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BALANÇO DA BOSSA
e outras bossas
Direitos exclusivos da
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025
Telefone: 288-8388
01401 São Paulo Brasil
1974
2 . a edição, 1974
revista e a m p l i a d a
MÚSICA POPULAR DE VANGUARDA
amor
humor
América do Sul
América do Sol
América do Sal
A vida é o moinho
É o sonho, o caminho
É do Sancho o Quixote
Chupando chiclete.
O Sancho tem chance
E a chance é o chicote
É o vento é a morte
Mascando o Quixote
(D. Quixote, de Arnaldo B. Batista e Rita
Lee Jones)
/-V 290
descontraindo uma voz atrás da voz, ou além da voz —
uma voz superliminar — sob a instigação das sonori-
dades da guitarra elétrica.
Questão de Ordem, de Gilberto Gil, foi a músi-
ca-manifesto dessa nova fase. "Por uma questão de
ordem / por uma questão de desordem", Gil exibe, ao
vivo, o processo de informação e entropia, construção
e destruição da linha melódica. Em A Voz do Vivo,
de Caetano, interpretada por Gil, arranjo de Rogério
Duprat, as explorações vocais de Gil o levam até o
sprechgesang, com o som recedendo até o silêncio e
retornando com a palavra "sol", fulcro do texto e da
canção, em torno da qual a voz tece sinuosas variações,
isomorficamente com a letra que diz: "quanto a mim
é isso e aquilo / eu estou muito tranqüilo / girando ao
redor do sol". A nova voz de Gal, por sua vez, viria a
calhar para uma reinterpretação do Pierrot Lunaire de
Schoenberg.
A metalinguagem de composição e interpretação
de Caetano atinge uma intensidade ainda maior em seu
disco mais recente (Philips 765.086). Não há limites
para a sua criatividade. Pode compor em inglês ou em
português, coisas simples ou eruditas: surpreende sem-
pre, inventando Os Argonautas, fado fernandopessoano,
ou "traduzindo" Carolina de Chico Buarque e o tango
Cambalache de Discépolo, com uma liberdade de que
só ele é capaz, num código novo, ao mesmo tempo crí-
tico e dramático.
Sem nunca perderem contato com a comunicação
de massa — Aquele Abraço, de Gil, Irene, de Caetano,
são de uma beleza singela e transparente, tão consumí-
vel como um copo de água — os baianos mantêm viva
uma inquietação permanente que dá passagem, sem
transição, ao terreno puramente experimental, como
no caso de Acrilírico, de Caetano, e Objeto Semi-Iden-
tijicado, de Gil, poemas falados, onde as paronomásias
e os jogos verbais assumem o primeiro plano, contra o
fundo de montagens livres de som e ruído, de Rogério
Duprat. Técnicas tméticas, de partição e reaglutinação
de palavras, são usadas por Gil nos textos de Alfômega
e Objeto Sim: "o analf(omega)betismo", "os identi-
fi(signifi)cados". A conjugação das duas linhas não
é impossível. Em Não Identificado, um iê-iê-iê quase
à Roberto Carlos, Caetano introjeta na letra, aparen-
temente despretensiosa, uma rima rara, que não desme-
receria o trovador Arnaut Daniel, "il miglior fabbro
dei parlar materno" (o maior artífice da língua mater-
na), inventor de rimas e ritmos novos na poesia pro-
vençal: "Eu vou fazer / um iê-iê-iê romântico / um
antico/mputador sentimental"; ao mesmo tempo que
injeta no romantismo da música o veneno crítico de
um trocadilho desmistificante*.
Em suma, Gil e Caetano reabilitaram um gênero
meio morto: a poesia cantada. Os dois compositores-
poetas têm uma sensibilidade aguda para a altura (pa-
râmetro musical que, segundo .Ezra Pound, é aquele
em que os poetas são menos precisos, em geral). Eles
atingiram um grande refinamento nessa modalidade de
melopéia, nessa arte rara, que Pound, evocando os tro-
vadores provençais, denomina de motz el som, isto é,
a arte de combinar palavra & som. São eles, hoje, indis-
cutivelmente, cantando simples ou menos simples, com
ou sem pretensão, a vanguarda viva da música popular
brasileira, talvez já não tão "popular", na acepção me-
ramente quantitativa do termo, mas — a partir deles
— cada vez mais inventiva,
(1969-1970)
(*) Adendo, 1973: Uma rima da mesma família seria criada mais
tarde por Caetano em Chuva, Suor e Cerveja: " . . . / a c h o / que a
chu-/va aju-/da a gente se ver". Em Irene, o espelho sonoro IR-IRE-
NE-RI, fonte de reverberações poético-musicais, mostra que, mesmo
nas coisas mais simples, a intuição criativa de Caetano está sempre alerta.