apenas um cantor
/ Mas se depois de cantar / Você ainda quiser me atirar / Mate-me
logo, à tarde, as três / Porque a noite eu tenho um compromisso e /
não posso faltar / Por causa de vocês. (BELCHIOR;1976)
3.6. Alucinação
Não diferente das outras canções do álbum, esta carrega fortes críticas
nas entrelinhas. Para compreender cada detalhe desta composição
precisaríamos de uma análise especial. Mas, como o intuito deste trabalho é
analisar o álbum completo, seguiremos adiante.
A palo seco
1. loc. adv. Mar. Dicho de navegar uma embarcación: Com las velas
recogidas.
2. loc. adv. coloq. Sin nada accesorio o complementario.
3. loc. adv. coloq. Sin um complemento que acompañe una comida o uma
bebida, generalmente para suavizar su ingesta. Tomaré um ron a palo
seco. Se comió el bocadillo a palo seco.
4. loc. adv. En el cante flamenco, sin acompañamiento instrumental.
(RAE – Real Academia Española)2
A expressão espanhola apareceu antes no poema Canto a palo seco de
João Cabral de Melo Neto no livro Quaderna, publicado no final da década de
50. A palo seco é uma tradição musical da Andaluzia, é um canto “a capela”, ou
seja, sem instrumentos, sem acompanhamento.
2
Disponível em https://dle.rae.es/palo?m=form2#7Nb6QN2. Ultimo acesso: 22/08/2021 às
17:26.
Diferente das demais, esta canção já havia sido gravada anteriormente,
no disco Mote e glosa, em 1974. Porém, não coincidentemente ela está contida
no álbum estudado. Partimos, então, para À palo seco.
Em 1973, o Brasil já estava sofrendo nas mãos de ditadores desde
1964, assim como o Paraguai governado pelo general Alfredo Stoessner desde
1954. Naquele ano, mais um país sul-americano sofreu um golpe de estado.
Desta vez, Augusto Pinochet derruba o governador Salvador Allende e começa
sua ditadura no Chile. No ano seguinte, belchior lança a música À palo seco,
como dito anteriormente.
Em março de 1976, os militares argentinos tiraram a, então, Presidente
Isabelita Perón e se iniciou um governo de militares no país. Belchior no
mesmo ano faz uma nova versão de À palo seco e regrava a canção.
O nosso personagem já viveu dias difíceis e cansativos, porém sem
nunca desacreditar de um futuro melhor. Nesta canção algo começa a mudar.
Vemos o nosso personagem, pela primeira vez, desesperado. Este desespero
acontece por ver que o terror das ditaduras está se espalhando. O que parecia
estar perto do fim, agora parece ter mudado com mais um país latino
americano sendo dominado.
Como em todas as canções do álbum, notamos o personagem
conversando com um amigo. O assunto desta vez é o seu descontentamento
com o modo como a vida está acontecendo. Nesta canção o personagem
revela sua idade pela primeira vez. De fato, é ainda jovem. Tem apenas vinte e
cinco anos e uma longa história de vida.
Depois de explicar para o amigo o motivo do seu desespero - de forma
muito indireta, pois é importante lembrar que, na época, muitas canções foram
censuradas por criticarem o governo – ele torce para que o seu canto faça com
que as pessoas entendam o que ele quer dizer.
É nesta estrofe da composição que mais se percebe a expressão
espanhola. O personagem parece ser o único que está desesperado pela
situação em que a américa se encontra, ele está à palo seco e deseja que seu
canto torto corte a carne das pessoas para que elas sintam na pele o que ele
está passando.
4. Considerações finais
Diante das análises básicas de cada canção podemos observar que o
compositor, antes de qualquer coisa quis fazer uma crítica ao regime militar da
época. Para isso, criou um personagem. Um rapaz latino americano de vida
humilde que saiu do Norte para o sul e morou na rua, mas se considera um
sujeito de sorte. Que sente saudade do passado, mas reconhece que ele não
lhe serve mais. E apesar de acreditar sempre no novo, sente medo de viver
como os seus pais. Que acredita que a única forma que deve ser norma é não
ter regras e vive delírios de uma vida real. Por um tempo se desesperou e se
sentiu sozinho, mas antes do seu fim, recuperou as esperanças.
Seria interessante levar em consideração a possibilidade de que esse
personagem criado pelo compositor seja inspirado em si próprio, já que
algumas características, como ser contra a ditadura, ter saído do interior para a
cidade grande, acreditar que Deus anda do seu lado e diversas outras se
coincidem com as do compositor.
Referencias
BELCHIOR; Antônio Carlos. Apenas um rapaz latina americano. Alucinação.
Universal Music;1976.
______. Velha roupa colorida. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Como nossos pais. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Sujeito de sorte. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Como o diabo gosta. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Alucinação. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Não leve flores. Alucinação. Universal Music;1976.
______. A palo seco. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Fotografia 3x4. Alucinação. Universal Music;1976.
______. Antes do fim. Alucinação. Universal Music;1976.
POE; Edgar Allan. O corvo e outros contos [tradução Marta Fagundes/ Fatima
Pinho]. 1º Ed. Pandorga. 2018.
SANTAELLA; Lúcia. O que é semiótica [Livro digital]. Editora Brasiliense. 1983.