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augusto de campos

BALANÇO DA BOSSA
e outras bossas
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EDITORA PERSPECTIVA S.A.
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Telefone: 288-8388
01401 São Paulo Brasil
1974

2 . a edição, 1974
revista e a m p l i a d a
MÚSICA POPULAR DE VANGUARDA

"A história é a estória de ações originais.


Certa vez, quando Virgil Thomson fazia uma pa-
lestra em Nova Iorque, ele falou da necessidade
da originalidade. O público imediatamente apu-
pou. Por que as pessoas se opõem tanto à ori-
ginalidade? Alguns temem a perda do status quo.
Outros compreendem — tu suponho — o fato de
que não são capazes de fazê-la. Fazer o quê?
Fazer história". (John Cage, Silence).

Desde João Gilberto e Tom Jobim, a música po-


pular deixou de ser um dado meramente retrospectivo,
ou mais ou menos folclórico, para se constituir num
fato novo, vivo, ativo, da cultura brasileira, participando
da evolução da poesia, das artes visuais, da arquitetura,
das artes ditas eruditas, em suma.
Na moderna música popular brasileira dois são os
momentos básicos em que a informação assumiu papel
preponderante.
O primeiro ocorreu em 1958 com a eclosão da
BN, hoje internacionalmente conhecida e reconhecida.
Com o manifesto musical de Desafinado a dissonância
foi introduzida na música popular brasileira. Abriu-se
uma brecha na harmonia tradicional, à qual ainda se
apegava — e se apega — grande parte da canção po-
pular do Ocidente. João Gilberto, com o seu canto
enxuto, mais cool do que o cool americano, com o seu
sentido da pausa-silêncio e aquela batida seca de violão
que marcou toda a BN, foi o Webern do movimento.
O segundo momento da informatividade na mú-
sica popular brasileira é recente e ainda pouco conhe-
cido no exterior. Passou por nomes diversos: som
universal, tropicalismo, som livre, embora o público
consumidor se tenha fixado mais na palavra tropica-
lismo, ou na expressão grupo baiano para identificar o
grupo dos criadores do movimento, por serem eles,
quase todos, da Bahia. Baianos são os seus dois líderes,
Caetano e Gil. A seu lado estão Gal Costa, a maior
cantora brasileira, aquela cujo uso instrumental da voz
mais se aproxima do de João Gilberto, e o compositor
e letrista Tomzé, ambos também da Bahia. Torquato
Neto, piauiense, autor das letras de várias composições
de Caetano e de Gil. Capinam, letrista, baiano. E o
conjunto "Os Mutantes", os "beatles" brasileiros, que
trouxeram para o convívio do grupo os instrumentos
elétricos (da guitarra ao teremim).
Num artigo de 1966 chamei a atenção para Cae-
tano Veloso, quando o movimento ainda não existia.
Já àquela altura Caetano (que no mesmo ano, como
vim a saber depois, publicara um excelente apanhado
crítico da música popular brasileira — "Primeira Feira
de Balanço" — na revista Ângulos, de universitários
baianos) dizia numa entrevista: "Só a retomada da
linha evolutiva de João Gilberto pode nos dar uma
organicidade para selecionar e ter um julgamento de
criação". Dizia isso num momento em que a música
popular brasileira voltara a assumir uma empostação
retórica, demagógica e nacionalóide — o contrário da
lição de João. Mais tarde acrescentaria, lucidamente :
"Nego-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento, para
compensar as dificuldades técnicas".
A lição de João não é só uma batida particular de
violão ou um estilo peculiar que ele ajudou a criar —
a bossa-nova. A lição de João — desafinando o coro
dos contentes do seu tempo — é o desafio aos códigos
de convenções musicais e a colocação da música po-
pular nacional não em termos de matéria-bruta ou ma-
téria-prima ("macumba para turistas", na expressão de
Oswald de Andrade) mas como manifestação antropo-
fágica, deglutídora e criadora da inteligência latino-ame-
ricana. Como disse Caetano em sua composição Sau-
dosismo, que é uma declaração de amor e humor a
João Gilberto e uma crítica à bossa-nova instituciona-
lizada: "a realidade é que aprendemos com João pra
sempre ser desafinados".
Essa lição, na verdade, só foi entendida, em sua
plenitude, pelos músicos do Grupo Baiano, nesta que
é a segunda investida em bloco da inveüção na música
popular brasileira. E é esta linhagem revolucionária
da linguagem musical, que vai de João Gilberto a Cae-
tano Veloso, que Décio Pignatari e eu tentamos repre-
sentar no ideograma fotográfico da sobrecapa do Ba-
lanço da Bossa*, na qual Caetano aparece na linha de
mira dos olhos de João Gilberto. Ideograma que foi,
(*) Edição. A capa interna deste volume repròduz a montagem
fotográfica.
por assim dizer, fotopsicografado, pois, um mês depois,
eu ouviria de João Gilberto, em New Jersey: "Tenho
tantas coisas a dizer pra Caetano... O que é que eu
vou dizer pra Caetano? Diga que eu vou ficar olhando
pra ele".
A modernidade dos textos de Caetano e de Gil
tem feito com que muitos os aproximem dos poetas
concretos. De fato, existem muitas afinidades entre os
dois grupos. Quanto a mim, creio, mesmo, que Caetano
é o maior poeta da geração jovem e que o que ele e
seus companheiros estão fazendo é o fato novo mais
importante da cultura brasileira.
Mas o que me fascina e me entusiasma neles não
é tanto o fato de eventualmente incidirem ou coinci-
direm com a poesia concreta, como a capacidade que
eles têm de fazer coisas diferentes do que fizemos e
fazemos e que constituem informações originais até
mesmo para nós, que nos especializamos na invenção.
Um ponto de aproximação entre os dois grupos é,
sem dúvida, Oswald de Aiídrade. O antropófago indi-
gesto do Modernismo estava morto e amordaçado à
espera de que as novas gerações recolhessem o seu
legado revolucionário. Os poetas concretos lutaram
por muito tempo sozinhos pela sua ressurreição, em
manifestos e artigos polêmicos — "Oswald, riso (clan-
destino) na cara da burrice", "Marco Zero de Andra-
de", Décio Pignatari —, participando mesmo ativamente
da reedição de suas obras — João Miramar, Poesias
Reunidas — a cargo de Haroldo de Campos. Até que
O Rei da Vela — que está para Oswald assim como
Morte e Vida Severina para João Cabral, no sentido da
difusão no consumo — trouxesse o gênio turbulento
da Semana de Arte Moderna para mais perto do público
e o pusesse no caminho de Caetano Veloso. Oswald,
básico para os concretos, passou a sê-lo também para
Caetano ("Atualmente, eu componho, depois de ter
visto O Rei da Vela. O espetáculo é a coisa mais impor-
tante que eu vi", 1967). E a Antropofagia oswaldiana
é a própria justificação da Tropicália. Como se sabe,
Oswald contrapõe ao que denomina a cultura "messiâ-
nica", fundada na autoridade paterna, na propriedade
privada e no Estado, a cultura "antropofágica", corres-
pondente à sociedade matriarcal e sem classes, que
deverá ressurgir com o progresso tecnológico, devol-
vendo ao homem a liberdade primitiva. Como poeta,
é autor de composições brevíssimas que combinam a
técnica cubista, de montagens, à extrema concisão e a
uma expressão totalmente livre de preconceitos literá-
rios. Extrai poesias de textos aparentemente apoéticos:
de fragmentos dos nossos primeiros cronistas, de enu-
merações de títulos de livros ou de paródias de poemas
"antológicos". Um poema de Oswald, tomado como
lema pelos poetas concretos:

amor
humor

Outro (fragmento de "Hip! Hip! Hoover!")r

América do Sul
América do Sol
América do Sal

Quanto às relações entre algumas letras das can-


ções do Grupo Baiano e a poesia concreta, parecem
também existir. Talvez, a que mais se aproxime de
um poema concreto, como estrutura, seja Batmacumba
de Gil e Caetano. Em vez da "macumba para turistas"
dos nacionalóides que Oswald condenava, parece que
os baianos resolveram criar uma "batmacumba para
futuristas"... Escrita, a letra assumiria a seguinte
configuração :
batmacumbaiêiê batmacumbaoba
batmacumbaiêiê batmacumbao
batmacumbaiêiê batmacumba
batmacumbaiêiê batmacum
batmacumbaiêiê batman
batmacumbaiêiê bat
batmacumbaiêiê ba
batmacumbaiêiê
batmacumbaiê
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaiê
batmacumbaiêiê
batmacumbaiêiê ba
batmacumbaiêiê bat
batmacumbaiêiê batman
batmacumbaiêiê batmacum
batmacumbaiêiê batmacumba
batmacumbaiêiê batmacumbao
batmacumbaiêiê batmacumbaoba

Por outro lado, Pignatari, o mais oswaldiano dos


concretos, tem um poema satírico, de 1955, a "Bufo-
neria Brasiliensis", que muito se afina com o espírito
ce paródia "tropicalista". E é claro que Geléia Geral
(música de Gilberto Gil, letra de Torquato Neto) con-
tém um aceno ao lema pignataríano: "Na geléia geral
brasileira alguém tem de exercer as funções de medula
e de osso".
Mas Caetano e Gil já vinham caminhando para
uma linguagem não-discursiva antes mesmo de estarem
informados sobre a poesia concreta, que só vieram a
conhecer depois de terem feito Alegria, Alegria e Do-
mingo no Parque, marcos iniciais de sua evolução. Cla-
ra, de Caetano, é também anterior a qualquer contato
do compositor-poeta com os concretos. Nesse texto
ele chega intuitivamente, em certos momentos, à sintaxe
espacial, sem conectivos, da poesia concreta:

a moça chamada clara


água
alma
lava
alva cambraia no sol
De qualquer modo, parece-me que, vindos de um
contexto provinciano para um contexto superurbano,
de uma poética linear, discursiva, para uma poética
nova, moderna, mais capaz de conviver com o "mosaico
informativo" das grandes cidades, como Rio e São
Paulo, os baianos teriam que esbarrar, cedo ou tarde,
com as pegadas do "abominável homem das neves",
a poesia concreta. É preciso não esquecer, porém,
quando se queiram buscar possíveis afinidades entre a
poesia concreta e a poesia da Tropicália, que as áreas
de ação em que ambas têm atuado são diferentes. A
poesia concreta procurou infiltrar-se no mundo da co-
municação de massa através de processos de grande
ênfase visual, ligados às técnicas de publicidade, das
manchetes de jornal às histórias em quadrinhos. Mas
a poesia de consumo, no contexto da canção popular,
foi uma experiência que ficou fora de suas cog'taçôes.
Por isso mesmo os métodos e estratégias estéticas ds
que se servem uma e outra poesia não são precisamente
os mesmos.
Ainda assim, há estreitos pontos de contato, em
particular no processo de montag?m e justaposição di-
reta e explosiva de sonoridades vocabulares. A com-
posição Tropicália de Caetano Veloso ilustra bem o
emprego desse método, desde a colagem de frases-feitas
e citações até às rimas, que funcionam isoladamente,
como células sonoras, expandidas pela repetição da
sílaba final ("viva a mata-ta-ta / viva a mulata-ta-ta").
Mais recentemente Os Mutantes vêm desenvolvendo um
estilo próprio na exploração intensiva de um processo
que também interessou muito aos poetas concretos: o
uso de aliterações e paronomásias:

A vida é o moinho
É o sonho, o caminho
É do Sancho o Quixote
Chupando chiclete.
O Sancho tem chance
E a chance é o chicote
É o vento é a morte
Mascando o Quixote
(D. Quixote, de Arnaldo B. Batista e Rita
Lee Jones)

A essas soluções eles têm chegado não por influên-


cia direta da poesia concreta, mas levados pelo impulso
do seu próprio comportamento criativo dentro da mú-
sica popular. E se hoje parece haver uma "tropica-
liança" com os concretos, o que existe não é fruto de
nenhum contrato ou convenção, mas simplesmente de
uma natural comunidade de interesses, pois eles estão
praticando no largo campo do consumo uma luta aná-
loga à que travam os concretos, na faixa mais restrito
dos produtores, em prol de uma arte brasileira de
invenção.
Em seus últimos discos editados (1969), Caetano,
Gil e Gal acrescentam novas propostas ao seu projeto
inicial. Assimilando a abertura interpretativa de Jimi
Hendrix e Janis Joplin, Gil e Gal romps m com a voca-
lização tradicional brasileira, descobrindo novas áreas
sonoras de aplicação para as cordas vocais: o grito, o
gemido, o murmúrio, glissandos e melismos inusitados:
o "ruído", antes desprezado, ou até então desconhecido,
passa a ter vez na voz. Àquela faixa de liberação vocal
a que, na música erudita, uma Cathy Berberian chegou,
através de muito estudo e virtuosismo, interpretando as
difíceis elucubrações seriais de Luciano Bério, cantoras
populares como Janis ou Gal chegam naturalmente,

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descontraindo uma voz atrás da voz, ou além da voz —
uma voz superliminar — sob a instigação das sonori-
dades da guitarra elétrica.
Questão de Ordem, de Gilberto Gil, foi a músi-
ca-manifesto dessa nova fase. "Por uma questão de
ordem / por uma questão de desordem", Gil exibe, ao
vivo, o processo de informação e entropia, construção
e destruição da linha melódica. Em A Voz do Vivo,
de Caetano, interpretada por Gil, arranjo de Rogério
Duprat, as explorações vocais de Gil o levam até o
sprechgesang, com o som recedendo até o silêncio e
retornando com a palavra "sol", fulcro do texto e da
canção, em torno da qual a voz tece sinuosas variações,
isomorficamente com a letra que diz: "quanto a mim
é isso e aquilo / eu estou muito tranqüilo / girando ao
redor do sol". A nova voz de Gal, por sua vez, viria a
calhar para uma reinterpretação do Pierrot Lunaire de
Schoenberg.
A metalinguagem de composição e interpretação
de Caetano atinge uma intensidade ainda maior em seu
disco mais recente (Philips 765.086). Não há limites
para a sua criatividade. Pode compor em inglês ou em
português, coisas simples ou eruditas: surpreende sem-
pre, inventando Os Argonautas, fado fernandopessoano,
ou "traduzindo" Carolina de Chico Buarque e o tango
Cambalache de Discépolo, com uma liberdade de que
só ele é capaz, num código novo, ao mesmo tempo crí-
tico e dramático.
Sem nunca perderem contato com a comunicação
de massa — Aquele Abraço, de Gil, Irene, de Caetano,
são de uma beleza singela e transparente, tão consumí-
vel como um copo de água — os baianos mantêm viva
uma inquietação permanente que dá passagem, sem
transição, ao terreno puramente experimental, como
no caso de Acrilírico, de Caetano, e Objeto Semi-Iden-
tijicado, de Gil, poemas falados, onde as paronomásias
e os jogos verbais assumem o primeiro plano, contra o
fundo de montagens livres de som e ruído, de Rogério
Duprat. Técnicas tméticas, de partição e reaglutinação
de palavras, são usadas por Gil nos textos de Alfômega
e Objeto Sim: "o analf(omega)betismo", "os identi-
fi(signifi)cados". A conjugação das duas linhas não
é impossível. Em Não Identificado, um iê-iê-iê quase
à Roberto Carlos, Caetano introjeta na letra, aparen-
temente despretensiosa, uma rima rara, que não desme-
receria o trovador Arnaut Daniel, "il miglior fabbro
dei parlar materno" (o maior artífice da língua mater-
na), inventor de rimas e ritmos novos na poesia pro-
vençal: "Eu vou fazer / um iê-iê-iê romântico / um
antico/mputador sentimental"; ao mesmo tempo que
injeta no romantismo da música o veneno crítico de
um trocadilho desmistificante*.
Em suma, Gil e Caetano reabilitaram um gênero
meio morto: a poesia cantada. Os dois compositores-
poetas têm uma sensibilidade aguda para a altura (pa-
râmetro musical que, segundo .Ezra Pound, é aquele
em que os poetas são menos precisos, em geral). Eles
atingiram um grande refinamento nessa modalidade de
melopéia, nessa arte rara, que Pound, evocando os tro-
vadores provençais, denomina de motz el som, isto é,
a arte de combinar palavra & som. São eles, hoje, indis-
cutivelmente, cantando simples ou menos simples, com
ou sem pretensão, a vanguarda viva da música popular
brasileira, talvez já não tão "popular", na acepção me-
ramente quantitativa do termo, mas — a partir deles
— cada vez mais inventiva,

(1969-1970)

(*) Adendo, 1973: Uma rima da mesma família seria criada mais
tarde por Caetano em Chuva, Suor e Cerveja: " . . . / a c h o / que a
chu-/va aju-/da a gente se ver". Em Irene, o espelho sonoro IR-IRE-
NE-RI, fonte de reverberações poético-musicais, mostra que, mesmo
nas coisas mais simples, a intuição criativa de Caetano está sempre alerta.

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