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KWANZAA e NCWALA
PRIMEIROS FRUTOS
E NOVO ANO AFRIKANO
2014.VISÃO PANORÂMICA
DO ANO LITERÁRIO NACIONAL
ELOGIO DA CIVILIDADE
CARTILHA DA ÉTICA
HISTÓRIA PÁG. 21
BULAMBEMBA E YELALA
PATRIMÓNIOS ESQUECIDOS
A evolução
DIÁLOGO INTERCULTURAL PÁG. 23-24 DIÁLOGO INTERCULTURAL PÁG. 22
Que ventos incitaram a tua ronda Primo do milho-miúdo com raízes pouco fundas
Irmão da erva elefante
Qual o tamanho da tua vela de folhas Embora quase rico, a tua grande tribo
Que idioma quebrou o teu silêncio num solo roubado?
A tua ilha de egos desconhecidos
O teu tagarelar em pidgin; o arranhar da gramática
Da tua língua mãe quando a História gaguejou pelo O teu arquipélago de cascas flutuantes
Teu texto, com a boca cheia de vogais em falta Teatro à deriva de sonhos em fuga
O tom indolente e xaroposo das tuas ordens Cortadas pela catana em cortesia, as copas imperiais curvam-se
Em direcção à terra, sempre tão atentas à frágil distância
Ecos sem valor de vidas extraídas Entre as feridas gotejantes e a dor aberta
Dedos peganhentos à borda da água
Tu de voz áspera
E as mansões que instilaram na tua doçura
A alegria amarga das suas salas Onde puseste o céu
Bancos que acumularam as suas fortunas Onde deixaste o mar
NORMAS EDITORIAIS
KWANZAA e NCWALA
A ‘CELEBRAÇÃO DOS PRIMEIROS
FRUTOS’ E DE UM ‘NOVO ANO AFRIKANO’
Ana Koluki
Rio Kwanza
Kwanzaa, ou “Nesse Mar tem Rio” angolano, Rio Kwanza, mas, das fon- então militante do Movimento Negro amor e carinho, de colhermos os pro-
tes que nos foi até agora possível con- Americano, hoje Professor de Estu- dutos dos nossos esforços com alegria
É interessante observar-se as vá- sultar, tal inferência nao é explícita. dos Africanos nos EUA, Ron (Mau- e partilharmos o seu bem por toda a
rias manifestações culturais criadas Kwanzaa deriva da expressão kiS- lana) Karenga, que apresentou na comunidade e pelo mundo. Daí que, de
pelos Afro-Americanos para se man- wahili “matunda ya kwanza”, que sig- altura o seu objectivo como sendoo todas as formas ricas e caras em que
terem tão próximos quanto possível nifica “primeiros frutos”, ou de “proporcionar aos Negros uma al- podemos expressar o significado e a
das suas origens ancestrais. Na ver- “começo” – apelando ao acto da cria- ternativa às festividades natalícias mensagem do Kwanzaa, nenhuma é
dade, em várias áreas da sua vida, ção, tal como acontece no Natal Cris- existentes e dar-lhes uma oportuni- mais importante do que vê-lo e abraçá-
eles criaram mesmo uma espécie de tão. Porém, sendo o kiSwahili uma dade de se celebrarem a si próprios e lo como uma época de celebração do
‘micro-cultura’ de inspiração Afri- língua Bantu e Pan-Africana, torna-se à sua história, deixando assim de trazer o bem para o mundo.”
kana, embora nem sempre com uma de algum modo intuitivo que o nosso simplesmente imitar as práticas da Ou, de forma mais sucinta, como o
clara ou directa correspondência nas Kwanza possa ter nela o mesmo sig- sociedade dominante.” narrou a poeta Maya Angelou, fale-
práticas culturais observáveis no nificado e, sendo o único rio afrikano Anos mais tarde, perante uma cida em Maio deste ano, em ‘The
Continente – o que se deverá, por um com esse nome, somos facilmente le- crescente aderência de pessoas de Black Candle’ (A Vela Negra – a vela
lado, aos sincretismos culturais e re- vados a concebê-lo como o “começo” várias origens e crenças religiosas ao central da celebração do Kwanzaa):
ligiosos de vária ordem e diferentes de um longo percurso que, do Kwanzaa, Karenga viria a reformular “É um período em que nos reunimos
origens que os conformam e, por Oceano Atlântico em que desagua, os seus postulados iniciais em no espírito de família e comunidade
outro lado, às varias (per)mutações e fez com os navios negreiros a traves- ‘Kwanzaa: A Celebração da Família, para celebrarmos a vida, o amor, a
con(sub)jugações culturais verifica- sia para as Américas e lá fertilizou o da Comunidade e da Cultura Afri- unidade e a esperança.”
das em Áfrika ao longo dos séculos. chão do qual continuam a brotar kana’ (1997), afirmando: “O Kwan- Durante os sete dias do Kwanzaa,
É o caso do Kwanzaa (também todos os anos os “primeiros frutos” zaa não foi criado para proporcionar praticam-se vários rituais, envol-
grafado Kwaanza), que é actual- da “nossa colheita ancestral”… Ou, às pessoas uma alternativa às suas vendo libações, acender de velas,
mente celebrado por mais de 20 mi- inspirando-nos no título da canção próprias religiões ou festividades re- oferta de presentes e um banquete
lhões de pessoas um pouco por toda belamente interpretada pela brasi- ligiosas; o seu significado e mensa- precedido de jejum e abstinência.
a Diáspora Afrikana nesta esta altura leira Maria Bethânia, dito de outro gem central estão enraizados na Poder-se-ia então dizer que, nesse
do ano, durante sete dias – de 26 de modo: nesse Mar, que separa a Áfrika elevação e propulsão do modelo an- aspecto, não difere muito do Natal
Dezembro a 1 de Janeiro – coinci- da sua Diáspora, tem Rio e esse rio cestral Africano de produzir, colher e Cristão ou do Hanukkah. Mas, é o sig-
dindo com o período do Natal Cristão tem um nome e é nosso: Kwanza! partilhar o bem no mundo. O Kwan- nificado, em kiSwahili, de cada um
(e também do Judaico Hanukkah) e A criação da celebração do Kwan- zaa enfatiza a importância de plantar- dos sete dias do Kwanzaa, designa-
do Ano Novo. O seu nome poderia ter zaa, em meados da década de 60 do mos as sementes da bondade em todo dos ‘Nguzo Saba’, ou ‘Os 7 Princípios
sido inspirado no nosso, inteiramente século passado, ficou a dever-se ao o lado, de as cultivarmos com cuidado, da Herança Africana’, baseados no
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 ECO DE ANGOLA | 5
Rio Kwanza
Kwanzaa deriva da
expressão kiSwahili
"matunda ya kwan-
za", que significa
“primeiros frutos”,
ou “começo” – ape-
lando ao acto da
criação, tal como
acontece no Natal
Cristão.
‘Kawaida’ (expressão kiSwahili que pudermos, por forma a deixarmos a Os ‘Mazao’ são os frutos e vegetais ‘Kikombe Cha Umoja’ (Copo da
combina ‘tradição’ e ‘razão’), que Ka- nossa comunidade mais bela e bené- representando as colheitas. Os ‘za- União) sobre a terra ou sobre um re-
Os Símbolos e Cerimoniais
a unidade na familia, comunidade e não faça explicitamente referência descendentes.
consulta com o estudioso e divulga- niza a nossa luta aos níveis múltiplos Tendo visto o significado e os ri- Ncwala. Constitui alta traição a reali-
dor cultural Angolano Yako Tanga, de forma coerente: Cultura, Econo- tuais do Kwanzaa, é-nos possível es- zação do Ncwala por qualquer outra pes-
obtivemos dele as seguintes formula- mia, Espiritualidade, Indústria, Edu- tabelecer paralelos significativos soa. Todos os Swazis podem participar
ções: “Analisando o conteúdo de va- cação, Autonomização, entre este e o Ncwala, nomeada- nos actos públicos do Ncwala, especial-
lores do Kwanzaa, os Ngúzo Sába (7 Potenciamento de cada um como mente no que diz respeito ao período mente no seu clímax, o quarto dia do
Princípios), os símbolos da prosperi- Povo, etc.” do ano em que tem lugar, a sua dura- Grande Ncwala. As figuras centrais são
Nckwala Nckwala
Nckwala Nckwala
de 50 quilómetros até Egundvwini suramento, onde o Rei e regimentos dos certos objectos rituais, marcando
para cortar ramos de lusekwane (um guerreiros aparecem vestidos em in- o fim do ano velho, enquanto os par-
2014
Visão panorâmica
do ano literário nacional
Isaquiel Cori
O
ano de 2014, no domínio da de Caxinde, o livro “Lagoa Misteriosa”,
literatura angolana, caracteri- vencedora ex-aequo do Prémio Ca-
zou-se pela reconfirmação da xinde do Conto Infantil relativo ao
veia criadora de um leque de autores ano 2012. Segundo a autora, o conto
há muito consagrados, a confirmação foi idealizado a partir da visita que fez
de um punhado de jovens e a revela- ao jardim Majorelle, na cidade marro-
ção de outros tantos. Luanda deixou quina de Marraquexe. “Saí de lá tão
de ter o “monopólio” dos lançamentos encantada que tive vontade de escre-
de livros, com alguns autores, sobre- ver alguma coisa”, disse, acrescen-
tudo neófitos, a preferirem serem eles tando que enquanto escrevia não lhe
próprios a editar as suas obras e a saía da cabeça “uma história que ouvi
lançá-las, em primeira mão, nas suas em tempos sobre o mito que gira à
províncias de origem ou residência. volta de uma das nossas lagoas, em
Com os lançamentos literários a que é preciso ter permissão dos mais
ocorrerem nas várias cidades, um fe- velhos para mergulhar e passar por
nómeno propiciado, sobretudo, pela alguns rituais”.
multiplicação das universidades re- No dia 5 de Fevereiro foi lançado
Clássicos
gionais, tornou-se mais difícil acom- no jango da UEA o volume com as 12
panhar e avaliar globalmente a edições do boletim “Cultura” (se-
qualidade do que se publica. gunda série) da Sociedade Cultural de
Passamos a apresentar um resumo Angola. O trabalho, resultado de uma
do que foi publicado em 2014, uma pesquisa e selecção de Irene Guerra
visão que há-de pecar, certamente, Marques e Carlos Ferreira, foi apre-
por não ser exaustiva, tanto pela im- sentado pelos escritores e sobrevi-
possibilidade de podermos captar ventes da geração da Cultura,
toda a dinâmica do mercado livreiro Henrique Guerra e Arnaldo Santos. O
nacional como pela limitação de es- livro da dupla de pesquisadores con-
paço. Desde já pedimos desculpas tém igualmente a reprodução de um
pelas omissões. relatório exaustivo e analítico da
O escritor Manuel Rui entregou ao PIDE, datado de 17 de Setembro de
público leitor, no dia 15 de Janeiro, o 1965, sobre o que considerava activi-
romance, "A Trança", editado pela dades subversivas da Sociedade Cul-
Mayamba. Como o autor sinalizou, o tural de Angola e do seu jornal
novo livro representa uma mudança "Cultura".
de estilo e de abordagem da sua pró- Ainda em Fevereiro Hendrik Vaal
pria escrita. "Talvez 'A Trança' possa Neto deu de presente ao público os
ser encarada como uma mudança de romances “Gamal” e “Makala”. Se-
estilo, uma mudança de ideias. Mudar gundo Carmo Neto, que apresentou a
não é triste, nem é triste mudar de obra, Gamal é um intenso diálogo com
ideias. Triste é não ter ideias para a miséria, “socorrendo-se duma lin-
Patissa e Ningi
Pássaros”, obra literária que emerge uma boa e enriquecedora leitura”, não
do Kinaxixi mítico da sua infância necessitando de “mobilizar quaisquer
(que nem por sombras lembra o ac- competências específicas, típicas da
tual), em cuja floresta exuberante conhecimento do que é Angola. Por- cerca de centena e meia de poemas- crítica e análise literárias”, rematou.
chilreavam as rolas, os bicos de lacre, que é que o Huambo se chama letras para canções escritos ao longo Em Maio Albino Carlos deu a es-
os bigodes, os cardeais, os catetes, os Huambo. A história dos reinos da re- de trinta anos, sendo mais de metade tampa, com chancela da UEA, o livro
maracachões, os pardais, os pica-flo- gião do Centro de Angola”. Ainda se- criados ao longo da década de 1980. de estórias “Issunji”, que em Novem-
res, as pírulas, os rabos de junco, os gundo o historiador, tudo isso “são A obra tem um enfoque geracional, bro seria distinguido com o Prémio
siripipis e as viuvinhas negras. matérias que precisam de ser escritas sendo uma oferta do autor, sobre- Nacional de Cultura e Artes. José Luís
Está-se logo a ver, aquele Kinaxixi pelos mais velhos”, para que o seu co- tudo, mas não só, para aquela geração Mendonça escreveu no texto de apre-
era o paraíso das crianças, que nele se nhecimento não desapareça. de angolanos que, no contexto estrito sentação: “das treze estórias, nove
entretinham a caçar os pássaros com “Quem semeia com dor, colhe com da literatura, o crítico literário Luís são aquilo que eu chamaria de pai-
as suas fisgas certeiras, quando não se alegria”, resumiu assim o autor a sa- Kandjimbo cunhou como sendo Das néis carregados de tintas emocionais
ficavam simplesmente a admirar os tisfação por dar parto ao livro. Incertezas, e que Paulo Flores, num e emocionantes. Consistem em flas-
muitos prodígios da natureza. O A Mediateca de Benguela acolheu, a contexto mais geral, cantou como hes instantâneos em que a função
livro, que conta com ilustrações saí- 3 de Abril, a cerimónia de lançamento tendo sido feliz sem o saber. É a gera- poética da língua, em termos de fo-
das da pena e imaginação de Luan- do mais recente livro de poemas da ção convencionalmente referida como tossíntese, transmuta o quadro con-
dino Vieira, contém, segundo o autoria de Isabel Ferreira, intitulado a dos anos ‘80 e princípios dos ’90 e creto da vida social em imagens ou
sociólogo Paulo de Carvalho, que o “O Leito do Silêncio”, num acto co-or- cujos integrantes estão hoje na faixa frescos agitados pelo manancial de
apresentou ao público na União dos ganizado pela Rádio Benguela e o Mo- etária dos 40/50. um surrealismo mágico”.
Escritores Angolanos, “elementos vimento Lev’Arte. O docente e “Janelas de Orvalho” é o livro de A escrita de “Issunji”, prossegue JL
que podem contribuir para os pais historiador Tuca Manuel, que cuidou poemas de Graça Arrimar, apresen- Mendonça, “escorre como tinta de
aprimorarem a forma de educação da apresentação, sublinhou, segundo tado por Agnelo Carrasco, que a dado painéis expostos em série, dos quais o
dos seus filhos”. Por sua vez Arnaldo correspondência do nosso colabora- momento disse: “duma temática ini- pintor teria escolhido como tema um
Santos afirmou que “gostaria que o dor Gociante Patissa, que se estava cialmente muito pessoal, a autora país (Angola) e uma época (o conflito
livro fosse um bom pretexto para diante de uma autora “a retratar a sua transita para temas muitas vezes mais pós independência) e as suas bifurca-
(…) relacionamento e compreensão vivência e a de sua gente, mas sem ser universais. Poder-se-á dizer que a pri- ções ou emanações calamitosas. Para
das coisas do mundo”. com uma voz de soberba, portanto meira parte não se continua na se- sofrer a dor das armas, não é preciso
No dia 4 de Abril, o da consagração longe de alguém que se coloca no gunda. (…) Se na primeira parte os estar debaixo de fogo. Basta nascer
da Paz em Angola, Pichel de Lukoko, papel de subalternizar os demais em poemas constituem um conjunto ho- numa geografia conflituosa. Sofre-se
etnólogo, historiador e pesquisador função das suas habilidades”. Por sua mogéneo pelas afinidades de con- na mesma”. E sublinha: “O estado da
da tradição oral, apresentou ao pú- vez Mário Kajibanga, director provin- teúdo que apresentam (…) o mesmo alma de um país. Um autêntico livro
blico do Huambo o livro “Wambu Ka- cial da Cultura, a propósito do livro já me não parece tão linearmente pos- aberto que revela a história da des-
lunga em Elegia”, que, segundo José referiu: “por um lado, podemos ver o sível na segunda parte”. Agnelo Car- graça inscrita nos destroços e traços
Luís Mendonça, que lá esteve e escre- conselho de não levarmos a público rasco sublinha: “os poemas, de um da guerra”.
veu neste jornal, apresenta “o retrato coisas que acontecem na intimidade modo geral, não se continuam, cada José Luís Mendonça, no seu pri-
literário do rei cuja autoridade perdu- do lar. Por outro, podíamos dizer que um assume um conteúdo que não é meiro romance, “No Reino das Casua-
rou pelas embalas e sobados que hoje é a falta de partilha de coisas boas que repetição, nem continuidade”. rinas”, que veio a público em Junho,
integram a província do Huambo e à pode levar a violências. Porquê calar, “A vivência e a sobrevivência atra- “relata a história de sete angolanos ví-
qual legou o seu nome para a posteri- se podemos partilhar coisas boas?”. vés de uma infância, adolescência, se- timas da síndroma da amnésia auto
dade”. No dizer do historiador Ven- Carlos Ferreira, o Cassé, jornalista e guidas de uma juventude em tempos adquirida, provocada por traumas de-
ceslau Cassessa, “o livro do mais velho escritor, entregou ao mercado de possibilidades precárias; a desor- vido à sua experiência de guerra, no
Pio Chiwale tem muito mérito. Vem (18/04, na União dos Escritores An- dem espiritual, colectiva, traumas an- período compreendido entre 1961 e
colocar um pilar muito importante no golanos) o livro “Memórias de Nós”, tigos e do pós-guerra, bem como 1987”, explica uma nota editorial da
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Texto Editores. “Durante o interna- uma reflexão sobre a origem da es-
mento no Hospital Psiquiátrico de pécie humana, mais como evolução
Luanda, o grupo decide evadir-se para do que como criação”.
fundar um Estado na Floresta da Ilha O docente e investigador António
de Luanda, denominado ‘Reino das Quino autografou para os presentes
Casuarinas’”. na União dos Escritores Angolanos no
Por ocasião dos 90 anos do nasci- dia 18 de Outubro, o livro “Duas faces
mento do Dr. António Agostinho da esperança: Agostinho Neto e Antó-
Neto, poeta-maior e primeiro presi- nio Nobre num estudo comparado”,
dente de Angola, a Fundação Agosti- um ensaio prefaciado e apresentado
nho Neto pôs à disposição do público, pelo Professor Francisco Soares.
no dia 14 de Maio, em Luanda, na Com vista a uma “maior divulgação
sede da União dos Escritores Angola- e internacionalização da literatura an-
nos, o livro "A Noção de Ser" e o DVD golana”, a União dos Escritores Ango-
"Portugueses Falam de Agostinho lanos (UEA), em parceria com a
Neto". O livro, com mais de 800 pági- LEYA-Texto Editores, fez o lança-
nas, é uma colectânea de 65 textos mento na livraria Buchoolz em Lis-
analíticos sobre a poesia de Neto, as- boa, no dia 7 de Novembro, da
sinados por 62 autores, a maioria colectânea de 42 estórias, nas quais
professores universitários, escritores “sobrevivem analogias, relativismos e
e jornalistas de vários países e publi- paradigmas da literatura angolana”,
cados originariamente em livros, jor- no dizer do secretário-geral da casa
nais e revistas ao longo dos últimos dos escritores angolanos, Carmo Neto.
40 anos. O DVD reúne entrevistas, Com o título “Estórias Além do
produzidas pela FAAN, de políticos e Tempo”, a antologia inclui 17 escrito-
intelectuais portugueses, num teste- res: Arnaldo Santos, Dario de Melo,
munho audiovisual sobre a trajectó- Carmo Neto, Fragata de Morais, Hen-
ria e a dimensão política, cultural e rique Abranches, Henrique Guerra,
humana de Agostinho Neto. Isaquiel Cori, João Melo, João Tala,
"O livro procura mostrar o mais José Eduardo Agualusa, José Samuíla
amplamente possível os vários tipos Kakweji, Luís Fernando, Marta Santos,
de recebimento da obra de Agostinho Ondjaki, Pepetela, Roderick Nehone e
Neto. Será um marco na história da Sónia Gomes.
recepção e do estudo da obra de Fragata de Morais voltou à publica-
C
resci a ouvir que os antepas-
sados nunca se calam, nunca
morrem; apenas adormecem
na memória cultural de cada povo. A
nossa tradição cultural e literária, em
particular, há muito que tem sabido
conservar nas paredes do seu âmago
as marcas da sublimidade da nossa ci-
vilização pintadas por mãos que parti-
ram a taça do insensato para lograr à
posteridade um trago do cálice do que
do nosso solo já se fez de mais bonito.
Por isso, sempre que tomo um
pouco da porção da escrita, procuro
deixar cair umas gotas da minha ca-
neca, em homenagem àqueles que
morreram de seca, na mata do
Mayombe, na chana do Leste, onde
todos os dias chovia sangue, para que
hoje nos pudéssemos gabar do azul
das nossas veias. Pois, eu sei que
mesmo que cantemos as mais vivas
canções da nossa alma, não são nos-
sas as canções; são cantigas que nas-
cem do ventre da terra. Mesmo que Benguela -Ganda a Chicuma
levemos lanternas, nunca seremos a
luz… Tem luz aquele que de uma da tradição – a perpetuação do le- maioria prefere os púlpitos aos cam- que se faça uma moratória, para, em
faísca forja o farol da sua liberdade e gado, a fixação da memória cultural pos, já que o ministério está mais lu- fim, reflectirmos todos no futuro da li-
dos seus. do nosso povo, através da literatura. crativo do que nunca. teratura Angolana, considerando que
Então, concluo: “os antepassados A Literatura Angolana de gema Por outro lado, há, por aqui, certos as mãos dos jovens escritores de hoje
nada nos devem!” Souberam desem- sempre foi comprometida com os en- olhos programados para determina- foram corrompidas com a sensibili-
penhar o seu papel, escreveram o que cantos e desencantos dos seus dias, das pinturas, para os quais toda a ma- dade das urbanizações, tornando-se,
tinham de escrever, deixaram os seus uma literatura assente no imaginário nifestação artística que não se por consequência, incapazes de sus-
escritos como códigos de luta por do povo angolense, uma literatura enquadre na sua matriz estética não é tentar o ímpeto estético da Mensagem
uma Angola Literária fundada no ima- que muitas vezes saiu à rua sem digna de alguma apreciação, porque a das muitas gerações passadas, se-
ginário cultural do seu povo. capuz, consciente, portanto, de que a literatura é como sal, não presta, se gundo a leitura dos que sabem ler tex-
Ora, o reconhecimento do peso ir- morte na métrica ou num parágrafo não salga e, como é da praxis, a panela tos literários.
refutável da memória da tradição lite- qualquer não é morte, antes a ascen- da avó faz o melhor feijão. Ora, não sendo eu um crítico, nem
rária tão bem celebrada durante são a uma vida sem morte – a eterni- Então, se a literatura que se vai poeta, nem escritor, dou-me por feliz
décadas não me impede de, portanto, zação das marcas de hoje – sem produzindo um pouco por este vasto por me ter sido dada a oportunidade
aviltar a necessidade de, nos dias que dúvidas, um passo sublime rumo ao mar não salga é porque é incapaz de de levar à praça pública alguns dados
correm, começarmos a limpar a nossa átrio da Pasárgada. conter a corrupção das sereias cultas que julgo contribuírem para a infla-
casa dos fantasmas da história. Contudo, é importante reconhecer de hoje, ou porque os leitores é que ção do nosso mercado literário
Repare-se que os antepassados são que cada tempo dita a sua própria es- não se deixam salgar, parafraseando, (como se tivéssemos).
os nossos mestres. E a parábola do tética literária. Assim, se é verdade aqui, Pe. António Vieira? Convém Confesso que há muito que não leio
Sumo-Mestre sobre os dons é clara. Se que nem tudo o que hoje se diz literá- chamar os leitores a esta reflexão, versos, nem parágrafos que desafiam
considerarmos toda a memorável rio tem “littera” e “-ura”, é verdade pois muitos alegam que um dos os limites da condição dos seus cria-
produção literária já cultivada como também que há muito aperfeiçoa- principais desincentivos da escrita dores e se recusam a dizer sequer
as moedas que foram dadas ao man- mento subjectivo da alma do nosso actual é a falta de leitores (não con- uma palavra à pantomina. Mas, dou o
cebo, perceberemos efectivamente povo em linhas que, infelizmente, não cordo, mas deixemos este assunto benefício da dúvida, talvez a literatura
que a herança (cultural) nada servirá cabem nos tecidos finos da crítica lite- para outro tópico). ande por aí, mas, por eu não saber ler,
se a não investirmos nos canteiros da rária de conveniência da actualidade. Não pretendo, aqui, levantar uma ou por eu estar tao distante da urbe…
causa dos nossos dias. É preciso mul- Ouço pesadas críticas à Literatura querela entre os “Antigos” e os “Mo- Entretanto, para não me asseme-
tiplicar os dons, investi-los, deitá-los Angolana feita na actualidade, por dernos”, como nos séculos passados, lhar àqueles que só falam e falam
no nosso chão lavado com as nossas gente de hoje, sublinhe-se. Mas, pou- muito menos questionar o “bom como as enciclopédias o que perce-
salivas maldizentes, para se poder, cos são os pastores que vejo interes- senso” e o “bom gosto” de ninguém. O bem como o vento, sem, no entanto,
em fim, colher o fruto mais saboroso sados a apascentar as ovelhas; a que acho mesmo é que é oportuno proporem soluções, diria mesmo
12| LETRAS 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura
OMUTEKAME NI MULELE
lento mar da escrita implica. escreve-se mais, para se aparecer povo se reveja nela.
WE WA KUTEKA
Mário Pereira
1.- Kyoso kinzunzumbya kyan- kukala kuzonga okididi kiki wambata dya athu kusambuka mu kamukanda wama mu izuwa yoso! 7.- Mu kukum-
dondo ubikisa mwanya kulenga, di- athu kutangela, sekukala ni kuzakama kimoxi anga mu mulele woso woso bika okulula kwa musanu ubandesa
tadi dimoxi dya kudyelela uvwalela kwa kutambula owukumbulwilu, wa muteke, kima kima kyonzo bana mbimbi ya uxiximinu mu kisuku kya
dingi kwa muthu una wala ngo ni kuma okiteku kwebi mwanya ulonde- kuzediwa kya kusendula, mukonda kizongelu ni kizongo kilembwa kubita
upulungu kwila ukambelu wa menya kesa owunzungule wa luminiku lwe, ngo dya kukala muthu kumutalela, se- ku polo ya dikwinyi, muthu umoxi
umubeka anga, um kifwa kyenyeki pe, wezala mwenyu wavulu kwila, sek- kukala ni jipata ja kukala ku polo ya watuluka ufuluka mu kanu mu ku-
ondomba ilemba dituta dyaxikelela wandala, ulayesa mutumane woso mbutu ni jihatu je kumoxi, kwila mu kumbulula woso umutandahanyesa,
ixinda mu muxima wa athu ditadi di- woso uximana, mu kitangana kyoso mawukambelu ma okuswina kwa anga umwemwesa we hanji athu aka-
moxi dyatekiwa ni kudyelela mu kyoso kya kizuwa, kutumana mu mwenyu utalala. 5.- Ondonda ya mukwa ala, abutama, ku mbandu ya-
mbamba yeyimana kwila uwanena ndundu ku mbandu ya kalunga ka ngunga yazozo kwila ukatesa mwe- kamukwa ya kisuwamenu ni mahaha
O PINTOR
ma ukambelu wa kuswina!
E A SUA TELA
1.- Quando a sombra negra impõe
ao Sol a sua fuga, um quadro de espe-
rança renasce em quem não tem
senão penúria que a falta de água trás
e, aí sim, a penumbra que a nuvem
negra oferece desenha na alma um
quadro pintado de esperança na haste
quem pensa que o Sol finda! 3.- A una- ofertou. 6.- Causa de um mal que faz
gresso quando, afinal, quem fina é encanto que a natureza à nascença lhe pele o peso da mente incauta. 9.- A es-
perança, cujo verde afasta o castanho
nimidade na apreciação deste cenário doer o sentimento de um dia vir a ser seco da estação mais quente, vem de
leva a dizer, sem o risco de alguém feliz, o desamor caminha a passos lar- mansinho para que ninguém a veja
contradizer, que a pintura em que o gos à procura de quem tem guardado atravessar o deserto duma secura
Sol mostra a plenitude da sua luz é tão na alma a quietude divina que abraça vencida pelo cachoar de uma núvem
viva que, sem querer, aviva qualquer um são coração que expande, com um que o sol, progenitor da fonte de vida
conviva que estima, a qualquer hora vigor que a alma não dispensa, a be- que é a água, ousa, amiúde, encher os
do dia, estar presente à beira-mar de leza que a natureza, enfim, nem sem- seus limites do vapor que extrai, sob
Luanda, na ilha, ostentando um que- pre esconde! 7.- Enfrentando o os açoites do seu calor, da água
rer alcançado com um mufete na boca dissabor de uma notícia que faça ele- mansa dum lago que um baixio qual-
e farinha mergulhada na água de um var o tom do desagrado ao extremo quer acama, enlevo de quem se acha
prato, coisa que ilhéu inventou para de uma escala cujo valor não ultra- capaz de transpôr para a tela impa-
INTERACÇÕES
Tiraram qualquer gosto. Na tua energia engrandeci,
Ah! Sei que essas lágrimas a ti não abalam,
Perfume inexistente, Teu suor... foi por ele que venci,
Lacrimogéneo ineficaz, Contigo todos os medos vazam,
Geração, Desapercebe-se o cheiro,
da utopia, Entregaram o odor ao coveiro. Perdoa aquelas incompreensões,
de libertação Não existe adjectivo para o que és,
com nostalgia, Quando não mais: És a bandeira dos campeões,
vive tradição, Ver rostos, Arquitecta de mim da cabeça aos pés.
ontem fez. Tocar corpos,
Ouvir vozes, Tantas foram as tuas noites em branco,
Geração, Provar sabores, Que o meu sonho fortificou,
da tecnologia, Cheirar perfumes. Fiz da tua generosidade meu banco,
de emoção, Portanto rico é o que sou.
com cantoria, Ainda assim se sentirá:
vive revolução, Com o supra sentido, o tal amor. Não sei porquê te mereço,
amanhã fará. Se és a oferenda dos céus,
Só te posso dar o meu apreço,
Gerações, Querida mãe, soberana do meu coração.
cruzam de magia,
vivem contradições, Luanda, 2.04.2008
numa vã simpatia,
gladiam acções,
comungam contrastes, hoje fazem.
21/02/2013
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 LETRAS | 15
A
ntes de todo o resto, gostaria de ções, e a dos anos 80, onde se acha ainda são outros, tempos de paz. Amor não se esgota no prazer carnal...
saudar o amável convite que me que de forma retardada... Atenção: não se Voltando a ngonguita diogo, é desses “O homem é a arte”- dizia Buffon. A
foi endereçado pela autora, para queimam etapas em poesia, sem prejuízo tempos de pomba branca, de animada vi- mulher é a poetisa, por excelência, nos
apresentação deste livro. do meio envolvente! “O poeta não deve vida vivida de que a autora também nos cantos de ninar para fazer dormitar a
Três traves mestras vão presidir a olhar para as nuvens, deve buscar o sen- fala, de forma desapaixonada, no seu poe- criança choramingona. A ternura da mãe (
minha intervenção, designadamente o es- tido da sua poesia na realidade que o ro- mário, sugestivamente intitulado “Da e já agora do pai também) é um bom mo-
paço, o tempo e a articulação de ambas deia”- diz Amilcar Cabral. Na verdade, alma ao corpo”. tivo poético. Daí à sua evocação constante
categorias filosóficas com a temática. sentimento estético e realidade se consti- Rigorosamente falando, o sujeito do vai só um salto...de cobra!
O espaço poético: a mãe natureza, as tuem ao mesmo casal dialético. enunciado reporta-nos aquelas e outras N.Diogo aderiu primeiro à convoca-
exuburantes e luxuriantes paisagens bu- O poeta e artista plástico brasileiro, makas, outros dias e outras feiras, que en- ção por via da declamação, e agora por
cólicas, o verde capinzal da sua mocidade, Fábio Pinheiro de Lira, escreve a propó- tumecem os estomâgos de vaidades, bar- via da escrita poética, cujo primeiro re-
no seu privilegiado torrão natal no sito, no seu texto introdutório do livro, riga farta, enquanto não se atenta para as bento vai entrar seguramente no privile-
Kwanza Norte e cercanias, a vivência no inspirando-se no célebre poema “No coisas do espírito que a verdadeira poesia giado grupo de cultoras do referido
Uíge onde o pai trabalhara, o sol, as aves meio do caminho tinha uma pedra”, que potencia. N.Diogo responde a esse chama- género literário entre nós - guardadas as
a disputarem o seu quinhão lá no céu, a do seu famoso conterrâneo já falecido, o mento telúrico e criativo e fá-lo com devidas distâncias.
culinária baseada nas ervas e nos demais poeta mineiro nascido em Itabira, o mo- garbo retórico no tratamento da palavra Ela retrata de forma intimista os pro-
quitutes da terra, são a substância nutri- dernista Carlos Drumond de Andrade, poética, com recursos estilíticos multí- blemas do quotidiano, quer amorosos,
tiva, com que se alimenta o seu imaginá- que “Do mais âmago da alma, eclode a plos, nomeadamente, a incidência reitera- quer sociais, quer ainda culturais, como a
rio criativo e onírico; mundo de sonhos, poesia de N. Diogo, com a trajectória de tiva da carga anáfórica e da sugestão manipulação do alembamento com fins
fantasias e verdades, plasmados tinto de um incansável poeta em busca de novas metafórica, sem prejuízo da hiperbole lucrativos, estes e outros “problemas que
sangue, suor de sacrifícios incontidos, andanças sob o sol e pedra que não está provocativa aos mais cépticos da sua estamos com ele”. De resto, a linguagem
luto e lágrimas derramados no papel em seu caminho. Ela,a pedra, não lhe im- aventura, de correr o risco de arrisacar a literária não deve estar alheia à lingua-
preto no branco. pedirá de revelar sua escritura poética arte de “poetar”. Eficiência comunicativa gem coloquial dos seus heróis, como seu
Mas, as matrizes discursivas são tam- tão dura em razão, mas saciável a sede da e eficácia estética não lhe faltam, verseja (Pai)“Pãozinho”, e personagens pícaras
bém o amor, o erotismo, a paz, e a nossa emoção e da liberdade de pássaro que se com mestria, salvo um ou outro rasgo de carne e osso, da baixa e sobretudo dos
sofrida e bem querida Angola e a nossa trí- busca em si (...)A autencticidade de sua falho à beira do conseguimento estético musseques, fazendo apelo a um portu-
plice amada África: mãe uterina, conti- raíz, de sua cultura nobre.” no apuramento da palavra. guês- padrão, afora um ou outro emprés-
nente onde nascemos, e berço da Como é sobejamente sabido, Drumond Porém, ninguém ainda foi capaz de timo sócio-linguístico do kimbundu:
humanidade. influenciou poetas angolanos da geração produzir uma obra perfeita, por mais her- kitadi(dinheiro) e matadi(pedra).
Tempo: Ngonguita Diogo condensa o de 80 e subsequentes, ou mesmo prece- mética seja ou aberta que fosse, à boa Resumidamente, sem desprimor para
tempo no verso branco ou rimado. Cultiva dentes, marcando inclusive o título da moda experimentalista.Aliás, os mestres outros núcleos temáticos, o amor é pedra
com criatividade e sagacidade o soneto. Na primeira antologia de jovens poetas, pu- da teoria da literatura não seriam para de toque, dir-se-ia pedra angular da poe-
sua temática dá largas à saudade, nomea- blicada pela UEA, em 1989, intitulada “No aqui chanados, com exigente abstracção sia de N. Diogo.
damente a nostalgia da infância, a ansie- caminho doloroso das coisas”. da sua erudição. De maneira que nos seja E bem haja por ter respondido ao cha-
dade pela chegada do parceiro e pelo Portanto, recomenda-se a leitura des- permitido o juízo de valor, com toda a mamento e ao desafio da convocação da
futuro que se busca radioso, a angústia, a tes poetas da velha gurada e da nova ge- modéstia que o limite do nosso nervo crí- palavra sugerida, mais do que dita do
frustração; a tristeza “versus” alegria, ração, para enriquecermos a nossa tico permite: a maior parte dos poemas lugar comum da poesia panfletária que
anunciada no sorriso do luar, bem como a cultura literária!... que compõem este poemário que tendes serve uma “boa Causa, mas “não “faz um
(des)esperança, mais do que isso a certeza. É destas dores e desventuras de que entre mãos são bons, sendo um livro de bom poeta”, perdão uma boa poetisa-
De resto, a luz “versus” escuridão, a igno- N.Diogo não anda arredia, nem indife- estreia, no génro literário por banda da como diria Mário Quintana.
rância “versus” lucidez, são referentes con- rente. Vale receordar que em meados dos autora, em nada fica a dever quando mui- Em síntese, mais do que a “fala” do es-
trastivos de peso da poética em questão. anos 80, o falecido jurista e arguto en- tos mais velhos ainda eram neófitos. Fala- critor no diz - que - diz da coisa dita, rema-
ND encontra na poesia um expdiente saísta Eugénio Ferreira, insurgiu-se con- mos isso com todo peso que a taríamos nós, interessa muito mais a obra
de análise para o seu meio circundante. tra o facto dos poetas angolanos estarem responsabilidade acarreta e o sentido do ficcional ou ensaística, no caso poética,
A poeia para si serve para preencher, a escrever mais sobre o amor, perante belo, em que se escora a arte implica. que poderá ser muito mais interessante
ou melhor, para responder às suas in- uma dura realidade, cruel e dramática, O lirismo de “Alma ao corpo” evoca o que o autor. A poetisa que está por isso de
quietações existenciais; o meio para traduzida no facto do conflito militar ter amor perdido e achado nos desencontros parabéns pela obra que acaba de nos brin-
preencher o espaço do lúdico e não só. No atingido o pico - tema da guerra a que da vida. Este carácter instrumental da dar. Enfim, muito haverá ainda a falar
fundo, no fundo, “radicaliza” a sua posição Ngonguita, como se pode ver no poema poesia, do verbo como fonte de inspiração sobre este poemário que não se esgota
de observador social, fazendo apelo a um “filhos da pátria” e “Independência”, não e de novas imagens artísticas, visuais e-ou numa simbólica como singela nota de
instrumento de luta individual e colectiva, omite, muito menos negligencia. sonoras, é transdendental na obra poética apresentação, para cumprir, meramente,
traduzido na poesia: intimista , por um - altura em que os rebeldes assassina- de N.Diogo. Vejamos os poemas lírico- um formalismo da praxe literária. Amén!
lado, e de intervenção social, por outro. vam populares aqui próximo em Catete, amorosos que estão inseridos neste livro,
Na verdade, a autora assume uma pos- arredores de Luanda e cercanias. Foi a que são profundamente expressivos de
tura engajada que fez época, paredes partir desses tempos de que vos digo, que que o AMOR sempre vinga, em surdina ou Texto lido no lançamento do livro de
meias com um forte lirismo, nomeada- surgiu as “makas à quartafeira”, sendo ele não, mesmo quando tomado pela crise poemas de Ngonguita Diogo, na Media-
mente na geração da Mensagem dos anos o primeiro palestrante, dada a repercus- momentânea, seja quais forem as contra- teca central de Luanda, em cerimónia
50, onde pontifica a voz femenina da Alda são da sua afirmação no marasmo da cena riedades da vida,da sociedade e da natu- decorrida a 20 de Dezembro de 2014
Lara, salvaguaradas as devidas propor- literária local. Hoje por hoje os tempos reza humana. Ademais, sendo certo que o
16| ARTES 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura
TERRA TERRA
Um documentário
de Paola Zermar
LUÍSA FRESTA
V
árias tradições da Ilha de Cabo Verde incendeia-se por
Sal são servidas sob um dentro e oferece generosamente
sol inclemente e descon- essa fogueira de emoções a quem
certante neste documentário aporta a estas paragens. (Conti-
denso e colorido de 38min. Paola nuamos a assistir com desassos-
Zermar, realizadora italiana, é sego e inquietação à erupção
uma professora de arte radicada vulcânica de Chã das Caldeiras,
em Cabo Verde há mais de uma na ilha do Fogo, que desalojou já
década, que convence aqui pelo milhares de habitantes – mas tes-
conteúdo e pelo modo de mostrar. temunhamos também a resiliên-
Rodou este documentário local- cia e a solidariedade deste povo
mente, quase sem meios técnicos que renasce das suas próprias
e «orçamento zero», com a coor- entranhas).
denação jornalística de Albertina São gentes que integram, inclu-
Rodrigues e a colaboração de ami- sivas, que fazem suas as outras
gos e conhecidos, para além da culturas; um povo que faz a sim-
sua própria determinação. Não é a biose entre o local e o longínquo e
primeira vez que a receita fun- contamina todos os que irrom-
ciona, nem é a primeira vez que o pem neste espaço.
método me impressiona. Nesta curta-metragem percebe-
Mas passemos aos factos: para mos a relação dos ilhéus com a
quem não conhece Cabo Verde, natureza, os vários ritmos que por
vale a pena tentar perceber que aqui coabitam: a coladeira, a ca-
ELOGIO DA CIVILIDADE(*)
Cartilha da ética Carlos dos Santos
Não posso deixar de agradecer a pais, irmãos, cônjuges, filhos, vizi- fora ao enfermeiro para este lhe fa- tem, em plena igreja, um tipo ao meu
todos os que se interessam pela Éti- nhos, colegas e amigos? Claro que cultar acesso ao médico; portanto, a lado acendeu o cigarro e pôs-se a fu-
ca. É quase um acto heróico, senão têm. Mas, então... serão todas essas culpa de ele vender notas, não é dele, mar no meio da missa. Fiquei tão in-
mesmo louco, da sua parte, nos tem- pessoas, extraterrestres? Não, não é do enfermeiro; enfermeiro este que dignado que quase entornei a minha
pos que correm. Este interesse pela são. São pessoas bem conhecidas. Sa- diz que precisa desses trocos para cerveja…”.
Ética pode até ser considerado imo- bem quem elas são? Somos nós, aqui poder pagar ao polícia para o deixar Todos nos queixamos, mas… e
ral, no nosso Moçambique de hoje. É, nesta sala, nós lá fora nas ruas, nós passar sem os faróis que lhe rouba- quem é que age?
pelo menos, anormal.
A RESPONSABILIDADE ÉTICA
nos prédios e nas repartições, nas es- ram; portanto a culpa de ele cobrar
É que... abra-se um jornal, ou uma colas e nos hospitais, nos cafés e nas consultas, não é dele, é do polícia; po-
revista de ocasião; ligue-se uma salas de reuniões. Somos todos nós, lícia este que diz que sem essa renda
qualquer estação de rádio ou um ca- que passamos a vida a apontar os de- paralela nunca haveria de conseguir A responsabilidade ética e a moral
nal de televisão; seja notícia, debate dos uns aos outros. pagar o fardamento escolar do seu fi- da sociedade não são pertença da po-
ou reunião: desleixo, roubalheira, Com isso, não andaremos nós, afi- lho nem comprar notas ao professor, lícia, nem das instituições de justiça,
corrupção. Para onde quer que nos nal, e aí sim, com toda a razão, a quei- para o filho passar de classe; portan- nem dos outros agentes do Estado de
viremos, daremos de caras, olhos e xarmo-nos mas é de nós mesmos? Afi- to, a culpa de ele vender multas, não é quem nos queixamos ininterrupta-
Q
uantos meses se passaram de qualquer trabalho, seja de que
sem vos escrever! Faltou- área for. Brett Bailey, enquanto ho-
me a tinta da minha esfero- mem Branco, foi incapaz de se colo-
gráfica. No entanto, o vosso postal car no lugar de um Negro. O encena-
made in Paris foi escrito à sombra da dor garante a sua boa-fé mas os seus
Torre Eiffel. No programa: cor, ape- detractores, militantes negros, têm
nas cor. outra visão, outra sensibilidade, que
A alcatifa espessa, pesada e macia mais não é do que a pura experiência
da galeria Piasa oferece um quadro da condição negra e do seu cortejo de
cuidado e sereno que nos permite en- discriminação e micro-agressões.
tusiasmarmo-nos com o belo. As O seu espectáculo foi representado
obras e as esculturas dos mestres diante dos camiões da CRS. Uma elite
africanos sucedem-se. As paredes de polícias fortemente armados fazia
brancas favorecem a explosão das co- frente aos manifestantes. Isso é uma
res. Gostaríamos de fazer nossa tão afronta, uma falta de gosto, para o en-
bela morada. Lamentavelmente, só cenador que queria denunciar as
podemos absorver o luxo à nossa vol- ofensas feitas aos Negros, aos Africa-
ta de maneira vertiginosa. A arte é al- nos, reproduzindo numa instalação
tamente espiritual e intelectual. O ho- os mesmos quadros…que alimentam
mem é antes de mais um ser criativo. os mesmos clichés. Um dilúvio de
Embora África represente apenas um imagens choque, uma estética próxi-
grão de areia no mundo das transa- ma da poverty porn associada ao
ções e no mercado de arte, os grandes minstrel show contemporâneo. Se
actores deste meio, as grandes lei- Brett Bailey queria obter um passa-
loeiras, começam a interessar-se de porte de boa consciência, um diplo-
perto pelo assunto. Piasa abre a esta- ma de arrependimento, os Negros
ção com uma venda histórica. Nesta te uma perita reconhecida no mundo exposições em Paris. mais susceptíveis de Paris deitaram
première, os artistas do mundo afri- inteiro pela sua especialização em ar- Há algo de repugnante na nossa por terra o seu projecto. A peça foi
cano francófono estão representa- te africana e da Oceânia. época. As maiores jóias do espírito adiada. Em França é de bom-tom cul-
dos. O fond de vente é o do grande co- Anteriormente trabalhou no Mu- angolano encontram-se no Ocidente tivar o espírito rebelde. Após este
leccionador André Magnin. Na sala a seu Nacional de Arte Africana e na Ins- enquanto os museus africanos pos- episódio, ninguém poderá perguntar
rebentar pelas costuras, a atenção a tituição Smithsonian. Jean Fritz é não suem muito poucas obras de arte para que serve a arte. O artista é um
cada bater do martelo é rigorosa. Os só uma especialista muito respeitada provenientes da Europa e algumas sentinela de sentidos, a sua arte um
«Vendidos!» ecoam. A decepção sur- como também uma figura central no migalhas dos seus tesouros nacio- catalisador do espaço social.
ge quando uma tela de Chéri Samba é mercado de arte africana e da Oceânia. nais. Temos que folhear belos livros
vendida por apenas 35 000 euros. E Esteve directamente envolvida para nos ligarmos a uma parte essen-
saúda-se a subida alucinante do pre- nos mais importantes leilões, os que cial da nossa psique.
ço do quadro do jovem pintor Victor atingiram preços quase astronómi- Paralelamente a estas diversas
Arthur Diop. Num leilão, uma parte do cos, de records, nomeadamente o da vendas, o espectáculo Exhibit B pro-
espectáculo está na sala. Desde os as- estátua Kongo Nkonde, originária da voca paixões. Um sul-africano de pele
sistentes da leiloeira ao telefone e ao RDC. Para os criadores africanos des- branca instala em Paris o seu espec-
computador até ao público, entre o te tipo de arte que inspirou artistas táculo anti-racismo e desencadeia a
qual se encontram algumas figuras como Picasso, o seu valor não é pecu- ira dos militantes anti-racismo. É
conhecidas do meio da arte contem- niário, reside no seu carácter sagra- uma história que não se percebe. O
porânea africana, a ocasião é dema- do. A função real desses objectos tão encenador garante a sua boa-fé mas
siado importante para ser perdida. A valorizados é a de estabelecer uma li- os seus detractores têm outra visão,
arte africana contemporânea não sus- gação com os espíritos. Mme. Fritz outra sensibilidade. Ser progressista
cita tantas paixões como as estátuas e aborda a arte, o seu significado e o é inovar, ignorar as receitas obsole-
outros objectos do continente negro. mercado que desenvolveu, assim co- tas. A arte não pode ser uma verdade
Na Casa Sotheby’s, Jean Fritts tra- mo o seu lugar na arte contemporâ- universal e intangível. O meio, a épo-
balha desde 1992, sendo actualmen- nea. Refere-se aos grandes leilões e ca e até o lugar influenciam a leitura
20 | GRAFITOS NA ALMA 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura
Fronteiras
Rossana Oliveira
E
spalham-se nuvens densas e Desde sempre ouvira o zumbido no futuro e o presente era o meio de
espessas que invadem os con- dos insectos onde quer que estives- lá chegar.
tornos da cidade. se. Lembrava-se docemente do sitio A tempestade cede e deixa-se cair
A brisa meiga e quente de final de de pertença desse zumbido, do ar como lençol que cobre a cidade.
tarde faz-se passado e em seu lugar o nocturno preenchido até o último Dava por si num sítio húmido e obs-
céu enrola uma massa cinza e escura átomo por esse burburinho. En- curo.
que devora a fronteira do azul límpido quanto as plantas forjavam fotossín- O que estava prestes a acontecer,
e se apodera dele por completo. tese os insectos produziam anteci- estava ainda turvo, por definir. Só sa-
Fechou os olhos por um instante, pação pelo zumbido. Antecipação bia que tinha por ela própria entrado
em resposta a invasão feroz de per- que se entranhava em cada ser. Re- naquele lugar que parecia um arma-
guntas que lhe arremessavam. Com as cordava essa consciência constante zém, uma arrecadação e trocado a luz
mãos emaranhadas em desassossego de co-habitarmos o mesmo espaço do dia pela sombra perversa.
tentou mais uma vez deslocar-se até com outros seres. Dessa vivência Buscava outra vez por algo que não
ao local onde tudo se passara. sem muros, grades, paredes, cercas tinha, que obsessiva e desesperada-
Desembrulhava as imagens há tão que nos separassem. mente sentia que precisava e nessa
pouco criadas, cada meticuloso deta- Nas noites em que o zumbido su- expectativa seguia o sorriso que a
lhe desdobrado como origami em cumbia de repente, o silêncio pacifica- chamava e que pensava conhecer,
busca de uma explicação. Alguma ma- mente constrangedor e solitário inva- imaginando que quisesse o seu bem, a
neira teria de haver para resgatar a dia o ar como se houvesse uma pausa quisesse por inteiro.
normalidade, o concreto, o absoluto, o de nada. Os sapatos altos procuravam incer-
chão certo da sua monótona e ocupa- Lembrava-se dos cigarros ou ci- tos por um sítio para pisar que não es-
da rotina. garrilhas, que queimavam lentamen- tivesse inundado. O corpo balançava
Tudo esvoaçava na sua mente. te à noite e do fumo que ondulava e se em busca de um equilíbrio que certa-
O cheiro erosivo e penetrante dos misturava com os seus cabelos forte- mente a tinha evadido. A prudência
travões do carro misturavam-se com mente encaracolados. E de quando a gritava-lhe alarmada o perigo emi-
o dia nostálgico e impregnavam-se na antecipação era feroz de dia e os ci- nente, que mais que a humidade, a cir-
roupa que vestia. garros quase não lhe davam tempo cundava. Mas ela fingia não ver, não
Só conseguia estar dentro do turbi- de os acender e se extinguiam nos saber, não sentir.
lhão, da tempestade, nada mais lhe vi- seus dedos. Optava sempre em confiar cega-
sitava a memória. Embora quisesse, a Olhava agora à sua volta, ao amon- mente o que se traduzia em ingenui-
todo custo, permanecer no momento toado de futilidades que se acumula- dade a mais e em limites excedidos.
que a antecipava; agarrar-se a essa vam em seu redor – chão estranha- Ela ainda não estava nesse ponto de
lembrança da normalidade como bús- mente simétrico, estantes e móveis viragem. Até então continuavam os
sola à espera que voltasse a apontar o incomodamente preenchidos. Cada sorrisos, a conversa leve embora
norte e corrigisse esta nova realidade. vez mais “coisas” o circundavam, o li- num sítio medonho mas não tardava
A neblina obedecia à sua própria mitavam, o mantinham reduzido. o que temia.
dança. Viajava lentamente pelo ar, Guardava como névoa a vida que ti- Existia um vazio acompanhado de
criando um reboliço sombrio e de nha sido entre paredes. Sabia apenas uma culpa nela. Um vazio que embora
inquietação. que tinha vivido no meio de aglome- não parecesse era o seu deus, a sua ra-
Numa outra vida, outro homem rados de papeis com ideias, aponta- zão de existência, e residia numa
sentia o desprezo pela futilidade da mentos desordenados, nas margens qualquer desajustada ideia de afecto.
mera existência fermentar em si como nomes de pessoas e lugares, docu- Uma culpa que nascera no momento
gangrena. Estava preso, refém de um mentos e livros. O melhor eram as em que se definiu como ser com certo
século que não lhe pertencia, de práti- conversas, as discussões acesas que encanto capaz de seduzir.
cas e normas que para seu grande des- vezes sem conta reacendiam a chama Do outro lado, do olhar seduzido,
consolo se tornariam regras social- da sua crença e mais uma vez sentia existia o rasgo de oportunidade de
mente aceitáveis. Convénios dilatados os punhos fecharam-se e erguerem- afirmação. O homem que alimenta o
de insignificância, iguais aos outros se. Acreditara na mudança que não ego faminto.
que os antecediam, igualmente nulos. se via mas que se sentia projectar-se
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 HISTÓRIA| 21
BULAMBEMBA e YELALA
PATRIMÓNIOS ESQUECIDOS
(CESBC – Centro de estudos estratégicos da bacia do Congo)
YELALA
Durante a sua segunda viagem
(1485-1486), em Outubro ou Novem-
bro de 1485, perto das quedas de Yela-
la, a montante de Matadi, Diogo Cão
deixa uma inscrição gravada numa pe-
dra, testemunho da sua passagem e da
dos seus homens.
Esta inscrição situaria assim o pri-
meiro contacto da expedição com o rio
BULAMBEMBA
Congo a 23 de Abril de 1482.
HISTÓRIA
na lista do património nacional em da ilha de Goreia. memória a fim de devolvê-los à cons-
1975 (Decreto N°012771 de 17 de No- ciência universal. Padrão Saint Augustin
vembro de 1975) e na do património Para contactá-lo através do seu site,
www.serge-diantantu.com
da humanidade em 1978.” siga a ligação Internet seguinte:
Como Goreia, Bulambemba "traz- Bulambemba e Yelala, são teste-
nos um testemunho excepcional so- munho de mais de cinco séculos de
bre uma das maiores tragédias da his-
tória das sociedades humanas: o tráfi-
co negreiro." Mas Bulambemba não PADRÃO DE SAINT AUGUSTIN
beneficiou de qualquer atenção. A ilha Esta estela foi levantada por Diogo Cão em 1482 no cabo Santa Maria, também chamado Cabo do Padrão (português) ou Cap Padron
é vítima da sua situação numa região (francês) em Angola, frente a Banana (Congo). É um monolito que ostenta um brasão de Portugal, com uma cruz situada mais acima pa-
caracterizada por conflitos armados ra lembrar a sua passagem. Isto é, é uma «pedra de posse»). Vandalizado pelos holandeses em 1642, o Padrão de Saint Augustin foi en-
(Angola Congo) e outras perturbações contrado por um viajante sueco em 1886. Reabilitado, está conservado no Museu da Sociedade de Geografia de Lisboa (Portugal). O Mu-
políticas quase ininterruptas (Congo) sée Royal de l'Afrique Centrale (Museu Real da África Central) de Tervuren (Bélgica) tem em sua posse uma cópia.
22 |DIÁLOGO INTERCULTURAL 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura
E
scavações arqueológicas efectua- ter sido obra da Irmandade dos Ho- portuguesa em África nos sécs. XV e no era assinalável. Todavia, a crise eco-
das em Novembro de 2014 por mens Pretos, fazendo-se, com isso, XVI e começarem a precisar com nómica fez abdicar desses intentos, o
uma equipa técnica da britânica tábua-rasa de que a Irmandade foi maior rigor a história da antiga cidade mesmo acontecendo dos desejos de
Universidade de Cambridge, liderada por muito posterior à construção dessa de Ribeira Grande. Uma das interro- preservar os vestígios do antigo Paço
Chistopher Evans (a pedido do Presidente Igreja, como o atesta documentação gações a que será necessário dar res- Episcopal que criminoso e imperdoável
de Câmara Municipal da Ribeira Grande de eclesiástica colectada em Portugal. posta é a questão de se apurar se foi a vandalismo de um ambicioso, sem es-
Santiago, Manuel de Pina) puseram a des- Túmulos, restos de azulejos e de capela do Espírito Santo (cujos res- crúpulos de qualquer espécie, lançou
coberto, em Cidade Velha, os restos da mais faianças, além de objectos diversos, fo- tos foram postos a descoberto) que ao mar para construir uma discoteca
antiga igreja católica da África subsaariana ram achados nestas escavações que antecedeu a construção da Igreja de clandestina: há actos que nem uma pe-
– a igreja de Nossa Senhora da Conceição, serão continuadas no próximo ano, Nossa Senhora da Conceição ou se sada pena de cadeia consegue reparar.
nascida da antiga capela do Espírito Santo. provavelmente junto dos baluartes fi- esta capela é apenas uma dependên- A antiga Ribeira Grande (actual Ci-
Data dos fins do séc. XVI e foi construída pe- lipinos da linha de defesa da Fortaleza cia do que teria sido o primeiro tem- dade Velha, Património da Humani-
los portugueses na que é hoje o único Patri- Real de São Filipe. Iniciadas em 2006, plo subsaariano. dade e Capital Cabo-verdiana da Cul-
mónio Mundial reconhecido pela UNESCO já permitiram localizar os restos do al- Devido ao árduo trabalho de inves- tura 2015 - onde se cruzaram os mais
em Cabo Verde. moxarifado de Ribeira Grande (do séc. tigadores, é a antiquíssima cidade que prestigiados navegadores e conquis-
Eram conhecidos os vestígios des- XVII), que foi arrasado por uma devas- ressurge dos escombros e da qual já tadores da gesta dos sécs. XVI e XVII
ta relíquia, supondo-se que debaixo tadora investida de Francis Drake, e o estão a descoberto alguns monumen- (como Vasco da Gama, Cristóvão Co-
de terra se escondiam preciosidades. antigo cais deste importante entrepos- tos, designadamente a Igreja de Nossa lombo, Américo Vespúcio, Sebastian
Os canhenhos históricos faziam-lhe to de escravos. Ambos situados actual- Senhora do Rosário (séc. XVI), o Pe- de El Cano, Francis Drake) – reganha
referência mas geralmente era apon- mente em artérias com muito trânsito, lourinho (séc. XVII), o Convento de S. renascido esplendor, graças ao empe-
tada a Igreja de Nossa Senhora do Ro- só agora é possível criar condições pa- Francisco, os restos da Igreja da Mise- nho de uns quantos.
sário do Homens Pretos como mais ra o desviar, permitindo que sejam co- ricórdia (ambos também do séc. XVII,
antigo templo católico existente nes- locados em visibilidade pública. tal como a Fortaleza Real de São Fili-
ta parte do continente africano, co- Com este espólio agora trazido à luz pe) e a Sé Catedral (do séc. XVIII).
berto de mitos que a rudeza dos do- do dia, surgem condições para os estu- Existiram projectos do arquitecto Si-
Cultura | 5 a 18 de de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 23
mas épicos, utilizando a sua arte como forma de lembrar a história oral, as
tuou como um cancro na cena poética nigeriana, deixando para trás os Nze On-
histórias, a genealogia e a Lei. Ele, Sua Real Majestade Nze Ihebuzoaju Paul
wumeres deste mundo. A poesia destes homens educados ocidentalmente foi
maioria das pessoas, incluindo o autor destas linhas, tinham pouca com-
Capitalismo estava na altura em voga, estes escreveram poemas desenhados
A poesia é um género literário que desafia a tentativa de uma definição precisa. Borboleta
Muitos poetas e estudiosos deixam a sua musa determinar o que é a poesia, mas o
comum dos mortais poderia utilizar esta definição frequentemente encontrada Velocidade é violência
na Internet: “A poesia é a consciência imaginativa da experiência, expressada Poder é violência
através de significado, som e escolhas de linguagem rítmica, por forma a evocar Peso é violência
uma resposta emocional. A poesia tem sido associada ao emprego de métrica e ri-
ma, mas estas não são, de todo, necessárias. A poesia é uma forma ancestral que A borboleta procura segurança na leveza
tem passado por inúmeras e drásticas reinvenções ao longo do tempo.” Na imponderabilidade e ondulação do vôo
Devido ao facto de os Africanos não terem registado sob a forma escrita even-
tos que ocorreram durante a Antiguidade, o desenvolvimento da poesia é credi- Mas numa encruzilhada onde a luz mosqueada
tado ao grupo linguístico Indo-Europeu que incluí o Irlandês, Gaélico Escocês, Cai das árvores numa nova estrada rude
Galês e Bretão, bem como os seus subgrupos Britónico e Goidélico. Os nossos territórios convergentes encontram-se
Não obstante os registos históricos, os Africanos ancestrais sabiam o que era
poesia e deram-lhe bom uso. Da Índia Antiga veio o Vedas (que era anterior a Eu chego com poder suficiente para dois
2000 a.C.), 1 mas é frequentemente defendido que o poema mais antigo de que E a gentil borboleta oferece-se
há registo é O Épico de Gilgamesh, composto um pouco mais tarde, algures en- Num sacrifício amarelo e brilhante
tre 1300-1000 a.C., na Suméria (actual Iraque/Mesopotâmia). Os épicos gregos Contra o meu duro escudo de silício.
como A Ilíada e Odisseia, os épicos indianos em sânscrito Ramayana e Mahab-
harata e o tibetano Épico do Rei Gesar também preenchem a lista das bem co-
nhecidas narrativas antigas. Onde está a representação africana nesta História?
Assume-se que a poesia africana fosse inexistente porque não havia registos es-
critos, mas a tradição oral africana na era contemporânea de Homero prospera-
va. Poemas africanos de tempos imemoráveis foram transmitidos aos povos atra-
vés da tradição oral e ainda sobrevivem em casebres, aldeias e cidades africanas
de hoje em dia.
A África tem tido incontáveis pensadores que procuram determinar o que faz
da poesia uma forma de arte distinta e o que distingue a boa da má poesia. Estas
práticas resultaram no desenvolvimento do estudo da estética da poesia, tam-
bém chamado de Poética, um campo disciplinar necessário para diferenciar um
poeta oral de um músico. Os africanos fizeram isso mesmo, tal como os Chineses
antigos (no Shi Jing ou Cinco Clássicos), desenvolvendo um cânone de poesia
que tanto era ritualístico como dotado de importância estética.
- Chinua Achebe
Sem analisar aprofundadamente os pormenores da Poética, um dos princí-
pios deste estudo determina que a poesia tem que ter regras. Por exemplo, a
Poética de Aristóteles descreve os três géneros de poesia como épico, cómico e
trágico. Posteriormente, formas de poesia como o poema épico ou lírico foram Enquanto na Poética há géneros e regras que norteiam a poesia, o fim do co-
identificadas. lonialismo na Nigéria conduziu a novas formas e estilos de poesia, a maior parte
No estudo da evolução da poesia em África e em outros lugares, a Nigéria não dos quais sem um estilo definido. Os poetas nigerianos na era do colonialismo
pode ser negligenciada. Nos tempos modernos, existem quatro gerações de seguiram a cultura de escrever poesia que aprenderam directamente dos colo-
poetas nigerianos: Pré-Colonial, Colonial, Pós-Colonial e Contemporânea. Ao nialistas brancos; os poetas pós-coloniais alteraram estes estilos e temas. Após
longo destas gerações a poesia evoluiu enormemente, e para melhor. a independência, poetas como Niyi Osundare, Onwuchekwa Jemie e outros es-
As populações multi-étnicas da região (como os Hausa/Fulani, Yoruba, Igbo, creveram de forma muito poderosa nesta forma de arte reformada.
Ijaw, Efik, Ibibio, Bini, Nupe e Igala, entre outros) tinham os seus modos tradi- Em 1986, o Prémio Nobel da Literatura foi entregue ao poeta-dramaturgo
cionais de apreciar poesia, muito antes da chegada dos colonialistas brancos. pós-colonial Wole Soyinka, consolidando o papel da Nigéria no plano da litera-
Nze Onwumere, o meu avô, por exemplo, era Igbo, um povo que tanto antes co- tura global. Moldados pelo colonialismo, os poetas da segunda geração, como
mo depois do colonialismo recitava poemas orais com vozes noturnas, particu- os auto-intitulados Marxistas Odia Ofeimun e Niyi Osundare, são os líderes da
larmente em funerais. luta pela melhoria da poesia nigeriana e pela eliminação da sua mentalidade co-
Tal como os desenvolvimentos na escrita e literacia transformaram a poesia lonial. Harry Garuba, Afam Akeh e Sesan Ajayi, um professor universitário, um
por todo o mundo, os poetas na Nigéria, incluindo Nnamdi Azikiwe, Christop- poeta confessional e um jornalista, respectivamente, estão entre os líderes do
her Okigbo, Dennis Osadebe (de memória abençoada) Gabriel Okara, Wole grupo da terceira geração (pós-colonial) de poetas.
24 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura
Pobreza
As Vozes Nigerianas do Amanhã
Existirá algo como a pobreza?
Actualmente, a proliferação da poesia na Nigéria é catalisada pelo incre- Existe POBREZA quando se tem saúde
mento da consciência social e da pressão emocional causadas pelas questões mas não riqueza?
e crises sociais, políticas e económicas. Existe POBREZA quando se é rico
Poetas nigerianos contemporâneos (a quarta geração) como Remi Raji, mas não se tem saúde?
Uche Peter Umez, Obi Nwakanma, Ogaga Ifowodo, Chidi Anthony Opara, Maik Existe POBREZA quando se é rico iletrado
Nwosu, eu próprio e tantos outros, estão a produzir poemas quase numa base e pobre de cultura?
diária, quer sob a forma de livro, quer publicados na Internet. Poetas de todo Existe POBREZA quando se tem muitos filhos
o mundo invejam e aprendem o poder e a fama de que os poetas nigerianos mas não há dinheiro para cuidar deles?
gozam na cena literária do país. Existe POBREZA quando se é rico
mas sem filhos?
Nadia
O que chamam POBREZA pode ser RIQUEZA
para outro homem.
Não há por aí mulheres financeiramente
Marraqueche: os cabelos grisalhos do ricas mas estéreis
Atlas, listrados pela luz dos anos, que anseiam por filhos?
como a verdade escoltada por um guarda-costas. Não há por aí
gente financeiramente musculada
Não é guerra: a queda rápida que não tem paz?
não é guerra, Nadia. Não há por aí gente
portadora de deficiência
Dois pingentes, cada um de corações, e mas que tem trabalho manual?
o anel prateado atrelado ao tempo; O que para uns é POBREZA
pode ser RIQUEZA para outros.
Não é guerra: mas a caricatura da distância, O sucesso de alguém é
E este momento, um seio pleno cintilando determinado pelo seu sucesso
na superfície da lua, as ruas anoitecidas a nível financeiro?
e encapuzado, como o fora-da-lei, Na vida, não se pode ter tudo
o estranho ou o viajante: por mais alta que seja a nossa posição.
Por isso, não existe RICO ou POBRE.
Como o vaso de onde o leite escorre O que há são pessoas glutonas-insaciáveis
cheirado de tão perto, desvanece-se, ou, assim lhes podemos chamar, cleptomaníacas.
como o geco que abandona a sua cauda.
- Obi Nwakanma
- Odimegwu Onwumere
Apesar da falta de publicações impressas disponíveis para poetas e autores, _____________________
esta nova geração de poetas prospera, especialmente através de muitos concur- 1 Existe um debate considerável quanto à data da composição do poema
sos locais de poesia como o Prémio de Poesia ANA/NDDC Gabriel Okara, o Pré- The Vedas. Neste âmbito, cito: Jagadish Chandra Chatterji. The Wisdom of the
mio de Poesia Cadbury, o Prémio de Poesia Muson, e o Prémio rotativo NLNG/ Vedas (Quest Books, 2006): 3.
Odimegwu Onwumere é membro dos Poets for Human Rights (Poetas pe-
Nigeriano de Literatura. Com a excepção do Prémio Nigeriano de Literatura, que ______________________________
tem uma bolsa de $50.000, poucos oferecem recompensas financeiras.
Mas tal como um crítico mencionou acerca do panorama poético nigeriano los Direitos Humanos) e poeta residente da Champions for Nigeria (Cam-
de hoje, existe um conjunto díspar de talento e mediocridade, rima, retórica e peões pela Nigéria), Reino Unido. Odimegwu é um leitor voraz, um escritor
racionalidade. Mesmo assim, acredito que não haja escassez de intelectuais profissional e prolífico, investigador, jornalista, poeta, pensador, crítico so-
entre os poetas nigerianos. Os poetas nigerianos são grandes escritores, vi- cial, analista político e activista. Tem dois livros publicados: Piquant: Love
sionários e reformistas sociais que procuram continuamente levar a sua vi- Poems To Prince Tonye Princewill (2008) e The Many Wrong Doings of Ma-
são a bom porto (o mesmo não pode ser dito da nossa liderança política). Con- dam Do-Good (2009) e tem muitos manuscritos ainda por publicar, que
tra o pano de fundo de algo que pode ser descrito como temível, os poetas ni- aguardam uma editora.
gerianos representam a oposição às maleitas da sociedade.
Hoje, os poetas e autores nigerianos estão comprometidos com a causa do
humanismo e justiça social. Porque sempre retribuíram à sociedade, os nige-
rianos devem lutar para manter o seu legado vivo.
Obi Nwakanma
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trei muitos com desejos de enganar trangeiro, etc. Todos estes bons costu-
outros, mas não encontrei ninguém mes estão directa ou indirectamente
que quisesse ser enganado». narrados pelo autor no seu livro “O cu-
Também a expressão “pouca vergo- randeiro do Monte Piorro”.
nha” perdeu o seu valor psicológico e A propósito, o curandeiro Filipe,
moral, e portanto deixou de ser um va- quando não conseguia curar uma
lor positivo na boa educação e preven- doença, recorria ao “djunta mon”. As-
ção de actos e omissões condenáveis. sim podia pedir a ajuda do curandeiro
A propósito do papel da Igreja na edu- Mané Preto, que também sabia invo-
cação, o autor descreve como o curan- car espíritos para curar ou amaldiçoar
deiro do Monte Piorro conseguiu ma- as pessoas.
tricular-se na escola primária de um Recomendo pois a leitura do
padre que, nos Mosteiros, além de de- livro a todos os cabo-verdianos, prin-
sempenhar o seu papel de sacerdote, cipalmente aos do Fogo e da Brava,
foi também professor e “enfermeiro” visto que é a eles que o livro faz mais
que curava doentes, quer usando re- referências. Recomendo a todos que
médios que importava, quer orando a conheçam o nosso passado e se preo-
São Cipriano. Aprendeu também com cupem com o futuro da cultura e iden-
esse padre a ter compaixão do povo e, tidade cabo-verdianas. Recomendo-o
por isso, como curandeiro não cobra- igualmente aos africanos de língua
va os doentes que lhe pediam ajuda. oficial portuguesa, já que o autor, Dr.
Outros bons costumes que devem Samuel Gonçalves, é um bom narra-
ser lembrados e ensinados aos nossos dor, conhecedor do crioulo do Fogo e
jovens são, para além da nossa mora- dos nossos costumes e domina bem a
beza, também a amizade entre os pais, língua portuguesa.
filhos, netos e os outros parentes, até à Com a sua forte imaginação criadora
terceira e quarta geração (o que pare- e capacidade pedagógico-didáctica, faz
ce possuir algo de Bíblico em si). O com que, ao iniciarmos a leitura, nos
nosso costume de “djunta mon”, o cos- possamos sentir motivados para não a Samuel Gonçalves
tume de “dar pratos” aos vizinhos, fa- interrompermos até chegarmos ao des-
miliares e amigos, quando se “matava” fecho dos muitos e significativos episó- convidado a confirmar ou não este meu * Professor de Teologia, Saúde Mental e
um porco; a ajuda mútua dos compa- dios, relevantes para a compreensão do ponto de vista. “Dixi”! Ética dos Cuidados de Saúde em Oslo (Norue-
ga)
criação. Como criação, vários limitam- de ser. Enquanto os poetas, sem abs-
se a ceder às vontades do corpo, tor- tracção nenhuma, vivem!, sem antes
nam-se escravos de qualquer obe- nem depois, simplesmente vivem e os
diência vinda deles mesmos. Nascem outros os vivem, os celebram, na me-
e somente vivem porque sabem que dida que com eles conversam, brigam,
irão morrer; esses tem na morte o seu seja lá o que for. Se preguntasse a
maior terror, por esse terror levam a qualquer um: o que realmente impor-
vida de forma drástica. Por esse res- ta? Teria várias respostas, mas, quan-
peito, submetem-se e prematuramen- to a mim, só o viver me importa e os
te, sem na vida algo se tornarem, reali- poetas o fazem eternamente.
zam-se, extinguindo-se na morte. Que Quis dizer à minha namorada que
fique claro, todos os que se vão, sem Eduardo White, assim como Mayakovs-
algo criado, se foram prematuramen- ki, Hemingway e outros todos poetas
te, por mais anos que tenham vivido. vivem, vivem-nos e a poesia vive deles.
Os poetas não temem a morte, têm Não tenho dúvidas e nem preten-
consciência dela, e deles enquanto se- sões supersticiosas em afirmar que o
res criadores. Os poetas criam várias poeta Eduardo White está nesta hora
mortes ao longo da caminhada e vivem- no país por ele mesmo criado, sentado
nas, quando a morte do indivíduo apa- para a janela do Oriente, quando lhe
Eduardo White rece, eles não morrem, o individuo ne- apetece beber uma cerveja no Pulmão
les é quem se vai, eles ficam a vaguear ou nas barracas do Museu, ao despe-
U
m dia, a minha namorada nha resposta parecia ter tido um efeito num mundo criado por eles mesmo. dir-se do seu amor, dizendo: até já co-
questionou-me: “o que é que dominó, ela não teve hipóteses de uma Um dia li que Mayakovski se suici- ração. Pode mesmo estar agastado
achas do antes e depois do outra questão, fui cogitando a respeito dou, que Hemingway fez mesmo, atre- com as mortes dos Homoines que
Eduardo White?” Lembro-me que não do silêncio dela. Pensei como deveria vo-me a contradizer todos que assim existem pelo mudo que ele consegue
levei segundos a responder-lhe: “Para dizer-lhe em outras palavras, que fos- pensam. Esses poetas tiraram o que ver a partir da sua janela.
os poetas não existe o antes e muito sem mais simples, o que dissera; che- de comum tinham: o indivíduo! O poeta que escreve e vive na mes-
menos o depois, para os poetas só guei à conclusão de que aquela foi a úni- Não quero concordar com aquela fi- ma intensidade que ama a vida e as
existe poesia” – disse eu! ca forma simples de definir um poeta. losofia que postula que o corpo é ape- coisas da vida, dirá sempre que o sol
Carregou o semblante, arregalou as Ora vejamos. O individuo, enquanto nas a jaula da alma, se assim fosse, os raiar: bom dia, Dia. Para que seja o Dia
sobrancelhas e aguçou a voz, mas não individuo, só é isso e nada mais, um indivíduos, todos eles, libertar-se-iam em si bom para todos os que o vivem.
disse absolutamente nada. Pois, a mi- simples humano, isto é, uma simples com a morte, o que provavelmente po-
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C
onheci o Paradona quando es- da sua virgindade. O cenário do livro
creveu “A gestação do luar”, decorre entre Inhangoma, Gorongoza,
nesses memoráveis tempos como também em Kumalolo, zona si-
em que se tentava criar a geografia li- tuada abaixo e a nascente de Sena,
terária moçambicana, e cada um de mesmo junto de Zambeze, próximo de
nós se sustentava nas ferramentas da Caia, santuário dos maiores feiticeiros
IRKAFRIKA 2 apresenta uma duzir de 18 a 25 notas. O executante toca-a frika I, teve a honra de ser o espectáculo ção; a sua erudição excepcional deixa
imagem de África em total rup- de pé, com resistentes correias de suporte, oficial das celebrações do primeiro Dia transparecer um espírito de uma rara fine-
tura com os clichés. O grande ou sentado. Toca-se com varetas revestidas Mundial da Cultura Africana (JMCA). De- za e uma paixão sincera.
público vai partir ao encontro de uma Áfri- de borracha. Da música à dança vai apenas pois de Paris, esta tournée passará pelo To- A cenografia homenageia os criadores
ca autêntica, viva e muitíssimo poderosa. um passo. Sendo um forte símbolo da histó- go a 23 de Janeiro de 2015. através de peças de vestuário emblemáti-
Tudo estará reunido para fazer desco- ria dos povos africanos e verdadeiro factor cas como um conjunto de vestido e capa de
brir ao espectador o ambiente de terras de identidade, a dança, frequentemente Fashion Mix. Moda de cá, criadores Cristobal Balenciaga e as últimas criações
longínquas, onde tudo é emoção, generosi- acrobática, está presente em todo o conti- de lá. De 9 de Dezembro de 2014 a 31 de de alta-costura da casa Alaïa.
dade, alegria de viver e encantamento. No nente. Ela une os homens de uma mesma Maio de 2015, o Museu da Imigração E esta história de moda e de imigração
programa: acrobacias, malabarismos, nú- região, tribo ou linhagem. O Zaouli, a Pan- propõe uma exposição concebida e rea- funde-se na perfeição num casaco Céline
meros aéreos, entreactos cómicos, sapatea- sula e a Tap Dance contam cada uma a sua lizada com o Palácio Galliera, museu por Phoebe Philo (Outono-Inverno
do, ballet, música gospel. história. O Zaouli é uma dança espectacu- da Moda da cidade de Paris. 2013/14). Este retoma a carta gráfica da te-
É um espectáculo ligeiro, criativo e físi- lar pela rapidez de execução. Esta dança de la em plástico dos grandes sacos vendidos
co, o que nos propõe a trupe de Cirkafrika. máscaras homenageia a beleza da mulher A moda não conhece fronteiras, abarca em Barbés. Gerações de imigrantes do Nor-
Esta superprodução musical confere clara- da Côte d’Ivoire. De acordo com as crenças todos os horizontes. Os talentos do mundo te de África e da África negra populariza-
mente uma imensa notoriedade ao circo locais, ela aumenta a produtividade da al- inteiro deslocam-se a Paris para se aperfei- ram esses sacos de regresso “à terra”, cujo
africano. O conteúdo é rico, festivo e colori- deia que a pratica e reforça os laços fami- çoarem acalentando a esperança de se tor- famoso estampado aos quadrados “Barbés”
do. Os quadros humanos são verdadeiras liares e clânicos no seio da comunidade. No narem mais do que um nome, uma marca, se tornou no Santo Graal da fashionista ce-
proezas atléticas e cénicas. Podemos ver aí sul do continente, a Pantsula é mais do que cujo alcance tenha a dimensão de um pas- liniana mundializada. O símbolo é de tal
uma nova forma de circo, incarnado, onde o uma dança: é um movimento de protesto. saporte universal. Para um criador do fim modo forte que encontramos esses sacos
tema da identidade exprime uma parte Com origem nos anos 1960-1970, sob o re- do mundo, um provinciano, conquistar a ci- numa sala contígua à exposição. De repen-
real da sua africanidade passando em re- gime do apartheid, nas townships, foi nes- dade-luz traz consigo uma consagração te pensamos em Lamine Kouyaté, funda-
vista o gospel e o sapateado da tap dance ao ses guetos marcados pelo desemprego e pe- pouco usual que começa nos murmúrios dor da marca Xuly Bët, e nas suas icónicas
ritmo das marimbas da África ocidental. la criminalidade que nasceu a cultura discretos de lábios pintados, se alastra, co- afectadas talhadas na preciosa tela quadri-
Aqui nada se faz pela metade, uma vez que Pantsula, uma perfeita alquimia entre mo- mo um rasto de pólvora, para o branco opa- culada. É com alguma tristeza que consta-
há cinco marimbas a partilharem o palco. da, música, dança, códigos gestuais e lin- co das batas, até ao frenesim das semanas tamos que não existe ainda qualquer liga-
Os artistas são todos muito hábeis e gene- guagem. Tal como o Hip Hop, a Pantsula da moda, para terminar no vestuário sofis- ção entre a capital da Moda e o continente
rosos. Um novo grupo de 48 artistas guia o encontra o seu terreno de expressão. O sa- ticado. Vestir o mundo inteiro é a ambição africano. No entanto, o contributo do conti-
espectador num universo onde se vão suce- pateado lembra a dança dos gumboots, de todos os designers que chegam a Paris, nente é inegável, mas, até hoje, ainda ne-
der números estonteantes, mas também dança de percussão dos mineiros sul-afri- Meca da moda criativa. Um destino assim nhum criador africano a residir na sua ter-
danças e cantos diversificados conduzidos canos durante o apartheid. é também aceitar ser apenas um elo na ra natal impôs o seu nome no calendário ofi-
pela orquestra ao vivo e pela companhia de transmissão de um saber fazer único. Rei- cial da semana de moda parisiense.
dançarinos do Circo Phénix. A música é o «O circo é para mim a forma artística nar com garra sobre uma indústria. Arbi- Sakina M'sa, Oswald Boateng, Lami-
segundo personagem deste espectáculo ideal, a que reúne todas as possibilidades. trar as elegâncias e dinamizar tradições ne Kouyaté, Imane Ayissi, estamos à vos-
muito exótico. A orquestração é audaciosa. Estimula a minha imaginação, leva-me a seculares. Passar o testemunho. A magni- sa espera.
As marimbas a isso obrigam. Este instru- questionar os seus códigos sem no entanto ficência da alta-costura e do pronto-a-ves-
mento originário da África ocidental é com- atraiçoar a exigência de uma técnica acro- tir de luxo que se renova em cada estação Fashion Mix, moda de cá, criadores
posto por uma estrutura leve de madeira bática poderosa» lembra Alain Pacherie, o alimenta-se do fascínio que exerce sobre os de lá. Museu da Imigração, Palais de la
ligada por correias de couro, sobre a qual fundador do circo Phénix. génios criativos, por vezes sacrificiais, em Porte Dorée.
estão alinhadas lâminas de madeira dura A trupe do Phénix que concebeu este es- detrimento da própria saúde, à qual provo- Avenida Daumesnil, 293, 75012 Paris.
por ordem crescente de tamanho e altura. pectáculo voa de sucesso em sucesso e per- cam enormes danos.
Uma marimba é geralmente capaz de pro- corre o mundo. A versão precedente, Cirka- Olivier Saillard é o curador da exposi-
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D
e 19 de Novembro de 2014 Haiti continua a inventar a sua tradi- rados demasiado «contemporâneos»,
a 15 de Fevereiro de 2015, ção plástica. Entre folclore haitiano ple- Chéf yo/Chefes reflecte, enfim, sobre
o Grand Palais acolhe a ex- namente reivindicado em numerosas a construção política e intelectual hai-
posição Haiti, dois séculos de cria- obras e arte contemporânea assumida tiana. Estes capítulos estão em desta-
ção artística. com Jean-Michel Basquiat, génio artís- que na exposição através de três
deve ser algo somente para im- garrafa de vinho, uma arma de
“É com esses dizeres que co-
social.
losofias baseadas nas ideologias
afrocentristas. No segundo poema
intitulado Visão e voz do povo afri-
Andira explicou, numa entre- cano, Dom Andira exalta a inteli-
vista exclusiva ao semanário De- gência africana, isto é, demonstra
bate, a mensagem expressa em que os africanos foram colonizados
cada poema da sua obra, com vista e humilhados no passado, o que ja-
a facilitar a compreensão dos ensi- mais irá voltar a acontecer porque
namentos patentes na mesma. o africano está actualmente atento
De acordo com o autor, as ex- a qualquer invasão. “Esta África faz
pressões actualmente usadas em entender ao Ocidente que não exis-
diversas ocasiões da vida sócio-po- tem animais ou selvagens neste Don Andira
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015
MILANDO1
BARRA DO KWANZA| 31
Era Domingo, um dia morto em sua que só podiam sobreviver dois ami- ver, o outro levou a sua filha benja- da polícia comunitária.
utilidade: enquanto uns dormem a gos, suponho eu. mim como penhoro, e a usou durante No dia do julgamento, apurou-se
ressaca do fim-de-semana, outros a Nas falas do mesmo: “Como me dis- dois anos como empregada domésti- que, por ali, as trocas de chapas que
igrejas e cemitérios fazem-se. Nessa se meu querido avô, que Deus o tenha, ca. Isso meu avô sempre me contava à serviam de lápides eram frequentes,
última nenhuma-coisa esteve o Esso- a inimizade começou quando estes, volta da fogueira e nós, os da nova ge- e quem fazia as tais trocas, desse do-
ma a fazer visitas à suposta morada um dia desses, foram à pesca e Bathua ração, só vivemos as brigas das filhas, cumento de identificação final, que
da sua mãe. atraíu ao seu anzol um Mucadje. Um a Dona Masua, mãe do Essoma, e Do- vem pendurado nas sepulturas, era o
Depois de construída em pedra e peixe tão grande, tão grande e preto, na Dlanda, mãe do Todinho e dos seus guarda do cemitério. Que, por vezes,
cimento, a sepultura da dona Masua, que engoliu a isca toda” - sentenciou- netos, amigos meus, que eram o moti- trocava por ajuste de conta as famí-
como vinha escrito na lápide, aparen- me o popular. vo principal da briga das mães”. lias que não lhe davam gorjeta, ou por
tava tantos apetrechos, de tal forma Mucadje é uma espécie de peixe Quando Essoma chegou a casa do excesso de álcool durante as horas la-
que parecia algo feito no estrangeiro. que muito cresce e vive em águas do- inimigo da sua geração, o Todinho, es- borais, ou por mera zombaria, ou en-
Essoma, ainda dentro do gozo do luto ces, o qual, dada a dimensão, um só te encontrava-se ainda a dormir, tudo tão só para trazer briga na zona.
anual, digno de homenagear a memó- homem não conseguiria tirá-lo para a por conta da ressaca do fim-de-sema- “Há vezes que este rouba e vende
ria da sua mãe, ouviu rumores naque- margem, como é óbvio. na. Era esse o culto que os jovens as famílias enlutadas”, isto confir-
la funesta manhã de domingo, alegan- “Nesse mesmo momento, o Membo, cumpriam aos domingos. mou o último freguês dessa etiqueta,
do que aquela não era a morada real vendo o seu amigo em tamanha afli- Todinho era forte e baixo, uma es- presente no Milando, e único que ga-
da sua ante querida, mãe. ção, foi ajudá-lo. Nesse dia, frisou o tatura que lhe dava o privilégio de, rantiu aos populares que ficou muito
Neto do Membo, sentiu um tremor meu avô que o velho Membo não havia pelo menos, pessoas com a estatura tempo de papo ao ar com o guarda,
nos pés e a carapinha a correr-lhe o apanhado nada, além do mesmo nada. do Essoma o temerem. Mas porém, até aperceber-se disso, porque este
orifício, seu corpo, como se voltasse Chegados a casa, Membo, na expec- este foi direito aos aposentos do seu não se encontrava enlutado, mas sim
dum banho à moda do rio, sem toalha, tativa de ver o seu esforço recompen- inimigo. Pontapeando panelas, gali- comprara e guardara para que lhe
todo ensopado. Mal ouviu essa con- sado, o outro nem sequer, parte algu- nhas, copos, bacias, tudo o que ali en- pudesse ser útil em qualquer ocasião,
versa fiada, dirigiu-se logo ao único ma que fosse, do graúdo peixe parti- controu, e enquanto esmurrava a porque, por aquelas bandas, a morte
lugar onde poderia ter origem a tal lhou com o seu companheiro. A partir porta, o Todinho saiu, corpo nu, cal- era o que não faltava, e sentenciou
desavença. deste dia, o peixe pescou o que estava ção curtíssimo de caqui, mal que que no mesmo dia que adquirira a
Já imaginava quem lhe podia pres- de tão escondido dos dois: a inimiza- abriu a porta, a surpresa amorteceu- metade de chapa, virá o guarda com
tar contas. Enquanto ia a dez passos de. Esta começara de forma brusca.” se no seu rosto, um murro directo aos várias farfalhadas da mesma inutili-
por segundo, na casa dos Bathua, ter O popular fala com tanta veemên- seus maxilares, este não precisou se dade, só que não identificará de
com o neto, o inimigo da sua geração, cia que parecia encarna-se a alma do certificar do que estava a acontecer, quem seriam porque este já havia
imaginava as últimas palavras do seu tal do seu avô. ao ver o Essoma na sua casa, respon- apagado as letras. A multidão ficou
avô, “Ninguém, mas ninguém desta “No dia seguinte, Membo encarre- deu na mesma intensidade, e ali fica- perplexa, tão perplexa que não se re-
família, deve misturar-se com essa gou-se de cobrar tudo o que outro lhe ram. A vizinhança fez-se plateia, este solveu o problema.
desgraça aí ao lado”. devia, e este não tendo como devol- filme só parou, aquando da chegada
Esta sentença, proferida pelo velho
Membo no seu último suspiro, sempre
desfilava na mente deste, quando pro-
blemas com esses faziam-se sentir.
Lá foi Essoma, a tal desgraça à des-
graça ao lado, à qual se referiu seu avô
naquela fatídica manhã de Dezembro.
Esta localizava-se bem ao lado es-
querdo do quintal da casa que herda-
ra dos avós. A casa dos Bathua ficava
mesmo ali. Eram, como o bom portu-
guês nos ensinou: vizinhos.
O Madala Membo e o Bathua, já fa-
lecidos, eram bons amigos até ao dia
em que estes foram à pesca e, por iro-
nia do ofício, o Membo não apanhou
quase nada, mas auxiliou o seu com-
panheiro a trazer à superfície um pei-
xe que quase o pescava a ele mesmo, o
Bathua.
Segundo testemunho de um popu-
lar, aquilo foi-lhe confiado pelo seu, já
também falecido, avô. Os dois amigos
sempre andaram juntos, que até para
construírem as suas casas naquele lu-
garejo foi uma rebeldia e tanto, aque-
la que só cabe aos jovens embucha-
dos de colectividade”, disse este.
O isolamento era de tal maneira Quadro de Malangatana
32 | NAVEGAÇÕES 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura
DE VOLTA A ANGOLA
NAS PALAVRAS QUE ELA ME ENSINOU A ESCREVER
Sérgio O. Sá
O
tempo passou. Dois anos e nativas para trabalharem fora delas, lado, não faziam mais do que eles. motivos de que me lembrar para so-
pouco de comissão forçada- inclusive nas zonas de guerrilha, su- E lembrei-me de ter visto gente bre eles meditar. E supus ainda que se
mente cumprida. Erachegada jeitando-se a ser por ela considera- branca a comerciar latas de produtos em Angola ficasse poderia não resistir
a hora de regressar à metrópole. E na das inimigas. de conserva, vazias e recuperadas pa- à tentação, à necessidade e ao dever
manhãzinha de 14 de Janeiro de 1968, E lembrei-me dessas Gentes que se ra o efeito, como se de faiança se tra- de me manifestar contra tal estado de
o Vera Cruz, que dois anos antes me ti- sentiam desintegradas, onde o único tasse, para Gente negra utilizar como coisas, e acabar por sofrer as presumí-
nha levado até Angola, levantou ferro, meio de comunicação com as tropas e loiça de cozinha. veis consequências.
feito favela flutuante, deixando o por- fazendeiros eraa língua portuguesa, E lembrei-me das contribuições em E senti receio, um receio que pare-
to de Luanda, serenamente, como que mal falada, como convinha ao próprio espécie que a Gente da sanzala de Ma- cia justificar a minha decisão de re-
para me deixar matar as saudades que regime e a quem as explorava, devol- lele – certamente como todas as que gressar a Portugal. E julguei-me, nesse
já sentia da Gente e da Terra que me ti- vendo-as às suas terras, no final dos arrancavam da sua própria Terra, em momento, um cobarde por sentir esse
veram, e da sua capital que, sob amena contratos, com uns sacos de fuba, uns qualquer fim-do-mundo angolano, o receio e por me acomodar perante a
neblina, estava mais bonita do que trapos estampados para as mulheres e magro sustento com que sobrevivias – consciência que ia tendo sobre o que
nunca. Mas que poderia eu fazer, se- “dez reis de mel coado” para os homens. era obrigada a pagar ao Estado. me fora dado observar. Mas, que po-
não aceitar a realidade que eu próprio E lembrei-me dos aproveitamentos E lembrei-me das lavras que ali- deria eu fazer?!
não me atrevera a alterar?! obtidos pelas tropas do exército portu- mentavam a Gente da guerrilha e Via Luanda já de longe quando deci-
No convvés, onde já quase ninguém guês, relativamente a elementos ne- que a tropa destruía, como forma de di descer ao cubículo que me tinham
permanecia – sinal de que quase todo gros, ao convocá-los para fazerem de a obrigar a uma espécie de nomadis- reservado. Deitei-me e tentei adorme-
o contingente a bordo, de cerca de guias, tornando-os traidores em rela- mo forçado. cer, mas mergulhei numa espécie de
2500 almas, estava ansioso por virar ção aos seus concidadãos guerrilheiros. E lembrei-me das palavras do ca- angústia existencial de que haveriam
definitivamente as costas à vida a que E lembrei-me das condições em que mionista durante uma longa e solitá- de ficar resquícios para sempre.
se sujeitara durante tanto tempo – me viviam as populações afastadas das ci- ria viagem pela estrada do Caxito –
deixei ficar, envolto numa inesperada dades e vilas. Totalmente abandona- Uíge, ao fazer-me sentir que seguia __________
nostalgia, e comecei a pensar. das à sua sorte, sem assistência na com mais segurança a seu lado do Adaptado do livro DE QUIBALA A MALELE
A pensar no que me fora dado doença, sem escolas, sem comunica- que integrado numa coluna militar, (Norte de Angola) NO DECORRER DE UMA
apreender durante o tempo em que ções, sem nada que se relacionasse recordando também a posterior di- GUERRA, de Sérgio O. Sá, Porto, 2009.
guir transcrevo.
E lembrei-me das Gentes negras auferiam salários muito inferiores aos E lembrei-me dos que tinham sido
recrutadas nas regiões de onde eram dos seus colegas europeus que, a seu mortos, em Luanda, no Natal de