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Sambão-Joia de Antonio Carlos e Jocafi

Rubens Spegiorin Adati

É comum entendermos que a década de 1970, no Brasil, pariu muitos dos discos que
continuamos a chamar de clássicos, ou pelo menos germinou artistas que virão a tomar essa mesma
nomenclatura. Estamos falando de Caetano Veloso, lançando o aclamado Transa (1972), Gilberto
Gil com Expresso 2222 (1972), de Milton Nascimento, que também em 72 lança junto de seu amigo
Lô Borges um dos discos mais icônicos da musica brasileira, o Clube da Esquina, cravando assim
seu nome na história. Também é comum a imagem de que se entendia a música mais refinada da
época como sendo a desses compositores mencionados, com temáticas políticas, poesia de alto nível
e arranjos e composições dignos de análises extensas, e por tanto se espera que fosse uma musica de
sucesso de vendas1. Mas como mostra Adelcio Camilo Machado no seu trabalho "Quem te viu,
quem te vê: o samba pede passagem para a década de 1970”, artistas como Benito di Paula e
Antonio Carlos e Jocafi superavam em muito as vendas dos outros artistas com seus sambas, tanto
os intelectuais quanto outros que dominavam o mercado, como Roberto Carlos. Mas ao mesmo
tempo, aos olhos e ouvidos de Gilberto Vasconcellos, sociólogo e crítico musical da época, esse
“Sambão-Joia” não tinha tanto valor artístico, tanto pela falta de politização no conteúdo das letras
quanto na melodia repetitiva e “chiclete”: basicamente, musica de mercado, não alcançando um
nível de legitimidade2. A faixa Você Abusou da dupla Antonio Carlos e Jocafi é um ótimo exemplo
desse assunto, pois compreende com clareza o que Vasconcellos dizia, mas após tomar um mínimo
de conhecimento sobre a obra da dupla, coloca-los em lugar inferior é injustiça.
Em 1971, sob o selo da RCA Victor, Antonio Carlos e Jocafi lançam seu primeiro disco,
Mudei de Ideia, que continha a faixa de maior sucesso da dupla até hoje, Você Abusou, famosa tanto
pela versão original quanto pelas diversas interpretações, como a de Maria Creuza, então esposa de
Antonio Carlos na época, que levou a canção para diversos festivais nacionais e no exterior, e como
Stevie Wonder, que já a tocou no palco do Rock in Rio, em 2011.
Numa entrevista para Charles Gavin, no programa O Som do Vinil3, Antonio Carlos conta do dia
em que sua mãe morreu, em que estava convidado para um encontro no apartamento de Vinicius de
Moraes. Entre o enterro e a musica, Antonio escolheu a musica, pois sua mãe sonhava com sua

1 DA CRUZ, Maria Alice, O ‘samba-joia’ pede passagem, 2011, Jornal da Unicamp. Campinas, SP.
2MACHADO, Adelcio Camilo. Quem te viu, quem te vê: o samba pede passagem para os anos 1970,
Campinas, SP: 2011, p. 10.
3 https://canaisglobo.globo.com/assistir/canal-brasil/o-som-do-vinil/v/6039877/
carreira de cantor, e ja dizia que se parecia um “musico do Rio de Janeiro”. No apartamento de
Vinícius estava Nelson Motta, que após ouvir a dupla anunciou em seu próprio programa no dia
seguinte que havia “uma dupla de baianos, e que deveriam ter sido contratados pra ontem.”. Nisso o
produtor Rildo Hora liga pra Jocafi e leva um contrato para ser assinado o mais rápido possível,
para produzirem um disco.
Recém chegados ao Rio de Janeiro, Antonio Carlos e Jocafi construíram o álbum “Mudei de
Ideia” utilizando suas referencias e composições, “um baú de ideias vindas da Bahia” como
comenta Antonio Carlos. Anteriormente já haviam lançado uma musica de sucesso, mas com a
interpretação de Agostinho dos Santos, a canção Morte do Amor, usada como “meio de campo” no
disco O Diamante Cor De Rosa de Agostinho, mas acabou sendo a faixa de mais sucesso. Para um
festival da Tv Record de 1967, Antonio Carlos havia apresentado ao lado de Maria Creuza a canção
Festa no Terreiro de Alaketu, mas nada que se comparasse ao sucesso de Você Abusou.
Curiosamente as musicas que mais fizeram sucesso no disco, Você Abusou e Desacato, inserida na
segunda edição do disco, são os sambas mais “comuns” da dupla, utilizando elementos tradicionais
dos sambas que tocavam na rádio, que mais faziam sucesso, como violão, cavaco, cuíca, pandeiro,
surdo, orquestra e coro feminino. A vontade de Jocafi era de inserir muito mais guitarras e metais
nos sambas, porém foi negado por Rildo. O restante das canções se afasta dessa estética, como
Kabaluere, com guitarras e uma bateria de levada funk, um prenúncio do afrobeat, utilizando
tambores e batucadas de raízes afro-brasileiras.
Antonio Carlos cresceu no candomblé, contribuindo tanto para os ritmos quanto para as letras,
usando a língua Iorubá em diversas musicas e colocando os “tambores que tinham no vento para a
janela de seu quarto”4. Jocafi cresceu frequentando o Mercado Modelo, na famosa “rampa do
Mercado” na Bahia. Lá entendeu que "o samba vinha de saveiro”5 para a Bahia, e se familiarizou
com o ritmo, sempre participando das rodas de samba. Nessa mistura, obtiveram um disco plural,
com diversos ritmos tradicionais misturados no samba, no rock, no funk, no candomblé, no
Mercado Modelo.
Como mostra Adelcio, essa exaltação de seu próprio território, no caso a Bahia, é sintoma de
um sentimento nacional fragmentado, bem diferente da época em que Aquarela do Brasil de Ary
Barroso era ícone de uma unidade nacional. Não se fala mais de um “Brasil brasileiro” mas se fala
de São Salvador, do Rio de Janeiro, da Vila Isabel, do sertão, de Taboão. Nesse sentido, o disco
Mudei de Ideia é também fragmentado entre muitas influencias da dupla. As musicas que falavam

4Em entrevista para o programa Segue o Som, da Tv Brasil. https://www.youtube.com/watch?


v=JeAiweFfOhI
5 https://canaisglobo.globo.com/assistir/canal-brasil/o-som-do-vinil/v/6039877/
de uma unidade brasileira foram duramente cobradas pelo tempo, taxadas de ufanistas e apoiadoras
da ditadura, como muitas de Don & Ravel, Wilson Simonal e Os Incríveis 6
A canção Você Abusou, na sua versão original do disco de 1971, se inicia com o violão dando
a levada da musica, numa harmonia de baixos que descem cromaticamente, de semi tom em semi
tom técnica de composição comum ao ambiente da musica de concerto. Na sequencia a cuíca entra
gemendo, na levada do samba, sendo somada pelo cavaco e pela voz de Jocafi, entoando o famoso
refrão “Você abusou/ tirou partido de mim/ abusou”. Na repetição do refrão entram as percussão,
tamborim, surdo, pandeiro e ganzá, com a melodia cantada pelo coro de mulheres, sugerindo assim
uma melodia feita para ser cantada por muitas pessoas, uma melodia fácil de decorar. Para efeito de
contraste, o verso da musica é sempre com a voz de Jocafi sozinha, sem o coro. Jocafi tinha consigo
muito do que a Bossa Nova introduziu como estética para uma boa voz, baixo volume, suavidade,
intimidade. Numa evocação a João Gilberto, a suavidade com que Jocafi canta podia muito bem
embalar uma bossa nova de Tom e Vinícius. Ouvimos um arranjo para cordas entrar no lado direito
do fonograma, e a percussão sendo tocada em dinâmica baixa, com menos comentários da cuíca.
Assim estabelecidas as sonoridades das partes da música, irão repetir o refrão e o verso mais uma
vez, retornando ao refrão no final para uma série de repetições, que nos shows eram estendida para
o publico cantar. Assumidamente a dupla expõe, nos versos: “Que me perdoe se eu insisto neste
tema/ Mas não sei fazer poema ou canção/ Que fale de outra coisa que não seja o amor” e então
sugerem uma oposição da música deles às musicas intelectuais, dizendo: “Se o quadradismo dos
meus versos/ Vai de encontro aos intelectos/ Que não usam o coração como expressão”. Do jeito
que é colocado, a dupla inferioriza a própria musica, uma espécie de justificativa cantada em ritmo
de samba, quase pedindo licença aos intelectuais, como Gilberto Vasconcellos. Pelo menos pediram
desculpa. Toda via, também criticam aqueles que não usam o coração como expressão de musica, os
mesmo intelectuais. Há uma espécie de síntese da crítica musical brasileira7 nesses versos, expondo
que existia uma repulsa ao tipo de musica que estavam fazendo. Também nota-se em suas letras a
ausência da figura icônica do samba, do malandro.
Não houve sequer uma musica da dupla censurada pela ditadura, e isso se dá grande parte
pelas temáticas das letras de suas canções. Não criticavam o governo, apesar de que a repetição
exaustiva de “tirou partido de mim, abusou” possa sugerir uma leitura mais profunda e crítica.
Como aponta Adelcio, Você Abusou também continha temática para as lutas de classe, como se o
samba romântico não fosse valorizado por que não era culto, ou não vinha de um ambiente
universitário. Contudo, esse ambiente “fora de foco” ou fora dos olhos da ditadura possibilitou

6 ALONSO, Gustavo. A Música Popular e as Ditaduras Brasileiras, 2011, p. 63.


7 MACHADO, Adelcio Camilo. 2011, p. 7.
também que suas musicas fossem facilmente divulgadas, diferente das canções de Chico Buarque
ou das que Elis Regina cantava, musicas que circulavam nos ambientes universitários e atraía a
atenção dos censores.
Nesse sentido, o sucesso de Antonio Carlos e Jocafi na época corrobora a ideia de que a
industria musical era positiva com aqueles que não criticavam o governo em suas letras8,
permitindo até o experimentalismo nos discos da época. Algumas rotulações como “brega" e
“cafona" fazem parte desse período, e uma terceira criada pelos críticos tentou enquadrar a dupla:
Sambão-Joia. Era esse samba, romântico, pouco ou nada politizado, feito para vender, refrões
chiclete, uma espécie de água com açúcar para os ouvidos. Estavam no mesmo cenário Roberto
Carlos, Benito di Paula, Martinho da Vila, se esquivando das temáticas políticas e vendendo sua
musica.
Pode-se entender então que o sucesso de Você Abusou e outros diversos sambas de Antonio
Carlos e Jocafi foi a maneira de fazer sucesso nas vendas de uma industria musical que estava sob
as rédeas de uma ditadura, mas que como explicita Gustavo Alonso, lançava musicas de diferentes
gêneros e artistas, contanto que fossem musicas para as multidões, que exaltassem o Brasil e o
governo, ou que apenas não criticassem o governo. Porém, dando continuidade ao primeiro disco
Mudei de Ideia é possível notar a qualidade das composições, tanto pelas letras quanto pelos
arranjos, sonoridades interessantes, guitarra elétrica no samba, ritmos oriundos de lugares distintos
somando na cabeça de dois baianos que simplesmente não podiam viver sem fazer musica. Assim
obtiveram sucesso de vendas sem descaracterizar suas composições, podendo em um disco haver
sambão-joia para as massas e um afrobeat, hoje em dia cultuado por diversos Djs e por
colecionadores do exterior.

8 ALONSO, Gustavo. 2011, p. 59.


Referências

ALONSO, Gustavo. A Música Popular e as Ditaduras Brasileiras, 2011.


DA CRUZ, Maria Alice, O ‘samba-joia’ pede passagem, 2011, Jornal da Unicamp. Campinas, SP.
Entrevista para o programa Segue o Som, da Tv Brasil. (https://www.youtube.com/watch?
v=JeAiweFfOhI)
Entrevista para o programa O Som do Vinil, do Globoplay. (https://canaisglobo.globo.com/assistir/
canal-brasil/o-som-do-vinil/v/6039877/
MACHADO, Adelcio Camilo. Quem te viu, quem te vê: o samba pede passagem para os anos 1970,
Campinas, SP: 2011

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