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15 músicas cantadas por Gal Costa que podem ser usadas como

repertório sociocultural
Leonardo Del Sant

Gal Costa. Maria da Graça Costa Penna Burgos nasceu em 26 de setembro de 1945 em Salvador
e completou 57 anos de carreira, cantando sucessos como “Baby”, “Meu Nome é Gal”,
“Aquarela do Brasil” e “Vapor Barato”. Sua projeção veio com a tropicália, movimento cultural
da qual fez parte nos anos 60 e 70, ao lado de nomes como Caetano Veloso, Maria Bethânia e
Gilberto Gil. Ao longo da carreira, cantou sucessos e composições de Cazuza, Roberto Carlos,
Jards Macalé, Tim Maia e Marília Mendonça.

Algumas músicas dela que contém repertório sociocultural:

Divino Maravilhoso

Escrita por Caetano Veloso e Gilberto Gil, “Divino Maravilhoso” traz força na letra e na
interpretação de Gal, que a cantou de forma agressiva, usando toda a potência da sua voz e que
a canção exigia. Na primeira apresentação da música, em novembro de 1968, a cantora
surpreendeu o público ao romper com sua imagem até então comportada e surgir de black
Power, com colares enormes e mensagem clara contra a repressão da ditadura
militar instaurada no país:
“Atenção

Tudo é perigoso

Tudo é divino maravilhoso

Atenção para o refrão

É preciso estar atento e forte

Não temos tempo de temer a morte

É preciso estar atento e forte

Não temos tempo de temer a morte”

Baby

Também lançada em 1968, a canção “Baby” é um dos maiores clássicos de Gal Costa, e faz parte
do álbum “Tropicalia ou panis et circensis”. A música aborda a modernidade e o consumismo do
jovem urbano da época, segundo o artigo “Leia na Minha Camisa”, de Márcia Cristina Fraguas.
“Você precisa saber da piscina

Da margarina

Da Carolina

Da gasolina

Você precisa saber de mim”


Aqui são elencados objetos de consumo dos jovens naquele momento: piscina como espaço de
convívio da elite, margarina dos comerciais, Carolina, remetendo a um samba de Chico Buarque,
e gasolina, na expansão do mercado automobilístico pelo país.
“Você precisa tomar um sorvete

Na lanchonete

Andar com a gente

Me ver de perto

Ouvir aquela canção do Roberto”

Já na estrofe acima, os irmãos Veloso — Bethânia e Caetano, compositores da música —


abordam o consumo em espaço público, incluindo até mesmo Roberto Carlos, ídolo da jovem
guarda, movimento crescente nas cidades. Destaca-se também o uso de termos em inglês, Baby,
por exemplo, acompanhado de pedidos para aprender a língua e “o que eu não sei mais”, verso
que flerta com a modernidade pujante e acelerada.

Juventude Transviada

Escrita por Luiz Melodia, “Juventude Transviada” tem versos marcantes, como “lava roupa todo
dia, que agonia”, e um aviso: “uma mulher não deve vacilar”. A música remete aos jovens,
principalmente mulheres, que, naquele momento — a música foi lançada em 1975 — não
enxergavam um futuro para si e para o país, na visão do autor.

A versão mais recente da música está presente no último álbum de Gal, com participação de
vários cantores, dentre eles, Seu Jorge, que a acompanha na canção.

Dê um Rolê

A versão original pertence aos Novos Baianos, mas Gal regravou “Dê um Rolê” em 1971, no
álbum “Fa-tal: Gal a todo vapor”. A música se inicia com “Não se assuste pessoa, se eu lhe disser
que a vida é boa”, refletindo as angústias sociais vividas na juventude da época.
“Enquanto eles se batem

Dê um rolê e você vai ouvir

Apenas quem já dizia

Eu não tenho nada

antes de você ser eu sou

Eu sou, eu sou, eu sou amor

Da cabeça aos pés”

A letra expõe a necessidade de espairecer a mente, sair por aí. Inclusive, o uso do termo “rolê”,
é o mesmo de atualmente, o que abre margem para debates sobre preconceitos de classe e
pertencimento aos espaços, sejam públicos ou privados, citando, por exemplo, a criminalização
dos rolezinhos de anos atrás.

Aquarela do Brasil
A composição de Ary Barroso foi lançada em 1939, e o tempo não a apagou. Gal gravou sua
versão em 1980 da música que é considerada a fundadora do samba-exaltação, em que a pátria
e símbolos nacionais são cultuados em letras e ritmos.

A música pode aparecer nos vestibulares por ser marcante e icônica, remetendo a períodos de
exaltação do país, ainda que haja críticas de que ela tenha envelhecido mal, ou passado por
contestações ao longo do tempo.

Vapor Barato
“Sim

Eu estou tão cansado, mas não pra dizer

Que eu não acredito mais em você

Com minhas calças vermelhas

Meu casaco de general cheio de anéis

Eu vou descendo por todas as ruas

Eu vou tomar aquele velho navio

Eu vou tomar aquele velho navio

Aquele velho navio

Eu não preciso de muito dinheiro

Graças a Deus

E não me importa

E não me importa não”

A composição de Jards Macalé e Waly Salomão traz referências, metáforas e paralelos com a
repressão da ditadura militar no país. “Vapor Barato” é resultado de uma juventude inquieta e
de uma contracultura crescente que buscava responder aos ataques feitos à liberdade de
imprensa e aos artistas naquele contexto.

O rumo do navio, citado na letra, remete ao pertencimento existencial, e não físico, dos artistas
para com o Brasil, abordando também a questão do exílio, movimento comum à época. Soma-
se isso a referências explícitas, como “casaco de general”.

A música ainda ganhou um novo contexto, ao ser inserida no final do filme “Terra Estrangeira”,
de Walter Salles: ali, a presidência já era de Fernando Collor, e o confisco das cadernetas de
poupança já era uma realidade. E tal ato fez com que muitos brasileiros deixassem o país, como
nos exílios dos tempos ditatoriais.

Modinha para Gabriela

A letra de Dorival Caymmi foi feita em 1975 para a telenovela “Gabriela”, inspirada no romance
de Jorge Amado, “Gabriela, Cravo e Canela”. A obra é considerada transgressora e a música
acompanha o espírito de sua musa.

Passada nos anos 20, o livro traz Gabriela como uma jovem sedutora que arrebata o coração
não só de Nacib, com quem se casa, mas com um número incontável de homens de Ilhéus, a
ponto de colocar em xeque a lei local em que o adultério feminino culminava na morte da
mulher.
“Eu nasci assim eu cresci assim

E sou mesmo assim

Vou ser sempre assim Gabriela

Sempre Gabriela

Eu sou sempre igual não desejo o mau

Amo o natural etc e tal

Gabriela sempre Gabriela”.

A música representa uma obra marcante que questiona a sociedade patriarcal e autoritária da
época, trazendo renovações culturais, políticas e econômicas, presentes no romance de várias
maneiras.

Canta Brasil

A letra de Alcir Pires Vermelho e David Nasser foi escrita em 1941, ainda nos embalos de
“Aquarela do Brasil”. Em sua descrição, consta “cena brasileira” como ritmo, e não samba, tal
qual Aquarela.

O sucesso foi imediato, abrindo duas versões para a reação de Ary Barroso: uma diz que ele
considerou a canção formidável, já outra, que além de não gostar, justamente pelas
características próximas à Aquarela do Brasil, ainda rompeu sua longa amizade com Alcir.
“A beleza deste céu

Onde o azul é mais azul

Na aquarela do Brasil

Eu cantei de norte a sul

Mas agora o teu cantar

Meu Brasil quero escutar

Nas preces da sertaneja

Nas ondas do rio-mar”

Na voz de Gal Costa, “Canta, Brasil!” foi revigorada, caindo novamente no gosto e paixão dos
brasileiros na década de 80. A exaltação nacional é clara: “No céu, no mar, na terra! Canta,
Brasil!”.

Brasil

Não só de exaltação ao país viveu Gal: ao regravar “Brasil”, de Cazuza, a intérprete revive tempos
pós-ditadura, da música que foi um dos grandes manifestos políticos do final dos anos 80.
A redemocratização e escolhas de um futuro marcam o período, e a canção reflete todo o
contexto:
“Não me convidaram

Pra esta festa pobre


Que os homens armaram

Pra me convencer

A pagar sem ver

Toda essa droga

Que já vem malhada

Antes de eu nascer […]

Brasil! Mostra tua cara

Quero ver quem paga

Pra gente ficar assim

Brasil! Qual é o teu negócio?

O nome do teu sócio?

Confia em mim”

A “festa pobre”. termo cunhado na música, refere-se à denominação “festa da democracia”, que
resume a criação da Constituição Federal de 1988. A crítica é justamente aos políticos e à mídia,
já que seus autores consideravam que, mesmo em meio às comemorações pelo fim da ditadura,
a Carta Magna ainda não representava o futuro político desejado por setores da sociedade
brasileira. E “Brasil” expõe esse mix de sentimentos de forma rasgada e objetiva.

Mamãe, Coragem

A música foi criada por Caetano Veloso e Torquato Neto, e tem referência clara a uma mãe
preocupada com o filho, que se mudou para a cidade grande. Há uma leitura de que a canção é
um diálogo entre Torquato e sua mãe, Salomé.
“Mamãe, mamãe, não chore

Pegue uns panos pra lavar

Leia um romance

Veja as contas do mercado

Pague as prestações

Ser mãe

É desdobrar fibra por fibra

Os corações dos filhos

Seja feliz, Seja feliz’

A música retrata o sentimento materno de despedida e de vazio que um filho deixa em busca
de novos rumos e oportunidades. Há ainda a inspiração no texto teatral “Mãe Coragem e Seus
Filhos”, de Bertolt Brecht, escrito no início da Segunda Guerra Mundial.

London London
A solidão é descrita diversas vezes em “London London”, canção escrita por Caetano Veloso
enquanto viveu exilado na capital britânica. A sensação de ser um exilado, fora de seu país natal,
por divergências políticas, ficam marcadas na letra:
“I’m wandering round and round, nowhere to go

I’m lonely in London, London is lovely so

I cross the streets without fear

Everybody keeps the way clear […]

Oh Sunday, Monday, Autumn pass by me

And people hurry on so peacefully

A group approaches a policeman

He seems so pleased to please them”

Tradução:
“Estou vagando, dando umas voltas, sem direção

Estou solitário em Londres, Londres é amável assim

Cruzo as ruas sem medos

Todo mundo deixa o caminho livre” […]

Oh Domingo, segunda, Outono, passam por mim

E as pessoas passam apressadas com tanta paz

Um grupo aborda um policial

Ele parece tão satisfeito em poder atendê-los”

A descrição feita por Caetano da abordagem do policial britânico é um claro contraste ao que
acontecia no Brasil, em que os militares não atendiam às necessidades do povo, pelo contrário,
segundo suas declarações pessoais sobre o período.

Saudosismo

Outra das músicas inesquecíveis de seu primeiro álbum de estúdio, “Saudosismo” também foi
escrita por Caetano Veloso e retrata a nostalgia dos tempos antes da ditadura militar, onde
viviam “tempos de paz” na cidade de Salvador. Apesar da letra inofensiva, a canção foi
censurada e pode ser lançada apenas um ano após a sua gravação.
“Eu, você, nós dois

Já temos um passado, meu amor

Um violão guardado

Aquela flor

E outras mumunhas mais

Eu, você, João

Girando na vitrola sem parar


E o mundo dissonante que nós dois

Tentamos inventar tentamos inventar

Tentamos inventar tentamos”

Dom de Iludir

Muito provavelmente, você já ouviu o seguinte trecho “cada um sabe a dor e a delícia de ser o
que é”, essa é uma das músicas mais famosas interpretadas pela voz magnética de Gal Costa.

Escrita por Caetano Veloso em 1976, a música é uma resposta em forma de paródia da canção
“Pra que mentir?” de Noel Rosa e Vadico, que questiona o dom da mulher de iludir e mentir.
Veja o trecho dessa canção:
“Esse dom

De saber iludir?

Pra quê?! Pra que mentir?

Se não há necessidade

De me trair?

Pra que mentir?

Se tu ainda não tens

A malícia de toda mulher?

Pra que mentir?”

Em “Dom de Iludir”, o eu-lírico feminino escrito por Caetano responde Noel logo nos primeiros
versos:
“Não me venha falar na malícia

De toda mulher

Cada um sabe a dor e a delícia

De ser o que é‚

Não me olhe como se a polícia

Andasse atrás de mim

Cale a boca

E não cale na boca

Notícia ruim”

A letra ainda afirma que a forma do homem iludir é impor a sua verdade, ser o dono da verdade,
o que refletia a sociedade patriarcal, em que o homem é o dono da verdade e a sua voz sempre
prevalece.

Tigresa

Lançada originalmente no álbum “Bichos” (1977) de Caetano Veloso, a música ficou eternizada
na voz de Gal no disco “Caras e Bocas”, também lançado em 1977.
A letra da canção reflete como Caetano enxergava e digeria o que estava acontecendo no mundo
naquela década. Os versos descrevem uma mulher, que foi inspirada pela atriz Zezé Motta e a
outras mulheres que o autor encontrou nas noites de festa da Dancing Days.

Essa mulher se interessava por política, que era livre, que aproveitava a noite e que era cheia de
sentimentos pelas experiências que viveu, seja na carreira ou no amor. A letra
retrata movimentos sociais que estavam surgindo, como o feminismo e movimento negro, ou
que estavam no seu auge, assim como a contracultura.
‘Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel

Uma mulher, uma beleza que me aconteceu

Esfregando a pele de ouro marrom

Do seu corpo contra o meu

Me falou que o mau é bom e o bem cruel

Enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu

Ela me conta, sem certeza, tudo o que viveu

Que gostava de política em 1966

E hoje dança no Frenetic Dancing Days

Ela me conta que era atriz e trabalhou no Hair

Com alguns homens foi feliz, com outros, foi mulher

Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor

E espalhado muito prazer e muita dor”

Lágrimas Negras

Penúltima música do álbum “Cantar” (1971), “Lágrimas Negras” é uma canção escrita por Jorge
Mautner e Nelson Jacobina. O contexto da canção é o ano de 1973, no fim do milagre econômico
brasileiro e no começo da crise do petróleo, um dos grandes tropeços do capitalismo.

A canção traz uma melodia triste, mas que ao mesmo tempo envolve aqueles que
testemunharam aquele período da história, ainda mais interpretada pela potência sonora que
foi Gal Costa. Inclusive, com jogos de palavras, os autores comparam as lágrimas com as grandes
causadoras da crise financeira que abalou o mundo.
“Na frente do cortejo o meu beijo

Muito forte como aço, meu abraço

São poços de petróleo a luz negra dos seus olhos

Lágrimas negras caem, saem

Dói

Por entre flores e estrelas

Você usa uma delas como brinco

Pendurada na orelha
É o astronauta da saudade

Com a boca toda vermelha

Lágrimas negras caem, saem

Dói”

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