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5 a 18 de Janeiro de 2015 | Nº 73 | Ano 3 Director: José Luís Mendonça •Kz 50,00

ECO DE ANGOLA PÁG. 4 - 7

KWANZAA e NCWALA
PRIMEIROS FRUTOS
E NOVO ANO AFRIKANO

LETRAS PÁG. 8-10

2014.VISÃO PANORÂMICA
DO ANO LITERÁRIO NACIONAL

GRAFITOS NA ALMA PÁG. 17-18

ELOGIO DA CIVILIDADE
CARTILHA DA ÉTICA

HISTÓRIA PÁG. 21

BULAMBEMBA E YELALA
PATRIMÓNIOS ESQUECIDOS

A evolução
DIÁLOGO INTERCULTURAL PÁG. 23-24 DIÁLOGO INTERCULTURAL PÁG. 22

da poesia nigeriana DESCOBERTA


A MAIS ANTIGA IGREJA
DA ÁFRICA SUBSAARIANA
2 | ARTE POÉTICA 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

Dois poemas de Niyi Osundare


Ode à Cana de Açúcar Os chicotes assobiaram para agradar aos teus ouvidos
Ó tu de voz áspera,
Quantos oceanos gemeram sob os teus pés Costas curvadas pronunciaram a tua altura
Na tua viagem para esta terra A tua armada atravessou oceanos de suor

Que ventos incitaram a tua ronda Primo do milho-miúdo com raízes pouco fundas
Irmão da erva elefante
Qual o tamanho da tua vela de folhas Embora quase rico, a tua grande tribo
Que idioma quebrou o teu silêncio num solo roubado?
A tua ilha de egos desconhecidos
O teu tagarelar em pidgin; o arranhar da gramática
Da tua língua mãe quando a História gaguejou pelo O teu arquipélago de cascas flutuantes
Teu texto, com a boca cheia de vogais em falta Teatro à deriva de sonhos em fuga

A estrofe segmentada do teu canto, Dançarino em andas, a tua sombra,


As suas junções sumarentas, anéis eloquentes multi- Mãos agitando-se no vento
Plicando-se como a cavaqueira verde de luas à conversa Mais negras que o medo febril dos fogos do pôr-do-sol

O tom indolente e xaroposo das tuas ordens Cortadas pela catana em cortesia, as copas imperiais curvam-se
Em direcção à terra, sempre tão atentas à frágil distância
Ecos sem valor de vidas extraídas Entre as feridas gotejantes e a dor aberta
Dedos peganhentos à borda da água
Tu de voz áspera
E as mansões que instilaram na tua doçura
A alegria amarga das suas salas Onde puseste o céu
Bancos que acumularam as suas fortunas Onde deixaste o mar

Na pocilga da tua lascívia O que foi que a História te sussurrou ao ouvido


Tu, corredor em terras sem sapatos Da última vez que se encontraram nos sulcos verdes?
Castigado pelo sol, mastigando sangue, chupando os ossos

Falo pálido de um império

De investidas de florete através


Da inocência dos crepúsculos aturdidos
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 ARTE POÉTICA| 3

Lua Polígama Cultura


Jornal Angolano de Artes e Letras

Uma lua polígama não consegue gerir Um jornal quinzenal comprometido


A sua praga de esposos com a dimensão cultural do desenvolvimento.
Os acenos e pretensões erguem-se rígidos Nº 73 / Ano III / 5 a 18 de Janeiro de 2015
E-mail: cultura.angolana@gmail.com
Em armários lunares, ou pendem claudicantes site: www.jornalcultura.sapo.ao
Telefone e Fax: 222 01 82 84
Na árvore de um guarda-roupa penitente
Raios ciumentos desemaranham CONSELHO EDITORIAL
Director e Editor-chefe | José Luís Mendonça
A castidade da noite Editor de Letras | Isaquiel Cori
O desejo banha as suas rugas Assistente Editorial | Coimbra Adolfo (Matadi Makola)
Marketing e Rel. Públicas | Filomena Ribeiro
Fotografia | Paulino Damião (Cinquenta) e Arquivo do Jornal de Angola
Na ânfora de um leite pagão Arte e Paginação | San Kaleia, Jorge de Sousa
Tradução | Maria José Fresta
Noite tão escura, tão quente
Até os substantivos esquecem os seus nomes COLABORAM NESTE NÚMERO:
Um séquito de adjectivos faz Angola: Ana Koluki, Araújo dos Anjos, Inácio Rebelo de Andrade, Luísa
Fresta, Mário Pereira, Nobre Cawaia, Norberto Costa, Rossana Oliveira
Moçambique: Carlos dos Santos, Dom Andira, Japone Arijuane, Mar-
De bobo no pátio de sombras líquidas
celo Panguana
Fluindo para trás e para a frente Brasil: Fábio Rocha
Como as túnicas dos chefes que comem Portugal: Sérgio O. Sá
Cabo Verde: António Barbosa da Silva, Nuno Rebocho
A lua, polígama e calma, França: Lauren Ekué
O seu rol povoado de anseios apaixonados Nigéria: Niyi Osundare, Odimegwu Onwumere

O seu aroma aspirado com coisas sem nome FONTES DE INFORMAÇÃO:


AGULHA, Revista de cultura, São Paulo, Brasil
Sem saber o que fazer com o consorte escuro Correio da UNESCO, Paris, França
Da noite, e um bando de estrelas AFRICULTURES, Portal e revista de referência das culturas africanas,
Piscando com coqueteria para os seus garanhões expectantes. Les Pilles, França
MODO DE USAR & CO, revista de poesia sonora e visual, em vídeo,
e também escrita.

NORMAS EDITORIAIS

O Jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-


censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser origi-
nais. Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publica-
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Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo


12, e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras
devem, ainda, ser enviados no formato em que foram elaborados e
também num ficheiro separado.

Niyi Osundare. Poeta nigeriano, nascido em Ikere-


Ekiti, formado na Universidade de Ibadan, na University
de Leeds e na York University em Toronto. Voltou à Ni-
géria para trabalhar como professor universitário e jor- Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26
Caixa Postal 1312 - Luanda
nalista. Desde 1985 que leva a poesia a um vasto Redacção 333 33 69
público através da sua coluna regular no jornal Tribune. Telefone geral (PBX): 222 333 343
Fax: 222 336 073 | Telegramas: Proangola
Um dos poetas contemporâneos mais prolíficos e res- E-mail: ednovembro.dg@nexus.ao
peitados na Nigéria, Osundare utiliza na sua obra um
vasto leque de idiomas vernáculos e literários para ex- Conselho de Administração
pressar de modo lírico e satírico a sua preocupação António José Ribeiro | presidente
Administradores Executivos |
com a justiça social. As suas principais recolhas de poe- Catarina Vieira Dias Cunha
sia incluem Songs of the Marketplace (1984), Waiting Eduardo Minvu
Laughters (1990), Songs of the Season (1990), Selec- Filomeno Manaças
ted Poems (1992), e Midlife (1993). The Eye of the Sara Fialho
Mateus Francisco João dos Santos
Earth (1986) ganhou o Prémio de Poesia da Associa-
Júnior
ção dos Autores Nigerianos e o Prémio de Poesia da José Alberto Domingos
Commonwealth. É um intérprete aclamado da sua poe- Administradores Não Executivos |
sia, que tem afinidades com a tradição oral da Nigéria. Victor Silva
Mateus Morais de Brito Júnior
4 | ECO DE ANGOLA 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

KWANZAA e NCWALA
A ‘CELEBRAÇÃO DOS PRIMEIROS
FRUTOS’ E DE UM ‘NOVO ANO AFRIKANO’
Ana Koluki

Rio Kwanza

Kwanzaa, ou “Nesse Mar tem Rio” angolano, Rio Kwanza, mas, das fon- então militante do Movimento Negro amor e carinho, de colhermos os pro-
tes que nos foi até agora possível con- Americano, hoje Professor de Estu- dutos dos nossos esforços com alegria
É interessante observar-se as vá- sultar, tal inferência nao é explícita. dos Africanos nos EUA, Ron (Mau- e partilharmos o seu bem por toda a
rias manifestações culturais criadas Kwanzaa deriva da expressão kiS- lana) Karenga, que apresentou na comunidade e pelo mundo. Daí que, de
pelos Afro-Americanos para se man- wahili “matunda ya kwanza”, que sig- altura o seu objectivo como sendoo todas as formas ricas e caras em que
terem tão próximos quanto possível nifica “primeiros frutos”, ou de “proporcionar aos Negros uma al- podemos expressar o significado e a
das suas origens ancestrais. Na ver- “começo” – apelando ao acto da cria- ternativa às festividades natalícias mensagem do Kwanzaa, nenhuma é
dade, em várias áreas da sua vida, ção, tal como acontece no Natal Cris- existentes e dar-lhes uma oportuni- mais importante do que vê-lo e abraçá-
eles criaram mesmo uma espécie de tão. Porém, sendo o kiSwahili uma dade de se celebrarem a si próprios e lo como uma época de celebração do
‘micro-cultura’ de inspiração Afri- língua Bantu e Pan-Africana, torna-se à sua história, deixando assim de trazer o bem para o mundo.”
kana, embora nem sempre com uma de algum modo intuitivo que o nosso simplesmente imitar as práticas da Ou, de forma mais sucinta, como o
clara ou directa correspondência nas Kwanza possa ter nela o mesmo sig- sociedade dominante.” narrou a poeta Maya Angelou, fale-
práticas culturais observáveis no nificado e, sendo o único rio afrikano Anos mais tarde, perante uma cida em Maio deste ano, em ‘The
Continente – o que se deverá, por um com esse nome, somos facilmente le- crescente aderência de pessoas de Black Candle’ (A Vela Negra – a vela
lado, aos sincretismos culturais e re- vados a concebê-lo como o “começo” várias origens e crenças religiosas ao central da celebração do Kwanzaa):
ligiosos de vária ordem e diferentes de um longo percurso que, do Kwanzaa, Karenga viria a reformular “É um período em que nos reunimos
origens que os conformam e, por Oceano Atlântico em que desagua, os seus postulados iniciais em no espírito de família e comunidade
outro lado, às varias (per)mutações e fez com os navios negreiros a traves- ‘Kwanzaa: A Celebração da Família, para celebrarmos a vida, o amor, a
con(sub)jugações culturais verifica- sia para as Américas e lá fertilizou o da Comunidade e da Cultura Afri- unidade e a esperança.”
das em Áfrika ao longo dos séculos. chão do qual continuam a brotar kana’ (1997), afirmando: “O Kwan- Durante os sete dias do Kwanzaa,
É o caso do Kwanzaa (também todos os anos os “primeiros frutos” zaa não foi criado para proporcionar praticam-se vários rituais, envol-
grafado Kwaanza), que é actual- da “nossa colheita ancestral”… Ou, às pessoas uma alternativa às suas vendo libações, acender de velas,
mente celebrado por mais de 20 mi- inspirando-nos no título da canção próprias religiões ou festividades re- oferta de presentes e um banquete
lhões de pessoas um pouco por toda belamente interpretada pela brasi- ligiosas; o seu significado e mensa- precedido de jejum e abstinência.
a Diáspora Afrikana nesta esta altura leira Maria Bethânia, dito de outro gem central estão enraizados na Poder-se-ia então dizer que, nesse
do ano, durante sete dias – de 26 de modo: nesse Mar, que separa a Áfrika elevação e propulsão do modelo an- aspecto, não difere muito do Natal
Dezembro a 1 de Janeiro – coinci- da sua Diáspora, tem Rio e esse rio cestral Africano de produzir, colher e Cristão ou do Hanukkah. Mas, é o sig-
dindo com o período do Natal Cristão tem um nome e é nosso: Kwanza! partilhar o bem no mundo. O Kwan- nificado, em kiSwahili, de cada um
(e também do Judaico Hanukkah) e A criação da celebração do Kwan- zaa enfatiza a importância de plantar- dos sete dias do Kwanzaa, designa-
do Ano Novo. O seu nome poderia ter zaa, em meados da década de 60 do mos as sementes da bondade em todo dos ‘Nguzo Saba’, ou ‘Os 7 Princípios
sido inspirado no nosso, inteiramente século passado, ficou a dever-se ao o lado, de as cultivarmos com cuidado, da Herança Africana’, baseados no
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 ECO DE ANGOLA | 5

Rio Kwanza

Kwanzaa deriva da
expressão kiSwahili
"matunda ya kwan-
za", que significa
“primeiros frutos”,
ou “começo” – ape-
lando ao acto da
criação, tal como
acontece no Natal
Cristão.

Celebracao do Kwanzaa presidida por Ron Karenga

‘Kawaida’ (expressão kiSwahili que pudermos, por forma a deixarmos a Os ‘Mazao’ são os frutos e vegetais ‘Kikombe Cha Umoja’ (Copo da
combina ‘tradição’ e ‘razão’), que Ka- nossa comunidade mais bela e bené- representando as colheitas. Os ‘za- União) sobre a terra ou sobre um re-

Imani (Fé): Acreditar com todo o


renga descreveu como “o melhor do fica do que como a herdámos; wadi’ (presentes) representam a cipiente cheio de terra. Enquanto
pensamento e prática Afrikanos, em recompensa do trabalho dos pais e verte o líquido, o Mais Velho faz um
constante permuta com o mundo”, nosso coração nos nossos semelhan- os frutos das sementes plantadas discurso de homenagem aos mem-

Umoja (Unidade): Obter e manter


que estabelece a diferenciação: tes, pais, professores, dirigentes e na pelos filhos. bros da família falecidos pela inspira-
justeza e vitória da nossa luta. Embora o cerimonial do Kwanzaa ção e valores que deixaram aos

Os Símbolos e Cerimoniais
a unidade na familia, comunidade e não faça explicitamente referência descendentes.

Kujichagulia (Auto-Determina- do Kwanzaa


nação; ou apelo a um ‘Ser Supremo’, é fre- Depois do ‘Tambiko’, como um

cao): Definirmo-nos a nós próprios,


quente encontrarmos na base do ‘ki- gesto de união, o Mais Velho bebe do
nara’ o símbolo Adinkra ‘Gye Nyami’, ‘Kikombe Cha Umoja’ e, em seguida,
nomearmo-nos a nos próprios, criar O ‘mkeka’ é uma esteira geral- ou Gyé Nyamé – com o mesmo signi- passa-o para todos os presentes o
por nós proprios e falar por nós pró- mente feita de palha que simboliza a ficado nas línguas Akan/Ashanti da partilharem, posto o que lidera a cha-

Ujima (Trabalho e Responsabili-


prios; história e a tradição ancestrais como África Ocidental (Gana, Togo e Costa mada do ‘Harambee’ (Unamo-nos!) a

dade Colectiva): Construir e manter


a fundação sobre a qual todos os ou- do Marfim) ou nas línguas Lingala e que todos respondem repetindo-a
tros símbolos do Kwanzaa assentam. Kikongo da África Central (Zaïre, sete vezes. Na noite de 31 de Dezem-
a comunidade coesa e fazer nossos O ‘kinara’ é um candelabro de sete Congo e Angola): Sé Nzambé ou Sé na bro (sexto dia) observa-se o ‘Ka-
os problemas dos nossos irmãos e receptáculos, representando as ori- Nzambé – Só Deus/ A Supremacia de ramu’, uma alegre celebração festiva

Ujamaa (Economia Cooperativa):


irmãs e resolvê-los em conjunto; gens do povo Africano. As ‘mishumaa Deus, ou Tudo nas Mãos de Deus (cf. com comida, bebida, dança e música
saba’ (sete velas) representam os fontes orais Yako Tanga e Sadi Ulo). para o colectivo da família e amigos.
Construir e manter as nossas próprias Sete Princípios (ou ‘Nguzo Saba’) A cerimónia do acender das velas, É uma ocasiao de júbilo, reavaliação e
propriedades, lojas e negócios e parti- acima descritos para cada dia da ce- central à celebração do Kwanzaa, reengajamento. Os ‘Kawadi’, presen-

Nia (Propósito): Fazer nossa vo-


lhar em conjunto dos seus lucros; lebração: no centro, a vela preta re- tem lugar quando todos os membros tes para as crianças, brinquedos e ar-
presentando ‘Umoja’, à sua esquerda da família estão presentes, com des- tefactos, geralmente feitos à mão, ou
cação colectiva a construção e o de- três velas vermelhas representando taque para as crianças. Inicia-se com livros, poderão ser abertos durante o
senvolvimento da nossa ‘Kujichagulia’, ‘Ujamaa’ e ‘Kuumba’, à o ‘Tambiko’ (libação), uma forma ‘Karamu’, ou no dia final do Kwanzaa,
comunidade, com o objectivo de res- sua direita três velas verdes repre- Afrikana de louvação com que se quando se observa o ‘Imani’.
taurar a grandeza tradicional do sentando ‘Ujima’, ‘Nia’ e ‘Imani’. Os presta homenagem aos ancestrais Mas, na tentativa de estabelecer

Kuumba (Criatividade): Fazer


nosso povo; ‘muhindi’ são as espigas de milho pessoais e colectivos. A começar, o uma relação mais firme, coerente e
que representam os brotos (crian- Mais Velho da família verte vinho, objectiva entre o nosso Kwanza e o
sempre tudo o que pudermos, como ças) dos galhos (os pais da casa). sumo ou uma bebida espirituosa do Kwanzaa da Diáspora Afrikana, em
6| ECO DE ANGOLA 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

Símbolos cerimoniais Rei Mswati da Swazilandia

Nckwala 5 O símbolo ‘Gye Nyami’

consulta com o estudioso e divulga- niza a nossa luta aos níveis múltiplos Tendo visto o significado e os ri- Ncwala. Constitui alta traição a reali-
dor cultural Angolano Yako Tanga, de forma coerente: Cultura, Econo- tuais do Kwanzaa, é-nos possível es- zação do Ncwala por qualquer outra pes-
obtivemos dele as seguintes formula- mia, Espiritualidade, Indústria, Edu- tabelecer paralelos significativos soa. Todos os Swazis podem participar
ções: “Analisando o conteúdo de va- cação, Autonomização, entre este e o Ncwala, nomeada- nos actos públicos do Ncwala, especial-
lores do Kwanzaa, os Ngúzo Sába (7 Potenciamento de cada um como mente no que diz respeito ao período mente no seu clímax, o quarto dia do
Princípios), os símbolos da prosperi- Povo, etc.” do ano em que tem lugar, a sua dura- Grande Ncwala. As figuras centrais são

Ncwala: Um Novo Ano Afrikano


dade (rio, peixe e moeda), agricul- ção, o lugar central dos “primeiros o Rei, a Rainha Mae, as esposas
tura (rio), trabalho colectivo (peixe) frutos”, a atribuição de significados reais e seus filhos, os governadores
ou cooperativa (pescarias), em- específicos a cada um dos dias em reais (indunas), os chefes, os regi-
preendedorismo (indústria ligada ao Fazendo regressar a nossa me- que são celebrados, o regresso sim- mentos guerreiros e os bemanti ou
sector fluvial) e energia (barragens, moria ancestral ao Continente bólico às terras ancestrais e à água “gente da água”.
etc) que o Kwanzaa leva quando bem Berço, encontramos um ‘parente (dos rios e do mar). Tais paralelos Na lua cheia de Novembro, os be-
entendido, a ajuda mútua (likelemba, próximo’ do Kwanzaa na nossa re- tornam-se perfeitamente evidentes à manti partem da casa da Rainha Mãe
créditos mais humanos e micro-cré- gião: o Ncwala (tambem escrito In- luz do facto de ambos terem as suas em dois grupos: um, maior, que se di-
ditos), o respeito à nossa Tradição cwala) – o mais importante raízes nas “Celebrações dos Primei- rige a kaTembe (Catembe, sul de Ma-
africana (Kawaída / KiMúnTu / cerimonial tradicional anual em al- ros Frutos” relevando das Culturas puto – considerada a terra ancestral
Ubúntu / Kemet / Adínkra, etc) guns países da África Austral, espe- de vários povos Afrikanos, que, da Nação Swazi), para recolher água
casam-se bem. Enraizado no pas- cialmente na Swazilândia, no sendo embora a eles anteriores, en- do mar e outro, mais pequeno, que
sado, firme no presente e rumo a um Malawi e na Zâmbia. contram referências históricas vai recolher água dos principais rios
futuro nada menos vitorioso e har- Mas, é na sua celebração na Swazi- desde o Antigo Egipto e a Núbia. nacionais. Os bemanti regressam à
monioso. Kwanzaa ajuda ao ReNasci- lândia, país que mantém de forma Nao é feito qualquer anúncio da capital real com a lua nova de De-
mento de um Povo Afrikano, em mais genuína as suas tradições, que data oficial do dia principal do zembro. Tem então lugar o Pequeno
todos os lados que ele se encontra no nos iremos deter. O Ncwala sagrado Ncwala. É o quarto dia depois da lua Ncwala, marcado por dois dias de
Mundo, tornando-o mais forte, com- ou, tal como o Kwanzaa, designado cheia mais próxima do dia mais danca, música e rituais que são taboo
pleto e no caminho mais “Cerimónia dos Primeiros Frutos”, longo, 21 de Dezembro. O Ncwala durante o resto do ano. Catorze dias
certo. Kwanzaa é a ideia Panafricana que está neste momento a decorrer significa “cerimónia dos primeiros depois começa o Grande Ncwala, que
da “diáspora” e, sobretudo, Kwanzaa-
Primeiro Dia: Apanha do Lusek-
naquele país, tem lugar em finais de frutos”, mas a prova da nova colheita assim decorre:
Sankofa do Adinkra. Ele vai ReColher
wane – Rapazes solteiros convergem
Dezembro/princípio de Janeiro de pelo Rei é apenas um aspecto entre
todos os valores positivos do pas- cada ano e destina-se a renovar a muitos neste longo cerimonial, tam-
sado e, considerando o presente, força do Rei e da Nação Swazi para o bém chamado “Cerimónia do Rei- para a aldeia da Rainha Mãe, de onde
projectando-se no futuro, ReOrga- ano seguinte. nado” – quando não ha’ Rei, não há o Rei lhes ordena que marchem cerca
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 ECO DE ANGOLA| 7

Nckwala Nckwala

Nckwala Nckwala

de 50 quilómetros até Egundvwini suramento, onde o Rei e regimentos dos certos objectos rituais, marcando
para cortar ramos de lusekwane (um guerreiros aparecem vestidos em in- o fim do ano velho, enquanto os par-

Segundo Dia: Deposição do Lusek-


arbusto local) sob a luz da lua cheia. dumentária feita de peles de boi e ticipantes principais dançam e can-

wane – Os rapazes regressam por


leopardo e envergando os seus ade- tam canções que são tabu durante o
reços de guerra. O Rei trinca e cospe resto do ano. O Rei mantém-se em Fazendo regressar a nos-
volta da meia noite e depositam os certas plantas da primeira colheita reclusão até a lua cheia seguinte
seus ramos de lusekwane num en- no seu inhlambelo. Em seguida, come quando, para significar o início do
sa memoria ancestral ao
clausuramento especial no curral parte do interior de uma cabaça novo ano, os ramos do lusekwane Continente Berço, encon-
real. Enquanto os rapazes descansam (abóbora) sagrada, luselwa, e lança- são removidos e queimados numa
da sua jornada, os mais velhos en- a para fora do inhlambelo, onde é monumental fogueira, sendo então tramos um ‘parente pró-
trançam os ramos entre os postes do apanhada com um escudo negro por os espíritos dos ancestrais invoca-
inhlambelo – o santuário privado do um dos rapazes do lusekwane. Só dos para a apagar com água da
ximo’ do Kwanzaa na nos-
sa região: o Ncwala (tam-
Terceiro Dia: Dia do Touro –
Rei. depois deste ritual é permitido ao chuva. O Ncwala termina com um

Manhã: jovens rapazes cortam


resto dos Swazis consumirem as grande banquete.
bem escrito Incwala) – o
Quinto Dia: Dia de Abstinência,
novas colheitas. E assim nasce um Novo Ano Afri-

Descanso e Meditação – O Rei per-


ramos do imbondo negro (outro ar- kano, no Continente Berço e na sua
mais importante cerimo-
inhlambelo. Tarde: enquanto o Rei
busto local) que são adicionados ao Diáspora…
manece em reclusão na “grande cu- nial tradicional anual em
recebe os remédios tradicionais no bata”. Os bemanti circulam pela
seu santuário, um touro negro é ati- capital real fazendo cumprir as re- alguns países da África
çado para fora do curral. Os rapazes gras deste dia: nenhum contacto se-
do lusekwane agarram e dominam o xual, tocar em água, uso de adornos, Austral, especialmente na
touro e retornam-no ao santuário. Aí
é sacrificado e dele são retirados in-
sentar em cadeiras ou esteiras, aper-
tar de mãos, coçar-se, cantar, dancar
Swazilândia, no Malawi
e na Zâmbia.
Sexto Dia: Dia do Tronco – Os regi-
gredientes rituais para o tratamento ou galhofar.

Quarto Dia: O Comer dos Primeiros


do Rei.

Frutos e o Lançamento da Cabaça –


mentos guerreiros marcham para
uma floresta e regressam com tron-
O dia principal: todos os principais cos de lenha. Os mais velhos prepa-
participantes realizam um cerimo- ram uma fogueira no centro do
nial espectacular dentro do enclau- enclausuramento. Nele são queima-
8 | LETRAS 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

2014
Visão panorâmica
do ano literário nacional
Isaquiel Cori

O
ano de 2014, no domínio da de Caxinde, o livro “Lagoa Misteriosa”,
literatura angolana, caracteri- vencedora ex-aequo do Prémio Ca-
zou-se pela reconfirmação da xinde do Conto Infantil relativo ao
veia criadora de um leque de autores ano 2012. Segundo a autora, o conto
há muito consagrados, a confirmação foi idealizado a partir da visita que fez
de um punhado de jovens e a revela- ao jardim Majorelle, na cidade marro-
ção de outros tantos. Luanda deixou quina de Marraquexe. “Saí de lá tão
de ter o “monopólio” dos lançamentos encantada que tive vontade de escre-
de livros, com alguns autores, sobre- ver alguma coisa”, disse, acrescen-
tudo neófitos, a preferirem serem eles tando que enquanto escrevia não lhe
próprios a editar as suas obras e a saía da cabeça “uma história que ouvi
lançá-las, em primeira mão, nas suas em tempos sobre o mito que gira à
províncias de origem ou residência. volta de uma das nossas lagoas, em
Com os lançamentos literários a que é preciso ter permissão dos mais
ocorrerem nas várias cidades, um fe- velhos para mergulhar e passar por
nómeno propiciado, sobretudo, pela alguns rituais”.
multiplicação das universidades re- No dia 5 de Fevereiro foi lançado

Clássicos
gionais, tornou-se mais difícil acom- no jango da UEA o volume com as 12
panhar e avaliar globalmente a edições do boletim “Cultura” (se-
qualidade do que se publica. gunda série) da Sociedade Cultural de
Passamos a apresentar um resumo Angola. O trabalho, resultado de uma
do que foi publicado em 2014, uma pesquisa e selecção de Irene Guerra
visão que há-de pecar, certamente, Marques e Carlos Ferreira, foi apre-
por não ser exaustiva, tanto pela im- sentado pelos escritores e sobrevi-
possibilidade de podermos captar ventes da geração da Cultura,
toda a dinâmica do mercado livreiro Henrique Guerra e Arnaldo Santos. O
nacional como pela limitação de es- livro da dupla de pesquisadores con-
paço. Desde já pedimos desculpas tém igualmente a reprodução de um
pelas omissões. relatório exaustivo e analítico da
O escritor Manuel Rui entregou ao PIDE, datado de 17 de Setembro de
público leitor, no dia 15 de Janeiro, o 1965, sobre o que considerava activi-
romance, "A Trança", editado pela dades subversivas da Sociedade Cul-
Mayamba. Como o autor sinalizou, o tural de Angola e do seu jornal
novo livro representa uma mudança "Cultura".
de estilo e de abordagem da sua pró- Ainda em Fevereiro Hendrik Vaal
pria escrita. "Talvez 'A Trança' possa Neto deu de presente ao público os
ser encarada como uma mudança de romances “Gamal” e “Makala”. Se-
estilo, uma mudança de ideias. Mudar gundo Carmo Neto, que apresentou a
não é triste, nem é triste mudar de obra, Gamal é um intenso diálogo com
ideias. Triste é não ter ideias para a miséria, “socorrendo-se duma lin-

Ondjaki Marta dos Santos


mudar". Na ocasião, a linguista Amélia guagem simples” que conta “a história
Mingas diria que "A Trança" é, no de Mutama, um nobre e tradicional
fundo, o país que Manuel Rui tanto chefe africano, criador de gado, caído
ama e que é um melting pot de sabe- em desgraça por culpa do mundo: um à famosa geração do mesmo nome, dão de ser uma das mais representati-
res, de sabores, de ideias, pensamen- homem outrora rico, presenteado continua a sonhar com uma terra de vas da literatura angolana, voltou aos
tos e criação próprias". com a desgraça como herança (…)”. Já justiça e fartura para todos num con- escaparates a 26 de Fevereiro com o
Manuel Rui, pela mão da UEA deu a “Makala” é um retorno do autor ao ce- texto histórico completamente dife- livro de contos “O Tocador de Quis-
estampa, em Abril, o romance “A Bicha nário do Roque Santeiro, o antigo rente, onde em princípio o sonho da sanje”. O velho autor foi homena-
e a Fila”, escrito a quatro mãos com o mercado de Luanda, tido como o primeira geração já devia estar reali- geado em Janeiro pelo Ministério da
escritor brasileiro Marco Guimarães. “maior de África”. zado mas não está, porque virou mi- Cultura e em Fevereiro pela UEA, de
"O livro não é muito de humor, é mais “Esse motor da economia informal ragem”. Foi assim, de rompante, que o que é um dos membros fundadores.
chaplinesco. A comédia cruza sempre Luandense que alimentou milhares de jornalista Reginaldo Silva começou “O que me motivou a escrever foi uma
com a tragédia. [...] Quando há tragé- famílias constitui o núcleo temático por introduzir os potenciais leitores vez ter lido no jornal ‘A Província de
dia a gente pode dançar, chorar e rir central da narrativa de Hendrik Vaal ao livro “Kalucinga”, da estreante au- Angola’, lá para o ano de 1952 ou
ao mesmo tempo", explicou Manuel Neto”, constatou o escritor António tora Alexandra de Vitória Pereira Si- 1953, o poema do Aires de Almeida
Rui. Ainda em Abril publicou “Quitan- Panguila, ao apresentar o livro. meão. No Espaço Verde Caxinde, Santos, ‘A Mulemba secou’. Fiquei tão
deiras e Aviões”, livro de contos. “Como narrativa que é, Kalucinga também em Fevereiro. fortemente impressionado que tentei
Maria Celestina Fernandes lançou, acaba por ser uma colagem ou, me- Henrique Guerra, um dos últimos fazer uma música à volta desse
com chancela da Plural Editores, a 28 lhor, uma perfeita osmose entre a fic- sobreviventes da geração da “Cul- poema”, disse, em entrevista a este
de Janeiro, nos vinte e cinco anos da ção, a realidade autobiográfica e a tura”, cuja obra, como ele próprio diz, jornal. “Verifiquei que para além da-
Associação Cultural e Recreativa Chá utopia da autora, que, sem pertencer sendo “curta em volume”, tem o con- quilo que dávamos através dos com-
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pêndios escolares, na disciplina de Li- inconsistências e desnivelamentos


teratura Portuguesa, havia uma reali- que não vale a pena nem classificar
dade angolana, um quotidiano que nem enumerar”, segundo o poeta João
estava arredado da literatura oficial”, Tala, “formam um quadro inquie-
explicou. tante” que sobre um formato estético
Em Março, 07, o escritor Adriano emprestam o conteúdo ao livro de
Mixinge recebeu o Prémio Sagrada poemas “Rua da Insónia – Um mani-
Esperança 2013 ao mesmo tempo que festo de inquietações”. O poeta Antó-
procedeu ao lançamento do romance nio Pompílio, que apresentou o novo
premiado, “Ocaso dos Pirilampos”. O poemário a 25 de Abril, na UEA, lem-
autor, no seu romance, desvela os brou que João Tala é médico e que,
medos e os fantasmas do homem an- talvez por isso, no seu livro “ele faz

Lopito Feijóo Jonh Bella


golano, imerso numa época de imen- um diagnóstico à alma”.
sas encruzilhadas e incertezas quanto Cristóvão Neto selecionou e reuniu
ao futuro e à própria existência. O alguns dos seus melhores poemas na
livro já conta com uma edição portu- antologia “O Lugar do Nome”, que
guesa, pela editora “Guerra e Paz”. apresentou ao público em Abril, na
Brigitte Caferro publicou o poemá- sede da UEA. “Apesar de sofrido, ma-
rio “Do Meu Íntimo Mais Íntimo” que, goado, introspectivo, [O Lugar do
segundo o escritor Soberano Ca- Nome] é sobretudo uma exaltação ao
nhanga, nos seus 76 poemas “apre- amor, um verdadeiro canto de espe-
goa, acima de tudo, o amor, o ser e a rança, um hino à vida. É assim que o
sociedade”, sendo a sua escrita so- vemos. Recusamo-nos a vê-lo de outro
bretudo intimista, com o seu grito a modo”, afirmou o também poeta Con-
ir “ao encontro do ‘nós’ social”. Ca- ceição Cristóvão, ao ler o texto de apre-
nhanga saudou Brigite Caferro, nas sentação que intitulou “Da Arqueologia
páginas deste jornal, como uma au- da Palavra à Reinvenção do Signo”.
tora que “vem preencher o seu lugar “Mesmo sendo um livro muito pro-
e trazer vida à criatividade artística fundo, o poeta teve o condão de utili-
na Lunda Sul”. zar uma linguagem magistralmente
Arnaldo Santos deu à luz pública simples, apesar de conotativa, pelo
(27/03) “O Mais-Velho Menino dos que qualquer leitor poderá fruir de

Patissa e Ningi
Pássaros”, obra literária que emerge uma boa e enriquecedora leitura”, não
do Kinaxixi mítico da sua infância necessitando de “mobilizar quaisquer
(que nem por sombras lembra o ac- competências específicas, típicas da
tual), em cuja floresta exuberante conhecimento do que é Angola. Por- cerca de centena e meia de poemas- crítica e análise literárias”, rematou.
chilreavam as rolas, os bicos de lacre, que é que o Huambo se chama letras para canções escritos ao longo Em Maio Albino Carlos deu a es-
os bigodes, os cardeais, os catetes, os Huambo. A história dos reinos da re- de trinta anos, sendo mais de metade tampa, com chancela da UEA, o livro
maracachões, os pardais, os pica-flo- gião do Centro de Angola”. Ainda se- criados ao longo da década de 1980. de estórias “Issunji”, que em Novem-
res, as pírulas, os rabos de junco, os gundo o historiador, tudo isso “são A obra tem um enfoque geracional, bro seria distinguido com o Prémio
siripipis e as viuvinhas negras. matérias que precisam de ser escritas sendo uma oferta do autor, sobre- Nacional de Cultura e Artes. José Luís
Está-se logo a ver, aquele Kinaxixi pelos mais velhos”, para que o seu co- tudo, mas não só, para aquela geração Mendonça escreveu no texto de apre-
era o paraíso das crianças, que nele se nhecimento não desapareça. de angolanos que, no contexto estrito sentação: “das treze estórias, nove
entretinham a caçar os pássaros com “Quem semeia com dor, colhe com da literatura, o crítico literário Luís são aquilo que eu chamaria de pai-
as suas fisgas certeiras, quando não se alegria”, resumiu assim o autor a sa- Kandjimbo cunhou como sendo Das néis carregados de tintas emocionais
ficavam simplesmente a admirar os tisfação por dar parto ao livro. Incertezas, e que Paulo Flores, num e emocionantes. Consistem em flas-
muitos prodígios da natureza. O A Mediateca de Benguela acolheu, a contexto mais geral, cantou como hes instantâneos em que a função
livro, que conta com ilustrações saí- 3 de Abril, a cerimónia de lançamento tendo sido feliz sem o saber. É a gera- poética da língua, em termos de fo-
das da pena e imaginação de Luan- do mais recente livro de poemas da ção convencionalmente referida como tossíntese, transmuta o quadro con-
dino Vieira, contém, segundo o autoria de Isabel Ferreira, intitulado a dos anos ‘80 e princípios dos ’90 e creto da vida social em imagens ou
sociólogo Paulo de Carvalho, que o “O Leito do Silêncio”, num acto co-or- cujos integrantes estão hoje na faixa frescos agitados pelo manancial de
apresentou ao público na União dos ganizado pela Rádio Benguela e o Mo- etária dos 40/50. um surrealismo mágico”.
Escritores Angolanos, “elementos vimento Lev’Arte. O docente e “Janelas de Orvalho” é o livro de A escrita de “Issunji”, prossegue JL
que podem contribuir para os pais historiador Tuca Manuel, que cuidou poemas de Graça Arrimar, apresen- Mendonça, “escorre como tinta de
aprimorarem a forma de educação da apresentação, sublinhou, segundo tado por Agnelo Carrasco, que a dado painéis expostos em série, dos quais o
dos seus filhos”. Por sua vez Arnaldo correspondência do nosso colabora- momento disse: “duma temática ini- pintor teria escolhido como tema um
Santos afirmou que “gostaria que o dor Gociante Patissa, que se estava cialmente muito pessoal, a autora país (Angola) e uma época (o conflito
livro fosse um bom pretexto para diante de uma autora “a retratar a sua transita para temas muitas vezes mais pós independência) e as suas bifurca-
(…) relacionamento e compreensão vivência e a de sua gente, mas sem ser universais. Poder-se-á dizer que a pri- ções ou emanações calamitosas. Para
das coisas do mundo”. com uma voz de soberba, portanto meira parte não se continua na se- sofrer a dor das armas, não é preciso
No dia 4 de Abril, o da consagração longe de alguém que se coloca no gunda. (…) Se na primeira parte os estar debaixo de fogo. Basta nascer
da Paz em Angola, Pichel de Lukoko, papel de subalternizar os demais em poemas constituem um conjunto ho- numa geografia conflituosa. Sofre-se
etnólogo, historiador e pesquisador função das suas habilidades”. Por sua mogéneo pelas afinidades de con- na mesma”. E sublinha: “O estado da
da tradição oral, apresentou ao pú- vez Mário Kajibanga, director provin- teúdo que apresentam (…) o mesmo alma de um país. Um autêntico livro
blico do Huambo o livro “Wambu Ka- cial da Cultura, a propósito do livro já me não parece tão linearmente pos- aberto que revela a história da des-
lunga em Elegia”, que, segundo José referiu: “por um lado, podemos ver o sível na segunda parte”. Agnelo Car- graça inscrita nos destroços e traços
Luís Mendonça, que lá esteve e escre- conselho de não levarmos a público rasco sublinha: “os poemas, de um da guerra”.
veu neste jornal, apresenta “o retrato coisas que acontecem na intimidade modo geral, não se continuam, cada José Luís Mendonça, no seu pri-
literário do rei cuja autoridade perdu- do lar. Por outro, podíamos dizer que um assume um conteúdo que não é meiro romance, “No Reino das Casua-
rou pelas embalas e sobados que hoje é a falta de partilha de coisas boas que repetição, nem continuidade”. rinas”, que veio a público em Junho,
integram a província do Huambo e à pode levar a violências. Porquê calar, “A vivência e a sobrevivência atra- “relata a história de sete angolanos ví-
qual legou o seu nome para a posteri- se podemos partilhar coisas boas?”. vés de uma infância, adolescência, se- timas da síndroma da amnésia auto
dade”. No dizer do historiador Ven- Carlos Ferreira, o Cassé, jornalista e guidas de uma juventude em tempos adquirida, provocada por traumas de-
ceslau Cassessa, “o livro do mais velho escritor, entregou ao mercado de possibilidades precárias; a desor- vido à sua experiência de guerra, no
Pio Chiwale tem muito mérito. Vem (18/04, na União dos Escritores An- dem espiritual, colectiva, traumas an- período compreendido entre 1961 e
colocar um pilar muito importante no golanos) o livro “Memórias de Nós”, tigos e do pós-guerra, bem como 1987”, explica uma nota editorial da
10| LETRAS 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura
Texto Editores. “Durante o interna- uma reflexão sobre a origem da es-
mento no Hospital Psiquiátrico de pécie humana, mais como evolução
Luanda, o grupo decide evadir-se para do que como criação”.
fundar um Estado na Floresta da Ilha O docente e investigador António
de Luanda, denominado ‘Reino das Quino autografou para os presentes
Casuarinas’”. na União dos Escritores Angolanos no
Por ocasião dos 90 anos do nasci- dia 18 de Outubro, o livro “Duas faces
mento do Dr. António Agostinho da esperança: Agostinho Neto e Antó-
Neto, poeta-maior e primeiro presi- nio Nobre num estudo comparado”,
dente de Angola, a Fundação Agosti- um ensaio prefaciado e apresentado
nho Neto pôs à disposição do público, pelo Professor Francisco Soares.
no dia 14 de Maio, em Luanda, na Com vista a uma “maior divulgação
sede da União dos Escritores Angola- e internacionalização da literatura an-
nos, o livro "A Noção de Ser" e o DVD golana”, a União dos Escritores Ango-
"Portugueses Falam de Agostinho lanos (UEA), em parceria com a
Neto". O livro, com mais de 800 pági- LEYA-Texto Editores, fez o lança-
nas, é uma colectânea de 65 textos mento na livraria Buchoolz em Lis-
analíticos sobre a poesia de Neto, as- boa, no dia 7 de Novembro, da
sinados por 62 autores, a maioria colectânea de 42 estórias, nas quais
professores universitários, escritores “sobrevivem analogias, relativismos e
e jornalistas de vários países e publi- paradigmas da literatura angolana”,
cados originariamente em livros, jor- no dizer do secretário-geral da casa
nais e revistas ao longo dos últimos dos escritores angolanos, Carmo Neto.
40 anos. O DVD reúne entrevistas, Com o título “Estórias Além do
produzidas pela FAAN, de políticos e Tempo”, a antologia inclui 17 escrito-
intelectuais portugueses, num teste- res: Arnaldo Santos, Dario de Melo,
munho audiovisual sobre a trajectó- Carmo Neto, Fragata de Morais, Hen-
ria e a dimensão política, cultural e rique Abranches, Henrique Guerra,
humana de Agostinho Neto. Isaquiel Cori, João Melo, João Tala,
"O livro procura mostrar o mais José Eduardo Agualusa, José Samuíla
amplamente possível os vários tipos Kakweji, Luís Fernando, Marta Santos,
de recebimento da obra de Agostinho Ondjaki, Pepetela, Roderick Nehone e
Neto. Será um marco na história da Sónia Gomes.
recepção e do estudo da obra de Fragata de Morais voltou à publica-

Manuel Rui Monteiro


Neto", disse Pires Laranjeira, profes- ção com o livro “A Visita”, um texto do
sor da Universidade de Coimbra, o género dramático, editado pela União
principal organizador da publicação. dos Escritores Angolanos. Com uma
Em Setembro foi apresentado em grafar os respectivos livros: “Os Ani- julgo que devem ler "Surrealismo do trama intensa e inusitada, o seu novo
Paris, França, o livro “Poésie Com- mais de Duas Gibas” e “A Montanha Quotidiano"?”, interroga-se António livro traz à cultura literária angolana
plète de Agostinho Neto”, numa ini- do Sol”; e “O Kyanda ni Kaulungu ka Quino, para, no final, convidar os lei- personagens memoráveis como Carla,
ciativa da Embaixada de Angola, no Fuxi”, este em kimbundo. tores a, com a sua própria estratégia uma viúva quarentona, carente de
âmbito das comemorações do Dia do Rotane Sandjimba, que se estreou de leitura, deslindarem os muitos no- afectos íntimos, e Dany Boy, um la-
Herói Nacional. em livro em Agosto com “Em Busca velos da obra. drão “bem educado”, sensível.
O livro “Ombela – A Estória das da Dignidade” (Editora Mayamba), ro- O novo livro de Lopito Feijó, “Dese- O GRECIMA deu continuidade ao
Chuvas”, de Ondjaki (texto) e Rachel mance que recupera a memória das jos de Aminata”, publicado este ano projecto 11 Clássicos da Literatura
Caiano (ilustrações), editado em peripécias dos que partiam para as em Luanda, é uma incursão poética e Angolana, com o lançamento da se-
Junho pela Plural Editores, traz uma Lundas na miragem de enriquecerem exploratória pela topografia e a topo- gunda colecção, em Novembro. Desta
estória singela, própria para encantar com o garimpo de diamantes, é um nímia do corpo feminino, do desejo feita foram escolhidas as obras
os petizes, e introduzi-los, pelas e caso de autor promissor que deve ser carnal, do amor físico. Essa incursão “Uanga”, de Óscar Ribas, “Poemas”, Vi-
com as palavras, no mundo do mara- devidamente acompanhado. exploratória é tão profunda e ousada riato da Cruz, “Obra Poética”, Mário
vilhoso. A estória, premiada no con- O escritor e político Manuel Pedro que chega a ultrapassar os limites António, “Poemas Completos”, Alda
curso do Conto Infantil da Associação Pacavira propôs à leitura, em Agosto, convencionais do erótico. Lara, “Meu Amor da Rua 11”, Aires de
Chá de Caxinde, 2012, situa-se na cor- o livro “Angola e o Movimento Revo- “Esta obra, ‘A Poeira do Tempo’, Almeida Santos, “A Konkhava de Feti”,
rente daquelas que buscam preen- lucionário dos Capitães de Abril em apresenta-nos um Escritor na sua pul- Henrique Abranches, “Colonos e Colo-
cher a curiosidade natural das Portugal – Memórias (1974-1976)”, sação íntima de jornalista e poeta. O nizadores”, Raul David, “Gente de Meu
crianças pelo conhecimento da ori- com prefácio de Aldemiro Vaz da estilo é preciso, conciso e claro. E há Bairro”, Jorge Macedo, “Estórias do
gem e da razão primordial das coisas. Conceição e chancela editorial da centelhas de poesia a faiscar do com- Musseque”, Jofre Rocha, “A Morte do
Ombela, que em umbundo significa Mayamba. A obra “é uma peça pre- boio da escrita. E um certo filosofar Velho Kipacaça”, Boaventura Cardoso
chuva, é o nome de uma deusa ciosa para melhor se compreender o no pensamento simples dos persona- e “A Casa Velha das Margens”, de Ar-
criança, que, lá longe na escuridão período conturbado entre a queda do gens em situações extremas da vida, naldo Santos.
dos tempos, entediada com a sua ma- fascismo em Portugal e a proclama- quando a morte é uma espécie de le- Na ocasião foi também apresentada
jestosa divindade, estava cheia de ção da independência de Angola (…)”, nitivo para o sofrimento ou quando a ao público a Colecção Novos Autores,
tristeza. Decide então chorar. As suas refere o prefaciador. lei da sobrevivência os leva a retirar nesta primeira edição composta pelas
lágrimas salgadas caem em forma de “A obra "Surrealismo do Quoti- do âmago um último resquício de obras “Fátussengóla, o Homem do
chuva e formam os mares e os ocea- diano", da autoria de Djina, pseudó- força”. Palavras ditas por JL Men- Rádio que Espalhava Dúvidas”, Go-
nos. Mais tarde, já de bom humor, nimo literário de Dina Sebastiana de donça na apresentação, em Outubro, ciante Patissa; “Na Pele de Zito
chora de alegria, derramando agora Sousa e Santos, é para todo e qual- da última entrega literária de José Maimba”, Paula Russa; “Proficuidade”,
lágrimas/chuvas de água doce, ali- quer leitor um estimulante desafio de Mena Abrantes. Carlos Bengui; “Sonhos Bordados”,
mentando as plantas e criando sobre sobrevivência a um quotidiano como Nok Nogueira, igualmente em Ou- Yola Castro;”…E lá Fora os Cães, Ras
a terra inumeráveis rios e lagos. o é o surrealismo”. As palavras são do tubro, lançou “As Mãos do Tempo”, Nguimba Ngola; “O Coleccionador de
Em Junho o Jardim do Livro Infantil académico António Quino, quando fa- com chancela da editora Nóssomos. Pirilampos”, Soberano Canhanga;
foi o palco escolhido para o lança- lava sobre o livro no acto do seu lan- De acordo com Jomo Fortunato, que “Verso Vegetal”, David Capelenguela;
mento de várias obras literárias para çamento em Setembro, no Espaço fez a apresentação do poemário, “se “Mukandas Angolanas”, Jorge Salva-
crianças. Em Luanda, num ambiente Caxinde. “No primeiro contacto com o ‘a função faz o órgão’, um processo dor; “O Homem da Casa Amarela e
festivo como só as crianças sabem livro, perguntei-me: que estratégia de realizável no tempo, entenda-se que Outras Histórias”, Gaspar Lourenço;
protagonizar e proporcionar, as escri- leitura devo adoptar para responder a a função aqui é sinónimo de traba- “Incertezas”, Katya Santos; e “Huma-
toras Maria Eugénia Neto e Cremilda uma inquietação minha, e que espero lho, então ‘As Mãos do Tempo’, en- nus”, de M’Bangula Katúmua.
de Lima apresentaram-se para auto- seja também vossa: Por que razão quanto proposta literária, é também
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Os 9 passos que retardam


o desenvolvimento
da Literatura Angolana
na contemporaneidade
Araújo dos Anjos

C
resci a ouvir que os antepas-
sados nunca se calam, nunca
morrem; apenas adormecem
na memória cultural de cada povo. A
nossa tradição cultural e literária, em
particular, há muito que tem sabido
conservar nas paredes do seu âmago
as marcas da sublimidade da nossa ci-
vilização pintadas por mãos que parti-
ram a taça do insensato para lograr à
posteridade um trago do cálice do que
do nosso solo já se fez de mais bonito.
Por isso, sempre que tomo um
pouco da porção da escrita, procuro
deixar cair umas gotas da minha ca-
neca, em homenagem àqueles que
morreram de seca, na mata do
Mayombe, na chana do Leste, onde
todos os dias chovia sangue, para que
hoje nos pudéssemos gabar do azul
das nossas veias. Pois, eu sei que
mesmo que cantemos as mais vivas
canções da nossa alma, não são nos-
sas as canções; são cantigas que nas-
cem do ventre da terra. Mesmo que Benguela -Ganda a Chicuma
levemos lanternas, nunca seremos a
luz… Tem luz aquele que de uma da tradição – a perpetuação do le- maioria prefere os púlpitos aos cam- que se faça uma moratória, para, em
faísca forja o farol da sua liberdade e gado, a fixação da memória cultural pos, já que o ministério está mais lu- fim, reflectirmos todos no futuro da li-
dos seus. do nosso povo, através da literatura. crativo do que nunca. teratura Angolana, considerando que
Então, concluo: “os antepassados A Literatura Angolana de gema Por outro lado, há, por aqui, certos as mãos dos jovens escritores de hoje
nada nos devem!” Souberam desem- sempre foi comprometida com os en- olhos programados para determina- foram corrompidas com a sensibili-
penhar o seu papel, escreveram o que cantos e desencantos dos seus dias, das pinturas, para os quais toda a ma- dade das urbanizações, tornando-se,
tinham de escrever, deixaram os seus uma literatura assente no imaginário nifestação artística que não se por consequência, incapazes de sus-
escritos como códigos de luta por do povo angolense, uma literatura enquadre na sua matriz estética não é tentar o ímpeto estético da Mensagem
uma Angola Literária fundada no ima- que muitas vezes saiu à rua sem digna de alguma apreciação, porque a das muitas gerações passadas, se-
ginário cultural do seu povo. capuz, consciente, portanto, de que a literatura é como sal, não presta, se gundo a leitura dos que sabem ler tex-
Ora, o reconhecimento do peso ir- morte na métrica ou num parágrafo não salga e, como é da praxis, a panela tos literários.
refutável da memória da tradição lite- qualquer não é morte, antes a ascen- da avó faz o melhor feijão. Ora, não sendo eu um crítico, nem
rária tão bem celebrada durante são a uma vida sem morte – a eterni- Então, se a literatura que se vai poeta, nem escritor, dou-me por feliz
décadas não me impede de, portanto, zação das marcas de hoje – sem produzindo um pouco por este vasto por me ter sido dada a oportunidade
aviltar a necessidade de, nos dias que dúvidas, um passo sublime rumo ao mar não salga é porque é incapaz de de levar à praça pública alguns dados
correm, começarmos a limpar a nossa átrio da Pasárgada. conter a corrupção das sereias cultas que julgo contribuírem para a infla-
casa dos fantasmas da história. Contudo, é importante reconhecer de hoje, ou porque os leitores é que ção do nosso mercado literário
Repare-se que os antepassados são que cada tempo dita a sua própria es- não se deixam salgar, parafraseando, (como se tivéssemos).
os nossos mestres. E a parábola do tética literária. Assim, se é verdade aqui, Pe. António Vieira? Convém Confesso que há muito que não leio
Sumo-Mestre sobre os dons é clara. Se que nem tudo o que hoje se diz literá- chamar os leitores a esta reflexão, versos, nem parágrafos que desafiam
considerarmos toda a memorável rio tem “littera” e “-ura”, é verdade pois muitos alegam que um dos os limites da condição dos seus cria-
produção literária já cultivada como também que há muito aperfeiçoa- principais desincentivos da escrita dores e se recusam a dizer sequer
as moedas que foram dadas ao man- mento subjectivo da alma do nosso actual é a falta de leitores (não con- uma palavra à pantomina. Mas, dou o
cebo, perceberemos efectivamente povo em linhas que, infelizmente, não cordo, mas deixemos este assunto benefício da dúvida, talvez a literatura
que a herança (cultural) nada servirá cabem nos tecidos finos da crítica lite- para outro tópico). ande por aí, mas, por eu não saber ler,
se a não investirmos nos canteiros da rária de conveniência da actualidade. Não pretendo, aqui, levantar uma ou por eu estar tao distante da urbe…
causa dos nossos dias. É preciso mul- Ouço pesadas críticas à Literatura querela entre os “Antigos” e os “Mo- Entretanto, para não me asseme-
tiplicar os dons, investi-los, deitá-los Angolana feita na actualidade, por dernos”, como nos séculos passados, lhar àqueles que só falam e falam
no nosso chão lavado com as nossas gente de hoje, sublinhe-se. Mas, pou- muito menos questionar o “bom como as enciclopédias o que perce-
salivas maldizentes, para se poder, cos são os pastores que vejo interes- senso” e o “bom gosto” de ninguém. O bem como o vento, sem, no entanto,
em fim, colher o fruto mais saboroso sados a apascentar as ovelhas; a que acho mesmo é que é oportuno proporem soluções, diria mesmo
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“propor velas”, visto que também sou • “O fraco investimento linguístico


um aventureiro abordo dessa nau, e estético”. – Confesso que não gostei
passo a marcar 9 (nove) passos dos da expressão a primeira vez que a
muitos que, em minha opinião, retar- ouvi e, coincidentemente, de alguém a
dam o desenvolvimento da Literatura, quem chamo Mestre, José Luís Men-
nos nossos dias. donça, em conversas particulares.
• A obsessão das supostas instân- Hoje, porém, percebo que é um ponto
cias de legitimação da literatura por digno de abordagens sérias. – Advém
um cânone literário ideal, transversal das debilidades a nível do ensino da
e paradigmático para todas as épocas língua veicular e da iniciação ao es-
é um cancro que se alastra e conta- tudo do texto literário, desde os níveis
mina a flora normal da criação con- de base. A escola deveria ter, neste
temporânea. particular, como um dos objectivos
• A falta de um ideal de causa. Dá- principais a estimulação da capaci-
me a impressão de que muitos com- dade dos alunos para participarem na
panheiros escrevem por escrever, o vida literária, parafraseando Hum-
que leva, progressivamente, à morte berto Ivo (Bredella:1989).
do artista hodierno. Logo, é impor- • É importante o posicionamento mais, porém, medita-se pouco, o que é É, portanto, hora de começarmos
tante que cada companheiro saiba exacto do autor no seu tempo, para, fundamental para todo o artista, para a marcar passos significativos, para
com que a sua arte é comprometida. em fim, quem sabe, poder ultrapassar a elevação da alma. que não venhamos a dar desculpas
Um artista que não sabe por que es- o horizonte de espectativas. Vejo mui- • Há, por aqui, quem confunda trans- farrapadas aos arqueólogos do fu-
creve pode ser comparado a um pere- tos companheiros a tentarem atrair a posição da vida no e para o literário turo, quando vierem a estudar o que
grino que desconhece o seu carma. simpatia dos Seculos, carcomendo os com o culto do vulgo com a linguagem tiver restado do nosso tempo e per-
• Todos querem escrever, mas pou- seus dentes de falsidade. Mas, digo, a artística. É importante combatermos ceberem que, definitivamente, esta é
cos arriscam “O Grande Desafio” de re- prova da experiência não está no ca- isso, para não cairmos na vulgarização uma época em que nada se faz no
nunciar aos limites da sua condição e belo branco, que muitos tentam bus- do dom de certos espíritos. domínio da literatura, parafra-
começar a viver como artistas. Pois, car forçosamente, mas no • Há provas de que a literatura, seando o poeta português Alberto
penso que não se pode ser “homem” e amadurecimento, na vivência conta- aqui, participa na vida do povo. Mas, Pimentel. Pois, a nossa era corre o
“artista” intensamente, ao mesmo tempo; giante de cada estação, cada dia, cada tem de ser parte integrante dele, dos risco de ser considerada como uma
um tem de viver à sombra de outro. minuto; na vivência da sua própria seus hábitos e costumes. A verdade e época vazia, um tempo em que nada
• É necessário que cada escritor vida no parágrafo ou no verso. a mentira não importam neste se faz, no domínio da representação
tenha a noção “do criar com os olhos • A crescente abertura, no que toca mundo possível, está provado. Mas, o simbólica do homem e dos seus va-
secos”, o que, para mim, significa ter à divulgação da arte literária, corrom- binómio ficção-realidade na arte lite- lores através da escrita.
noção das vicissitudes que o turbu- peu a castidade dos templos. Ou seja, rária tem que funcionar, para que o

OMUTEKAME NI MULELE
lento mar da escrita implica. escreve-se mais, para se aparecer povo se reveja nela.

WE WA KUTEKA
Mário Pereira

1.- Kyoso kinzunzumbya kyan- kukala kuzonga okididi kiki wambata dya athu kusambuka mu kamukanda wama mu izuwa yoso! 7.- Mu kukum-
dondo ubikisa mwanya kulenga, di- athu kutangela, sekukala ni kuzakama kimoxi anga mu mulele woso woso bika okulula kwa musanu ubandesa
tadi dimoxi dya kudyelela uvwalela kwa kutambula owukumbulwilu, wa muteke, kima kima kyonzo bana mbimbi ya uxiximinu mu kisuku kya
dingi kwa muthu una wala ngo ni kuma okiteku kwebi mwanya ulonde- kuzediwa kya kusendula, mukonda kizongelu ni kizongo kilembwa kubita
upulungu kwila ukambelu wa menya kesa owunzungule wa luminiku lwe, ngo dya kukala muthu kumutalela, se- ku polo ya dikwinyi, muthu umoxi
umubeka anga, um kifwa kyenyeki pe, wezala mwenyu wavulu kwila, sek- kukala ni jipata ja kukala ku polo ya watuluka ufuluka mu kanu mu ku-
ondomba ilemba dituta dyaxikelela wandala, ulayesa mutumane woso mbutu ni jihatu je kumoxi, kwila mu kumbulula woso umutandahanyesa,
ixinda mu muxima wa athu ditadi di- woso uximana, mu kitangana kyoso mawukambelu ma okuswina kwa anga umwemwesa we hanji athu aka-
moxi dyatekiwa ni kudyelela mu kyoso kya kizuwa, kutumana mu mwenyu utalala. 5.- Ondonda ya mukwa ala, abutama, ku mbandu ya-
mbamba yeyimana kwila uwanena ndundu ku mbandu ya kalunga ka ngunga yazozo kwila ukatesa mwe- kamukwa ya kisuwamenu ni mahaha

mbandu jiyadi! 2.- Oditadi kwila


we hanji ombuthu wa kitande mu Lwanda, mwazanga mwenyomo, mu nyu mu kuzumbuka kuzola, ukam- mu kanu ku tandu dya ukatelu wa ku-
kusambuka we hanji kyandalu kimoxi besa ngunga kwa yo ukwata mu xixima kwa, anga ditadi dyenyodyo
mwanya, mu nzungule ya ufolo we, kyolande ni kamuswinyi kambiji kyo- kwambela kuma iyi mwondona ok- ubana we hanji owukambelu wa
usanyesa omwanya we kwila uxinjika
Ngana Nzambi! 8.- Anga, omuxima
zuze um kanu ni kafwadinya ke kyo- wiba umukatesa, mu kifwa kya hula- pangu ukatesa woso ukala mubika wa
we hanji owusuku mu kilunga kya ka- lungise we hanji mu kamenya kofele kaji wa usatelu, owusembelu kwila
lunga, ubana we hanji owubwiminu mu dilonga, kima kyohabike kwala mbutu umulumbu mu uvwalelu we. wenyo pe, mu kukala mu kwivila
wa muthu una wala ni mbande mu mukwa zanga mu kwivila ku mbanji 6.- Ndonda ya kwiba kwila ukatesa owukatelu wa makutu kumubokol-
tulu we kwala kumuminya, mu kuxi- ye kya, okwaba kwa kukala mona ya muxima wa, mu kizuwa kyakakwiza, wesa mu matwi; mu kukema ku tandu
mana woso wezala mwenyu mu dizwi akwa zanga enya kwila kulenduka kuzediwa, owukambelu wa kuzola dya ukatelu wa kasekelu katunda mu

lunga kwenyoko! 4.- Mu kumona mu


dye mu kwambela kuma wazediwa kwa kwatungu mu makanga ma ka- udyendesa ni makanda me masanzu- kanu wa athu ana akamba kubanza
woso wala ne ku mbamji ye; anga wa- muka mu kusota mukwanyi walungu kuma makutu yoso iyi idisanga, mu
kambe kuzediwa woso wakal mu kwi- kifwa kyenyeki pe, odiyala pe, oka- mu muxima okutululuka kwanzambi dikungu dyenyedi, kwila dizumba
vila kuma okuya kwe kavutuke dingi lunga kaka, ombiji iyi ni kafwadinya kwila ububala muxima wadisanze odyo dyabolo disanduka woso wake-
kyoso, kidyelele, uzumbuka woso mu dilonga kya ni kamenya we hanji kwila usanzukila, ni kuswina kwila xile we hanji kumuzukama, ulengesa

ufwa! 3.- kukala ni muxima umoxi mu


ukala mu kubanza kuma mwanya kakambe mongwa, abeka mu kilunji muxima wenyo ulembwa kuweha, woso ki muthu usambuka ngo odi-
yoso yakexile okihanji kya ndumba okuwaba kwila mbutu, awa, ki isu- sunga mu mukutu ni mwenyu, mba
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 LETRAS| 13

we hanji ukala mu kwiva mu kiba kye

langa. 9.- Okudyelela, kwila okukala


owunemu wa kilunji kyakambe kudi-

kwe kwawisu usanduka odikouwa


dyakukuta dya kuma kwabeta ku-
tema, wiza ni kamwanyu ke kwala
muthu kamumone kubambuka omu-
kawu wa ukukutilu walungiwa kwala
ububilu wa dituta dimoxi kwila mwa-
nya, muvwale wa ndonda ya mwenyu
kwila mwene omenya, ubukumuka
jinga kuzalesa jimbambe je, mu dixi
kwila utundisa, moxi ya ubetelu wa
utemenu we kwa menya malenduka
ma kixima kwila disenza dyoso dyoso
dimuzalesa kwenyoko, kisendulu kya
muthu ufika kuma wala ni mbande ya
ku kawuka ku ditadi dyenyedi dya-

kyala ku polo ye! 10.- Owuhanjikilu,


kambe kulenduka, okididi kyanzambi

wotekame ni mbimbi imoxi isendula


muxima wakambe kelenduka, ukala-
kalesa okyandalu kya kusambela
lumbu lwakolo lwa kwila kukamba
kudyelela ubika, mu kubandesa omu-
xima wadibale we kya mu malouwa

O PINTOR
ma ukambelu wa kuswina!

E A SUA TELA
1.- Quando a sombra negra impõe
ao Sol a sua fuga, um quadro de espe-
rança renasce em quem não tem
senão penúria que a falta de água trás
e, aí sim, a penumbra que a nuvem
negra oferece desenha na alma um
quadro pintado de esperança na haste

jão em dois! 2.- O quadro em que o


aprumada que divide um bago de fei-

Sol, em plena liberdade, irradia a luz


que empurra o anoitecer para as tre-
vas do universo, dá respiro a quem
tem peito capaz de o absorver, enalte- Albano Neves e Sousa - Rapariga
cendo quem de viva voz afirma que é
feliz quem o tem por perto; infeliz amor, desusa quem diz ser sina o mal gente que estampa a prudência no
quem sente que a sua ida não tem re- que lhe enferma, em mil sacrifícios, o corpo e na alma, mas quem sente na

quem pensa que o Sol finda! 3.- A una- ofertou. 6.- Causa de um mal que faz
gresso quando, afinal, quem fina é encanto que a natureza à nascença lhe pele o peso da mente incauta. 9.- A es-
perança, cujo verde afasta o castanho
nimidade na apreciação deste cenário doer o sentimento de um dia vir a ser seco da estação mais quente, vem de
leva a dizer, sem o risco de alguém feliz, o desamor caminha a passos lar- mansinho para que ninguém a veja
contradizer, que a pintura em que o gos à procura de quem tem guardado atravessar o deserto duma secura
Sol mostra a plenitude da sua luz é tão na alma a quietude divina que abraça vencida pelo cachoar de uma núvem
viva que, sem querer, aviva qualquer um são coração que expande, com um que o sol, progenitor da fonte de vida
conviva que estima, a qualquer hora vigor que a alma não dispensa, a be- que é a água, ousa, amiúde, encher os
do dia, estar presente à beira-mar de leza que a natureza, enfim, nem sem- seus limites do vapor que extrai, sob
Luanda, na ilha, ostentando um que- pre esconde! 7.- Enfrentando o os açoites do seu calor, da água
rer alcançado com um mufete na boca dissabor de uma notícia que faça ele- mansa dum lago que um baixio qual-
e farinha mergulhada na água de um var o tom do desagrado ao extremo quer acama, enlevo de quem se acha
prato, coisa que ilhéu inventou para de uma escala cujo valor não ultra- capaz de transpôr para a tela impa-

10.- A ansiedade, pintada num tom


sentir de perto quão bom é ser filho passe a dezena, um pacato cidadão es- ciente, o cenário divino à sua frente!

da eternidade! 4.- Assim visto, o


do mar cuja ternura habita os campos puma a boca ao ripostar quem o
alvoroça, fazendo rir aos que se que enleva uma alma carente de
homem, o mar, o peixe e a farinha acham, agachados, no outro lado da emoção, activa o querer de transpôr
num prato com água sem sal, trazem barricada a gargalhar sobre a dor da a forte barreira que um desespero
à mente o que era desejo de muitos sua desventura, dando ao quadro a impõe, elevando o sentimento caído

servo do Senhor! 8.- E, a alma, ao sen-


estaparem no papel ou numa tela virtude ausente que enferma quem é na lama do desalento!
qualquer, aquilo que daria um prazer
extasiante no simples facto de alguém tir a dor da mentira invadir-lhe os au-
estar a olhar para ela, sem dúvidas de ditivos; ao gemer sobre a dor da
estar perante a natureza e os seus ele- chalaça que sai da boca de quem não

arrefece. 5.- A causa de um lasso en-


mentos, sem os quais a vida robusta pensa ser mentira o que se acha, na
tal caverna, cujo odor imundo afasta
lace que enferma a vida ao finar o quem dela se abeira, afugenta não só
14| LETRAS 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

Poemas de Nobre Cawaia


SOBERANA DO CORAÇÃO
SEM SENTIDO
Ego,
afundei vendo-o rio,
encontrei no umbigo. Jamais saldarei tal dívida,
É muita dor a que causei,
Alter, Belo invisível, Tudo porque querias dar vida,
enalteci no verso, Monocromático mundo, Desavergonhado, até teu riso já apaguei...
mas contei ingratidão! Enegrecido, não há ver,
Cego mais, de tanto querer. Como fruto do amor me concebeste,
Outro não sou, Ainda assim mal-estar provoquei,
Nós cansou... Não se sente o relevo, Que só com divina paciência meses aguentaste,
Voz não dou. Desapareceu o frio e o calor, Porque propuseste-te em dar luz, comprovei.
Já não magoa o cacto,
Faz teu meu. Negaram o tacto. Sou do teu colo tão dependente,
Meu teu desfaz... Dele não me posso afastar,
Abraços a ti-mim, Habito no lar do silêncio, Do teu leite tão carente,
Próprio tu-eu! Desconheço o som, Sem o qual fome e sede hão-de matar.
Danço em surdo ritmo,
Ego, eco, foco: Desgraçaram o ouvir. Professora a tempo inteiro,
- Centro eu. Mestre, contigo aprendi a caminhar,
Igual doce e salgado, O abc que é da vida ponteiro,
11.10.2014 Tem defeito o paladar, Por eternidades lembrarei as lições de amar.
Muito sabor imperfeito,

INTERACÇÕES
Tiraram qualquer gosto. Na tua energia engrandeci,
Ah! Sei que essas lágrimas a ti não abalam,
Perfume inexistente, Teu suor... foi por ele que venci,
Lacrimogéneo ineficaz, Contigo todos os medos vazam,
Geração, Desapercebe-se o cheiro,
da utopia, Entregaram o odor ao coveiro. Perdoa aquelas incompreensões,
de libertação Não existe adjectivo para o que és,
com nostalgia, Quando não mais: És a bandeira dos campeões,
vive tradição, Ver rostos, Arquitecta de mim da cabeça aos pés.
ontem fez. Tocar corpos,
Ouvir vozes, Tantas foram as tuas noites em branco,
Geração, Provar sabores, Que o meu sonho fortificou,
da tecnologia, Cheirar perfumes. Fiz da tua generosidade meu banco,
de emoção, Portanto rico é o que sou.
com cantoria, Ainda assim se sentirá:
vive revolução, Com o supra sentido, o tal amor. Não sei porquê te mereço,
amanhã fará. Se és a oferenda dos céus,
Só te posso dar o meu apreço,
Gerações, Querida mãe, soberana do meu coração.
cruzam de magia,
vivem contradições, Luanda, 2.04.2008
numa vã simpatia,
gladiam acções,
comungam contrastes, hoje fazem.

21/02/2013
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 LETRAS | 15

“Da alma ao corpo”,


de Ngonguita Diogo
Espaço poético,
tempo e articulação temática *
Noberto Costa

A
ntes de todo o resto, gostaria de ções, e a dos anos 80, onde se acha ainda são outros, tempos de paz. Amor não se esgota no prazer carnal...
saudar o amável convite que me que de forma retardada... Atenção: não se Voltando a ngonguita diogo, é desses “O homem é a arte”- dizia Buffon. A
foi endereçado pela autora, para queimam etapas em poesia, sem prejuízo tempos de pomba branca, de animada vi- mulher é a poetisa, por excelência, nos
apresentação deste livro. do meio envolvente! “O poeta não deve vida vivida de que a autora também nos cantos de ninar para fazer dormitar a
Três traves mestras vão presidir a olhar para as nuvens, deve buscar o sen- fala, de forma desapaixonada, no seu poe- criança choramingona. A ternura da mãe (
minha intervenção, designadamente o es- tido da sua poesia na realidade que o ro- mário, sugestivamente intitulado “Da e já agora do pai também) é um bom mo-
paço, o tempo e a articulação de ambas deia”- diz Amilcar Cabral. Na verdade, alma ao corpo”. tivo poético. Daí à sua evocação constante
categorias filosóficas com a temática. sentimento estético e realidade se consti- Rigorosamente falando, o sujeito do vai só um salto...de cobra!
O espaço poético: a mãe natureza, as tuem ao mesmo casal dialético. enunciado reporta-nos aquelas e outras N.Diogo aderiu primeiro à convoca-
exuburantes e luxuriantes paisagens bu- O poeta e artista plástico brasileiro, makas, outros dias e outras feiras, que en- ção por via da declamação, e agora por
cólicas, o verde capinzal da sua mocidade, Fábio Pinheiro de Lira, escreve a propó- tumecem os estomâgos de vaidades, bar- via da escrita poética, cujo primeiro re-
no seu privilegiado torrão natal no sito, no seu texto introdutório do livro, riga farta, enquanto não se atenta para as bento vai entrar seguramente no privile-
Kwanza Norte e cercanias, a vivência no inspirando-se no célebre poema “No coisas do espírito que a verdadeira poesia giado grupo de cultoras do referido
Uíge onde o pai trabalhara, o sol, as aves meio do caminho tinha uma pedra”, que potencia. N.Diogo responde a esse chama- género literário entre nós - guardadas as
a disputarem o seu quinhão lá no céu, a do seu famoso conterrâneo já falecido, o mento telúrico e criativo e fá-lo com devidas distâncias.
culinária baseada nas ervas e nos demais poeta mineiro nascido em Itabira, o mo- garbo retórico no tratamento da palavra Ela retrata de forma intimista os pro-
quitutes da terra, são a substância nutri- dernista Carlos Drumond de Andrade, poética, com recursos estilíticos multí- blemas do quotidiano, quer amorosos,
tiva, com que se alimenta o seu imaginá- que “Do mais âmago da alma, eclode a plos, nomeadamente, a incidência reitera- quer sociais, quer ainda culturais, como a
rio criativo e onírico; mundo de sonhos, poesia de N. Diogo, com a trajectória de tiva da carga anáfórica e da sugestão manipulação do alembamento com fins
fantasias e verdades, plasmados tinto de um incansável poeta em busca de novas metafórica, sem prejuízo da hiperbole lucrativos, estes e outros “problemas que
sangue, suor de sacrifícios incontidos, andanças sob o sol e pedra que não está provocativa aos mais cépticos da sua estamos com ele”. De resto, a linguagem
luto e lágrimas derramados no papel em seu caminho. Ela,a pedra, não lhe im- aventura, de correr o risco de arrisacar a literária não deve estar alheia à lingua-
preto no branco. pedirá de revelar sua escritura poética arte de “poetar”. Eficiência comunicativa gem coloquial dos seus heróis, como seu
Mas, as matrizes discursivas são tam- tão dura em razão, mas saciável a sede da e eficácia estética não lhe faltam, verseja (Pai)“Pãozinho”, e personagens pícaras
bém o amor, o erotismo, a paz, e a nossa emoção e da liberdade de pássaro que se com mestria, salvo um ou outro rasgo de carne e osso, da baixa e sobretudo dos
sofrida e bem querida Angola e a nossa trí- busca em si (...)A autencticidade de sua falho à beira do conseguimento estético musseques, fazendo apelo a um portu-
plice amada África: mãe uterina, conti- raíz, de sua cultura nobre.” no apuramento da palavra. guês- padrão, afora um ou outro emprés-
nente onde nascemos, e berço da Como é sobejamente sabido, Drumond Porém, ninguém ainda foi capaz de timo sócio-linguístico do kimbundu:
humanidade. influenciou poetas angolanos da geração produzir uma obra perfeita, por mais her- kitadi(dinheiro) e matadi(pedra).
Tempo: Ngonguita Diogo condensa o de 80 e subsequentes, ou mesmo prece- mética seja ou aberta que fosse, à boa Resumidamente, sem desprimor para
tempo no verso branco ou rimado. Cultiva dentes, marcando inclusive o título da moda experimentalista.Aliás, os mestres outros núcleos temáticos, o amor é pedra
com criatividade e sagacidade o soneto. Na primeira antologia de jovens poetas, pu- da teoria da literatura não seriam para de toque, dir-se-ia pedra angular da poe-
sua temática dá largas à saudade, nomea- blicada pela UEA, em 1989, intitulada “No aqui chanados, com exigente abstracção sia de N. Diogo.
damente a nostalgia da infância, a ansie- caminho doloroso das coisas”. da sua erudição. De maneira que nos seja E bem haja por ter respondido ao cha-
dade pela chegada do parceiro e pelo Portanto, recomenda-se a leitura des- permitido o juízo de valor, com toda a mamento e ao desafio da convocação da
futuro que se busca radioso, a angústia, a tes poetas da velha gurada e da nova ge- modéstia que o limite do nosso nervo crí- palavra sugerida, mais do que dita do
frustração; a tristeza “versus” alegria, ração, para enriquecermos a nossa tico permite: a maior parte dos poemas lugar comum da poesia panfletária que
anunciada no sorriso do luar, bem como a cultura literária!... que compõem este poemário que tendes serve uma “boa Causa, mas “não “faz um
(des)esperança, mais do que isso a certeza. É destas dores e desventuras de que entre mãos são bons, sendo um livro de bom poeta”, perdão uma boa poetisa-
De resto, a luz “versus” escuridão, a igno- N.Diogo não anda arredia, nem indife- estreia, no génro literário por banda da como diria Mário Quintana.
rância “versus” lucidez, são referentes con- rente. Vale receordar que em meados dos autora, em nada fica a dever quando mui- Em síntese, mais do que a “fala” do es-
trastivos de peso da poética em questão. anos 80, o falecido jurista e arguto en- tos mais velhos ainda eram neófitos. Fala- critor no diz - que - diz da coisa dita, rema-
ND encontra na poesia um expdiente saísta Eugénio Ferreira, insurgiu-se con- mos isso com todo peso que a taríamos nós, interessa muito mais a obra
de análise para o seu meio circundante. tra o facto dos poetas angolanos estarem responsabilidade acarreta e o sentido do ficcional ou ensaística, no caso poética,
A poeia para si serve para preencher, a escrever mais sobre o amor, perante belo, em que se escora a arte implica. que poderá ser muito mais interessante
ou melhor, para responder às suas in- uma dura realidade, cruel e dramática, O lirismo de “Alma ao corpo” evoca o que o autor. A poetisa que está por isso de
quietações existenciais; o meio para traduzida no facto do conflito militar ter amor perdido e achado nos desencontros parabéns pela obra que acaba de nos brin-
preencher o espaço do lúdico e não só. No atingido o pico - tema da guerra a que da vida. Este carácter instrumental da dar. Enfim, muito haverá ainda a falar
fundo, no fundo, “radicaliza” a sua posição Ngonguita, como se pode ver no poema poesia, do verbo como fonte de inspiração sobre este poemário que não se esgota
de observador social, fazendo apelo a um “filhos da pátria” e “Independência”, não e de novas imagens artísticas, visuais e-ou numa simbólica como singela nota de
instrumento de luta individual e colectiva, omite, muito menos negligencia. sonoras, é transdendental na obra poética apresentação, para cumprir, meramente,
traduzido na poesia: intimista , por um - altura em que os rebeldes assassina- de N.Diogo. Vejamos os poemas lírico- um formalismo da praxe literária. Amén!
lado, e de intervenção social, por outro. vam populares aqui próximo em Catete, amorosos que estão inseridos neste livro,
Na verdade, a autora assume uma pos- arredores de Luanda e cercanias. Foi a que são profundamente expressivos de
tura engajada que fez época, paredes partir desses tempos de que vos digo, que que o AMOR sempre vinga, em surdina ou Texto lido no lançamento do livro de
meias com um forte lirismo, nomeada- surgiu as “makas à quartafeira”, sendo ele não, mesmo quando tomado pela crise poemas de Ngonguita Diogo, na Media-
mente na geração da Mensagem dos anos o primeiro palestrante, dada a repercus- momentânea, seja quais forem as contra- teca central de Luanda, em cerimónia
50, onde pontifica a voz femenina da Alda são da sua afirmação no marasmo da cena riedades da vida,da sociedade e da natu- decorrida a 20 de Dezembro de 2014
Lara, salvaguaradas as devidas propor- literária local. Hoje por hoje os tempos reza humana. Ademais, sendo certo que o
16| ARTES 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

TERRA TERRA
Um documentário
de Paola Zermar
LUÍSA FRESTA

V
árias tradições da Ilha de Cabo Verde incendeia-se por
Sal são servidas sob um dentro e oferece generosamente
sol inclemente e descon- essa fogueira de emoções a quem
certante neste documentário aporta a estas paragens. (Conti-
denso e colorido de 38min. Paola nuamos a assistir com desassos-
Zermar, realizadora italiana, é sego e inquietação à erupção
uma professora de arte radicada vulcânica de Chã das Caldeiras,
em Cabo Verde há mais de uma na ilha do Fogo, que desalojou já
década, que convence aqui pelo milhares de habitantes – mas tes-
conteúdo e pelo modo de mostrar. temunhamos também a resiliên-
Rodou este documentário local- cia e a solidariedade deste povo
mente, quase sem meios técnicos que renasce das suas próprias
e «orçamento zero», com a coor- entranhas).
denação jornalística de Albertina São gentes que integram, inclu-
Rodrigues e a colaboração de ami- sivas, que fazem suas as outras
gos e conhecidos, para além da culturas; um povo que faz a sim-
sua própria determinação. Não é a biose entre o local e o longínquo e
primeira vez que a receita fun- contamina todos os que irrom-
ciona, nem é a primeira vez que o pem neste espaço.
método me impressiona. Nesta curta-metragem percebe-
Mas passemos aos factos: para mos a relação dos ilhéus com a
quem não conhece Cabo Verde, natureza, os vários ritmos que por
vale a pena tentar perceber que aqui coabitam: a coladeira, a ca-

funaná e o batuk, estilos muito


tipo de emoções movem esta dência mais festiva e dançante, o
nação crioula que passa para o ex-
terior uma imagem de alegria e populares na Ilha de Santiago, e a
musicalidade latente, sensual, in- morna, traço de união e marca
trínseca. É uma cultura eclética, identitária do povo cabo-ver-
feita de símbolos e de fusões, de diano, que atravessa todas as
cores, brilho e cheiros penetran- ilhas num sentimento nostálgico
tes, e as manifestações actuais são através de notas e letras que can-
tão importantes como as suas ori- tam sobretudo o amor e a sau-
gens nos primórdios da história dade. Nomes imortais do passado
do arquipélago. O que esperar de e outros sonantes do presente
um povo que resulta da intersec- (Cesária Évora, Bana e Luís Mo-

Morabeza, sodade, crioulidade.


ção genética e cultural ao logo de rais, Maira Andrade, Lura, Sara
séculos? O crioulo olha através do Tavares ou Nancy Vieira) ajudam afirma por uma cultura que faz
mar, destino de ilhéus, pois o mar a perceber até que ponto a música Palavras que fazem sentido nas sua a cada passo, com olhos de
tem essa influência e esse poder do arquipélago é exportável e im- terras que atravessamos com ver mas também mãos de moldar
incomparável para este povo de prescindível muito para além do Paola, na interacção com a natu- o futuro e uma palavra a dizer ao
imigrantes; o mar é Mãe, alimenta espaço lusófono. reza, nas danças festivas e de ca- mundo. Entre brilho, cor e sofisti-
e embala, está sempre presente Nesta curta-metragem passam rácter mais alegre, onde reina a cação, lantejoulas e plumas, ale-
no imaginário de Cabo Verde e é historiadores como Evel Rocha, euforia. Alguns artistas locais su- gria e divertimento, ou «passa
fonte de inspiração inesgotável. que nos detalha a influência da blinham a importância de exaltar sab», como esclarece a esplêndida
Ele afasta e aproxima, é separação cultura Mandinga no carnaval de o seu próprio carnaval, com uma cantora Silvia Medina.
e saudade, é reencontro, é azul, São Vicente e todos os adereços identidade cada vez mais vincada Impossível ficar indiferente ao
transparência e profundidade, e indispensáveis às personagens e autónoma, ancorado fortemente que estas ilhas têm de sonho pró-

batuk, respeitosamente distante


confunde-se com o céu imenso que percorrem as ruas dançando, no funaná, na coladeira e no ximo, de palpável, de real e de

como uma tela de fundo. La mar,


que o documentário nos oferece com o corpo besuntado de carvão vital. Terão todos os ilhéus esta
e sainhas de sarapilheira. E músi- do carnaval brasileiro, conhecido magia? Nada como visitar o arqui-
como dizem os hispano-falantes, é cos estrangeiros como o italiano e aclamado mundialmente, que pélago e ajuizar por si mesmo,
um desses substantivos de género Ettore Ferro ou o mexicano Ri- chegou a ter, no país, um enorme numa terra de perder o juízo, com
camaleónico, que se torna femi- cardo Castell, que o país absor- ascendente nas coreografias car- o coração no mar, e um povo com
nino na boca dos poetas, porque veu e reinventou com outras navalescas (Quem não se lembra o coração na boca.
_____________________
tema Carnaval de São Vicente, no .
roupagens. Magui Spencer, uma de uma das estrofes do conhecido
Agradecimentos: Expresso o meu claro reco-
«mar» é mais intenso e exprime
nhecimento à realizadora, pela disponibilidade e
(Dizia Eduardo Galeano, no seu El
maior afectividade no feminino. voz de uma suavidade eston-
prestimosa colaboração, nomeadamente na cedên-
libro de los abrazos, que Vicente é um Brasilinho»?).
teante, canta em português qual Cesária Évora cantava «São
temas festivos e ilustra a multi- cia de material fotográfico e a Ocean Press
«[…]Diego no conocía la culturalidade e o plurilinguismo Cabo Verde é um país aberto a (www.oceanpress.info), pela comunicação fluida
mar[…]»). da sociedade local. outras latitudes mas que se
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 GRAFITOS NA ALMA| 17

ELOGIO DA CIVILIDADE(*)
Cartilha da ética Carlos dos Santos

Não posso deixar de agradecer a pais, irmãos, cônjuges, filhos, vizi- fora ao enfermeiro para este lhe fa- tem, em plena igreja, um tipo ao meu
todos os que se interessam pela Éti- nhos, colegas e amigos? Claro que cultar acesso ao médico; portanto, a lado acendeu o cigarro e pôs-se a fu-
ca. É quase um acto heróico, senão têm. Mas, então... serão todas essas culpa de ele vender notas, não é dele, mar no meio da missa. Fiquei tão in-
mesmo louco, da sua parte, nos tem- pessoas, extraterrestres? Não, não é do enfermeiro; enfermeiro este que dignado que quase entornei a minha
pos que correm. Este interesse pela são. São pessoas bem conhecidas. Sa- diz que precisa desses trocos para cerveja…”.
Ética pode até ser considerado imo- bem quem elas são? Somos nós, aqui poder pagar ao polícia para o deixar Todos nos queixamos, mas… e
ral, no nosso Moçambique de hoje. É, nesta sala, nós lá fora nas ruas, nós passar sem os faróis que lhe rouba- quem é que age?
pelo menos, anormal.
A RESPONSABILIDADE ÉTICA
nos prédios e nas repartições, nas es- ram; portanto a culpa de ele cobrar
É que... abra-se um jornal, ou uma colas e nos hospitais, nos cafés e nas consultas, não é dele, é do polícia; po-
revista de ocasião; ligue-se uma salas de reuniões. Somos todos nós, lícia este que diz que sem essa renda
qualquer estação de rádio ou um ca- que passamos a vida a apontar os de- paralela nunca haveria de conseguir A responsabilidade ética e a moral
nal de televisão; seja notícia, debate dos uns aos outros. pagar o fardamento escolar do seu fi- da sociedade não são pertença da po-
ou reunião: desleixo, roubalheira, Com isso, não andaremos nós, afi- lho nem comprar notas ao professor, lícia, nem das instituições de justiça,
corrupção. Para onde quer que nos nal, e aí sim, com toda a razão, a quei- para o filho passar de classe; portan- nem dos outros agentes do Estado de
viremos, daremos de caras, olhos e xarmo-nos mas é de nós mesmos? Afi- to, a culpa de ele vender multas, não é quem nos queixamos ininterrupta-

nês, 551 a.C.479 a.C.), “O homem de


ouvidos, com toda a certeza, com nal, como disse Confúcio (filósofo Chi- dele, é do professor, aquele mesmo mente, meros instrumentos que são

bem exige tudo de si próprio. O homem


uma multidão de vozes desfraldadas professor que vende notas aos alu- daquela que é a moral que é vigente

medíocre espera tudo dos outros”.


na mais desgarrada acusação: nos, alegando que tem de pagar ao na sociedade de onde eles mesmos
Acusa o cidadão comum a polícia enfermeiro, aquele mesmo que diz vêem e a que pertencem. A responsa-
de estar corrompida pelas redes de Ora, todos os acusados possuem que tem de pagar ao polícia... bilidade ética é, sim, de cada cidadão.
imigração ilegal, e esta aponta, acto uma justificação que os desculpabili- Faz até lembrar a história do indi- Se a imoralidade for uma prática ad-
contínuo, a palavra ainda fumegante za perante si mesmos da sua actua- víduo que conta, inconformado, a um mitida, silenciada e executada pelos
da acusação, contra os oficiais da mi- ção: o professor vende notas aos alu- amigo: “Este mundo está fora dos ei- cidadãos em geral, a polícia, a justiça
gração, que culpam sem sequer pen- nos, alegando que tem que pagar por xos. Já não há moral. Vê lá tu que on- e as autoridades em geral serão ne-
sarem, a companhia de aviação, a cessariamente imorais, também. De
qual diz logo, sem hesitar, que a res- um ovo de galinha só pode sair um
ponsabilidade é da embaixada no pinto de galinha!
país de onde vem o avião. Não lhes É que o professor, o enfermeiro, o
importa que sejam todos eles elos da soldado e o polícia, o deputado e o
mesma cadeia de acção. ministro, o pulha e o ladrão, o cana-
Queixam-se os cidadãos alcunha- lha e o vilão, o corrupto, enfim, quem
dos de carenciados, da roubalheira são, afinal, senão os nossos filhos, ir-
que constituem os excessos que os- mãos, familiares, vizinhos, amigos,
tentam os funcionários da miríade de colegas, filhos dos nossos vizinhos,
organizações que os invadem em no- amigos dos nossos familiares, cole-
me da ajuda às populações, funcioná- gas dos nossos irmãos, ou seja… nós
rios que, por sua vez, se escudam mesmos?
apontando acusadoramente a garra- Quando vamos ao “Estrela” com-
fa de água mineral ainda fresca ao sis- prar piscas porque no-los roubaram
tema local de governação, sem se im- na noite anterior, estamos a ser tão
portarem com o facto de se dizerem imorais como aquele co-cidadão que
entre eles, parceiros de cooperação. os roubou. Estamos a imitá-lo, con-
Lamenta o professor a demissão tribuindo para que tal acto em vez de
dos pais; denunciam os pais a incom- ser por todos condenado, porque
petência do professor; e culpam a imoral, acabe por ser por todos prati-
ambos, e mais aos alunos, e à pobre- cado, tornando-se assim um valor,
za, e ao colonialismo e à conjuntura em vez de um mal social.
internacional, e à globalização, os Socorro-me uma vez mais de Con-
funcionários do sector da Educação. fúcio quando disse: “Quando vires
É visível e audível em todos os ór- um homem bom, tenta imitá-lo;
gãos de informação. Não é minha in- quando vires um homem mau, exa-
venção. Cada um aponta a todos os mina-te a ti mesmo”.
que o rodeiam, quantos dedos tem Não, definitivamente, não é o pro-
em cada mão, disparando em rajada blema da escassez de pão. É a falta de
em todas as direcções, fazendo, as- ética social que faz com que nesta pá-
sim, de si próprio o único cidadão tria todos ralhemos mas ninguém te-
imaculado, pobre vítima de toda esta nha razão.
decrépita situação! A culpa é sempre Desengane-se quem pensa que es-
dos outros. Mesmo quando eles se- ta atitude de acusar os outros para
jam parte de nós. Mesmo que eles se- desviar a atenção de nós mesmos é
jam produto de nós. nova. Não, ela é bem antiga. Já no cha-
É que, a pergunta que não quer ca- mado livro dos livros, nos é dito em
lar é esta: serão todos aqueles a quem Mateus 7:3-5:
cada um de nós acusa a cada dia que “3Porque reparas no argueiro que
passa de serem agentes da imoralida- está no olho do teu irmão, e não vês a
de, eremitas? Não terão todos eles trave que está no teu olho! 4 Como
Arte Makonde
18 | GRAFITOS 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura
A TEORIA DA JANELA QUEBRADA nem temermos penalização, nem
nos desculparmos com o que fazem
Estamos perante uma crise de va- todos os outros cidadãos, só aí pore-
lores morais, diz-se à boca cheia em mos fim às múltiplas formas de con-
cada esquina – em mais uma mano- duta e de acção imorais de que a to-
bra para atribuir a outrem a respon- do o momento nos queixamos.
sabilidade por tudo aquilo que anda Por isso, não perguntem o que é
mal. Estamos, então, manietados, que outrem deveria estar a fazer ou
encurralados, sem solução? Não, deveria ter feito. Perguntem-se, em
não estamos. Há solução, sim: todas as circunstâncias, em primei-
“A resposta tanto para a crise pes- ro lugar, o que é que vocês próprios
soal como para a crise colectiva é a deveriam ter feito ou deverão fazer.
mesma. E é simples. Pode ser repre- E façam-no. Sem medo. Escolham,
sentada numa única palavra: arbí- não obedeçam.
trio. Ter arbítrio sobre os aconteci- Estarei eu pr’aqui a fazer a apolo-
mentos – a sensação de controlo – é gia da desobediência civil, o apelo à
algo drasticamente ausente da con- revolta? Estou, com certeza. Mas não
dição contemporânea. A sua captura através da violência e sim, antes,
está disponível através de um meca- através do exemplo bom, positivo,
nismo simples: a acção. (…) é a acção correcto. Próprio. De cada um. É isso
– e apenas a acção – que muda as coi- que é a ética. Como disse Buda: “O
par-de-estatuetas-de-parede-em-pau-preto sas. (…) É a acção dos indivíduos que ódio não destrói o ódio. Só o amor
maior efeito tem naqueles que o ro- destrói o ódio. Sê como o sândalo,
deiam (…) e, consequentemente, em que perfuma o machado que o corta.”
ousas dizer ao teu irmão: “Deixa-me saber o que está certo” - disse Lyndon todo o mundo” – Ross, Carne, “A Re- Inundem, pois, todos aqueles que
tirar o argueiro do teu olho”, tendo Johnson (36º Presidente dos EUA). volução sem Líder”. vos rodeiam com a fragrância inten-
tu uma trave no teu! 5Hipócrita, tira É que a Ética não é a mera obser- Mas, como é que perdemos o con- sa da vossa conduta. Eles se inebria-
primeiro a trave do teu olho e então vância da moral! A Ética é questiona- trolo? A Teoria das Janelas Quebradas rão, e estonteados pela doçura que
verás para tirar o argueiro do olho mento, é reflexão. E é opção. A obe- dá-nos a resposta: “Se uma janela está dela emana, escolherão seguir o
do teu irmão”. diência irreflectida é anti-ética. A quebrada e não é consertada, quem exemplo que vocês lhes dão. Assim,
A Ética tem a ver, pois, com o com- obediência cega, sem ponderação passa por ali conclui que ninguém se cada um de nós tornar-se-á muitos. E
portamento próprio, e não com o das circunstâncias e das consequên- importa com aquilo e que não há nin- muitos de nós tornar-nos-emos ain-
dos outros, condição em que adqui- cias, é cúmplice. Ela é o caldeirão on- guém no controle. Em breve, outras da mais. E mais de nós, mudaremos o
re a designação desclassificada de de a moral se transmuta em imoral e janelas aparecerão quebradas, e a mundo. Sem uma palavra. Sem uma
“moralismo”. Ela é reflexão sobre o o imoral passa a ser coisa normal. sensação de anarquia se espalhará do lamentação. Apenas com o poderoso
comportamento, mas não o dos ou- Por isso, jamais a obediência a prédio para a rua, enviando a mensa- exemplo da nossa própria acção.
tros e sim o próprio. uma ordem poderá ser esgrimida gem que ali vale tudo.” – Gladwell, Porque, como disse Hemingway
Mas a Ética não é apenas reflexão. como justificativa para fugir à res- Malcolm, “O Ponto da Virada”. um dia: “O mundo é um lugar encan-
Todos somos capazes de reflectir. A ponsabilidade que cada um de nós Então, que acção é esta de que nos tador, pelo qual vale a pena lutar”. O
Ética tem a ver com o fazer, e não com adquire sobre as consequências de fala Carne Ross, capaz de nos fazer nosso país também, digo eu. E só nós
o dizer. Por mais que falemos contra qualquer acção por si praticada. Ou retomar o controlo? Tem de ser uma podemos fazer essa luta.
eles, haverá sempre corruptos en- silenciada. acção vinda de cima, uma acção de Cito, por isso, a terminar, Aldino
quanto houver quem os corrompa.
“Eu sou Nghamula, o homem do
A ditadura, a descriminação, a grande vulto, realizada pelas autori- Muianga, em “Nghamula”:
Seja de forma passiva ou activa. Se
tchova
violência, a corrupção e todas as ou- dades ou por pessoas especialmente
nós não lhas comprarmos, os polícias
Eu sou o condutor
tras formas de imoralidade só são preparadas para isso? Não. A Teoria
deixarão de vender multas, os profes-
Tu és o combustível
possíveis por causa daqueles de nós da Janela Quebrada diz-nos que a si-
sores pararão de vender notas, os en-
Ele é o cobrador
que obedecem cegamente às ordens tuação pode ser revertida “conser-
fermeiros deixarão de vender con-
Nós somos o motor da nossa Vida!”
que lhes dão. Jamais haverá qual- tando-se detalhes mínimos do am-
sultas e até os ladrões deixarão de quer desses abusos se não houver biente imediato”. (…) Podemos pre-
surripiar faróis. É só graças à cumpli- executores irreflectidos. Ou deverei venir a ocorrência de delitos apenas
cidade de cada um de nós, que nos dizer, mesmo, irracionais? E esses limpando as paredes (…)”. – idem. Maputo, 03 de Novembro de 2012
muitos Estrelas deste país que, nosso executores, uma vez mais, somos to- Só quando cada um de nós agir da
que é, é o que dele fazemos, espelha o dos nós que nos andamos por aí pas- forma que for mais correcta, cuidan-
que nós somos, é só com a nossa cum- sivamente a queixar daqueles que do de pensar nas consequências das ________________________________
plicidade, dizia, que ali se cruzam e (nos) mandam executar. Mas cujas suas acções, para escolher as opções (*) Adaptado da intervenção de Carlos
quase convivem, roubado, ladrão e ordens acatamos, em silêncio. E esse que, beneficiando-nos, não prejudi- dos Santos, no lançamento do seu livro
comprador. De quem nos queixamos, é que é o verdadeiro problema. quem, porém, a mais ninguém, e o fi- “Cartilha da Ética”, a 04 de Abril de 2011.
então, se, afinal, as três mais não são Como disse Martin Luter King: “O zermos sem esperarmos premiação,
do que facetas do mesmo cidadão, que mais preocupa não é o grito dos
que de roubado se transforma, assim, violentos, nem dos corruptos, nem
em ladrão de si próprio? dos desonestos, nem dos sem ética.
A existência do corrupto só é pos- O que mais preocupa é o silêncio
sível se houver um agente corruptor. dos bons”.
E quem é esse agente? É um de nós. Obedecemos, dizemos, por medo.
Somos nós. Os dedos que apontamos O que pressupõe que sabemos que
aos corruptos estão geralmente en- está errado aquilo que fazemos. Mas
lameados de corrupção. O corruptor fazemo-lo, ainda assim. Ora, “Saber
não é vítima, ele é o agente causador! o que é certo e não fazê-lo é a pior co-
E se, como diz o ditado, “Uma ima- bardia”, disse Confúcio.
gem vale por mil palavras”, pois, um Mas, o medo não é só um acto de
acto vale por mil imagens, já que cobardia. É também um comporta-
quem faz não precisa sequer de fa- mento imoral. Porque o medo é par-
lar. “Contra actos, não há argumen- ceiro, é cúmplice daquilo que se te-
tos”. O exemplo é o mais poderoso me, pois essa coisa alimenta-se, so-
de todos os instrumentos da ética. brevive e agiganta-se apenas graças
Mas, atenção: “Fazer o que está a esse mesmo medo. O medo é, assim,
certo não é o problema. O problema é a causa de tudo aquilo que tememos.
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 GRAFITOS NA ALMA| 19

Quando Paris arbitra a arte africana


Lauren Ekué

Q
uantos meses se passaram de qualquer trabalho, seja de que
sem vos escrever! Faltou- área for. Brett Bailey, enquanto ho-
me a tinta da minha esfero- mem Branco, foi incapaz de se colo-
gráfica. No entanto, o vosso postal car no lugar de um Negro. O encena-
made in Paris foi escrito à sombra da dor garante a sua boa-fé mas os seus
Torre Eiffel. No programa: cor, ape- detractores, militantes negros, têm
nas cor. outra visão, outra sensibilidade, que
A alcatifa espessa, pesada e macia mais não é do que a pura experiência
da galeria Piasa oferece um quadro da condição negra e do seu cortejo de
cuidado e sereno que nos permite en- discriminação e micro-agressões.
tusiasmarmo-nos com o belo. As O seu espectáculo foi representado
obras e as esculturas dos mestres diante dos camiões da CRS. Uma elite
africanos sucedem-se. As paredes de polícias fortemente armados fazia
brancas favorecem a explosão das co- frente aos manifestantes. Isso é uma
res. Gostaríamos de fazer nossa tão afronta, uma falta de gosto, para o en-
bela morada. Lamentavelmente, só cenador que queria denunciar as
podemos absorver o luxo à nossa vol- ofensas feitas aos Negros, aos Africa-
ta de maneira vertiginosa. A arte é al- nos, reproduzindo numa instalação
tamente espiritual e intelectual. O ho- os mesmos quadros…que alimentam
mem é antes de mais um ser criativo. os mesmos clichés. Um dilúvio de
Embora África represente apenas um imagens choque, uma estética próxi-
grão de areia no mundo das transa- ma da poverty porn associada ao
ções e no mercado de arte, os grandes minstrel show contemporâneo. Se
actores deste meio, as grandes lei- Brett Bailey queria obter um passa-
loeiras, começam a interessar-se de porte de boa consciência, um diplo-
perto pelo assunto. Piasa abre a esta- ma de arrependimento, os Negros
ção com uma venda histórica. Nesta te uma perita reconhecida no mundo exposições em Paris. mais susceptíveis de Paris deitaram
première, os artistas do mundo afri- inteiro pela sua especialização em ar- Há algo de repugnante na nossa por terra o seu projecto. A peça foi
cano francófono estão representa- te africana e da Oceânia. época. As maiores jóias do espírito adiada. Em França é de bom-tom cul-
dos. O fond de vente é o do grande co- Anteriormente trabalhou no Mu- angolano encontram-se no Ocidente tivar o espírito rebelde. Após este
leccionador André Magnin. Na sala a seu Nacional de Arte Africana e na Ins- enquanto os museus africanos pos- episódio, ninguém poderá perguntar
rebentar pelas costuras, a atenção a tituição Smithsonian. Jean Fritz é não suem muito poucas obras de arte para que serve a arte. O artista é um
cada bater do martelo é rigorosa. Os só uma especialista muito respeitada provenientes da Europa e algumas sentinela de sentidos, a sua arte um
«Vendidos!» ecoam. A decepção sur- como também uma figura central no migalhas dos seus tesouros nacio- catalisador do espaço social.
ge quando uma tela de Chéri Samba é mercado de arte africana e da Oceânia. nais. Temos que folhear belos livros
vendida por apenas 35 000 euros. E Esteve directamente envolvida para nos ligarmos a uma parte essen-
saúda-se a subida alucinante do pre- nos mais importantes leilões, os que cial da nossa psique.
ço do quadro do jovem pintor Victor atingiram preços quase astronómi- Paralelamente a estas diversas
Arthur Diop. Num leilão, uma parte do cos, de records, nomeadamente o da vendas, o espectáculo Exhibit B pro-
espectáculo está na sala. Desde os as- estátua Kongo Nkonde, originária da voca paixões. Um sul-africano de pele
sistentes da leiloeira ao telefone e ao RDC. Para os criadores africanos des- branca instala em Paris o seu espec-
computador até ao público, entre o te tipo de arte que inspirou artistas táculo anti-racismo e desencadeia a
qual se encontram algumas figuras como Picasso, o seu valor não é pecu- ira dos militantes anti-racismo. É
conhecidas do meio da arte contem- niário, reside no seu carácter sagra- uma história que não se percebe. O
porânea africana, a ocasião é dema- do. A função real desses objectos tão encenador garante a sua boa-fé mas
siado importante para ser perdida. A valorizados é a de estabelecer uma li- os seus detractores têm outra visão,
arte africana contemporânea não sus- gação com os espíritos. Mme. Fritz outra sensibilidade. Ser progressista
cita tantas paixões como as estátuas e aborda a arte, o seu significado e o é inovar, ignorar as receitas obsole-
outros objectos do continente negro. mercado que desenvolveu, assim co- tas. A arte não pode ser uma verdade
Na Casa Sotheby’s, Jean Fritts tra- mo o seu lugar na arte contemporâ- universal e intangível. O meio, a épo-
balha desde 1992, sendo actualmen- nea. Refere-se aos grandes leilões e ca e até o lugar influenciam a leitura
20 | GRAFITOS NA ALMA 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

Fronteiras
Rossana Oliveira

E
spalham-se nuvens densas e Desde sempre ouvira o zumbido no futuro e o presente era o meio de
espessas que invadem os con- dos insectos onde quer que estives- lá chegar.
tornos da cidade. se. Lembrava-se docemente do sitio A tempestade cede e deixa-se cair
A brisa meiga e quente de final de de pertença desse zumbido, do ar como lençol que cobre a cidade.
tarde faz-se passado e em seu lugar o nocturno preenchido até o último Dava por si num sítio húmido e obs-
céu enrola uma massa cinza e escura átomo por esse burburinho. En- curo.
que devora a fronteira do azul límpido quanto as plantas forjavam fotossín- O que estava prestes a acontecer,
e se apodera dele por completo. tese os insectos produziam anteci- estava ainda turvo, por definir. Só sa-
Fechou os olhos por um instante, pação pelo zumbido. Antecipação bia que tinha por ela própria entrado
em resposta a invasão feroz de per- que se entranhava em cada ser. Re- naquele lugar que parecia um arma-
guntas que lhe arremessavam. Com as cordava essa consciência constante zém, uma arrecadação e trocado a luz
mãos emaranhadas em desassossego de co-habitarmos o mesmo espaço do dia pela sombra perversa.
tentou mais uma vez deslocar-se até com outros seres. Dessa vivência Buscava outra vez por algo que não
ao local onde tudo se passara. sem muros, grades, paredes, cercas tinha, que obsessiva e desesperada-
Desembrulhava as imagens há tão que nos separassem. mente sentia que precisava e nessa
pouco criadas, cada meticuloso deta- Nas noites em que o zumbido su- expectativa seguia o sorriso que a
lhe desdobrado como origami em cumbia de repente, o silêncio pacifica- chamava e que pensava conhecer,
busca de uma explicação. Alguma ma- mente constrangedor e solitário inva- imaginando que quisesse o seu bem, a
neira teria de haver para resgatar a dia o ar como se houvesse uma pausa quisesse por inteiro.
normalidade, o concreto, o absoluto, o de nada. Os sapatos altos procuravam incer-
chão certo da sua monótona e ocupa- Lembrava-se dos cigarros ou ci- tos por um sítio para pisar que não es-
da rotina. garrilhas, que queimavam lentamen- tivesse inundado. O corpo balançava
Tudo esvoaçava na sua mente. te à noite e do fumo que ondulava e se em busca de um equilíbrio que certa-
O cheiro erosivo e penetrante dos misturava com os seus cabelos forte- mente a tinha evadido. A prudência
travões do carro misturavam-se com mente encaracolados. E de quando a gritava-lhe alarmada o perigo emi-
o dia nostálgico e impregnavam-se na antecipação era feroz de dia e os ci- nente, que mais que a humidade, a cir-
roupa que vestia. garros quase não lhe davam tempo cundava. Mas ela fingia não ver, não
Só conseguia estar dentro do turbi- de os acender e se extinguiam nos saber, não sentir.
lhão, da tempestade, nada mais lhe vi- seus dedos. Optava sempre em confiar cega-
sitava a memória. Embora quisesse, a Olhava agora à sua volta, ao amon- mente o que se traduzia em ingenui-
todo custo, permanecer no momento toado de futilidades que se acumula- dade a mais e em limites excedidos.
que a antecipava; agarrar-se a essa vam em seu redor – chão estranha- Ela ainda não estava nesse ponto de
lembrança da normalidade como bús- mente simétrico, estantes e móveis viragem. Até então continuavam os
sola à espera que voltasse a apontar o incomodamente preenchidos. Cada sorrisos, a conversa leve embora
norte e corrigisse esta nova realidade. vez mais “coisas” o circundavam, o li- num sítio medonho mas não tardava
A neblina obedecia à sua própria mitavam, o mantinham reduzido. o que temia.
dança. Viajava lentamente pelo ar, Guardava como névoa a vida que ti- Existia um vazio acompanhado de
criando um reboliço sombrio e de nha sido entre paredes. Sabia apenas uma culpa nela. Um vazio que embora
inquietação. que tinha vivido no meio de aglome- não parecesse era o seu deus, a sua ra-
Numa outra vida, outro homem rados de papeis com ideias, aponta- zão de existência, e residia numa
sentia o desprezo pela futilidade da mentos desordenados, nas margens qualquer desajustada ideia de afecto.
mera existência fermentar em si como nomes de pessoas e lugares, docu- Uma culpa que nascera no momento
gangrena. Estava preso, refém de um mentos e livros. O melhor eram as em que se definiu como ser com certo
século que não lhe pertencia, de práti- conversas, as discussões acesas que encanto capaz de seduzir.
cas e normas que para seu grande des- vezes sem conta reacendiam a chama Do outro lado, do olhar seduzido,
consolo se tornariam regras social- da sua crença e mais uma vez sentia existia o rasgo de oportunidade de
mente aceitáveis. Convénios dilatados os punhos fecharam-se e erguerem- afirmação. O homem que alimenta o
de insignificância, iguais aos outros se. Acreditara na mudança que não ego faminto.
que os antecediam, igualmente nulos. se via mas que se sentia projectar-se
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 HISTÓRIA| 21

BULAMBEMBA e YELALA
PATRIMÓNIOS ESQUECIDOS
(CESBC – Centro de estudos estratégicos da bacia do Congo)
YELALA
Durante a sua segunda viagem
(1485-1486), em Outubro ou Novem-
bro de 1485, perto das quedas de Yela-
la, a montante de Matadi, Diogo Cão
deixa uma inscrição gravada numa pe-
dra, testemunho da sua passagem e da
dos seus homens.
Esta inscrição situaria assim o pri-
meiro contacto da expedição com o rio

BULAMBEMBA
Congo a 23 de Abril de 1482.

Para os congoleses este nome evo-


ca o local de detenção dos membros
do MLC (Movimento de Libertação
do Congo) de Patrice Lumumba e dos
opositores ao regime de Mobutu. Es-
ta ilha situada na embocadura do
Congo acolheu Gizenza, Tshisekedi,
Kamitatu, etc.
Mas esta Bulambemba arrasta
consigo outra reputação: foi um por-
to activo no comércio de escravos. A inscrição autêntica numa rocha perto das quedas do Rio Mpozo (Angola) (Aqui chegaram os navios do esclarecido rei D. João II de Portugal – Diogo Cão, Pero Anes, Pero da Costa”)
Filhos da África central atlântica cap-
turados como escravos foram envia-
dos para Portugal, para a Madeira e
Açores para trabalhar nas planta-
ções de cana-de-açúcar por volta da
primeira metade do século XV. É o
princípio do que viria a tornar-se no
tráfico atlântico. Isto passa-se cerca
de alguns decénios antes de as Amé-
ricas se tornarem o novo destino dos
escravos e de Goreia se converter na
plataforma de correspondência para
o continente americano. Decalque da inscrição junto às quedas do rio Mpozo
No Senegal, as autoridades imple-
mentaram uma política específica pa- desde o final dos anos 1950. Tendo si- História da África Central atlântica.
ra que a ilha de Goreia, testemunho de do alternadamente um lugar militar Não merecem o destino que lhes está
"uma experiência humana sem prece- destinado a controlar a embocadu- reservado.
dentes na história dos povos" seja ra do Congo e uma ilha-prisão para Serge DIANTANTU tentou "falar
"uma terra de peregrinação para toda os opositores políticos do regime desta história tão difícil sem comple-
a diáspora africana", e "um espaço de de Mobutu, Bulambemba permane- xos". Como ele diz "no fundo, as pes-
partilha e de diálogo das culturas atra- ce mais do que nunca uma terra de soas querem saber o que se pas-
vés do confronto dos ideais de recon- sofrimento. sou…" Escolheu a banda desenhada
ciliação e de perdão". "A ilha de Goreia Chegou a altura de proteger Bu- para romper o esquecimento e falar
foi classificada como local de interes- lambemba e tudo o que testemunha desta história publicando Memórias
se histórico em 1944, com medidas de o seu passado histórico. A ilha deve da Escravatura. Ele reflecte sobre as
protecção em 1951 (durante a época tornar-se num local de memória, um acções a levar à prática para restau-
colonial). Posteriormente foi inscrita destino de peregrinação à imagem rar e salvaguardar estes locais de

HISTÓRIA
na lista do património nacional em da ilha de Goreia. memória a fim de devolvê-los à cons-
1975 (Decreto N°012771 de 17 de No- ciência universal. Padrão Saint Augustin
vembro de 1975) e na do património Para contactá-lo através do seu site,

www.serge-diantantu.com
da humanidade em 1978.” siga a ligação Internet seguinte:
Como Goreia, Bulambemba "traz- Bulambemba e Yelala, são teste-
nos um testemunho excepcional so- munho de mais de cinco séculos de
bre uma das maiores tragédias da his-
tória das sociedades humanas: o tráfi-
co negreiro." Mas Bulambemba não PADRÃO DE SAINT AUGUSTIN
beneficiou de qualquer atenção. A ilha Esta estela foi levantada por Diogo Cão em 1482 no cabo Santa Maria, também chamado Cabo do Padrão (português) ou Cap Padron
é vítima da sua situação numa região (francês) em Angola, frente a Banana (Congo). É um monolito que ostenta um brasão de Portugal, com uma cruz situada mais acima pa-
caracterizada por conflitos armados ra lembrar a sua passagem. Isto é, é uma «pedra de posse»). Vandalizado pelos holandeses em 1642, o Padrão de Saint Augustin foi en-
(Angola Congo) e outras perturbações contrado por um viajante sueco em 1886. Reabilitado, está conservado no Museu da Sociedade de Geografia de Lisboa (Portugal). O Mu-
políticas quase ininterruptas (Congo) sée Royal de l'Afrique Centrale (Museu Real da África Central) de Tervuren (Bélgica) tem em sua posse uma cópia.
22 |DIÁLOGO INTERCULTURAL 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

Em Cidade Velha, Cabo Verde


ESCAVAÇÕES BRITÂNICAS PÕEM A DESCOBERTO
A MAIS ANTIGA IGREJA DA ÁFRICA SUBSAARIANA
NUNO REBOCHO, EM CABO VERDE cumentos relega para as falácias sem diosos analisarem em pormenor os za Vieira para recuperar este majestoso
qualquer fundamento – é o caso de te aspectos fundamentais da azulejaria templo, cuja visibilidade desde o ocea-

E
scavações arqueológicas efectua- ter sido obra da Irmandade dos Ho- portuguesa em África nos sécs. XV e no era assinalável. Todavia, a crise eco-
das em Novembro de 2014 por mens Pretos, fazendo-se, com isso, XVI e começarem a precisar com nómica fez abdicar desses intentos, o
uma equipa técnica da britânica tábua-rasa de que a Irmandade foi maior rigor a história da antiga cidade mesmo acontecendo dos desejos de
Universidade de Cambridge, liderada por muito posterior à construção dessa de Ribeira Grande. Uma das interro- preservar os vestígios do antigo Paço
Chistopher Evans (a pedido do Presidente Igreja, como o atesta documentação gações a que será necessário dar res- Episcopal que criminoso e imperdoável
de Câmara Municipal da Ribeira Grande de eclesiástica colectada em Portugal. posta é a questão de se apurar se foi a vandalismo de um ambicioso, sem es-
Santiago, Manuel de Pina) puseram a des- Túmulos, restos de azulejos e de capela do Espírito Santo (cujos res- crúpulos de qualquer espécie, lançou
coberto, em Cidade Velha, os restos da mais faianças, além de objectos diversos, fo- tos foram postos a descoberto) que ao mar para construir uma discoteca
antiga igreja católica da África subsaariana ram achados nestas escavações que antecedeu a construção da Igreja de clandestina: há actos que nem uma pe-
– a igreja de Nossa Senhora da Conceição, serão continuadas no próximo ano, Nossa Senhora da Conceição ou se sada pena de cadeia consegue reparar.
nascida da antiga capela do Espírito Santo. provavelmente junto dos baluartes fi- esta capela é apenas uma dependên- A antiga Ribeira Grande (actual Ci-
Data dos fins do séc. XVI e foi construída pe- lipinos da linha de defesa da Fortaleza cia do que teria sido o primeiro tem- dade Velha, Património da Humani-
los portugueses na que é hoje o único Patri- Real de São Filipe. Iniciadas em 2006, plo subsaariano. dade e Capital Cabo-verdiana da Cul-
mónio Mundial reconhecido pela UNESCO já permitiram localizar os restos do al- Devido ao árduo trabalho de inves- tura 2015 - onde se cruzaram os mais
em Cabo Verde. moxarifado de Ribeira Grande (do séc. tigadores, é a antiquíssima cidade que prestigiados navegadores e conquis-
Eram conhecidos os vestígios des- XVII), que foi arrasado por uma devas- ressurge dos escombros e da qual já tadores da gesta dos sécs. XVI e XVII
ta relíquia, supondo-se que debaixo tadora investida de Francis Drake, e o estão a descoberto alguns monumen- (como Vasco da Gama, Cristóvão Co-
de terra se escondiam preciosidades. antigo cais deste importante entrepos- tos, designadamente a Igreja de Nossa lombo, Américo Vespúcio, Sebastian
Os canhenhos históricos faziam-lhe to de escravos. Ambos situados actual- Senhora do Rosário (séc. XVI), o Pe- de El Cano, Francis Drake) – reganha
referência mas geralmente era apon- mente em artérias com muito trânsito, lourinho (séc. XVII), o Convento de S. renascido esplendor, graças ao empe-
tada a Igreja de Nossa Senhora do Ro- só agora é possível criar condições pa- Francisco, os restos da Igreja da Mise- nho de uns quantos.
sário do Homens Pretos como mais ra o desviar, permitindo que sejam co- ricórdia (ambos também do séc. XVII,
antigo templo católico existente nes- locados em visibilidade pública. tal como a Fortaleza Real de São Fili-
ta parte do continente africano, co- Com este espólio agora trazido à luz pe) e a Sé Catedral (do séc. XVIII).
berto de mitos que a rudeza dos do- do dia, surgem condições para os estu- Existiram projectos do arquitecto Si-
Cultura | 5 a 18 de de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 23

A evolução da poesia nigeriana


( THE MANTLE - AFRICULTURES)
Odimegwu Onwumere

A poesia na Nigéria, o país mais populoso de África, evoluiu consideravel-


mente ao longo de cinco décadas de independência. O meu avô era um poeta
Soyinka, Chinua Achebe, John Pepper-Clark, entre outros, passaram pela edu-

que compunha mentalmente e que partilhava a sua cultura através de poe-


cação ocidental. A sua poesia, matizada pelas atitudes ocidentais, contudo, ac-

mas épicos, utilizando a sua arte como forma de lembrar a história oral, as
tuou como um cancro na cena poética nigeriana, deixando para trás os Nze On-

histórias, a genealogia e a Lei. Ele, Sua Real Majestade Nze Ihebuzoaju Paul
wumeres deste mundo. A poesia destes homens educados ocidentalmente foi

Onwumere, conferiu significado à poesia na aldeia; contudo, em sua vida, a


essencialmente orientada para a academia; como a guerra entre Socialismo e

maioria das pessoas, incluindo o autor destas linhas, tinham pouca com-
Capitalismo estava na altura em voga, estes escreveram poemas desenhados

preensão acerca do trabalho que estava a desenvolver.


para minar o colonialismo. Representaram uma classe de poemas de protesto e
de poetas que se desviaram face à norma nigeriana.

A poesia é um género literário que desafia a tentativa de uma definição precisa. Borboleta
Muitos poetas e estudiosos deixam a sua musa determinar o que é a poesia, mas o
comum dos mortais poderia utilizar esta definição frequentemente encontrada Velocidade é violência
na Internet: “A poesia é a consciência imaginativa da experiência, expressada Poder é violência
através de significado, som e escolhas de linguagem rítmica, por forma a evocar Peso é violência
uma resposta emocional. A poesia tem sido associada ao emprego de métrica e ri-
ma, mas estas não são, de todo, necessárias. A poesia é uma forma ancestral que A borboleta procura segurança na leveza
tem passado por inúmeras e drásticas reinvenções ao longo do tempo.” Na imponderabilidade e ondulação do vôo
Devido ao facto de os Africanos não terem registado sob a forma escrita even-
tos que ocorreram durante a Antiguidade, o desenvolvimento da poesia é credi- Mas numa encruzilhada onde a luz mosqueada
tado ao grupo linguístico Indo-Europeu que incluí o Irlandês, Gaélico Escocês, Cai das árvores numa nova estrada rude
Galês e Bretão, bem como os seus subgrupos Britónico e Goidélico. Os nossos territórios convergentes encontram-se
Não obstante os registos históricos, os Africanos ancestrais sabiam o que era
poesia e deram-lhe bom uso. Da Índia Antiga veio o Vedas (que era anterior a Eu chego com poder suficiente para dois
2000 a.C.), 1 mas é frequentemente defendido que o poema mais antigo de que E a gentil borboleta oferece-se
há registo é O Épico de Gilgamesh, composto um pouco mais tarde, algures en- Num sacrifício amarelo e brilhante
tre 1300-1000 a.C., na Suméria (actual Iraque/Mesopotâmia). Os épicos gregos Contra o meu duro escudo de silício.
como A Ilíada e Odisseia, os épicos indianos em sânscrito Ramayana e Mahab-
harata e o tibetano Épico do Rei Gesar também preenchem a lista das bem co-
nhecidas narrativas antigas. Onde está a representação africana nesta História?
Assume-se que a poesia africana fosse inexistente porque não havia registos es-
critos, mas a tradição oral africana na era contemporânea de Homero prospera-
va. Poemas africanos de tempos imemoráveis foram transmitidos aos povos atra-
vés da tradição oral e ainda sobrevivem em casebres, aldeias e cidades africanas
de hoje em dia.

As Vozes Nigerianas de outrora

A África tem tido incontáveis pensadores que procuram determinar o que faz
da poesia uma forma de arte distinta e o que distingue a boa da má poesia. Estas
práticas resultaram no desenvolvimento do estudo da estética da poesia, tam-
bém chamado de Poética, um campo disciplinar necessário para diferenciar um
poeta oral de um músico. Os africanos fizeram isso mesmo, tal como os Chineses
antigos (no Shi Jing ou Cinco Clássicos), desenvolvendo um cânone de poesia
que tanto era ritualístico como dotado de importância estética.

- Chinua Achebe
Sem analisar aprofundadamente os pormenores da Poética, um dos princí-
pios deste estudo determina que a poesia tem que ter regras. Por exemplo, a
Poética de Aristóteles descreve os três géneros de poesia como épico, cómico e
trágico. Posteriormente, formas de poesia como o poema épico ou lírico foram Enquanto na Poética há géneros e regras que norteiam a poesia, o fim do co-
identificadas. lonialismo na Nigéria conduziu a novas formas e estilos de poesia, a maior parte
No estudo da evolução da poesia em África e em outros lugares, a Nigéria não dos quais sem um estilo definido. Os poetas nigerianos na era do colonialismo
pode ser negligenciada. Nos tempos modernos, existem quatro gerações de seguiram a cultura de escrever poesia que aprenderam directamente dos colo-
poetas nigerianos: Pré-Colonial, Colonial, Pós-Colonial e Contemporânea. Ao nialistas brancos; os poetas pós-coloniais alteraram estes estilos e temas. Após
longo destas gerações a poesia evoluiu enormemente, e para melhor. a independência, poetas como Niyi Osundare, Onwuchekwa Jemie e outros es-
As populações multi-étnicas da região (como os Hausa/Fulani, Yoruba, Igbo, creveram de forma muito poderosa nesta forma de arte reformada.
Ijaw, Efik, Ibibio, Bini, Nupe e Igala, entre outros) tinham os seus modos tradi- Em 1986, o Prémio Nobel da Literatura foi entregue ao poeta-dramaturgo
cionais de apreciar poesia, muito antes da chegada dos colonialistas brancos. pós-colonial Wole Soyinka, consolidando o papel da Nigéria no plano da litera-
Nze Onwumere, o meu avô, por exemplo, era Igbo, um povo que tanto antes co- tura global. Moldados pelo colonialismo, os poetas da segunda geração, como
mo depois do colonialismo recitava poemas orais com vozes noturnas, particu- os auto-intitulados Marxistas Odia Ofeimun e Niyi Osundare, são os líderes da
larmente em funerais. luta pela melhoria da poesia nigeriana e pela eliminação da sua mentalidade co-
Tal como os desenvolvimentos na escrita e literacia transformaram a poesia lonial. Harry Garuba, Afam Akeh e Sesan Ajayi, um professor universitário, um
por todo o mundo, os poetas na Nigéria, incluindo Nnamdi Azikiwe, Christop- poeta confessional e um jornalista, respectivamente, estão entre os líderes do
her Okigbo, Dennis Osadebe (de memória abençoada) Gabriel Okara, Wole grupo da terceira geração (pós-colonial) de poetas.
24 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura
Pobreza
As Vozes Nigerianas do Amanhã
Existirá algo como a pobreza?
Actualmente, a proliferação da poesia na Nigéria é catalisada pelo incre- Existe POBREZA quando se tem saúde
mento da consciência social e da pressão emocional causadas pelas questões mas não riqueza?
e crises sociais, políticas e económicas. Existe POBREZA quando se é rico
Poetas nigerianos contemporâneos (a quarta geração) como Remi Raji, mas não se tem saúde?
Uche Peter Umez, Obi Nwakanma, Ogaga Ifowodo, Chidi Anthony Opara, Maik Existe POBREZA quando se é rico iletrado
Nwosu, eu próprio e tantos outros, estão a produzir poemas quase numa base e pobre de cultura?
diária, quer sob a forma de livro, quer publicados na Internet. Poetas de todo Existe POBREZA quando se tem muitos filhos
o mundo invejam e aprendem o poder e a fama de que os poetas nigerianos mas não há dinheiro para cuidar deles?
gozam na cena literária do país. Existe POBREZA quando se é rico
mas sem filhos?

Nadia
O que chamam POBREZA pode ser RIQUEZA
para outro homem.
Não há por aí mulheres financeiramente
Marraqueche: os cabelos grisalhos do ricas mas estéreis
Atlas, listrados pela luz dos anos, que anseiam por filhos?
como a verdade escoltada por um guarda-costas. Não há por aí
gente financeiramente musculada
Não é guerra: a queda rápida que não tem paz?
não é guerra, Nadia. Não há por aí gente
portadora de deficiência
Dois pingentes, cada um de corações, e mas que tem trabalho manual?
o anel prateado atrelado ao tempo; O que para uns é POBREZA
pode ser RIQUEZA para outros.
Não é guerra: mas a caricatura da distância, O sucesso de alguém é
E este momento, um seio pleno cintilando determinado pelo seu sucesso
na superfície da lua, as ruas anoitecidas a nível financeiro?
e encapuzado, como o fora-da-lei, Na vida, não se pode ter tudo
o estranho ou o viajante: por mais alta que seja a nossa posição.
Por isso, não existe RICO ou POBRE.
Como o vaso de onde o leite escorre O que há são pessoas glutonas-insaciáveis
cheirado de tão perto, desvanece-se, ou, assim lhes podemos chamar, cleptomaníacas.
como o geco que abandona a sua cauda.

- Obi Nwakanma
- Odimegwu Onwumere
Apesar da falta de publicações impressas disponíveis para poetas e autores, _____________________
esta nova geração de poetas prospera, especialmente através de muitos concur- 1 Existe um debate considerável quanto à data da composição do poema
sos locais de poesia como o Prémio de Poesia ANA/NDDC Gabriel Okara, o Pré- The Vedas. Neste âmbito, cito: Jagadish Chandra Chatterji. The Wisdom of the
mio de Poesia Cadbury, o Prémio de Poesia Muson, e o Prémio rotativo NLNG/ Vedas (Quest Books, 2006): 3.

Odimegwu Onwumere é membro dos Poets for Human Rights (Poetas pe-
Nigeriano de Literatura. Com a excepção do Prémio Nigeriano de Literatura, que ______________________________
tem uma bolsa de $50.000, poucos oferecem recompensas financeiras.
Mas tal como um crítico mencionou acerca do panorama poético nigeriano los Direitos Humanos) e poeta residente da Champions for Nigeria (Cam-
de hoje, existe um conjunto díspar de talento e mediocridade, rima, retórica e peões pela Nigéria), Reino Unido. Odimegwu é um leitor voraz, um escritor
racionalidade. Mesmo assim, acredito que não haja escassez de intelectuais profissional e prolífico, investigador, jornalista, poeta, pensador, crítico so-
entre os poetas nigerianos. Os poetas nigerianos são grandes escritores, vi- cial, analista político e activista. Tem dois livros publicados: Piquant: Love
sionários e reformistas sociais que procuram continuamente levar a sua vi- Poems To Prince Tonye Princewill (2008) e The Many Wrong Doings of Ma-
são a bom porto (o mesmo não pode ser dito da nossa liderança política). Con- dam Do-Good (2009) e tem muitos manuscritos ainda por publicar, que
tra o pano de fundo de algo que pode ser descrito como temível, os poetas ni- aguardam uma editora.
gerianos representam a oposição às maleitas da sociedade.
Hoje, os poetas e autores nigerianos estão comprometidos com a causa do
humanismo e justiça social. Porque sempre retribuíram à sociedade, os nige-
rianos devem lutar para manter o seu legado vivo.

Obi Nwakanma
Cultura | 5 a 18 de de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 25

RECORDAR PARA O FUTURO


(A propósito do livro “O Curandeiro do Monte Pirro”
de Samuel Gonçalves) António Barbosa da Silva|*

dos aspectos positivos da nossa histó- ganavam e exploravam a ignorância e


ria, dos quais a morabeza é parte inte- a necessidade dos mais fracos, pois
grante. Os nossos maus hábitos e cos- “em terra de cego quem tem olho é
tumes, pseudo-valores e reminiscên- rei”. Por exemplo, o curandeiro do
cias detestáveis Monte Piorro, Filipe, fez de certas er-
Os nossos maus hábitos e costumes vas e das suas orações ao São “Supria-
incluem um componente religioso- no” e às Forças Astrais Superiores a
cultural que é uma mistura de religião panaceia (remédio) para todas as
popular com superstições diferentes, doenças, principalmente as que eram
portanto um sincretismo de crenças vistas com sendo provocadas pelo dia-
religiosas com crenças mágicas e su- bo, a feitiçaria, a praga, o mau-olhado,
perstições como: a feitiçaria, o exor- etc. Por isso, a casa do Filipe, tornou-
cismo, o espiritismo, o fazer “malfeto”, se, por assim dizer, num hospital de
etc. Assim, o curandeiro de Monte pobres, os quais o consideravam co-
Piorro (Filipe), é o principal protago- mo tendo melhores conhecimentos do
nista do livro, um grande “djabacoso”, que os médicos e enfermeiros di Bila
que, na opinião do povo, curava as (S. Filipe do Ilha do Fogo), porque, ao
pessoas que sofressem de várias contrário destes, ele curava todas as
doenças, orando a S. Cipriano (“Santo doenças, dizia o povo.
Supriano”, o santo preto, no dizer do Estes mitos e estas crenças popula-
povo), conjuntamente com ervas me- res devem ser lembrados como maus
dicinais da ilha do Fogo (como babosa, exemplos de costumes que não devem
folha do eucalipto e “lorna”). ser transmitidos à nova geração. O seu
Os nossos pais ainda se lembram valor cultural, religioso e moral deve
da trágica história do colonialismo, ser esquecido para sempre, porque
impregnada de acções violentas con- “outros valores mais altos se levan-
tra o povo, da fome desnecessária tam” (Camões).
que, por exemplo, durante a II Guerra
Mundial, devastou grande parte da Os nossos bons hábitos, costumes e
população de Cabo Verde. Lembram- valores, que devem ser recordados
se também da miséria e da fome cau- Outros aspectos narrados pelo au-
sadas pelo abandono do povo pelo re- tor, inerentes ao nosso modus vivendi
gime colonial-fascista de Salazar, que e que, pelo seu valor perdurável, não
Curandeiro obrigou muitos cabo-verdianos a emi- devem ser esquecidos:
grar para Dakar, São Tomé e Príncipe - A boa educação que nos foi dada
O romance “O Curandeiro do Mon- partilha com o Fogo e, complementar- e Angola, onde a maioria deles vive- pelos nossos pais, apesar da limitação
te Piorro” escrito pelo médico Sa- mente, com as outras ilhas, no que res- ram como escravos, longe dos seus fa- dos seus conhecimentos escolares;
muel Gonçalves apresenta um con- peita, por exemplo, ao conceito e fenó- miliares, sem dia e esperança de os - A educação moral e religiosa que
junto de valores morais, religiosos e meno da “morabeza”. tornar a ver. Tudo isto, e mais calami- recebemos em casa, na escola e na
culturais que considero relevantes dades e intempéries que sofremos no Igreja; ou seja, uma educação integral
para a preservação dos bons costu- Os nossos hábitos, costumes e valores tempo colonial, não devem ser esque- a inculcar na nossa alma e consciência
mes, particularmente, ao nível das A palavra “curandeiro”, que surge cidos, mas recordados como motiva- moral, que nos conduza ao dever de
comunidades residentes na ilha do no título do livro de Samuel Gonçal- ção que nos faz lutar, para que, seme- amar e fazer o bem ao nosso próximo,
Fogo, como, de forma mais genérica, ves, leva-nos a estabelecer a distinção lhantes adversidades, jamais venham respeitar as autoridades e as pessoas
no âmbito da identidade cultural ca- entre maus hábitos e costumes e bons a acontecer aos nossos filhos e à gera- mais velhas, dizer a verdade, viver ho-
bo-verdiana, inserida no contexto do hábitos, costumes e valores. ção vindoura. nestamente, repudiar o roubo, a “ma-
continente africano. Os primeiros, que aparentam ter Além disso, devemos esquecer landrice”, a vadiagem e a bebedeira.
Sublinho, pelas seguintes três ra- apenas valor histórico, independente- certos costumes e as certas crenças Que nos leve a trabalhar arduamente
zões, o sentido de pertença cabo-ver- mente do facto de fazerem parte da narradas no livro do Dr. Samuel Gon- para não sermos uma sobrecarga para
diana: primeiro, porque a ilha do Fogo nossa identidade cultural e psicológi- çalves, por constituíram a parte obscu- os outros, cumprir as promessas fei-
é parte integrante do Cabo Verde; se- ca, deverão ser combatidos e esqueci- ra e lamentável da nossa cultura, ex- tas com alguém sem necessidade de
gundo, porque os costumes, valores e dos para sempre, pelas razões que pressão de opressão profundamente testemunhas ou contratos em papel
hábitos do Fogo, quando bem analisa- apresentaremos mais abaixo. Por ou- interligada com a ignorância e a su- selado, mas segundo o dictum: “a mi-
dos são, do ponto de vista identitário, tras palavras, nós, ao termos cons- perstição. Assim podemos esquecer: nha palavra de honra basta”. Hoje, es-
cabo-verdianos, já que, em outras ciência dos nossos maus hábitos e cos- as crenças da feitiçaria, malfeito, mal- se sentido de honestidade e honradez
ilhas deste arquipelágico país, encon- tumes, devemos esquecê-los. Enquan- dição ou praga, “má bóca/boca sujo”, e perdeu completamente o seu signifi-
tramos as mesmas práticas; em tercei- to os nossos bons hábitos, costumes e má-língua e mau-olhado, ou que exis- cado, porquanto todos querem enga-
ro lugar, porque “O Curandeiro do valores, a serem transmitidos às gera- tem animais de natureza maligna ou, nar a todos, procurando viver à custa
Monte Piorro” descreve os bons cos- ções mais jovens, como ponte de liga- então, amaldiçoados pela natureza, de outros e desprezando o trabalho
tumes, valores e hábitos vivenciados ção entre as gerações mais jovens e as como a mula, o corvo e o “manelôbo”. honesto, principalmente, o trabalho
na ilha da Brava, evidenciando tanto o mais idosas, deveremos recordá-los. É também importante recordarmos na agricultura sequeira.
que têm de peculiar como o que com- Assim será garantida a continuidade como as pessoas mais “espertas” en- Santo Agostinho escreveu: «Encon-
26 | DIÁLOGO INTERCULTURAL 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

trei muitos com desejos de enganar trangeiro, etc. Todos estes bons costu-
outros, mas não encontrei ninguém mes estão directa ou indirectamente
que quisesse ser enganado». narrados pelo autor no seu livro “O cu-
Também a expressão “pouca vergo- randeiro do Monte Piorro”.
nha” perdeu o seu valor psicológico e A propósito, o curandeiro Filipe,
moral, e portanto deixou de ser um va- quando não conseguia curar uma
lor positivo na boa educação e preven- doença, recorria ao “djunta mon”. As-
ção de actos e omissões condenáveis. sim podia pedir a ajuda do curandeiro
A propósito do papel da Igreja na edu- Mané Preto, que também sabia invo-
cação, o autor descreve como o curan- car espíritos para curar ou amaldiçoar
deiro do Monte Piorro conseguiu ma- as pessoas.
tricular-se na escola primária de um Recomendo pois a leitura do
padre que, nos Mosteiros, além de de- livro a todos os cabo-verdianos, prin-
sempenhar o seu papel de sacerdote, cipalmente aos do Fogo e da Brava,
foi também professor e “enfermeiro” visto que é a eles que o livro faz mais
que curava doentes, quer usando re- referências. Recomendo a todos que
médios que importava, quer orando a conheçam o nosso passado e se preo-
São Cipriano. Aprendeu também com cupem com o futuro da cultura e iden-
esse padre a ter compaixão do povo e, tidade cabo-verdianas. Recomendo-o
por isso, como curandeiro não cobra- igualmente aos africanos de língua
va os doentes que lhe pediam ajuda. oficial portuguesa, já que o autor, Dr.
Outros bons costumes que devem Samuel Gonçalves, é um bom narra-
ser lembrados e ensinados aos nossos dor, conhecedor do crioulo do Fogo e
jovens são, para além da nossa mora- dos nossos costumes e domina bem a
beza, também a amizade entre os pais, língua portuguesa.
filhos, netos e os outros parentes, até à Com a sua forte imaginação criadora
terceira e quarta geração (o que pare- e capacidade pedagógico-didáctica, faz
ce possuir algo de Bíblico em si). O com que, ao iniciarmos a leitura, nos
nosso costume de “djunta mon”, o cos- possamos sentir motivados para não a Samuel Gonçalves
tume de “dar pratos” aos vizinhos, fa- interrompermos até chegarmos ao des-
miliares e amigos, quando se “matava” fecho dos muitos e significativos episó- convidado a confirmar ou não este meu * Professor de Teologia, Saúde Mental e
um porco; a ajuda mútua dos compa- dios, relevantes para a compreensão do ponto de vista. “Dixi”! Ética dos Cuidados de Saúde em Oslo (Norue-
ga)

Pode morrer um cidadão qualquer


dres e amigos, mesmo estando no es- livro no seu todo. Está, portanto, o leitor

nunca o poeta que vive nele


Ao poeta Eduardo White
Japone Arijuane

criação. Como criação, vários limitam- de ser. Enquanto os poetas, sem abs-
se a ceder às vontades do corpo, tor- tracção nenhuma, vivem!, sem antes
nam-se escravos de qualquer obe- nem depois, simplesmente vivem e os
diência vinda deles mesmos. Nascem outros os vivem, os celebram, na me-
e somente vivem porque sabem que dida que com eles conversam, brigam,
irão morrer; esses tem na morte o seu seja lá o que for. Se preguntasse a
maior terror, por esse terror levam a qualquer um: o que realmente impor-
vida de forma drástica. Por esse res- ta? Teria várias respostas, mas, quan-
peito, submetem-se e prematuramen- to a mim, só o viver me importa e os
te, sem na vida algo se tornarem, reali- poetas o fazem eternamente.
zam-se, extinguindo-se na morte. Que Quis dizer à minha namorada que
fique claro, todos os que se vão, sem Eduardo White, assim como Mayakovs-
algo criado, se foram prematuramen- ki, Hemingway e outros todos poetas
te, por mais anos que tenham vivido. vivem, vivem-nos e a poesia vive deles.
Os poetas não temem a morte, têm Não tenho dúvidas e nem preten-
consciência dela, e deles enquanto se- sões supersticiosas em afirmar que o
res criadores. Os poetas criam várias poeta Eduardo White está nesta hora
mortes ao longo da caminhada e vivem- no país por ele mesmo criado, sentado
nas, quando a morte do indivíduo apa- para a janela do Oriente, quando lhe
Eduardo White rece, eles não morrem, o individuo ne- apetece beber uma cerveja no Pulmão
les é quem se vai, eles ficam a vaguear ou nas barracas do Museu, ao despe-

U
m dia, a minha namorada nha resposta parecia ter tido um efeito num mundo criado por eles mesmo. dir-se do seu amor, dizendo: até já co-
questionou-me: “o que é que dominó, ela não teve hipóteses de uma Um dia li que Mayakovski se suici- ração. Pode mesmo estar agastado
achas do antes e depois do outra questão, fui cogitando a respeito dou, que Hemingway fez mesmo, atre- com as mortes dos Homoines que
Eduardo White?” Lembro-me que não do silêncio dela. Pensei como deveria vo-me a contradizer todos que assim existem pelo mudo que ele consegue
levei segundos a responder-lhe: “Para dizer-lhe em outras palavras, que fos- pensam. Esses poetas tiraram o que ver a partir da sua janela.
os poetas não existe o antes e muito sem mais simples, o que dissera; che- de comum tinham: o indivíduo! O poeta que escreve e vive na mes-
menos o depois, para os poetas só guei à conclusão de que aquela foi a úni- Não quero concordar com aquela fi- ma intensidade que ama a vida e as
existe poesia” – disse eu! ca forma simples de definir um poeta. losofia que postula que o corpo é ape- coisas da vida, dirá sempre que o sol
Carregou o semblante, arregalou as Ora vejamos. O individuo, enquanto nas a jaula da alma, se assim fosse, os raiar: bom dia, Dia. Para que seja o Dia
sobrancelhas e aguçou a voz, mas não individuo, só é isso e nada mais, um indivíduos, todos eles, libertar-se-iam em si bom para todos os que o vivem.
disse absolutamente nada. Pois, a mi- simples humano, isto é, uma simples com a morte, o que provavelmente po-
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 27

Tchanaze, a Donzela de Sena

C
onheci o Paradona quando es- da sua virgindade. O cenário do livro
creveu “A gestação do luar”, decorre entre Inhangoma, Gorongoza,
nesses memoráveis tempos como também em Kumalolo, zona si-
em que se tentava criar a geografia li- tuada abaixo e a nascente de Sena,
terária moçambicana, e cada um de mesmo junto de Zambeze, próximo de
nós se sustentava nas ferramentas da Caia, santuário dos maiores feiticeiros

vidas de pessoas já falecidas e que di- Marcelo Panguana


sua utopia e da sua criatividade. O que e bruxos, os quais se encarnavam nas
significava o título da primeira obra
do Paradona? Apenas isto: a gesta. O tavam a sorte das pessoas que habita-
começo de tudo. O início do sonho. Pa- vam aquele lugar. Uma maldição en-
radona, ao enveredar por essas lucu- gendrada por gente maldosa fez com
brações emotivas do seu livro, tam- que Tchanaze contraísse n’fucua,
bém esboçava os primeiros traços da doença mortal que se contrai pela
nova poesia moçambicana após a con- maldição dos espíritos que habitam o
quista da independência nacional. Es- vale de Zambeze. O quadro que este li-
távamos no começo de uma outra lite- vro narra é denso, assustador, angus-
ratura, depois de consumados os ob- tiante, quase macabro, e que talvez
jectivos da poesia de combate que sus- por isso prende o leitor da primeira
tentou a nossa aventura libertária. até à última página. É a estória do in-
Com o livro de poemas “A gestação do conformismo perante a morte de
luar” se iniciava um outro percurso li- Tchanaze e o retratar de todos ritos e
terário em Moçambique, uma outra exorcismos que culminarão, mais tar-
forma de buscarmos a nossa identida- de, com a ressurreição da donzela
de, porque não existe nenhuma pátria mais bonita das terras de Sena. Como
capaz de se suportar sem fazer o exer- disse a escritora Paulina Chiziane, es-
cício da sua cultura. te livro, referindo-se a «Tchanaze a
Aquilo que afirma uma escrita, Donzela de Sena», mostra que a beleza
qualquer que seja, é a singularidade moçambicana é cultura, que deve es-
com que ela se veste, a forma como ex- tar acima da beleza monótona das te-
plora os conteúdos da sua realidade. lenovelas. Paulina Chiziane afirma
Só desse modo é que ela pode ser uni- que através da leitura de «Tchanaze»,
versal, isto é, quando parte da sua sin- experimentou mergulhar nos saberes
gularidade. É nesse contexto que a es- escondidos na gruta dos tempos. Diz
crita de Carlos Paradona Rufino Ro- ainda a escritora: «Ganhei nova visão
que, neste caso, “Tchanaze, a donzela da existência, que sempre nos ocul-
de Sena” se afirma, nessa sua tentativa tam sob a capa de superstição. Debati
de vincar alguns traços da nossa mo- novos conceitos de vida, porque entre
çambicanidade através desse mergu- nós, bantu, os vivos, os mortos, o visí-
lho a esse mundo desconhecido, mági- vel, se entrelaçam na macabra dança Carlos Paradona
co e incompreensível para nós, sim- do quotidiano».
ples mortais. Fá-lo sem entrar nesse
O cheiro da oralidade
abriu e, por entre os seus aros, apare- optam por “modelos” próprios, em via
exercício folclórico a que alguma es- ceu ela inteira, a transbordar para fora de formação, diferentes, por conse-
crita desonesta se socorre com vista a A escrita de Carlos Paradona, aque- os seus encantos de divindade. Pare- guinte, acabando por escapar a outros
alcançar uma visibilidade que acaba la que encontramos nestas quase du- cia mulher que fora fogo e lume e bra- modelos considerados canónicos. Por
sendo grotesca, anedótica e efémera. zentas páginas, traz o cheiro da nossa sa de corações apaixonados, em Sena. isso, a leitura do romance moçambica-
Carlos Paradona não vai por esse ca- oralidade e a inesgotabilidade das As suas missangas e tatuagens não se no provoca uma certa perplexidade
minho, apenas recria as histórias ins- nossas tradições, maquiavélicas ou podiam parecer com outras senão ou estranheza, uma vez que não se ro-
piradas na realidade sugerida pelo Se- não, reais algumas, sobrenaturais ou- com aquelas de cujo íntimo saíram tula ou encaixa em formas previamen-
na, onde o realismo fantástico predo- tras, e que nos faz imaginarmos al- mensagens que regozijaram toda a ra- te conhecidas, inaugurando outras,
mina, escrevendo, como o disse a es- guém que sentado a roda de uma fo- paziada da região, e também as almas experimentais, e menos convenciona-
critora moçambicana Paulina Chizia- gueira, algures, nas terras de Sofala, agrilhoadas no desconhecido. Ali esta- dos. É nesse contexto experimental
ne, de modo a levar o leitor a uma via- conta estórias que enriquecem o ima- va ela, aquela que podia ser a que fora que se deve inserir o romance “Tcha-
gem por mundos desconhecidos, para ginário de quem as escuta. É uma es- venerada pelos espíritos passados, naze a Donzela de Sena”, um romance
trazer novas visões e colocar à luz, sa- crita sem nenhuns pretensiosismos. presentes e futuros de Sena, Caia e de surpreendente, não apenas pela sua
beres ocultos ou adormecidos. Sem excessivas metáforas. Límpida. toda a terra». temática, mas por esse seu carácter
A estória do livro tem como epicen- Transparente. Sedutora. De um verda- Os romances que vêm sendo publi- experimental, onde podemos encon-
tro Sena, onde Tchanaze, eleita a mu- deiro contador de estórias. Como se cados nos últimos tempos em Moçam- trar novas formas que em ultima es-
lher mais desejada de entre todas as disse, a escrita de Paradona é simples. bique, particularmente “Tchanaze, a tancia, não apenas testemunham a vi-
mulheres, aquela que foi fogo e lume Nada o move para a complexidade dis- Donzela de Sena”, desmentem de for- talidade do romance moçambicano,
dos corações dos homens de Sena, e cursiva, mesmo que a complexidade ma categórica alguma corrente de como também asseguram que este li-
também de Mutarara, passando por da história que nos conta o sugira. A pensamento segundo a qual o roman- vro de Carlos Paradona Rufino Roque
Murraça, Chipanga, Caia e mesmo até história, refiro-me a história que Para- ce é uma arte narrativa com que os vai ser nos próximos tempos uma das
Cheringoma, vivia com os seus. Mas dona nos conta, deve correr límpida moçambicanos lidam com dificulda- grandes referências sempre que esti-
Tchanaze não só conquistou o coração como os rios. Como o vento. Como o de, e com menos competência, talvez ver em causa a análise do novo roman-
dos vivos como também dos espíritos sussurro das florestas. Repare-se, por até inabilidade. Para a estudiosa Ana ce moçambicano.
que jaziam no chão de Sena, seduzidos exemplo, na beleza e simplicidade dis- Mafalda Leite, o romance é um género
pela beleza do seu corpo, pelo brilho cursiva do seguinte parágrafo: de hibridação de formas, e, provavel-
das suas missangas e pela apetência «Muito devagarinho, a porta se mente, os moçambicanos escolhem e Março/2014
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 28

Circo made in África


O Circo e a moda celebram
um cheirinho de África
C
Lauren Ekué

IRKAFRIKA 2 apresenta uma duzir de 18 a 25 notas. O executante toca-a frika I, teve a honra de ser o espectáculo ção; a sua erudição excepcional deixa
imagem de África em total rup- de pé, com resistentes correias de suporte, oficial das celebrações do primeiro Dia transparecer um espírito de uma rara fine-
tura com os clichés. O grande ou sentado. Toca-se com varetas revestidas Mundial da Cultura Africana (JMCA). De- za e uma paixão sincera.
público vai partir ao encontro de uma Áfri- de borracha. Da música à dança vai apenas pois de Paris, esta tournée passará pelo To- A cenografia homenageia os criadores
ca autêntica, viva e muitíssimo poderosa. um passo. Sendo um forte símbolo da histó- go a 23 de Janeiro de 2015. através de peças de vestuário emblemáti-
Tudo estará reunido para fazer desco- ria dos povos africanos e verdadeiro factor cas como um conjunto de vestido e capa de
brir ao espectador o ambiente de terras de identidade, a dança, frequentemente Fashion Mix. Moda de cá, criadores Cristobal Balenciaga e as últimas criações
longínquas, onde tudo é emoção, generosi- acrobática, está presente em todo o conti- de lá. De 9 de Dezembro de 2014 a 31 de de alta-costura da casa Alaïa.
dade, alegria de viver e encantamento. No nente. Ela une os homens de uma mesma Maio de 2015, o Museu da Imigração E esta história de moda e de imigração
programa: acrobacias, malabarismos, nú- região, tribo ou linhagem. O Zaouli, a Pan- propõe uma exposição concebida e rea- funde-se na perfeição num casaco Céline
meros aéreos, entreactos cómicos, sapatea- sula e a Tap Dance contam cada uma a sua lizada com o Palácio Galliera, museu por Phoebe Philo (Outono-Inverno
do, ballet, música gospel. história. O Zaouli é uma dança espectacu- da Moda da cidade de Paris. 2013/14). Este retoma a carta gráfica da te-
É um espectáculo ligeiro, criativo e físi- lar pela rapidez de execução. Esta dança de la em plástico dos grandes sacos vendidos
co, o que nos propõe a trupe de Cirkafrika. máscaras homenageia a beleza da mulher A moda não conhece fronteiras, abarca em Barbés. Gerações de imigrantes do Nor-
Esta superprodução musical confere clara- da Côte d’Ivoire. De acordo com as crenças todos os horizontes. Os talentos do mundo te de África e da África negra populariza-
mente uma imensa notoriedade ao circo locais, ela aumenta a produtividade da al- inteiro deslocam-se a Paris para se aperfei- ram esses sacos de regresso “à terra”, cujo
africano. O conteúdo é rico, festivo e colori- deia que a pratica e reforça os laços fami- çoarem acalentando a esperança de se tor- famoso estampado aos quadrados “Barbés”
do. Os quadros humanos são verdadeiras liares e clânicos no seio da comunidade. No narem mais do que um nome, uma marca, se tornou no Santo Graal da fashionista ce-
proezas atléticas e cénicas. Podemos ver aí sul do continente, a Pantsula é mais do que cujo alcance tenha a dimensão de um pas- liniana mundializada. O símbolo é de tal
uma nova forma de circo, incarnado, onde o uma dança: é um movimento de protesto. saporte universal. Para um criador do fim modo forte que encontramos esses sacos
tema da identidade exprime uma parte Com origem nos anos 1960-1970, sob o re- do mundo, um provinciano, conquistar a ci- numa sala contígua à exposição. De repen-
real da sua africanidade passando em re- gime do apartheid, nas townships, foi nes- dade-luz traz consigo uma consagração te pensamos em Lamine Kouyaté, funda-
vista o gospel e o sapateado da tap dance ao ses guetos marcados pelo desemprego e pe- pouco usual que começa nos murmúrios dor da marca Xuly Bët, e nas suas icónicas
ritmo das marimbas da África ocidental. la criminalidade que nasceu a cultura discretos de lábios pintados, se alastra, co- afectadas talhadas na preciosa tela quadri-
Aqui nada se faz pela metade, uma vez que Pantsula, uma perfeita alquimia entre mo- mo um rasto de pólvora, para o branco opa- culada. É com alguma tristeza que consta-
há cinco marimbas a partilharem o palco. da, música, dança, códigos gestuais e lin- co das batas, até ao frenesim das semanas tamos que não existe ainda qualquer liga-
Os artistas são todos muito hábeis e gene- guagem. Tal como o Hip Hop, a Pantsula da moda, para terminar no vestuário sofis- ção entre a capital da Moda e o continente
rosos. Um novo grupo de 48 artistas guia o encontra o seu terreno de expressão. O sa- ticado. Vestir o mundo inteiro é a ambição africano. No entanto, o contributo do conti-
espectador num universo onde se vão suce- pateado lembra a dança dos gumboots, de todos os designers que chegam a Paris, nente é inegável, mas, até hoje, ainda ne-
der números estonteantes, mas também dança de percussão dos mineiros sul-afri- Meca da moda criativa. Um destino assim nhum criador africano a residir na sua ter-
danças e cantos diversificados conduzidos canos durante o apartheid. é também aceitar ser apenas um elo na ra natal impôs o seu nome no calendário ofi-
pela orquestra ao vivo e pela companhia de transmissão de um saber fazer único. Rei- cial da semana de moda parisiense.
dançarinos do Circo Phénix. A música é o «O circo é para mim a forma artística nar com garra sobre uma indústria. Arbi- Sakina M'sa, Oswald Boateng, Lami-
segundo personagem deste espectáculo ideal, a que reúne todas as possibilidades. trar as elegâncias e dinamizar tradições ne Kouyaté, Imane Ayissi, estamos à vos-
muito exótico. A orquestração é audaciosa. Estimula a minha imaginação, leva-me a seculares. Passar o testemunho. A magni- sa espera.
As marimbas a isso obrigam. Este instru- questionar os seus códigos sem no entanto ficência da alta-costura e do pronto-a-ves-
mento originário da África ocidental é com- atraiçoar a exigência de uma técnica acro- tir de luxo que se renova em cada estação Fashion Mix, moda de cá, criadores
posto por uma estrutura leve de madeira bática poderosa» lembra Alain Pacherie, o alimenta-se do fascínio que exerce sobre os de lá. Museu da Imigração, Palais de la
ligada por correias de couro, sobre a qual fundador do circo Phénix. génios criativos, por vezes sacrificiais, em Porte Dorée.
estão alinhadas lâminas de madeira dura A trupe do Phénix que concebeu este es- detrimento da própria saúde, à qual provo- Avenida Daumesnil, 293, 75012 Paris.
por ordem crescente de tamanho e altura. pectáculo voa de sucesso em sucesso e per- cam enormes danos.
Uma marimba é geralmente capaz de pro- corre o mundo. A versão precedente, Cirka- Olivier Saillard é o curador da exposi-
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 29

Haiti no Grand Palais,


o efeito de estufa
Lauren Ekué

D
e 19 de Novembro de 2014 Haiti continua a inventar a sua tradi- rados demasiado «contemporâneos»,
a 15 de Fevereiro de 2015, ção plástica. Entre folclore haitiano ple- Chéf yo/Chefes reflecte, enfim, sobre
o Grand Palais acolhe a ex- namente reivindicado em numerosas a construção política e intelectual hai-
posição Haiti, dois séculos de cria- obras e arte contemporânea assumida tiana. Estes capítulos estão em desta-
ção artística. com Jean-Michel Basquiat, génio artís- que na exposição através de três

plora esta famosa haitianidade de


Foi preciso empreender um traba- tico da diáspora haitiana, a visita ex- Tètatèt/ tête-à-tête que fazem dialo-
lho colossal a montante para reunir gar dois artistas por intermédio das
estas obras. Dois longos anos. Paris, geometrias variáveis. O discurso esté- suas obras. Essa fragmentação em
capital das artes, presta uma nova ho- tico surpreende pela sua radicalidade e quatro espaços harmoniosos mal con-
menagem à Pérola das Antilhas. diversidade. A expressão haitiana segue explicar o fenómeno haitiano. A
Em Dezembro de 1975, André Mal- vive, goza e abraça a sua singulari- arte talvez ajude a resolver conflitos
raux efectuava a sua última viagem, dade. A especificidade da linguagem internos. O imaginário desta ilha per-
uma dezena de anos após se ter dei- plástica haitiana continua a ser esta li- maneceu vivo, intacto. A dissidência
xado deslumbrar pela arte haitiana. As berdade, esta independência indó- compensa. Aplaudimos a nova vaga de
cores de Dakar no Festival de Artes mita, face aos espaços ocidentais e artistas como Sébastien Jean nascido
Negras de 1966 revigoraram os senti- africanos. A polinização dessas duas em 1980, David Boyer nascido em
dos do homem de cultura francesa. Foi eras de influências germina nos labi- 1977. A passagem do testemunho está
ao Haiti com a sua última compa- rintos criativos da psique dos artistas a acontecer. Pneus, osso, plástico, ma-
nheira, Sophie de Vilmorin, membro haitianos. Essas duas águas configu- deira, metal reciclado, borracha, pé-
de uma célebre família de botânicos e ram o leito de um diálogo intercultu- rolas, chifre, materiais brutos, nada
comerciantes de cereais. O sinal foi ral onde o desenvolvimento das de muito precioso; mas que sofistica-
claro. O homem político, que tinha de- culturas taïnos, daomeanas, francesas ção emana destes espíritos habitados
voção pela arte haitiana, foi o piscar e ibéricas, deu lugar a uma mescla pela restituição estética da alma hai-
de olhos do destino que gravita por sem igual. O culto Vodu de Daomé en- tiana, fermento das lutas passadas. O
cima da vidraça deste local privile- contra-se nos soberbos crânios de Du- exercício resume-se essencialmente a
giado de Paris, cujas vastas alamedas bréus Lhérisson ou nos frescos têxteis sublimar o país natal. A ilha é frequen-
ele teria adorado percorrer. de David Boyer, rebordados de lante- temente pintada como um jardim edé-
Este segundo dia de inverno é sin- joulas. Nada existe aí de macabro, ape- nico. Deste cantinho de terra crioula
gular, desde há uns dias que as tem- nas uma explosão de cores vivas. A nasceram todas as dissidências negras.
peraturas sobem, o clima está mais arte haitiana é penetrante porque não No entanto, a doçura apaziguadora dos
clemente. Um calor suave parece es- se desprende da sua dimensão reli- quadros da colecção Claude e Farah
capar-se não sei donde para aquecer giosa, maravilhosa, africana. A França, Douyon levanta o véu sobre a intimi-
a atmosfera acrescentando-lhe alguns a Europa, encontram-se na arte do re- dade familiar.
graus benfazejos. Talvez o Grand Palais trato. Os quadros de Gervais Emma- Como os escritores e poetas haitia-
se tenha convertido durante a exposi- nuel Ducasse e Edouard Goldman. nos, os artistas são médiuns que ser-
ção sobre o Haití numa maravilhosa es- Figuras negras, nobres, orgulhosas. A vem de intermediários entre Deus e os
tufa. No plano simbólico, imaginamos herança desta ilha é universal, os humanos. A magia opera, o magne-
que a galeria do prestigioso edifício povos que aspiram à liberdade, esta tismo vence. Nesse dia, vieram alguns
permite hoje ver sob uma luz viva o modernidade patriótica, irrigam o jovens haitianos ver um pouco da sua
crescimento de uma cultura, criando as trabalho de prometedores artistas, al- ilha. Um deles ficou extasiado diante
condições climáticas favoráveis para guns dos quais jovens talentos nasci- de um quadro de Jean-Michel Bas-
uma exposição “fora de estação”. O in- dos nos anos 70. quiat. Vibrando com o seu herói. De-
terior do museu abriga a energia, o O Grand Palais, monumento mítico, pois tirou algumas fotos. Uma jovem
brilho e os cultos de Ayiti Chéri. Se a que acolhe as maiores exposições de abraçou a sua mãe adoptiva vendo até
arte permite entrar em contacto com arte da capital, presta homenagem aos que ponto esta estava submersa pela

ção da haitianidade poderia descon-


um povo, uma nação, a rica prolifera- artistas haitianos, à história do seu emoção. Sim, esta potência estética é
país e à sua cultura de origem. Cerca obra dos seus. Malraux tinha, segundo
certar muitas pessoas. Aqui, não se dá de sessenta artistas e de cento e se- consta, uma necessidade imperiosa de
muita atenção à Arte Naïf. Diga-se em
bem, nós também. No Haití, moun pa
tenta obras, apresentadas pela pri- observar a pintura haitiana; calha
abono da verdade que a escrita escul-
jam désespéré.
meira vez em França e especialmente

vezes realizadas in situ, restituem de


tural e pictural desta ilha não se re- concebidas para a exposição, muitas
sume a este tipo de arte; a ilha tem
uma grande tradição plástica, particu- Cenografia Sylvain Roca e Nicolas
Groult
maneira fidedigna a extraordinária vi-
larmente fecunda. Aqui celebra-se
© Didier Plowy / Rmn-Grand Pa-
talidade e a permanente criatividade
mais o patriotismo artístico direccio-
lais, Paris 2014
dos artistas durante um período que
nado para a construção da primeira se estende do século XIX aos nossos
República negra. Este país, eterno e dias. Quatro grandes capítulos que
absoluto farol do mundo negro livre, percorrem a exposição ostentam um
demonstra que o poder da criação ar- título em crioulo e declinam-se em vá-
tística reside na sua densidade inte- rias temáticas. Santit yo/ Sem títulos
lectual. A arte é emancipadora e representa as figuras populares e as
estádio último da emancipação. Os es- cenas do quotidiano. Lespri yo/ Espí-
paços imaginários ou reais dos artis- ritos confronta as obras de carácter
tas apresentados contam, cada um à profano ou sagrado das religiões vudu
sua maneira, a história intelectual da e católica e os símbolos franco-ma-
sua terra natal. A insularidade é um çons, Peyizaj yo/ Paisagens privilegia
adubo propício à eclosão de talentos. o trabalho de artistas ostracizados nos
Da arte combate à arte resiliente, o anos 1950-1960 por serem conside-
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015 DIÁLOGO INTERCULTURAL| 30

Porque poesia não vende


Fábio Rocha
Porque poesia não vende. Poesia? Perto do chão e sem pla- mente se for poeta, recomendo aca-
É um círculo vicioso: o Brasil quinha. bar com alguns dos intermediários
produz leitores “de menos”, em re- Rastejando, daria pra ler os títulos. entre você e seus leitores fazendo
lação à sua produção editorial. É mesmo uma guerra… um blog ou site. O blogger, acho o
Logo, o problema aqui é de leitura Isso, a meu ver, agrava o de fato menos complicado pra se começar.
em geral, mas piorado em relação de os sites mais visitados sobre poe- OBS. 2: Postado originalmente
a textos mais complexos. sia serem um lixo. O Google domi- em 18 de Junho de 2012. Em 2013,
Temos mais editoras que livra- nou a internet e simplesmente não o livro com a obra completa do Le-
rias, logo, mais livros do que lugar consegue seleccionar direito sites minski ultrapassou até o “50 tons
para vendê-los; com conteúdo relevante e sem erros de cinza” nas listas de “mais vendi-
As poucas livrarias escondem a para as primeiras posições das key- dos”, mostrando que poesia boa
secção de poesia (conforme foto words mais procuradas desse uni- vende, sim! Basta sair das pratelei-
abaixo), justamente por vender verso: poesia, poesias, poemas, ras escondidas, com uma editora
pouco, mantendo o círculo vicioso. versos etc. com boa distribuição que invista em
Veja abaixo a foto que tirei na Assim, quem busca por poesia uma boa campanha de Marketing.
FNAC do Barra Shopping ontem, recebe na internet um tratamento OBS. 3: Em 2014 lancei outro
após ter que perguntar a um aten- ainda pior do que nas livrarias: tex- livro com meus melhores poemas
dente onde ficava a parte de poe- tos alterados e falsas autorias. Isso dos últimos 10 anos. Para saber
sia, por não conseguir achá-la me estimula a seguir trabalhando mais, clique aqui. Ajude poesia a
sozinho. Note a altura da prate- na Magia da Poesia com cuidado vender comprando um exemplar.
leira (a mais perto do chão era a crescente.
de poesia): OBS.: Se você é escritor, principal- (in A Magia da Poesia)

“Nenhuma raça é antónima de outra,


por isso não existe preto e branco no mundo”
Defende o escritor moçambicano Dom Andira
(in BATEMOZ.COM)
“Nenhuma raça humana é an-
tónima de outra neste mundo,
lítica, económica, cultural e educa- continente, mas sim pessoas sábias

cada raça é uma excepcionali-


cional para identificar a raça hu- e humanas”, explicou, acrescen-

dade. Ela goza de uma identi-


mana (preto, branco, mulato, tando a necessidade de se repudiar

dade e orgulho do seu


caneco, monhé, entre outros) são alguns atributos que julga perten-

ser/pessoa neste mundo. Nisto,


simplesmente um instrumento de cerem a imperadores e coloniza-

a denominação de seres huma-


trabalho ao nosso dispor, imple- dores, tais como, homem de cabelo

nos pretos e brancos, no planeta


mentadas com a finalidade de con- longo, loiro, patrão, magia negra,

terra, é algo inexistente, incon- “A África é dos africanos, sem-


quistar o bem-estar de algumas entre outros.

cebível, inadmissível e banal, pre foi e sempre será, não é uma


pessoas em detrimento de outras.

deve ser algo somente para im- garrafa de vinho, uma arma de
“É com esses dizeres que co-

peradores, colonizadores e pi- fogo, mas sim um continente de


meço a escrever a obra. Uma vez

lhadores.” gente com cérebro valente que


que todos nós desejamos um

Foi com estas palavras que o supera toneladas de ouro, dia-


mundo mais unido e próspero, ex-

escritor moçambicano Dom Au- mante e marfim… E que sempre,


pressões desta natureza não têm

rênio Andira, iniciou, no ano de em voz de trovão, lamenta hu-


mais espaço no mundo, pois ser-

2010, a sua primeira obra inti- mildemente a desgraça, a pól-


vem para humilhar, limitar, intimi-

tulada Voz Da África Ao Global vora, a descriminação tribal e


dar, inferiorizar, oprimir e

Da Globalização, com o objec- racial”, esclareceu Andira.


explorar pessoas” disse Andira.

tivo de repudiar o uso abusivo


A leitura do livro prossegue e o

de termos depreciativos na vida


escritor fomenta, cada vez mais, fi-

social.
losofias baseadas nas ideologias
afrocentristas. No segundo poema
intitulado Visão e voz do povo afri-
Andira explicou, numa entre- cano, Dom Andira exalta a inteli-
vista exclusiva ao semanário De- gência africana, isto é, demonstra
bate, a mensagem expressa em que os africanos foram colonizados
cada poema da sua obra, com vista e humilhados no passado, o que ja-
a facilitar a compreensão dos ensi- mais irá voltar a acontecer porque
namentos patentes na mesma. o africano está actualmente atento
De acordo com o autor, as ex- a qualquer invasão. “Esta África faz
pressões actualmente usadas em entender ao Ocidente que não exis-
diversas ocasiões da vida sócio-po- tem animais ou selvagens neste Don Andira
Cultura | 5 a 18 de Janeiro de 2015

MILANDO1
BARRA DO KWANZA| 31

CONTO de Japone Arijuane

Era Domingo, um dia morto em sua que só podiam sobreviver dois ami- ver, o outro levou a sua filha benja- da polícia comunitária.
utilidade: enquanto uns dormem a gos, suponho eu. mim como penhoro, e a usou durante No dia do julgamento, apurou-se
ressaca do fim-de-semana, outros a Nas falas do mesmo: “Como me dis- dois anos como empregada domésti- que, por ali, as trocas de chapas que
igrejas e cemitérios fazem-se. Nessa se meu querido avô, que Deus o tenha, ca. Isso meu avô sempre me contava à serviam de lápides eram frequentes,
última nenhuma-coisa esteve o Esso- a inimizade começou quando estes, volta da fogueira e nós, os da nova ge- e quem fazia as tais trocas, desse do-
ma a fazer visitas à suposta morada um dia desses, foram à pesca e Bathua ração, só vivemos as brigas das filhas, cumento de identificação final, que
da sua mãe. atraíu ao seu anzol um Mucadje. Um a Dona Masua, mãe do Essoma, e Do- vem pendurado nas sepulturas, era o
Depois de construída em pedra e peixe tão grande, tão grande e preto, na Dlanda, mãe do Todinho e dos seus guarda do cemitério. Que, por vezes,
cimento, a sepultura da dona Masua, que engoliu a isca toda” - sentenciou- netos, amigos meus, que eram o moti- trocava por ajuste de conta as famí-
como vinha escrito na lápide, aparen- me o popular. vo principal da briga das mães”. lias que não lhe davam gorjeta, ou por
tava tantos apetrechos, de tal forma Mucadje é uma espécie de peixe Quando Essoma chegou a casa do excesso de álcool durante as horas la-
que parecia algo feito no estrangeiro. que muito cresce e vive em águas do- inimigo da sua geração, o Todinho, es- borais, ou por mera zombaria, ou en-
Essoma, ainda dentro do gozo do luto ces, o qual, dada a dimensão, um só te encontrava-se ainda a dormir, tudo tão só para trazer briga na zona.
anual, digno de homenagear a memó- homem não conseguiria tirá-lo para a por conta da ressaca do fim-de-sema- “Há vezes que este rouba e vende
ria da sua mãe, ouviu rumores naque- margem, como é óbvio. na. Era esse o culto que os jovens as famílias enlutadas”, isto confir-
la funesta manhã de domingo, alegan- “Nesse mesmo momento, o Membo, cumpriam aos domingos. mou o último freguês dessa etiqueta,
do que aquela não era a morada real vendo o seu amigo em tamanha afli- Todinho era forte e baixo, uma es- presente no Milando, e único que ga-
da sua ante querida, mãe. ção, foi ajudá-lo. Nesse dia, frisou o tatura que lhe dava o privilégio de, rantiu aos populares que ficou muito
Neto do Membo, sentiu um tremor meu avô que o velho Membo não havia pelo menos, pessoas com a estatura tempo de papo ao ar com o guarda,
nos pés e a carapinha a correr-lhe o apanhado nada, além do mesmo nada. do Essoma o temerem. Mas porém, até aperceber-se disso, porque este
orifício, seu corpo, como se voltasse Chegados a casa, Membo, na expec- este foi direito aos aposentos do seu não se encontrava enlutado, mas sim
dum banho à moda do rio, sem toalha, tativa de ver o seu esforço recompen- inimigo. Pontapeando panelas, gali- comprara e guardara para que lhe
todo ensopado. Mal ouviu essa con- sado, o outro nem sequer, parte algu- nhas, copos, bacias, tudo o que ali en- pudesse ser útil em qualquer ocasião,
versa fiada, dirigiu-se logo ao único ma que fosse, do graúdo peixe parti- controu, e enquanto esmurrava a porque, por aquelas bandas, a morte
lugar onde poderia ter origem a tal lhou com o seu companheiro. A partir porta, o Todinho saiu, corpo nu, cal- era o que não faltava, e sentenciou
desavença. deste dia, o peixe pescou o que estava ção curtíssimo de caqui, mal que que no mesmo dia que adquirira a
Já imaginava quem lhe podia pres- de tão escondido dos dois: a inimiza- abriu a porta, a surpresa amorteceu- metade de chapa, virá o guarda com
tar contas. Enquanto ia a dez passos de. Esta começara de forma brusca.” se no seu rosto, um murro directo aos várias farfalhadas da mesma inutili-
por segundo, na casa dos Bathua, ter O popular fala com tanta veemên- seus maxilares, este não precisou se dade, só que não identificará de
com o neto, o inimigo da sua geração, cia que parecia encarna-se a alma do certificar do que estava a acontecer, quem seriam porque este já havia
imaginava as últimas palavras do seu tal do seu avô. ao ver o Essoma na sua casa, respon- apagado as letras. A multidão ficou
avô, “Ninguém, mas ninguém desta “No dia seguinte, Membo encarre- deu na mesma intensidade, e ali fica- perplexa, tão perplexa que não se re-
família, deve misturar-se com essa gou-se de cobrar tudo o que outro lhe ram. A vizinhança fez-se plateia, este solveu o problema.
desgraça aí ao lado”. devia, e este não tendo como devol- filme só parou, aquando da chegada
Esta sentença, proferida pelo velho
Membo no seu último suspiro, sempre
desfilava na mente deste, quando pro-
blemas com esses faziam-se sentir.
Lá foi Essoma, a tal desgraça à des-
graça ao lado, à qual se referiu seu avô
naquela fatídica manhã de Dezembro.
Esta localizava-se bem ao lado es-
querdo do quintal da casa que herda-
ra dos avós. A casa dos Bathua ficava
mesmo ali. Eram, como o bom portu-
guês nos ensinou: vizinhos.
O Madala Membo e o Bathua, já fa-
lecidos, eram bons amigos até ao dia
em que estes foram à pesca e, por iro-
nia do ofício, o Membo não apanhou
quase nada, mas auxiliou o seu com-
panheiro a trazer à superfície um pei-
xe que quase o pescava a ele mesmo, o
Bathua.
Segundo testemunho de um popu-
lar, aquilo foi-lhe confiado pelo seu, já
também falecido, avô. Os dois amigos
sempre andaram juntos, que até para
construírem as suas casas naquele lu-
garejo foi uma rebeldia e tanto, aque-
la que só cabe aos jovens embucha-
dos de colectividade”, disse este.
O isolamento era de tal maneira Quadro de Malangatana
32 | NAVEGAÇÕES 5 a 18 de Janeiro de 2015 | Cultura

DE VOLTA A ANGOLA
NAS PALAVRAS QUE ELA ME ENSINOU A ESCREVER

Sérgio O. Sá

1966, pelas forças do regime. Cente-


nas, segundo as informações que me
chegaram, na altura, por correspon-
dência epistolar.
E supus que se permanecesse nessa
Terra poderia vir a ter muitos mais

O
tempo passou. Dois anos e nativas para trabalharem fora delas, lado, não faziam mais do que eles. motivos de que me lembrar para so-
pouco de comissão forçada- inclusive nas zonas de guerrilha, su- E lembrei-me de ter visto gente bre eles meditar. E supus ainda que se
mente cumprida. Erachegada jeitando-se a ser por ela considera- branca a comerciar latas de produtos em Angola ficasse poderia não resistir
a hora de regressar à metrópole. E na das inimigas. de conserva, vazias e recuperadas pa- à tentação, à necessidade e ao dever
manhãzinha de 14 de Janeiro de 1968, E lembrei-me dessas Gentes que se ra o efeito, como se de faiança se tra- de me manifestar contra tal estado de
o Vera Cruz, que dois anos antes me ti- sentiam desintegradas, onde o único tasse, para Gente negra utilizar como coisas, e acabar por sofrer as presumí-
nha levado até Angola, levantou ferro, meio de comunicação com as tropas e loiça de cozinha. veis consequências.
feito favela flutuante, deixando o por- fazendeiros eraa língua portuguesa, E lembrei-me das contribuições em E senti receio, um receio que pare-
to de Luanda, serenamente, como que mal falada, como convinha ao próprio espécie que a Gente da sanzala de Ma- cia justificar a minha decisão de re-
para me deixar matar as saudades que regime e a quem as explorava, devol- lele – certamente como todas as que gressar a Portugal. E julguei-me, nesse
já sentia da Gente e da Terra que me ti- vendo-as às suas terras, no final dos arrancavam da sua própria Terra, em momento, um cobarde por sentir esse
veram, e da sua capital que, sob amena contratos, com uns sacos de fuba, uns qualquer fim-do-mundo angolano, o receio e por me acomodar perante a
neblina, estava mais bonita do que trapos estampados para as mulheres e magro sustento com que sobrevivias – consciência que ia tendo sobre o que
nunca. Mas que poderia eu fazer, se- “dez reis de mel coado” para os homens. era obrigada a pagar ao Estado. me fora dado observar. Mas, que po-
não aceitar a realidade que eu próprio E lembrei-me dos aproveitamentos E lembrei-me das lavras que ali- deria eu fazer?!
não me atrevera a alterar?! obtidos pelas tropas do exército portu- mentavam a Gente da guerrilha e Via Luanda já de longe quando deci-
No convvés, onde já quase ninguém guês, relativamente a elementos ne- que a tropa destruía, como forma de di descer ao cubículo que me tinham
permanecia – sinal de que quase todo gros, ao convocá-los para fazerem de a obrigar a uma espécie de nomadis- reservado. Deitei-me e tentei adorme-
o contingente a bordo, de cerca de guias, tornando-os traidores em rela- mo forçado. cer, mas mergulhei numa espécie de
2500 almas, estava ansioso por virar ção aos seus concidadãos guerrilheiros. E lembrei-me das palavras do ca- angústia existencial de que haveriam
definitivamente as costas à vida a que E lembrei-me das condições em que mionista durante uma longa e solitá- de ficar resquícios para sempre.
se sujeitara durante tanto tempo – me viviam as populações afastadas das ci- ria viagem pela estrada do Caxito –
deixei ficar, envolto numa inesperada dades e vilas. Totalmente abandona- Uíge, ao fazer-me sentir que seguia __________
nostalgia, e comecei a pensar. das à sua sorte, sem assistência na com mais segurança a seu lado do Adaptado do livro DE QUIBALA A MALELE
A pensar no que me fora dado doença, sem escolas, sem comunica- que integrado numa coluna militar, (Norte de Angola) NO DECORRER DE UMA
apreender durante o tempo em que ções, sem nada que se relacionasse recordando também a posterior di- GUERRA, de Sérgio O. Sá, Porto, 2009.

Nunca mais esqueci os Povos de


Angola me tivera, no que eu mesmo so- com a civilização, apesar de Portugal, ca, captada em Luanda, relativamen-

Angola, com os quais me identifico. E


frera e no que sofreram outros, no que o país colonizador, se dizer uma nação te a uma ou outra saca de sal ou de

três anos depois do meu regresso a


vira e ouvira e no que aprendera com civilizada. E lembrei-me dos operá- cereal deixadas cair dos camiões na

Portugal, elaborei o poema que a se-


tudo o que à minha volta acontecera. rios negros, qualificados ou não, que lonjura das estradas do Norte.

guir transcrevo.
E lembrei-me das Gentes negras auferiam salários muito inferiores aos E lembrei-me dos que tinham sido
recrutadas nas regiões de onde eram dos seus colegas europeus que, a seu mortos, em Luanda, no Natal de

AFRICANA E sonhavas sem ser preciso sonhar! Ninguém a pode comprar!


Ninguém a pode vender!
Foste a madrugada inocente, Mas, um dia, eles chegaram…
A espera verde E te fizeram escrava. Mas é preciso sonhar…
Onde o fogo do teu Sol descera Violaram-te Tens de aprender, outra vez,
Para beijar-te. E venderam o teu corpo, amarrado, Porque agora é preciso!
Como coisa de mercado. Mesmo que seja a lutar
Foste a pureza da selva, Mataram os teus amores, De flecha, fuzil ou canhão.
A seiva que regou a terra dos embondeiros, E os teus beijos secaram. E um dia amanhecerás,
Onde a luz irradiou, feliz, do teu bronze, De novo,
Ao encontro das coisas que te amavam Depois engravidaste Com teu povo,
Com seu olhar. Com a dor da tua raça, Com teu povo pela mão!
E dançavas, livre como teus seios, E o sémen que recebeste
Ao som do batuque. Deu-te a alma que geraste. In: VERSOS NA GUERRA – VERSOS DE PAZ, de Sérgio O. Sá, Porto, 2008.

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