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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

CCSO - CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


DCS - DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
DISCIPLINA: EXPRESSÃO ARTÍSTICA E CULTURA MODERNA
PROFESSOR:JUNERLEY
DISCENTE: BRUNO ALBERTO SOARES GUIMARÃES

ANÁLISE DA MÚSICA “CÁLICE” – CHICO BUARQUE PART. MILTON


NASCIMENTO

SÃO LUÍS/MA
2022
“Pai, afasta de mim esse cálice Na arquibancada pra a qualquer momento
Pai, afasta de mim esse cálice Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como beber dessa bebida amarga? Como é difícil, pai, abrir a porta
Tragar a dor, engolir a labuta? Essa palavra presa na garganta
Mesmo calada a boca, resta o peito Esse pileque homérico no mundo
Silêncio na cidade não se escuta De que adianta ter boa vontade?
De que me vale ser filho da santa? Mesmo calado o peito, resta a cuca
Melhor seria ser filho da outra Dos bêbados do centro da cidade
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Como é difícil acordar calado Quero inventar o meu próprio pecado
Se na calada da noite eu me dano Quero morrer do meu próprio veneno
Quero lançar um grito desumano Quero perder de vez tua cabeça
Que é uma maneira de ser escutado Minha cabeça perder teu juízo
Esse silêncio todo me atordoa Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Atordoado eu permaneço atento Me embriagar até que alguém me esqueça.”

Neste termo, analisa-se a canção "Cálice", composição originalmente escrita e


interpretada pelos artistas Chico Buarque e Gilberto Gil, no ano de 1973, contudo, em virtude
do cenário sócio-político da época, a música só seria lançada em 1978.
Tendo em vista o período de ditadura militar, estatuído de 1964 a 1985, a sobredita
canção só foi liberada, pela primeira vez, 5 (cinco) anos após a sua composição, no álbum Chico
Buarque, com participação de Milton Nascimento nos versos compostos por Gilberto Gil.
Sabe-se que a canção foi composta para ser apresentada no festival musical Phone
73, organizado pela gravadora atualmente conhecida como Universal, no Palácio das
Convenções do Anhembi, na cidade de São Paulo, entretanto, porquanto conceber, em seus
versos, teor político contrário ao regime instaurado à época, no dia do show, a dupla Gil e
Caetano tivera seus microfones desligados logo no início da performance.
Segundo relato dos próprios compositores, bem como dos jornais que veicularam o
ocorrido, os performistas teriam sido aconselhados a não apresentá-la no festival, vez que a
canção teria sido submetida às vistas da censura.
O motivo não seria estranho; sendo uma composição datada do período de ditadura
militar, caracterizado por suas políticas totalitárias, bem como regido pela censura e extremo
rigor, os seus versos musicais mostram o grande desespero sentido durante esta época.
Assim, em sua composição, os artistas utilizam-se de um episódio bíblico, que é o
momento de crucificação de Jesus Cristo, com o fito de verbalizar seus anseios; afinal, em sua
oração, antes de ser capturado pelo governo romano, assim clamou: "Pai! Afasta de mim esse
cálice, de vinho tinto de Sangue!".
O trecho, por seu próprio sentido, pode ser entendido de duas maneiras díspares: na
primeira, "Pai" seria uma metáfora a Deus, enquanto o "vinho tinto de sangue", guardado pelo
cálice, compreenderia uma metáfora ao sofrimento causado pelo regime ditatorial. Assim, tem-
se um pai piedoso, ao qual se suplica que afaste-lhe da miséria e tormento acondicionado no
cálice.
Na segunda, todavia, a figura do "Pai"atenta-se a uma metonímia dos detentores do
poder no regime, pais da nação. Deste modo, "cálice" seria uma paranomásia de "cale-se",
atinente à sofreguidão de quem encontra-se sob os cuidados dos pais da nação: a população,
assolada pela sofreguidão e suplício associado ao "vinho tinto de sangue", guardado pelo cálice.

Sendo assim, o verso destacada endereça de forma intensa, mediante o uso da


metáfora, críticas às atitudes tirânicas e bárbaras exprimidas pelo governo vigente à época,
aludindo, por meio do artifício, às armas violentas que, de tanto usadas, já não servem, por
ocasião do trecho "De muito usada, a faca já não corta", e ao grito de insatisfação da população,
prestes a ser incitado, à vista de "Essa palavra presa na garganta".
Nos versos em que cantam "De que vale ser filho da santa? / Melhor seria ser filho
da outra / Outra realidade menos morta", os compositores endereçam à mediocridade do estado
de submissão, em que "morta" remeteria a uma realidade desinteressante; portanto, melhor seria
outra realidade, menos insípida pela submissão.
De todo modo, toda a composição, ao optar pela utilização de palavras como
"amarga", "dor", "morta", "mentira", "mentira", "força bruta", opera e demonstra o fervor
provocado pelos mecanismos da censura, em um esforço para manifestar o caráter vil e
hediondo deste órgão, regime governamental adotado, que, nos termos da canção, é comparado
a um ignóbil monstro, que emerge da lagoa, sob o olhar atento do eu-lírico: a população.
Sendo assim, diante do "cala a boca" ditado pelo governo, resta-lhe o peito e, se o
peito calar, resta-lhe a mente, na qual germina a reflexão e a compreensão de que o sistema que,
ora, vigora, é não apenas inadequado, como completamente disparatado.
Na entabulação da música, "Mesmo calado o peito, resta a cuca", isto é, ainda que
face à imposição da perspectiva do governo fomente-se a condescendência por obrigacão, o
poder do pensamento jamais será inibido.
Portanto, utilizando-se, na sua construção textual, de metáfora, metonímias e
paranomásias, a súplica que desponta é translúcida: Pai, afasta de mim este cale-se (!) de vinho
tinto de sangue, sofreguidão e barbárie.

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