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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO

NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA

RODRIGO DE SOUZA FILHO

Rio de Janeiro

Dezembro / 2006
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO

NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA

Rodrigo de Souza Filho

2006

ii
Souza Filho, Rodrigo de
Estado, burocracia e patrimonialismo no desenvolvimento da
administração pública brasileira. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
Orientador: José Paulo Netto
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de
Serviço Social/Programa de Pós-graduação em Serviço Social, 2006.
Referências Bibliográficas: f. 387-397
1. Administração, a questão do Estado e o fenômeno burocrático:
fundamentos da gestão pública. 2. Gênese da administração pública
brasileira. 3. A dialética da administração pública brasileira sob hegemonia
burguesa: burocracia e patrimonialismo da Era Vargas à Ditadura Militar. 4.
Neoliberalismo e contra-reforma administrativa: burocracia monocrática e
patrimonialismo em transformismo. À guisa de conclusão: referências para
a resistência ao gerencialismo na administração pública. I Netto, José
Paulo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social,
Programa de Pós-graduação em Serviço Social. III. Estado, burocracia e
patrimonialismo no desenvolvimento da administração pública brasileira.

iii
ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO

NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA

Rodrigo de Souza Filho

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Serviço Social da Escola de
Serviço Social, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em
Serviço Social.

Orientador: Prof. Dr. José Paulo Netto.

Rio de Janeiro
Dezembro de 2006

iv
ESTADO, BUROCRACIA E PATRIMONIALISMO

NO DESENVOLVIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA

Rodrigo de Souza Filho

Orientador: Professor Dr. José Paulo Netto

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social


da Escola de Serviço Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Serviço Social.

Banca examinadora:

________________________________
Presidente, Prof. Dr. José Paulo Netto

______________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos Mazzeo

______________________________________
Profa. Dra. Elaine Behring

______________________________________
Prof. Livre Docente. Carlos Nelson Coutinho

______________________________________
Profa. Dra. Virgínia Fontes

v
Lucas, trabalho e disciplina são
tarefas árduas e necessárias até
mesmo para adultos. Porém,
podem ser, também, muito
prazerosas.

Célia, espero que mais este produto


de nossa cumplicidade possa servir
de estímulo para continuarmos
enfrentando juntos os desafios da
vida. E a valsa continua a tocar...

vi
AGRADECIMENTOS

Sem dúvida alguma, meu principal agradecimento direciona-se ao meu


orientador, Prof. Dr. José Paulo Netto. Não é um agradecimento de praxe. José
Paulo Netto é um orientador experiente, um verdadeiro “lobo-do-mar”, capaz de
estimular e viabilizar a navegação autônoma do orientando, sempre atento em
assegurar a manutenção do rumo, mesmo que o navegante enfrente mares revoltos
e mareie demasiadamente. No caso desta “travessia doutoral”, se o rumo não foi
mantido, a responsabilidade é inteiramente de um marinheiro que continua tendo
muitas dificuldades em viajar de navio...
No percurso realizado na companhia deste grande mestre (e
educador), fui orientado não apenas no que diz respeito ao trabalho específico da
tese. Com ele, descobri e redescobri práticas, valores e sentimentos inestimáveis à
arte de ensinar/pesquisar – pérolas raras que certamente influenciarão o
desenvolvimento de minha carreira como docente e pesquisador. Por isso, os
agradecimentos a José Paulo Netto são necessariamente diversificados: obrigado
pela competência, firmeza, apoio, acolhida, humor, disponibilidade e amizade
dispensados no decorrer deste trabalho.

Aos mestres Carlos Nelson Coutinho, José Maria Gomez e Yves


Lesbaupin, referências fundamentais para minha formação acadêmica.

À Profª. Ilda Lopes, responsável pela minha iniciação profissional e por


me fazer entender a importância do Serviço Social.

Aos amigos Cláudia, Rubens e Malu, pela leitura crítica e carinhosa


que fizeram da tese, pelo incentivo permanente e pelo acolhimento que me deram
nos momentos de fraqueza.

À Leila, por ter me possibilitado enxergar com leveza e senso de humor


as lacunas e os limites de minha formação intelectual.

Ao amigo Glauco pela oportunidade de compartilhar a vida – alegrias,


tristezas e possibilidades – e, principalmente por acreditar em mim.

À torcida doméstica: mãe, irmãs e cunhado que mesmo distantes


estiveram sempre presentes.

À Fundação Escola de Serviço Público (FESP) por ter me propiciado


coordenar o curso de Gerência de Programas Sociais, experiência que foi essencial
para levantar elementos sobre meu objeto de estudo e para “testar” minhas reflexões
e “descobertas”.

À Escola de Serviço Social/UFRJ e à Faculdade de Serviço


Social/UFJF, pelo afastamento parcial concedido.

vii
RESUMO

Esta tese, a partir da reflexão teórica sobre a questão do Estado e o


fenômeno burocrático, realizada à luz da tradição marxista, sustenta a idéia segundo
a qual a sociedade capitalista, para desenvolver ações voltadas para a
universalização e aprofundamento de direitos, requer duas condições básicas:
Estado forte na área social e estrutura burocrática ampla como ordem administrativa.
Neste sentido, analisou-se a origem e o desenvolvimento da administração
pública brasileira, para compreender as razões históricas que levaram à imbricação
da burocracia com o patrimonialismo na constituição da nossa ordem administrativa.
A relação estabelecida entre setores não capitalistas e capitalistas da economia
constituiu a base estrutural do pacto de dominação conservador que operou a
industrialização brasileira e forjou a necessidade de uma ordem administrativa que
combinasse elementos racional-legais (componente burocrático) e tradicionais
(componente patrimonialista).
Sobre esta base se processa, nos anos de 1990, a contra-reforma do Estado
e, no seu bojo, a contra-reforma administrativa de cunho gerencialista. A análise foca
o gerencialismo, em termos gerais, como uma proposta que não se refere a um
modelo pós-burocrático, pois nem supera nem suprime a burocracia - pelo contrário:
indica a manutenção da burocracia através de um processo que combina
“burocracia monocrática”, para os centros de decisão, com “flexibilização
burocrática”, via descentralização, para a periferia da ordem administrativa,
possibilitando a incorporação de traços patrimonialistas na gestão pública.
Na argumentação exposta nesta tese, a “administração pública gerencial” no
Brasil, proposta pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, configura-se
como uma programática que trata a burocracia de forma paradoxal –
monocratização burocrática dos centros de decisão e enfraquecimento da burocracia
para o conjunto das ações do Estado, principalmente as da área social –,
combinando-a com elementos de um patrimonialismo em transformismo.

PALAVRAS CHAVE: burocracia, patrimonialismo, administração, direitos.

viii
Résumé

Cette thèse – écrite sous la tradiction marxiste et basée sur l’aspect théorique
à propos de l’État et du phénomène bureucratique – soutient l’idée que la société
capitaliste, afin de developper des actions tournées vers l’universalisation et
l’approfondissement des droits, demande deux condictions fondamentales: un État
fort en ce qui concerne l’aspect social et une large structure bureucratique en tant
qu’ordre administratif.
Dans ce sens, on a analisé l’origine et le developpment de l’administration
publique brésilienne ayant pour objectif de comprendre les raisons historiques
responsables pour l’imbrication de la bureucratie avec le patrimonialisme dans la
constitution de notre ordre administratif. La relation établie entre les secteurs
capitalistes et pas-capitalistes de l’économie constitue la base structurale du pacte
conservateur de domination qui a opéré l’industrialisation brésilienne et engendré la
nécessité d’un ordre administratif laquelle associe des éléments rationaux-légaux
(élément bureucratique) et traditionnels (élément patrimonialiste).
Sur cette base se passe, aux anées 90, la contre-reforme de l’État et la
contre-reforme administrative de caractère gestionnaire. L’analyse met l’accent sur le
gestionisme de façon générale comme une proposition qui n’a pas de relation avec
un modèle pós-bureaucratique car elle ne surpasse pas la bureaucratie ni la
supprime; au contraire, elle indique le maintien de la bureaucratie à travers un
processus lequel ajoute “bureaucratie monocratique” (aux centres des décisions) et
“flexibilité bureaucratique” (à la périphérie de l’ordre adniminstratif) ce qui permet
l’incorporation des traits patrimonialistes dans une gestion publique.
Dans notre argumentation, “l’administration publique de gestion” au Brésil,
mise en jour par le Plan Directeur de la Reforme de l’Apparat de l’État, elle se
structure comme une proposition qui traite la bureaucratie de manière paradoxale –
la monocratisation bureaucratique des centres des décisions et l’affaiblissement de la
bureaucratie pour l’ensemble des actions de l’État, surtout en ce qui concerne
l’aspect social – en l’associant à des éléments d’un patrimonialisme en
transformisme.

Mots clés: bureaucratie, patrimonialisme, administration, droits.

ix
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................13

CAPÍTULO I – ADMINISTRAÇÃO, A QUESTÃO DO ESTADO E O FENÔMENO BUROCRÁTICO:


FUNDAMENTOS DA GESTÃO PÚBLICA ..................................................................................34

1.1. O conceito de administração em geral ..................................................................................34

1.2. O Estado em questão ............................................................................................................38

1.3. O fenômeno burocrático: contradição, dominação e racionalidade ...............................65

CAPÍTULO II – GÊNESE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA .............................114

2.1. Patrimonialismo: da tradição ibérica à particularidade colonial brasileira .........................117

2.2. Consolidação do patrimonialismo e a origem burocrática da ordem administrativa


brasileira: o período imperial e a primeira república ....................................................................135

CAPÍTULO III - A DIALÉTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA SOB HEGEMONIA


BURGUESA: Burocracia e Patrimonialismo da Era Vargas à Ditadura Militar .................171

3.1. A inflexão de 1930: burocracia e patrimonialismo imbricados como elementos estruturais


da ordem administrativa brasileira .............................................................................................171

3.2. A expansão da burocracia no contexto da irrupção do capitalismo monopolista ....210

3.3. Intensificação do insulamento burocrático como estratégia da consolidação da fase


monopólica do capitalismo brasileiro ................................................................................226

CAPÍTULO IV - NEOLIBERALISMO E CONTRA-REFORMA ADMINISTRATIVA: BUROCRACIA


MONOCRÁTICA E PATRIMONIALISMO EM TRANSFORMISMO ..........................................253

4.1. Antecedentes: anos 80, início dos 90 e a resistência ao modelo neoliberal ................ 253

4.2. Consolidação do neoliberalismo no Brasil e a reforma administrativa .............................289

V - À GISA DE CONCLUSÃO: REFERÊNCIAS PARA A RESISTÊNCIA AO GERENCIALISMO NA


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ..........................................................................................................351

5.1. As razões históricas da imbricação do patrimonialismo com a burocracia na administração


pública brasileira: breve síntese .............................................................................................351

5.2. Referências para a constituição de uma administração pública democrática .................366

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................387

x
Naturalmente enfatizar a importância de uma perspectiva de
longo prazo não significa que possamos ignorar “o aqui e
agora”. Pelo contrário, a razão pela qual devemos nos interessar
por um horizonte muito mais amplo que o habitual é para poder
conceitualizar de maneira realista uma transição para uma ordem
social diferente, a partir das determinações do presente. A
perspectiva de longo prazo é necessária porque a meta real da
transformação só pode estabelecer-se dentro de tal horizonte
(...). Por outro lado, a compreensão das determinações objetivas
e subjetivas do “aqui e agora” é igualmente importante. Pois a
tarefa de instituir as mudanças necessárias se define já no
presente, no sentido de que ao menos comece a realizar-se no
“exatamente aqui e agora” (mesmo que o seja de maneira
modesta, mas com plena consciência das limitações existentes e
das dificuldades para sustentar a jornada em seu horizonte
temporal mais distante) ou não chegaremos a parte alguma.
Embora ninguém deva encorajar uma ação irresponsavelmente
precipitada e prematura, não se pode excluir o risco de que seja
prematura quando se empreende uma grande mudança
estrutural mesmo que os indivíduos atuem da maneira mais
responsável. A verdade é que não se poderá conseguir nada se
ficarmos esperando as condições favoráveis e o momento
adequado.
As pessoas que advogam por uma grande mudança estrutural
devem estar sempre conscientes das limitações que terão de
enfrentar. Ao mesmo tempo, devem estar atentas para evitar que
o peso de tais limitações se congele e se transforme na força
paralisante de alguma “lei objetiva” fictícia que possa desviá-las
de seus objetivos declarados” (Mészáros, 2003: 122).

O gestor público de que se necessita hoje é um técnico


altamente diferenciado, seja vis-à-vis os gestores do passado
(...), seja vis-à-vis seus congêneres privados. (...) precisa ser
técnico e político, isto é, operar como um agente de atividades
gerais que possui conhecimentos específicos, como um
planejador que trabalha “fora” dos escritórios, com os olhos no
processo societal abrangente, em seus nexos contraditórios e
explosivos; como um profissional cujo êxito depende de uma
dinâmica que não é friamente controlável, mas é essencialmente
política e, como tal, não se deixa isolar dos interesses e das
paixões humanas. Seu raio de ação está colado aos problemas
da democracia, da representação e da participação. Entre suas
novas atribuições, aliás, encontra-se precisamente, em lugar de
destaque, a de atuar como difusor de estímulos favoráveis à
democratização, à transparência governamental, à cidadania, à
redefinição das relações entre governantes e governados,
Estado e sociedade civil (Nogueira, 1998: 189-190).

xi
INTRODUÇÃO

Diferentemente de Oliveira (2003: 29) que,

ao desenvolver seu célebre estudo sobre o

processo de expansão do capitalismo no Brasil,

não possuía como objetivo “avaliar a

performance do sistema numa perspectiva

ético-finalista de satisfação das necessidades

da população”, a perspectiva da tese ora

apresentada é a de contribuir com o debate

sobre “gestão social”, entendendo-a como

instrumento de universalização e aprofundamento

de direitos, ou seja, pretendemos analisá-la

como uma dimensão do processo de

democratização voltada para a construção de uma

sociedade efetivamente emancipada.

No capitalismo, a possibilidade de existência de uma “gestão social” nessa

perspectiva ético-finalista exige, no mínimo, uma estrutura que atenda à sociedade

de forma global. Historicamente, o Estado moderno foi um dos mecanismos criados

que possibilitou esse tipo de intervenção para o conjunto da população e, como

instrumento do Estado, as políticas sociais apresentaram-se como o campo, por

excelência, de viabilização dos interesses das classes trabalhadoras na ordem do

capital.

Por outro lado, o tema “gestão social” e

suas variantes (gerência social, gerência de

programas sociais, gestão de políticas sociais),

problematizados na atualidade, inserem-se, de

xii
forma mais direta, nos debates referentes à

alteração do “paradigma” da administração

pública do “modelo burocrático-weberiano”

para o “modelo gerencial”. Esse debate, por sua

vez, encontra-se inserido no contexto de crise e

reforma do Estado - portanto, num debate

político (Diniz, 1997). Dessa forma, a crise do

Estado só pode ser compreendida se

contextualizada no processo histórico do

desenvolvimento do Estado capitalista - no

nosso caso, um Estado capitalista periférico –

para, então, situá-la na conjuntura das

mudanças societárias que vêm ocorrendo,

principalmente, nestas últimas décadas.

Nesse sentido, o processo histórico de desenvolvimento do Estado brasileiro

e de sua ordem administrativa, no quadro da introdução e expansão das relações

capitalistas, e o contexto atual de globalização, reestruturação produtiva e ideologia

neoliberal1, que têm ditado as orientações políticas de enfrentamento do atual

contexto, ganham dimensões de extrema importância para decifrar a conjuntura

contemporânea da chamada “gestão social”.

Sendo assim, consideramos a questão do Estado e o desenvolvimento da

administração pública como as determinações fundamentais para o aprofundamento

do debate sobre a chamada “gestão social”. Dessa forma, realizamos a

investigação de que derivou esta tese centrando na análise da performance da

administração pública e dos desafios e limites colocados ao longo da história

1
Sobre os temas globalização, reestruturação produtiva e neoliberalismo ver, respectivamente: Ianni (1993, 1995 e 1996);
Antunes (1995 e 1999); e Anderson (1995) e Netto (1995).

xiii
brasileira para o seu desenvolvimento, a partir de uma perspectiva ético-

finalista de satisfação das necessidades da população voltada para a

superação da sociedade de classes.

Nesse sentido, consideramos oportuno,

sempre que possível, no limite do nosso objeto

de estudo – administração pública –, inserir a

reflexão sobre a administração pública de

políticas sociais, para explicitarmos

concretamente os rebatimentos de nossas

formulações numa esfera particular da

intervenção do Estado e assim, mais

diretamente, articularmos com a discussão

sobre gestão social.

O destaque que será dado a essa esfera

particular da administração pública também

está vinculada ao fato dela ser a área

predominante da intervenção profissional dos

assistentes sociais.

Por isso, além do objeto em si –

administração pública – ser estritamente

relacionado à gestão da área social e à

intervenção profissional do assistente social,

na medida em que o Estado é o grande

implementador de ações sociais e o principal

empregador de assistentes sociais, a

articulação com a área das políticas sociais

servirá de mediação mais próxima para o

xiv
interesse do serviço social e para a participação

no debate sobre gestão social.

Nesses termos, consideramos

fundamental, antes de analisarmos a

administração pública, determinar, em linhas

gerais, a relação entre Capitalismo, Políticas

Sociais e Democratização para explicitarmos,

nas palavras de Fernandes, a “nossa maneira de

ver as coisas” (Fernandes, 1981:14).

Obviamente, a finalidade dessa reflexão, no limite desta introdução, não é

desenvolver um debate crítico com a polêmica a respeito da democratização como

estratégia de superação da ordem burguesa no seio da tradição marxista. Muito

mais modesto, nosso objetivo restringe-se a explicitar a concepção que temos sobre

o tema a partir das posições defendidas por Carlos Nelson Coutinho (1980) e José

Paulo Netto (1990), assim mesmo sem a pretensão de fazer uma exegese dos

textos ou explorar a polêmica entre os autores. Nosso enfoque visa apenas salientar

as convergências entre os ensaístas para fundamentar nossa posição sobre a

questão. A escolha desses autores, além da qualidade e importância de suas

produções no campo das ciências sociais, foi também realizada devido a influência

de ambos na formação e no debate do Serviço Social e, como trata-se de uma tese

que pretende contribuir com o debate e a formação profissional, nada mais

adequado do que a utilização dessas referências.

Democratização e transição socialista

xv
Em primeiro lugar, cabe apontar a defesa que ambos fazem da democracia

ou, mais precisamente, do processo de democratização, como estratégia para a

construção do socialismo.

De acordo com Coutinho (1980), a “renovação democrática do conjunto da

vida nacional” não pode ser vista como um elemento tático, mas sim como “conteúdo

estratégico” da revolução. Na mesma linha de argumentação, Netto (1990: 86)

afirma que “a democracia (...) não é degradável ao estatuto de expediente tático e

permutável no bojo do processo revolucionário”2 e a defende como valor

instrumental estratégico.

Apesar de não ser objetivo entrar na divergência existente entre os autores,

cabe aqui mostrar o que considero central nessa polêmica. O ponto nodal de embate

está na definição da qualidade do valor que a democracia possui. Ou seja, para

Coutinho ela possui valor universal e para Netto ela se apresenta como um valor

instrumental estratégico.

Valor universal x valor instrumental estratégico - eis o cerne da polêmica. Mas

o que significa cada uma dessas perspectivas?

Resumidamente, a democracia (ou democratização, como posteriormente formula

Coutinho, ao agregar a perspectiva lukacsiana que concebe a democracia como processo e

não como estado – Coutinho, 1992: 20) como valor universal pressupõe o entendimento de

que ela “contribui para explicitar e desenvolver os componentes essenciais do ser genérico

do homem (...) em diferentes formações econômico-sociais” (Coutinho, 1992: 21). Ou seja:

para o autor, a democracia é o instrumento que possibilita resolver determinadas situações

oriundas das divergências existentes na sociedade (capitalista ou socialista) de forma mais

positiva para o enriquecimento do gênero humano.

2
Destaque no original.

xvi
O autor, ao fazer tal assertiva, não está

querendo dizer que a democracia socialista será

a continuidade da democracia liberal; muito

pelo contrário, Coutinho indica que “...

impulsionado por condições econômico-sociais

mais favoráveis, o processo de democratização

poderá alcançar novos patamares no

socialismo” (Coutinho, 1992: 22). Para o autor,

na sociedade socialista teremos a criação de

novos institutos democráticos e a mudança de

função de alguns velhos institutos. No entanto,

afirma que seria equivocado supor que esse

novo patamar do processo de democratização

só se manifestaria após a consolidação do

socialismo, sinalizando que:

Assim como as forças produtivas necessárias à criação de uma nova


ordem econômico-social já começam a se desenvolver no interior da sociedade
capitalista, também esses elementos de uma nova democracia – de uma democracia
de massas – já se esboçam e tomam corpo, em oposição aos interesses burgueses
e aos pressupostos teóricos do liberalismo clássico, no seio dos regimes políticos
democráticos ainda sob hegemonia burguesa (Coutinho, 1992: 22-23).

A ponderação central realizada por Netto a essa abordagem refere-se à

qualidade universal que Coutinho atribui à democracia. Para o polemizador, a

democracia no máximo pode ser considerada, numa perspectiva socialista, como

objetivo-meio, pois o objetivo-fim do processo revolucionário é a criação de novas

relações sociais que se desenvolverão no seio da sociedade sem classes cuja

estrutura e conteúdo não se pode vislumbrar sem correr o risco de “lançar sobre a

sociedade futura as hipotecas ideológicas do presente” (Netto, 1990: 86). Ou seja:

para Netto, indicar a democracia como a melhor forma de resolução das

xvii
divergências de opiniões e interesses na sociedade socialista é antecipar e restringir

possibilidades que uma outra ordem societária poderia desenvolver como prática

política superior e mais enriquecedora que a democrática, para o gênero humano.

No entanto, segundo Netto, a construção dessa sociedade que pode vir a

oferecer um instrumento mais avançado que a democracia para o convívio humano

só pode ser forjada a partir da própria democracia. Por isso, apoiado em Cerroni, o

autor trabalhará com as categorias de democracia-método e democracia condição

social.

A democracia-método é entendida como “o conjunto de mecanismos

institucionais que (...) permitem, por sobre a vigência de garantias individuais, a livre

expressão de opiniões e opções políticas e sociais”. Por outro lado, a democracia

condição-social refere-se a um “ordenamento societário em que todos, a par da livre

expressão de opiniões e opções política e sociais, têm iguais chances de intervir

ativa e efetivamente nas decisões que afetam a gestão da vida social”3 (Netto, 1990:

84-85).

O autor explica que essa distinção efetivada sobre a democracia é

fundamental pois evidencia as conexões existentes entre a estrutura política

(método) e o ordenamento econômico (condição social); explicita o motivo da crítica

à ordem democrática capitalista, na medida em que ela se restringe ao método; e

determina que é a democracia-condição social que organiza uma nova ordem sócio-

política que inaugura uma nova etapa do desenvolvimento da sociedade humana

(Netto, 1990).

Nesses termos, a democracia-método, possível no marco do capitalismo, é

considerada como instrumento privilegiado e insubstituível para construir a

3
Itálico no original.

xviii
democracia condição social que só se efetiva a partir do momento de tomada do

poder pela classe operária. Pois, só a partir desse estágio é possível “transformar a

estrutura econômica de forma a criar as condições da democracia-condição social”

(Netto, 1990: 95). Em outras palavras, apenas a partir de uma nova ordem societária

é viável possibilitar chances iguais para que todos possam participar da gestão da

vida social. Segundo o autor, no capitalismo isso não é possível4.

Portanto, de acordo com Netto (1990), a ampliação de direitos civis e políticos

no capitalismo é o caminho para o processo de tomada de poder da classe

trabalhadora. A partir do estabelecimento desse novo marco societário, configurado

pelo fato dos trabalhadores assumirem o poder político, num quadro de expansão de

direitos civis e políticos, potencializa-se a incidência política sobre a estrutura

econômica, visando adequá-la às exigências sociais qualitativamente novas,

promovendo a socialização da economia o que, por conseguinte, facilitará a

socialização da política, criando um movimento simultâneo e dialético de produção

de novas relações sociais.

Apesar de não ser explicitado pelo autor, consideramos que essa abordagem

não impede de vislumbrarmos, no contexto do capitalismo, a possibilidade da

ampliação de direitos sociais - através de políticas sociais - ser compreendida como

um elemento que venha a facilitar, posteriormente à supressão da dominação

burguesa, a construção da democracia-condição social.

Ou seja, apesar da ampliação de direitos sociais não significar a efetivação da

democracia-condição social, ou, de outra forma, apesar das “políticas que incidem no campo

da distribuição não serem capazes de afetar substantivamente o modo de produção” (Netto,

4
Fica nítido que a proposição de Netto não se identifica, em nenhum aspecto, com a visão tática sobre a democracia. Apenas
abre a possibilidade histórica de numa sociedade sem classes (sem exploração, onde as riquezas produzidas socialmente são
usufruídas por todos e o poder esteja efetivamente socializado) poder gerar uma nova forma e conteúdo de gestão societária,
radicalmente diferente daquilo que hoje vislumbramos como imaginável a partir das experiências democráticas existentes.

xix
1994: 86), não quer dizer que essa ampliação não seja fundamental para a construção

futura dessa dimensão democrática.

Entendemos que Coutinho, por outro caminho, explicita mais claramente a

relação entre a ampliação de direitos civis, políticos e sociais e a construção do

socialismo, a partir do que ele vai denominar de reformismo-revolucionário.

A partir da definição de democracia como sendo a “presença efetiva das

condições sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a

participação ativa na formação do governo e, em conseqüência, no controle da vida

social” (Coutinho, 1997: 145), e considerando a articulação existente entre

democracia e cidadania em sua acepção moderna, temos que esse processo de

ampliação de direitos pode levar a uma colisão com a lógica capitalista. Conforme

salienta Coutinho, “a ampliação da cidadania - esse processo progressivo e

permanente de construção dos direitos democráticos que caracteriza a

modernidade - termina por se chocar com a lógica do capital”5 (Coutinho, 1997:

158).

Para chegar a essa conclusão, o autor parte da compreensão de que um dos

conceitos que melhor expressa a democracia é o conceito de cidadania, entendido

como “a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma

democracia efetiva) por todos os indivíduos de apropriarem-se dos bens socialmente

criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela

vida social em cada contexto histórico determinado” (Coutinho, 1997:146).

Segundo o autor, a história da modernidade pode também ser entendida

como a história das lutas sociais travadas pela ampliação dos direitos de cidadania

em suas dimensões civil, política e social. Tais lutas enfrentaram forte reação dos

setores capitalistas e foram vitórias significativas da classe trabalhadora que

xx
possibilitaram a constituição do chamado welfare state, a configuração sócio-estatal

que expressou a garantia dos direitos de cidadania, apesar de limitada, pois

subordinada à lógica do capitalismo e, portanto, não assegurando direito social à

propriedade.

Nesse sentido, tornar realidade direitos

sociais, é, também, uma condição fundamental

para o processo de ampliação da cidadania.

A política social como instrumento de materialização dos direitos sociais

assume, portanto, um caráter estratégico de luta social e política para ampliação da

cidadania.

De acordo com a interpretação de Coutinho da obra marxiana, há um

entendimento de que Marx, ao referir-se à vitória dos trabalhadores em relação à

regulação da jornada de trabalho, “fundamentou a legitimidade e a possibilidade

concreta de obter transformações sociais substantivas através de reformas”

(Coutinho, 1997: 158), na medida em que percebeu na vitória da classe trabalhadora

a vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital.

Portanto, conclui-se que o que limita o mercado em favor de direitos sociais

universais fortalece a economia política do trabalho.

Nesse sentido, ocorre do ponto de vista histórico-social uma mudança

significativa no processo de luta social. A variação da correlação de forças, num

cenário de Estado “ampliado”, característica dos Estados que desenvolvem-se na

fase monopólica do capitalismo, permite que interesses das classes populares, por

vezes limitem, ou até mesmo se sobreponham aos interesses capitalistas. Isso

tornou-se possível, pois a sociedade burguesa a partir do final do século XIX e,

principalmente no século XX, tornou-se extremamente complexa, constituindo um

5
Negrito no original.

xxi
espaço público entre a esfera econômica e estatal, onde os diversos projetos de

sociedade buscam hegemonia e condições para suas respectivas implementações.

Essa situação possibilita, hoje, o desenvolvimento de estratégia política de

transformação à qual Coutinho denomina de “reformismo-revolucionário”.

“Esta nova configuração do Estado abriu a possibilidade concreta


de que a transformação radical da sociedade - a construção de um
ordenamento socialista capaz de realizar plenamente a democracia e
a cidadania - se efetue agora não mais através de uma revolução
violenta, concentrada num curto lapso de tempo (...) Essa nova
estratégia política poderia também ter o nome de “reformismo
revolucionário”. Através da conquista permanente e cumulativa de
novos espaços no interior da esfera pública, tanto na sociedade civil
quanto no próprio Estado, tornou-se factível inverter
progressivamente a correlação de forças, fazendo com que, no limite,
a classe hegemônica já não seja mais a burguesia e, sim, ao
contrário, o conjunto dos trabalhadores. Nesse novo paradigma de
revolução, o socialismo é concebido não mais como a brusca irrupção
do completamente novo, mas como um processo de radicalização da
democracia e, consequentemente, de realização da cidadania”
6
(Coutinho, 1997: 164) .

Nesse quadro de ações voltadas para a socialização da política e socialização

da economia, a despeito das divergências entre os autores, o que cabe destacar,

mais uma vez, é que ambos defendem o caminho democrático como sendo o

caminho7 para a construção socialista.

No entanto, convém explicitar que esse processo de democratização, que

pode levar à hegemonia da classe trabalhadora e sua efetivação através da

conquista do poder político, será realizado no campo das lutas de classes8. Ou seja,

6
Encontramos, neste momento, uma outra divergência entre os autores - apesar de não considerá-la central, merece ser
destacada. O processo cumulativo de conquistas e radicalização da democracia, apontado por Coutinho, provoca, em
determinado momento do processo histórico, uma mudança qualitativa que implica a efetivação da hegemonia da classe
trabalhadora e, consequentemente, a ruptura com o capitalismo – lembre-se que segundo Coutinho a ampliação da cidadania
choca-se com a lógica do capital. Esse processo de supressão da dominação política burguesa pode acontecer, segundo Netto
(1990), revestido ou não de violência, dependendo das condições históricas e correlação de forças. O que não significa dizer
que a estratégia revolucionária defendida seja o assalto frontal e violento para a tomada de poder político. Essa possibilidade
de ocorrência de momentos violentos nesse processo de mudança de padrão societário não é explicitado claramente por
Coutinho, dando margem a interpretações que conduzam ao entendimento de que o autor não cogita que possa ocorrer
violência no movimento de construção socialista, dependendo das condições históricas existentes.
7
De acordo com Netto a democracia não é “(...) um instrumento alternativo (...), mas o único que, na sua operacionalização,
antecipa um modo de comportamento social genérico que, no desenvolvimento do processo revolucionário, através de rupturas
sucessivas, tenderá pela prática política organizada e direcionada pela teoria social, a permear todas as instâncias da vida
social” (Netto, 1990: 86). Coutinho, na mesma direção, resume a questão citando o documento político para o 18º Congresso
do Partido Comunista Italiano (1989), o qual afirma que “a democracia não é um caminho para o socialismo, mas sim o
caminho do socialismo” (grifos em Coutinho, 1992: 22).
8
Como vimos na nota anterior, o processo de construção do socialismo, via democratização, implica um dado momento em que
os elementos fundamentais da sociedade capitalista deixam de existir e a direção social (hegemonia) passa a ser da classe
trabalhadora; ou seja: implica na transição socialista, identificada, segundo Netto (1990), pela tomada do poder de Estado pela

xxii
não se trata da construção de consensos com base numa suposta ação fundada na

racionalidade interativa, tal qual formulou Habermas (1988). Refere-se, isso sim, a

uma luta estratégica desenvolvida na arena da sociedade civil, em que disputa-se

projetos políticos distintos, visando a construção da hegemonia da classe

trabalhadora, conforme postulado por Gramsci9.

Nesse sentido, entendemos que é na disputa política entre as classes

fundamentais do capitalismo, em torno do poder de Estado, que localiza-se o cerne

do processo de democratização. Essa disputa, em termos gerais, encontra sua

expressão determinante nas lutas sociais desenvolvidas pelas organizações da

sociedade civil vinculadas à classe trabalhadora, mediadas e totalizadas pelos

partidos políticos do campo democrático-progressista, liderado por aqueles que

tenham como proposição a construção socialista.

Como conseqüência dessa compreensão, as intervenções sociais e

políticas em outros espaços e que não tenham como objetivo imediato a luta pelo

poder de Estado, apesar de não se apresentarem como determinação central do

processo de democratização, configuram-se como ações fundamentais para a

ampliação das condições que venham a contribuir para o fortalecimento e

aprofundamento da democracia-método e para a construção da democracia-

condição social, nos termos de Netto, ou, se quisermos, para a ampliação da

cidadania na perspectiva reformista-revolucionária, na formulação de Coutinho.

Portanto, considerando essas questões, cabe indicar como conclusão que a

possibilidade de pensarmos a ampliação de direitos sociais, via políticas sociais, apesar de

classe trabalhadora. Aqui encontramos mais uma divergência central entre os autores, na medida em que Coutinho não define
objetivamente, em sua proposição reformista-revolucionária, o momento em que se dá a efetivação da hegemonia da classe
trabalhadora. No entanto, para o objetivo do presente trabalho, o central não é precisar a questão da transição socialista - o
problema da ruptura com a ordem capitalista (Netto, 1990: 87) - ou definir a partir de que momento passa a se efetivar tal
transição. Para o tema proposto o que interessa é, por um lado, explicitar a importância do processo de democratização para a
superação da ordem capitalista e construção do socialismo e, por outro lado, demonstrar que a gestão, como uma dimensão da
intervenção social, pode ser pensada e implementada como um dos elementos que compõem o processo de democratização
numa perspectiva de construção socialista.

xxiii
não se configurar como espaço central da luta por hegemonia, inserida no processo

reformista-revolucionário ou como contribuição para a construção da democracia-condição

social, implica, também, a possibilidade de concebermos a questão da administração de

tais políticas no campo do fortalecimento do processo de democratização. Visto que, por um

lado, a gestão de políticas sociais configura-se como o modus operandi para implementar os

direitos sociais e, por outro lado, a socialização da economia, de acordo com Netto (1990:

94), depende da socialização da gestão pública para sua promoção.

Sendo assim, consideramos que a experiência de administração pública no campo

da distribuição (gestão social), além de contribuir com a expansão de direitos sociais, pode,

também, favorecer a criação de estratégias e instrumentos para a gestão da produção no

sentido geral e, dessa forma, ser um elemento fundamental para o processo de socialização

da economia, a partir do desenvolvimento da socialização da política.

A apresentação dessas possibilidades teóricas e suas respectivas particularidades é

a tarefa para ser desenvolvida ao longo do trabalho.

Capitalismo e Política Social: determinações fundamentais e a

construção de uma nova sociedade

As políticas sociais surgem no mundo capitalista, a partir da segunda

revolução industrial (último quartel do século XIX), como estratégia de intervenção

contínua, sistemática e estruturada do Estado na área social, conseqüência da

refuncionalização sofrida pelo Estado para responder à fase monopólica do

capitalismo.

A fase conhecida como “capitalismo monopolista”10 caracteriza-se por ser

uma etapa do capitalismo onde ocorre a tendência à monopolização dos mercados

para obtenção de super-lucros. Cartéis, oligopólios, trustes e “acordos de

9
Sobre minha interpretação em relação às concepções de Habermas e Gramsci, ver Souza Filho (2001).
10
A abordagem desenvolvida neste texto sobre a relação política social e capitalismo monopolista tem como referência o livro

xxiv
cavalheiros” passam a ser as estratégias dos capitalistas para forçarem a elevação

de preços e reduzirem os processos de concorrência, visando a produção de super-

lucros. Além dessa estratégia, esse período é marcado pela aumento da

produtividade advindo das inovações tecnológicas do período, tanto em relação à

maquinaria, quanto em relação à organização do trabalho.

Esse arranjo econômico-produtivo provoca a médio prazo uma grave crise

sócio-econômica, gerada pela combinação de desemprego, devido à economia de

“trabalho vivo”, alta produção de bens, como conseqüência da introdução de novas

tecnologias, e queda da taxa média de lucro. Essa situação transcorre num processo

político em que a classe trabalhadora já possui um razoável patamar de

organização, o que provoca amplas lutas sociais com o objetivo de superar os limites

do capital, tendo, também, como perspectiva o atendimento de demandas dos

trabalhadores.

Nesse contexto, realiza-se a refuncionalização do Estado, que até então

estruturava-se como “vigilante noturno”, resguardando vida, propriedade e liberdade.

O Estado, a partir de então, passa a assumir funções na área econômica (investe

em infra-estrutura, assume empresas com dificuldades, subsidia o setor produtivo...)

e também na área social, através das políticas sociais.

Entretanto, o formato e o conteúdo das políticas sociais que serão

implementadas dependerão da correlação de forças sociais existentes em cada

sociedade em determinado contexto histórico. Portanto, o nível de organização da

classe trabalhadora, mediada pelo grau de desenvolvimento societal de cada nação,

irá influenciar, sobremaneira, na constituição das políticas sociais e na configuração

“Capitalismo Monopolista e Serviço Social” de José Paulo Netto (Netto, 1992).

xxv
estatal que será estruturada nas diversas nações. Resumindo esse processo, Netto

explicita:

... o capitalismo monopolista pelas suas dinâmicas e contradições, cria


condições tais que o Estado por ele capturado, ao buscar legitimação política
através do jogo democrático, é permeável a demandas das classes subalternas, que
podem fazer incidir nele seus interesses e suas reivindicações imediatos. E que este
processo é todo ele tensionado, não só pelas exigências da ordem monopólica, mas
pelos conflitos que esta faz dimanar em escala societária (Netto, 1992: 25).

Portanto, no marco do capitalismo monopolista, as políticas sociais, a partir de

seu objetivo imediato de garantir a reprodução da força de trabalho, atuam em

determinadas expressões da “questão social”11 como forma de construir uma base

ampla de legitimidade e consenso social, através do atendimento concreto de

demandas e necessidades da classe trabalhadora. No entanto, elas encontram-se

intrinsecamente relacionadas às políticas econômicas como estratégia de

intervenção do Estado, visando a realização da lógica monopólica de maximização

dos lucros pelo controle dos mercados. A forma e o conteúdo das políticas

econômicas e sociais, por conseguinte, dependerão dos processos de lutas sociais

concretas que produzirão a morfologia do Estado interventor e de sua política social,

num determinado contexto histórico (Netto, 1992).

Assim, se por um lado o Estado interventor e a política social apresentam-se

como funcionais ao capital, por outro eles também atendem a interesses da classe

trabalhadora. Esse movimento contraditório processa o limite e a possibilidade da

ação política junto ao Estado, no aspecto geral, e à política social, especificamente,

numa perspectiva de transformação da sociedade. Em outras palavras, o Estado, em

sua dimensão de gestor de políticas sociais, não se configura como o centro das

11
Entendemos “questão social”, conforme destaca Iamamoto, como o “...conjunto das expressões das desigualdades sociais
engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter
coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana - o trabalho -, das condições necessárias
à sua realização, assim como de seus frutos (...) A questão social expressa portanto disparidades econômicas, políticas e
culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais,
colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal” (Iamamoto, 2001: 16-17). Para
um mapeamento das determinações teóricas e históricas da categoria “questão social” no marco da tradição marxista, ver,

xxvi
lutas para a transformação da sociedade; no entanto, é um espaço importante para

acumulação de conquistas dos trabalhadores, através da ampliação e

aprofundamento de direitos. Portanto, para refletir sobre as organizações da

sociedade civil e a execução de políticas sociais é necessário ter clareza dessa

relação de limite e possibilidade estrutural.

Um outro aspecto que expressa o limite e a possibilidade da intervenção junto

à política social diz respeito à sua relação com a política econômica. Nesse sentido,

para um enfrentamento das expressões da “questão social” que venha a atender de

forma mais ampla os interesses da classe trabalhadora, exige-se uma política

econômica também com este objetivo. Portanto, uma política econômica que reforça

as desigualdades sociais, que não potencializa o enfrentamento das iniquidades

sociais determina as (im)possibilidades de construção de uma política social voltada

para os interesses das classes subalternas. Nesses termos, a as políticas sociais

públicas, por mais que sejam orientadas para a efetivação de objetivos

democráticos12, não viabilizarão um enfrentamento mais amplo das expressões da

“questão social”. O que determina, por sua vez, a (im)possibilidade de debitarmos à

administração das políticas públicas sociais os condicionantes necessários à

reversão do quadro de “exclusão social”13, como se o problema fosse meramente de

“reforma institucional”14.

Assim posta, uma política social voltada

para o atendimento das necessidades das

classes subalternas exige uma política

também, Netto (2001).


12
Para efeito desse trabalho estaremos qualificando como democrática a política social de “padrão institucional,
redistributivista”. É o padrão que se orienta pelo universalismo de direitos, a ampliação e a garantia, por parte do Estado, da
proteção e da promoção social, através da organicidade das políticas sociais de caráter público.
13
Para um mapeamento do debate sobre “exclusão social” ver Lesbaupin (2000).
14
Acredito ter deixado claro que a concepção ora apresentada procura se desvincular de qualquer vício “politicista” (Menezes,
1993), apesar de possuir como objeto central de análise à política e a questão institucional.

xxvii
econômica que privilegie as demandas pela

universalização e aprofundamento de direitos,

se se pretende que seu desenvolvimento

obtenha êxitos na luta contra a pobreza. De

outra forma, a política social enfrentará entraves

estruturais vinculados à política econômica, não

viabilizando a expansão de direitos sociais,

apenas agindo compensatoriamente,

independentemente de sua configuração

institucional.

Essas características mostram as articulações necessárias que devem existir

entre a política social e a política econômica, no marco do capitalismo, para produzir

ampliação e universalização de direitos.

Nesses termos, e considerando a perspectiva da estratégia democrática como

caminho para a construção socialista e a articulação existente entre democracia e

cidadania em sua acepção moderna, temos que esse processo de alargamento da

cidadania pode levar a uma colisão com a lógica capitalista15.

Em outras palavras, a política social

como instrumento de materialização dos

direitos sociais assume, portanto, um caráter

estratégico de luta social e política para

ampliação da cidadania e o aprofundamento

democrático, num movimento que, por um lado,

fortalece a luta mediata anti-capitalista e, por

15
Como vimos na seção anterior, “a ampliação da cidadania - esse processo progressivo e permanente de construção
dos direitos democráticos que caracteriza a modernidade - termina por se chocar com a lógica do capital” (Coutinho,
1997: 158).

xxviii
outro lado, possibilita o atendimento imediato

das necessidades das classes subalternas16.

Portanto, a perspectiva de construção de políticas sociais pode ter como orientação

uma proposição “reformista-revolucionária”, nos termos de Coutinho, ou ser um passo para

a constituição da “democracia-condição social”, nas palavras de Netto. Ou seja, as políticas

sociais podem contribuir com o processo de ampliação da cidadania e aprofundamento da

democracia, vinculado a um projeto de sociedade da classe trabalhadora. Entretanto, o

centro de construção desse projeto e o núcleo da luta social que deve ser travada para a

viabilização de um novo padrão societário não estão posicionados no campo das políticas

sociais, conforme pôde ser verificado ao longo da primeira seção. Vale ressaltar, mais uma

vez, após todas as considerações já levantadas, que isso não significa dizer que esse

espaço não se configura como um local onde deva-se travar, também, a batalha pelo

socialismo.

Sintetizando, poderíamos dizer que a premissa que norteia nossa concepção

considera que a sociedade capitalista nunca permitirá a “emancipação humana”; no

entanto, a construção de uma sociedade emancipada deve pautar-se em melhoras

imediatas para a população. Dessa forma, as políticas sociais podem ser efetivadas

num duplo sentido: acumular mudanças para uma radical transformação societária e

possibilitar melhorias imediatas na condição de vida das classes subalternas.

A partir dessa “maneira de ver as

coisas”, partimos da proposição de que no

sistema capitalista, para atender à satisfação da

população numa perspectiva de universalização

e aprofundamento de direitos, necessita-se da

intervenção do Estado para implementar

16
Navarro corrobora com essa concepção ao afirmar que: “As reformas gerais baseadas em políticas de redistribuição de
recursos entre o capital e o trabalho fortalecem as classes trabalhadoras e as massas populares em sua luta diária contra o
capital. Essas reformas guardam uma lógica que conflita com a lógica do capitalismo e com os interesses do capital” (Navarro,
1993: 195).

xxix
políticas sociais. A mediação entre a

intervenção do Estado e a implementação de

políticas sociais é realizada pela estrutura

administrativa. Assim, a administração pública

para implementar políticas públicas, no geral, e

políticas sociais, especificamente, orientadas

para a finalidade da universalização e

aprofundamento de direitos, necessita estar

estruturada de forma adequada para atingir o

fim proposto.

Dessa forma, a determinação em última

instância para a efetivação de uma gestão social

nos termos propostos está centrada na

possibilidade (condições objetivas e subjetivas)

de uma construção hegemônica na sociedade

civil que conduza o Estado e sua ordem

administrativa a desenvolver políticas públicas

econômicas e sociais que venham a garantir a

radicalização de direitos. Por outro lado, a

determinação em primeira instância deve ser

buscada na formação estatal constituída ao

longo do desenvolvimento capitalista e o

ordenamento administrativo correspondente

para verificar nessa instância os elementos que

obstam e aqueles que podem potencializar a

organização estatal e administrativa no sentido

da universalização de direitos. Obviamente,

esse raciocínio deve ser desenvolvido à luz da

xxx
particularidade do desenvolvimento do

capitalismo brasileiro.

Sendo assim, conhecer as

particularidades do capitalismo brasileiro e sua

relação com as condições sociais, políticas e

culturais manifestadas nas lutas de classes e

seu rebatimento na estruturação do Estado e de

sua ordem administrativa nos leva a ter uma

visão de totalidade sobre as tensões,

contradições, desafios e possibilidades sobre a

constituição, no Brasil, de uma “gestão social”

voltada para a universalização e

aprofundamento de direitos. E permite, ademais,

que identifiquemos estratégias, mecanismos e

instrumentos que possam contribuir com a luta

imediata e mediata necessária para a efetivação

dessa perspectiva, principalmente, aquelas

estratégias e mecanismos possíveis de serem

desenvolvidas pelos atuais gestores sociais.

São essas questões que constituem o

nosso objeto e que pretendemos abordar ao

longo desta tese. E queremos destacar quatro

aspectos, que, no trato desse objeto, parecem-

nos as contribuições centrais do presente

estudo para o tema em questão.

O primeiro refere-se à contribuição que

procuramos oferecer ao debate teórico sobre as

questões do Estado e do fenômeno burocrático, no

xxxi
quadro da sociedade capitalista. A escolha da

problematização teórica sobre esses temas está

relacionada ao fato da expansão do Estado e da

burocracia (configuração hegemônica da ordem

administrativa no capitalismo) estar inserida no

processo de democratização e ampliação de

direitos, principalmente sociais, ocorridos na

sociedade capitalista, a partir do final do século

XIX e, mais intensivamente, ao longo do século

XX. Ao final de nossa reflexão teórica,

defendemos a tese da impossibilidade de uma

sociedade de classes expandir direitos

(atendimento de necessidades das classes

dominadas na sociedade capitalista, principalmente

sociais), se não possuir Estado forte e burocracia

estruturada. Desenvolvemos essa argumentação

ao longo do Capítulo I.

O segundo aspecto diz respeito à tentativa

de precisarmos melhor a análise da constituição

do Estado e da sua ordem administrativa no

Brasil, no sentido de aprofundar a explicação,

através da análise histórica, da reiterativa

presença do patrimonialismo como traço de

nossa administração pública. Dessa forma,

identificamos a imbricação do patrimonialismo com

a burocracia como resultado mediato da relação

estabelecida entre setores não-capitalistas e

capitalistas da economia; tal relação constituiu a

xxxii
base estrutural do pacto de dominação conservador

que operou a industrialização brasileira e forjou a

necessidade de uma ordem administrativa que

combinasse elementos racional-legais

(burocráticos) e tradicionais (patrimonialistas). Essa

análise é detalhada nos Capítulos II e III.

Em seguida, através das reflexões

desenvolvidas e das conclusões alcançadas,

realizamos a crítica da chamada “reforma

gerencial da administração pública”.

Analisamos o gerencialismo, em termos gerais,

como uma proposta que não se refere a um

modelo pós-burocrático, pois nem supera nem

suprime a burocracia; pelo contrário, indica a

manutenção da burocracia através de um

processo que combina “burocracia

monocrática”, para os centros de decisão, com

“flexibilização burocrática”, via

descentralização, para a periferia da ordem

administrativa, possibilitando a incorporação de

traços patrimonialistas na gestão pública. Nesse

contexto, a “administração pública gerencial” no

Brasil, proposta pelo Plano Diretor da Reforma do

Aparelho do Estado, configura-se como uma

programática que trata a burocracia de forma

paradoxal – monocratização burocrática dos

centros de decisão e enfraquecimento da

burocracia para o conjunto das ações do Estado,

xxxiii
principalmente as da área social –, combinando-a

com elementos de um patrimonialismo em

transformismo. Transformismo consistente na

conversão da lógica de fidelidade existente entre o

senhor e o servidor baseada na tradição, em uma

lógica fundada em base racional-legal, tipicamente

burocrática. A fundamentação dessa análise

encontra-se no Capítulo IV, que apresenta o

terceiro aspecto que julgamos central nesta tese.

Por fim, à guisa de conclusão, apontamos

as dimensões que consideramos fundamentais

para a implementação de uma gestão pública que

se oriente para o fortalecimento do processo de

universalização e aprofundamento de direitos no

marco do capitalismo, de forma imediata, mas que

colabore com o movimento de superação de tal

ordem numa perpectiva estratégica. Então,

voltamos ao ponto de partida e levantamos os

elementos que devem configurar o perfil de um

gestor público e sua organização institucional,

de modo a fortalecer o Estado, em sua

intervenção social, e estruturar uma burocracia

permeada pelo controle público e social.

Esta tese insere-se no marco da teoria

social crítica e busca, a partir das reflexões

acumuladas sobre a realidade da sociedade

capitalista contemporânea e seu

desenvolvimento no Brasil, indicar pistas para

xxxiv
solucionar alguns dilemas relativos à

estruturação de nossa administração pública.

Essa orientação advém do entendimento

de que sendo o Serviço Social uma profissão

eminentemente interventiva, a tarefa propositiva

e normativa deve estar, também, no campo das

preocupações acadêmicas. E dela decorre que,

no campo do Serviço Social, é necessário um

aprofundamento teórico-prático que interrogue

criticamente a realidade e que produza, também,

sugestões para uma conseqüente intervenção

na sociedade. A produção global na área deve

atender a essa perspectiva, o que não significa

dizer que toda a produção da área deve tratar da

análise crítica da realidade e de indicações

propositivas.

xxxv
CAPÍTULO I – ADMINISTRAÇÃO, A QUESTÃO DO ESTADO E O

FENÔMENO BUROCRÁTICO: FUNDAMENTOS DA GESTÃO PÚBLICA

1.1. O conceito de administração em geral

O educador Vitor Henrique Paro nos fornece uma chave heurística que

consideramos precisa para a análise do fenômeno administrativo. Segundo o autor,

o primeiro passo a dar para realizar a análise da administração é distinguir o

conceito em geral da administração de sua manifestação historicamente

determinada na sociedade capitalista. Nesse sentido, a administração em geral é

conceitualizada como “utilização racional de recursos para realização de fins

determinados” (Paro, 2000: 18).

Esse conceito abstrato da administração permite desvelar a conexão

existente entre os fins e os meios da administração e o papel da razão como

elemento de mediação dessa conexão. Dessa forma, identifica que a administração

refere-se à organização de recursos (meios) para atingir uma dada finalidade; ou

seja: a finalidade determina os recursos que serão utilizados e a racionalidade

envolvida na ação. Essa relação dialética estabelecida entre meio-racionalidade-fim

apresenta as diferentes articulações que podem ocorrer: fim-meio, racionalidade-fim

e racionalidade-meio. Em outras palavras, para uma perspectiva/finalidade

democrática e emancipatória não podemos utilizar meios e racionalidade

instrumentais17.

Isso significa dizer que, embora seja possível uma administração

democrática, é necessário que suas dimensões sejam depuradas ao máximo, para

que a incorporação de uma racionalidade instrumental na administração e/ou a

17
Para o debate sobre racionalidade e sua relação com as escolhas de estratégia e os meios de intervenção, ver Guerra
(1995) e Santos (2006).

xxxvi
utilização de recursos/meios comprometidos com as relações de dominação sejam

evitadas. Cabe, então, detalharmos um pouco mais o conceito de administração

desenvolvido por Paro.

Para reafirmar a possibilidade e a necessidade de situar a administração

numa perspectiva democrática e emancipatória e, por conseguinte, voltada para a

transformação da sociedade, Paro mostra, por um lado, que a administração é uma

atividade exclusivamente humana, pois teleológica. Por outro lado, a administração é

necessária porque, na medida em que o homem propõe-se a realizar objetivos,

precisa utilizar racionalmente os meios de que dispõe para efetivá-los.

A utilização racional dos meios/recursos pressupõe, segundo o autor, duas

dimensões: a adequação dos recursos aos fins e o emprego econômico dos

recursos. Ou seja, dentre os recursos existentes deve-se utilizar aqueles que mais

se prestam para atingir os fins determinados, de forma que se consuma o menor

tempo possível e o dispêndio dos recursos seja mínimo. A razão assim considerada

é meramente instrumental. Entretanto, como veremos adiante18 e de forma mais

detalhada, Paro não se limita a tratar a razão apenas através de sua dimensão

instrumental. O autor incorpora a questão da emancipação na sua forma de trabalhar

a razão. Sendo assim, a razão não se limita à utilização dos recursos, mas implica,

também, na racionalidade dos fins. A finalidade racional é aquela destinada à

liberdade humana, é aquela, nas palavras do autor, que coloca “como questão

fundamental a busca de objetivos que atendam aos interesses de toda a sociedade

e não de grupos privilegiados dentro dela” (Paro, 2000: 57).

Portanto, os fins - a dimensão ético-política da administração, sua orientação

e seus princípios – devem ser analisados do ponto de vista racional, em seu sentido

18
Ver item 1.3

xxxvii
emancipatório, enquanto os recursos19 devem passar pelo crivo da racionalidade

instrumental. Para a nossa questão - administração pública -, a análise dos fins

remete à avaliação da orientação da política pública, seus princípios e diretrizes,

enquanto a crítica da utilização dos recursos refere-se aos arranjos institucionais e

aos procedimentos gerenciais operacionalizados para atingir as finalidades

determinadas.

Essa concepção busca articular a dimensão política (finalidade) com a

dimensão técnica (utilização racional dos recursos) da administração, evitando a

cisão entre o político e o técnico. Dessa maneira, rejeita-se a forma tradicional de

conceber a administração apenas pelo foco da utilização dos recursos, pois

administrar é agir racionalmente para definir fins e utilizar recursos.

Assim, a abordagem da administração em sua expressão geral nos permite

explicitar dimensões que viabilizam uma análise crítica do fenômeno administrativo,

sem perdermos de vista a importância dessa atividade para a sociedade. Como o

próprio Paro assinala, é necessário evitar tanto a posição daqueles que identificam a

administração capitalista/empresarial como algo de valor universal, quanto combater

os radicais ingênuos que identificam a administração como instrumento capitalista de

dominação e, portanto, não enxergam as reais determinações da dominação vigente

na sociedade. Ambas as abordagens não contribuem para a concepção de uma

administração pública numa perspectiva democrática, pois ou reiteram as relações

de dominação presentes na sociedade - como ocorre com a abordagem que

pretende dar um caráter de universalidade à administração empresarial,

reproduzindo, dessa forma, o status quo -, ou negam a administração – posição

assumida pela abordagem que não considera as determinações sociais e

19
Segundo Paro os recursos “envolvem, por um lado, elementos materiais e conceituais que o homem coloca entre si e a
natureza para dominá-la em seu proveito; por outro, os esforços dispendidos pelos homens e que precisam ser coordenados

xxxviii
econômicas da administração empresarial/capitalista e imputa à própria

administração (e não às relações sociais presentes na sociedade) o caráter de

dominação (Paro, 2000).

Nessa ótica, o tema administração ganha substância para além de modismos

e vinculações estreitas e exclusivistas da questão à ordem burguesa. Ou seja, nas

palavras do autor:

Captada em sua [da administração] especificidade (ou seja, sua


forma geral, aquela que é comum a todo o tipo de estrutura social), é
possível identificar quais os elementos que, em sua existência
concreta, se devem às determinações históricas próprias de um dado
modo de produção. Numa perspectiva de transformação social, é
possível além disso, raciocinar em termos dos elementos dos quais
esta forma, historicamente determinada numa sociedade de classes,
precisa ser depurada para que, numa sociedade mais avançada, se
possa pô-la a serviço de propósitos não autoritários (Paro,2000: 18).

A concepção apresentada evita tanto a visão “tecnicista” da administração

quanto a “politicista”, pois pressupõe uma perspectiva que concebe a administração

como uma relação entre a dimensão ético-política e técnico-operativa. Nesse caso,

contribui seja para evitarmos a noção que identifica gestão com a dimensão técnica

(e que, portanto, não deve confundir-se com a política) seja com aquela que

considera que resolvida a questão ético-política a dimensão técnico-operativa

resolve-se naturalmente.

Assim, o tratamento do tema referente à gestão deve ser realizado inserindo-

o no campo da política como questão pública, resgatando a articulação dialética

entre política/finalidades e utilização de recursos/meios/técnica. A conjuntura

neoliberal que privilegia as análises tecnicistas, partindo do entendimento que a

finalidade da administração está dada (expansão da sociedade capitalista), não

pode ser argumento para que não tratemos da questão da gestão/administração;

com vistas a um propósito comum” (Paro, 2000: 20).

xxxix
muito pelo contrário, devemos enfrentar essa disputa revelando as conexões entre

fins e meios de qualquer expressão concreta da administração.

Em conseqüência, para avançarmos no debate sobre a fundamentação da

administração pública, numa perspectiva democrática, a partir dessa concepção

geral de administração, precisamos situá-la no contexto do Estado capitalista e

explorar sua forma administrativa concreta de expressão fenomênica, qual seja: a

burocracia. Só assim podemos pensar numa perspectiva de administração pública

que supere a atual configuração administrativa da sociedade, realizada através do

Estado.

1.2. O Estado em questão

Tratar a questão do Estado e, posteriormente, refletir sobre o fenômeno

burocrático requer retomar criticamente os fundamentos do Estado moderno no

marco do desenvolvimento e consolidação da sociedade capitalista.

Nesse sentido, torna-se fundamental, por um lado, resgatar a concepção

hegeliana de Estado e burocracia, na medida em que foi esse clássico quem

primeiro formulou teoricamente a descrição do Estado burguês moderno. Por outro

lado, é essencial retomar a análise weberiana sobre a burocracia e o

desenvolvimento do capitalismo, pois ela nos possibilita identificar categorias

imprescindíveis para decodificarmos os fenômenos em pauta. Esse movimento de

resgate da formulação desses autores sobre o tema será tratado a partir de

produções marxianas e marxistas, visando o aprofundamento crítico-dialético

necessário para estruturar a base dos fundamentos teórico-políticos da

administração pública, a partir da concepção geral de administração apresentada

anteriormente.

xl
A partir do enquadramento enunciado acima, um primeiro aspecto a ser

destacado na produção hegeliana20, diz respeito ao fato do filósofo alemão - por

dominar economia política - compreender as desigualdades existentes na sociedade

capitalista. Ou seja, Hegel considera o modo de produção capitalista, como veremos

adiante - independentemente se sua visão sobre a sociedade capitalista é positiva

ou negativa -, um modo de produção anárquico, devasso e irracional do ponto de

vista da produção e distribuição das mercadorias e da construção do interesse

comum. De acordo com Marcuse, Hegel reafirma o caráter negativo do sistema

econômico na medida em que “(...) a própria natureza da estrutura econômica

impede o estabelecimento de um autêntico interesse comum” (Marcuse 1978: 67).

No entanto, apesar da estrutura econômica fundada na propriedade privada

impedir a construção do interesse comum, Hegel não vê possibilidade de supressão

dessa ordem na medida que ela expressa a realização da liberdade.

Para o filósofo alemão, o homem tem o direito de manifestar a sua vontade

em qualquer coisa; essa manifestação da vontade humana torna a coisa desejada

um fim substancial que não existe “em si”, mas passa a existir na medida em que a

coisa transforma-se na realização da vontade. A realização da vontade sobre a coisa

efetiva-se através da apropriação.

O movimento que leva o sujeito a expressar sua vontade através da

apropriação da coisa para satisfazer suas necessidades, desejos e livre-arbítrio é o

movimento que permite ao homem tornar-se objetivo para ele próprio. Em outras

palavras, é através da apropriação que o homem objetiva-se como vontade livre.

20
Utilizaremos como referência central para tratarmos a concepção de sociedade em Hegel sua obra “Princípios da Filosofia do
Direito” (Hegel, 1997).

xli
Nesse sentido, como afirma Hegel, a liberdade tem na propriedade a sua

primeira existência, o seu fim essencial para si. Apesar de que, do ponto de vista da

necessidade, ela (propriedade) aparece, apenas, como meio e não como fim.

A propriedade é a base da liberdade. Como ressalta Marcuse em sua análise,

para Hegel “o indivíduo só é livre quando se conhece como livre, e só atinge este

conhecimento quando põe a prova sua liberdade. Essa prova pode consistir na

demonstração do seu poder sobre os objetos que deseja, deles se apropriando”

(Marcuse, 1978: 181). Portanto, uma sociedade que suprime a propriedade privada

é injusta com os indivíduos, pois não lhes permite exercer a liberdade.

A concepção de liberdade vinculada à propriedade leva Hegel a estruturar o

seu sistema buscando garantir a manutenção da propriedade privada. Essa

perspectiva é um componente central da resignação hegeliana com a realidade de

sua época, na medida em que nitidamente assume o ponto de vista burguês e não

vislumbra alternativa para a ordem do capital.

Por outro lado, o autor alemão, ao entender que a vontade, em sua verdade,

é o Bem – isto é, a essência da vontade em sua subjetividade e universalidade

(Hegel, 1997: 115), na medida em que o Bem é a substância universal da liberdade,

a liberdade realizada como unidade do conceito da vontade e da vontade particular

(idem: 114) -, apresenta uma outra dimensão da vontade que exige outras condições

para a realização da liberdade, não sendo suficiente, portanto, sua manifestação

através da propriedade privada.

Dessa forma, afirma Hegel:

Por isso o Bem, que é necessidade de se realizar por intermédio da


vontade particular e, ao mesmo tempo, substância dessa vontade,
tem o direito absoluto em face do direito abstrato da propriedade e
dos fins particulares do bem-estar. Cada momento destes, separado
do Bem, só tem valor quando lhe é conforme e subordinado” (ibdem:
115).

xlii
Podemos dizer que Hegel, assim, estabelece uma ordem social em que a

propriedade e os fins particulares de bem-estar devem estar subordinados à

dimensão universal do Bem. Ou seja, dialeticamente, a primeira expressão da

liberdade que é a realização da vontade particular através da propriedade está

preservada sob a condição de existir na sociedade a expressão da vontade em sua

universalidade que é o Bem e, dessa forma, ser possível a realização da liberdade

em sua totalidade. Em outras palavras, a liberdade está vinculada simultaneamente

à propriedade - condição básica para o indivíduo objetivar sua liberdade através da

vontade - e ao Bem - a liberdade realizada através da unidade do conceito da

vontade com a vontade particular.

Portanto, diferentemente de Rousseau, para Hegel não se pode fundar a

questão da vontade apenas num postulado moral que parte do indivíduo. Para o

filósofo alemão, na medida em que a vontade geral é o racional em si e para si da

vontade, que pode ser de conhecimento ou não do indivíduo que pode aceitá-la ou

não pelo seu livre-arbítrio, ela estrutura-se de forma objetiva. Ou seja, a vontade

individual, subjetividade da liberdade, “apenas contém um momento unilateral da

idéia de vontade racional” (Hegel, 1997: 219). Conforme esclarece Coutinho:

... [Para Hegel] a vontade geral tem uma base objetiva, ou seja, sofre
um processo de determinações histórico-genéticas que transcende a
ação dos indivíduos e seu projetos volitivos singulares. Enquanto
componente essencial do mundo ético, a vontade geral não resulta de
um postulado moral, não é mero resultado da ação ‘virtuosa’ dos
indivíduos ouvindo a ‘voz própria da consciência’, como pensava
Jean-Jacques, mas se apóia numa comunidade objetiva de
interesses, que o movimento da realidade (que Hegel preferia chamar
de ‘razão’ ou de ‘Espírito’) produz e impõe aos indivíduos,
independentemente da consciência e do desejos deles, ainda que o
faça ‘astuciosamente’, ou seja, valendo-se das ‘paixões’ singulares
dos próprios indivíduos (Coutinho: 1998: 63).

A partir dessa concepção de liberdade, que implica a expressão da vontade

em suas dimensões particular e universal, o autor da Filosofia do Direito

desenvolverá, na terceira parte dessa obra, sua concepção de Moralidade Objetiva

xliii
como o “conceito de liberdade que se tornou mundo real” (Hegel, 1997: 141). Ou

seja, a Moralidade Objetiva é a Idéia de liberdade, portanto o conceito de liberdade

realizado concretamente. Segundo o filósofo alemão, esse conceito realiza-se na

sociedade através de três momentos: família, sociedade civil e Estado.

Para Hegel, como bem sinaliza Marcuse, “toda a terceira parte da Filosofia do

Direito pressupõe que não exista nenhuma instituição objetiva que não esteja

fundada na vontade livre do sujeito, e nenhuma liberdade subjetiva que não seja

visível na ordem social objetiva” (Marcuse, 1988: 188). A partir desse pressuposto,

ao discutir a sociedade civil, principalmente na esfera do sistema de necessidades21,

Hegel analisa as desigualdades existentes na sociedade capitalista.

Para o autor, a sociedade civil é uma esfera onde predominam os interesses

particulares, apesar de encontrarmos, também, espaços de constituição da

universalidade e a formação do interesse comum. Porém, esses espaços presentes

na sociedade civil são mediações para o estabelecimento do universal na sociedade,

realizado pelo Estado. Ou seja, não são dimensões com força para instituir o

universal na sociedade, são apenas expressões do universal (jurisdição e

administração) na sociedade civil - penetração do Estado na sociedade civil - e

expressão de elementos universais da sociedade civil (corporações) - presença da

sociedade civil na constituição do Estado - que realizam a passagem entre o

particular e o universal, entre a sociedade civil e o Estado, evitando, dessa forma, a

dualidade desses momentos.

A sociedade civil, portanto, a despeito de seus momentos universalizantes,

configura-se como o espaço para o desenvolvimento e expansão da particularidade

(idem: 168), através da satisfação das exigências, livre-arbítrio contingente e

21
A sociedade civil em Hegel é formada por três momentos: sistema de necessidades, jurisdição e administração e corporação.

xliv
preferência subjetiva, via propriedade e/ou trabalho, e, dessa forma, apresenta-se

como “o espetáculo da devassidão bem como da corrupção e da miséria” (idem:

168). Pois, conforme o autor, a propriedade é racional, mas a quantidade e natureza

da posse é contingente, o que leva a sociedade civil expressar a situação de

desigualdade.

Em outras palavras, a propriedade, primeira existência da liberdade, decorre

da capacidade individual de satisfazer suas exigências, livre-arbítrio e desejos, ou

seja, a quantidade e a natureza da propriedade de um indivíduo é contingencial.

Portanto, a desigualdade é um elemento constitutivo da sociedade civil, na medida

em que cada indivíduo possui uma determinada capacidade a partir de determinada

contingência. Sendo assim, no momento da sociedade onde o vetor predominante é

a expansão da particularidade, via constituição de propriedade e desenvolvimento

do trabalho, forja-se um movimento de acúmulo de riqueza, por um lado, e miséria,

por outro lado.

Esse quadro é mais nítido no sistema das necessidades, onde o particular

apresenta-se como o oposto ao que em geral é determinado à universalidade da

vontade (idem: 173) - diferentemente do que ocorre na jurisdição e na administração

e corporação, que são os outros momentos que compõem a sociedade civil, onde o

particular apresenta-se como passagem para o universal e não como sua oposição.

Nas palavras do autor:

A possibilidade de participação na riqueza universal, ou riqueza


particular, está desde logo condicionada por uma base imediata e
adequada (o capital); está depois condicionada pela aptidão e
também pelas circunstâncias contingentes em cuja diversidade está a
origem das diferenças de desenvolvimento de dons corporais e
espirituais já por natureza desiguais. Neste domínio da
particularidade, tal diversidade verifica-se em todos os sentidos e em
todos os graus e associada a todas as causas contingentes e
arbitrárias que porventura surjam. Consequência necessária é a
desigualdade das fortunas e das aptidões individuais (idem: 179).

xlv
Isso não quer dizer que Hegel considera que os indivíduos devam ser

entregues à sua própria sorte. Para o autor da Filosofia do Direito, as contingências

físicas e ligadas a condições exteriores, assim como a vontade subjetiva, podem

levar os indivíduos à pobreza e à miséria (idem: 206). Essa situação exige que se

organize ajuda aos indivíduos necessitados, suprimindo as contingências que

inviabilizam o bem-estar de cada particular. Pois, como afirma o filósofo, “o bem-

estar deve ser tratado como um direito e realizado como tal” (idem: 203).

Portanto, a concepção hegeliana reconhece, por um lado, as desigualdades

existentes na sociedade e a produção de pobreza e miséria, como resultado da

satisfação das carências por meio da propriedade - primeira existência da liberdade -

e do trabalho. Por outro lado, na medida em que o Bem é a liberdade em sua

universalidade que deve estar presente em cada particular, há necessidade de

estabelecer mecanismos na sociedade que propiciem o bem-estar particular.

Sendo assim, o bem-estar particular, como direito, deve ser viabilizado sem

comprometer a ordem da propriedade privada, através de instituições que

salvaguardem o momento universal presente na sociedade civil. Para Hegel, essa é

a função da “administração”:

A previdência administrativa começa por realizar e salvaguardar o


que há de universal na particularidade da sociedade civil, sob a forma
de ordem exterior e de instituições destinadas a proteger e assegurar
aquelas infinidades de fins e interesses particulares que,
efetivamente, no universal se alicerçam (idem: 211).

É interessante notar que, dessa forma, Hegel aceita o ideal liberal da

propriedade privada e, ao mesmo tempo, reivindica uma estrutura universal de

intervenção na sociedade para proporcionar o bem-estar particular, numa

perspectiva de interesse comum.

A administração, apesar de compor a sociedade civil, busca garantir o bem-

estar particular como condição para o Bem universal, ou seja, é um momento da


xlvi
sociedade civil que estabelece a mediação com a estrutura universal do Estado.

Dessa mesma forma, a jurisdição é o momento da sociedade civil que prima por

manter o que nela existe de substancial para a construção da universalidade: a

defesa da propriedade. Por outro lado, essas funções exercidas pela administração

e pelos poderes jurídicos são funções de domínio do governo que procura aplicar e

conservar o que já foi decidido, as leis existentes, as administrações e institutos que

têm fins coletivos. Portanto, o poder governativo compreende também os poderes

jurídicos e administrativos que diretamente estão vinculados à sociedade civil (idem:

266).

Por fim, a corporação que compõe, juntamente com a administração, um dos

três momento da sociedade civil, também configura-se como reconstituição do

universal que perde-se nas particularidades do sistema de necessidades. Na

corporação, o indivíduo encontra-se enquanto grupo, rearticulando o que está

fragmentado na sociedade civil, visando recuperar o universal em si no caminho de

sua realização para si, o que somente ocorrerá na dimensão do Estado (idem:215).

Assim, Hegel traça uma teia de articulação entre o Estado e a sociedade civil,

evitando a dicotomia entre público e privado presente na tradição liberal. Anderson,

ao comentar esse fato, afirma:

O ponto crucial do esquema reside no modo como ele [Hegel] encara


a integração da sociedade civil no Estado. Temos aqui uma dupla
sobreposição. Por um lado, funções públicas hoje normalmente
atribuídas ao Estado - educação, bem-estar social, saúde,
comunicações - estão localizadas no espaço da sociedade civil. Por
outro lado, as associações corporativas originárias da sociedade civil
estão inseridas na estrutura política do Estado, como as unidades
eletivas da Assembléia dos Estados (Anderson, 1992: 21).

O fundamental a destacar é o fato de

Hegel procurar construir um sistema onde

exige-se um profundo respeito à liberdade

individual - a partir da manutenção da

xlvii
propriedade privada -, numa ordem onde o

privado esteja subordinado ao público.

Entretanto, o momento da sociedade civil não é suficiente para ordenar a

sociedade na perspectiva de realização da liberdade em sua totalidade, ou seja,

para a efetivação do bem-estar comum, do interesse público. Pois, como vimos, a

sociedade civil é o espaço da manifestação e garantia das particularidades, via

propriedade - o que acaba produzindo pobreza e miséria -, e não da efetivação da

universalidade - apesar de também estarem presentes nela elementos que

constituem a passagem para o universal.

Assim, Hegel necessita de um momento constituinte da sociedade que tenha

como principal função garantir a universalidade; um momento que seja a expressão

do racional em si e para si, que garanta a realização da liberdade em sua totalidade.

Ou seja, um momento que, a partir da propriedade, primeira existência e expressão

particular da liberdade, faça com que a liberdade realize-se em sua universalidade

enquanto Bem. O Estado, para o filósofo alemão, possui essas determinações, o

que o leva a projetá-lo como uma estrutura forte de intervenção social para que

possa cumprir essa função.

Hegel não visualiza saída definitiva para a situação de produção de pobreza e

miséria. Por isso, o Estado apresenta-se como a forma de garantir a vigência do

interesse comum, num mundo sob a égide do capital. Para Hegel, a sociedade

individualista burguesa precisa da contraposição do Estado para propiciar a

realização da liberdade. Nesse sentido, para o autor da Filosofia do Direito,

conforme sinaliza Marcuse:

O papel do Estado, ou de qualquer organização política adequada, é


o de zelar para que as contradições inerentes à estrutura econômica
não destruam todo o sistema. O Estado deve assumir a função de
frear os processos sociais e econômicos anárquicos (Marcuse, 1978:
67).

xlviii
O sistema hegeliano, dessa forma, indica
que:

(...) a ordem social dada, baseada sobre a integração das


necessidades através da troca de mercadorias, era incapaz de
assegurar e estabelecer uma comunidade racional. Essa ordem
permanecia essencialmente uma ordem de anarquia e de
irracionalidade, governada por mecanismos econômicos cegos –
permanecia uma ordem de contradições sempre repetidas, na qual
todo o progresso era apenas uma temporária unificação de opostos.
A exigência hegeliana de um Estado forte e independente deriva de
sua compreensão das contradições inconciliáveis da sociedade
moderna. Hegel foi o primeiro na Alemanha a atingir esta
compreensão. Sua justificação de um Estado forte fundava-se em que
este seria um suplemento necessário à estrutura contraditória da
sociedade individualística por ele analisada (idem: 68).

Hegel identifica no Estado a capacidade e o dever de realizar o

Bem/universal. Para ele, numa sociedade baseada na propriedade privada (e, para

Hegel, a propriedade privada é a condição da liberdade), só o Estado pode atuar de

forma a produzir o Bem e garantir o universal, preservando a sociedade civil e seu

fundamento: a propriedade privada.

Portanto, diferentemente da perspectiva liberal clássica, Hegel defendeu a

necessidade de intervenção do Estado na sociedade, visando a eliminar distorções

do sistema para garantir a efetivação do interesse comum. Ao mesmo tempo, o autor

alemão, em conformidade com os teóricos gregos clássicos, identifica a vida coletiva

como o verdadeiro fim do indivíduo e o Estado como a expressão objetiva da vida

pública.

Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à


segurança e proteção da propriedade e da liberdade pessoais, o
interesse dos indivíduos enquanto tais é o fim supremo para que se
reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro de um Estado.
Ora, é muito diferente a sua relação com o indivíduo. Se o Estado é o
espírito objetivo, então só como membro é que o indivíduo tem
objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o
verdadeiro fim, e o destino dos indivíduos está em participarem numa
vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades
de comportamento têm o seu ponto de partida e o seu resultado neste
ato substancial e universal (Hegel, 1997: 217).

xlix
Como podemos perceber, do ponto de vista político, Hegel não compartilha

com os ideais liberais clássicos. Entretanto, do ponto de vista social, o horizonte

hegeliano esgota-se na sociedade fundada na propriedade privada e produtora de

mercadorias. Sendo assim, ao reconhecer os limites dessa ordem social e,

simultaneamente, estar racionalmente comprometido com a realização do Bem, o

autor alemão estrutura seu sistema depositando no Estado a capacidade e as

condições de realização do universal - que é o verdadeiro ponto de partida e de

chegada do indivíduo -, através de diferentes mecanismos institucionais (poder

soberano, legislativo e governativo; administração; jurisdição; corporações, entre

outros) que organizam a sociedade a fim de evitar a fragmentação, a anarquia e a

produção de miséria, elementos característicos do sistema de necessidades.

Esse conjunto de mecanismos, sejam eles vinculados diretamente ao Estado

(poder soberano, legislativo e governativo) ou componentes da sociedade civil

(administração, corporação e jurisdição), cumpre a função de constituição da

universalidade na sociedade fundada na propriedade privada, através de

intervenção sistemática na dinâmica social.

Entre as instituições do Estado, cabe ao poder de governo efetivar a

“integração no geral dos domínios particulares e dos casos individuais” (Hegel, 1997:

246). Hegel, ao tratar do poder de governo em sua relação com a sociedade civil,

claramente influencido pela abordagem hobbesiana do estado de natureza, afirma:

Assim como a sociedade civil é o campo de batalha dos interesses


individuais de todos contra todos, assim aqui se trava o conflito entre este interesse
geral e os interesses da comunidade particular e, por outro lado, entre as duas
espécies de interesses reunidos e o ponto de vista mais elevado do Estado e suas
determinações” (idem: 267).

De forma geral, portanto, Hegel vislumbrou a necessidade de intervenção do

Estado na sociedade, visando a eliminar distorções do sistema para garantir a

l
efetivação do interesse comum. E, como vimos anteriormente, o pensador alemão,

ao conceber o bem-estar como direito, postula a necessidade de se organizar a

ajuda aos indivíduos que, por contingências exteriores ou devido à vontade

subjetiva, encontram-se em situação de pobreza e miséria. Dessa forma, Hegel

pensa num sistema público amplo como componente de um Estado perfeito. Ou seja

a ajuda aos pobres e miseráveis é tarefa do Estado através de “instituições públicas

de assistência, hospitais, iluminação das ruas, etc.” Esse fato não elimina a

existência de espaços para a ação da beneficência privada; no entanto, o autor é

taxativo em afirmar que tal tarefa não pode ser reservada “à particularidade do

sentimento e à contingência das suas disposições e informações”; muito pelo

contrário, “deve o Estado ser considerado tanto mais perfeito quanto menor, em

comparação com o que está assegurado de modo universal, for a parte que se

abandona à iniciativa do indivíduo e à sua opinião particular” (idem: 207-208).

Em outras palavras, numa versão atual, Hegel está defendendo um sistema

público e amplo de políticas sociais, ou seja, o filósofo alemão antecipa, do ponto de

vista filosófico, os traços gerais do Estado interventor de bem-estar22.

Na esteira hegeliana, vê-se que o Estado no capitalismo possui uma

dimensão vocacionada para o atendimento de diferentes interesses presentes na

sociedade. E é a instância que Hegel chama de universal que possibilita a

intervenção estatal buscando a garantia do bem-estar do conjunto da sociedade,

incluindo assim as classes sociais não dominantes.

22
Nessa mesma pista, podemos inferir que a contradição levantada por Hegel entre o sistema econômico e o interesse geral
expressa a tensão, muito bem formulada por Marshall sobre cidadania e classe social. Ou seja, o autor inglês ao indicar as
lógicas contraditórias entre o funcionamento da sociedade capitalista e a ampliação da cidadania, através da efetivação dos
direitos individuais, políticos e sociais, explicita a tensão entre o interesse universal de cidadania e os interesses particulares
das classes sociais. Nas palavras do autor: “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros de uma
comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status (...)
A classe social, por outro lado, é um sistema de desigualdade (...) É, portanto, compreensível que se espere que o impacto da
cidadania sobre a classe social tomasse a forma de um conflito entre princípios opostos” (Marshall, 1967: 76). Adiante o
sociólogo afirma que o crescimento da cidadania “coincide com o desenvolvimento do capitalismo, que é o sistema não de
igualdade, mas de desigualdade” (Marshall, 1967: 76).

li
Em resumo, podemos ressaltar que Hegel atribui a tarefa de reconciliação

entre classes antagônicas ao Estado por não encontrar saída estrutural, objetiva e

material para a realização da liberdade fora do sistema de produção de mercadorias,

fundado na propriedade privada. Para Hegel, só a partir da propriedade privada é

possível realizar a liberdade. No entanto, como ele mesmo analisa, o sistema

baseado na propriedade privada leva a anarquia para a sociedade, produzindo

desigualdades e miséria que, dessa forma, impede a realização da liberdade para

determinados grupos sociais. A partir dessa contradição, Hegel identifica no Estado

a capacidade de enfrentar a contraditoriedade existente na sociedade, garantindo,

por um lado, a manutenção do sistema produtor de mercadorias – fundamento da

liberdade, pois baseado na propriedade privada – e, por outro lado, evitando o

acirramento da anarquia, desigualdade e miséria produzidas por esse mesmo

sistema, através da viabilização do interesse comum / universalidade. Então, como

bem sinaliza Marcuse, para Hegel “só o Estado pode emancipar, embora não possa

oferecer a verdade perfeita e a liberdade perfeita” (Marcuse, 1978: 95). Nesse

sentido, Hegel não pensa em superar as contradições da sociedade capitalista, mas

sim controlá-las através da “dimensão universal” do Estado.

No entanto, o Estado, diferentemente do que Hegel pensava, não é “o”

momento da universalidade que em última instância constitui a sociedade em sua

verdade objetiva para a efetivação da liberdade em sua totalidade.

O jovem Marx, em 1843, demostrou, dentro de seus limites teóricos (ainda

não dominava a economia política e encontrava-se preso ao materialismo

feuerbachiano) e práticos (ainda não havia se inserido no movimento operário

revolucionário) da época, a inversão hegeliana traduzida pelo “misticismo lógico”

com que Hegel altera de posição o predicado e o sujeito. Ou seja, o Estado, para

lii
Hegel, não é o produto da família e da sociedade civil, mas sim, o elemento que

funda essa família e a sociedade civil. Para Hegel, o universal é racional e

manifesta-se na família e na sociedade civil, através de um espírito que não é

próprio nem da família nem da sociedade civil. A família e a sociedade civil “devem

sua existência a outro espírito que não o seu próprio, são determinações estatuídas

por um outro, e não autodeterminações” (Marx, 1978: 323); os sujeitos, pois, são

transformados em predicado.

Marx, de uma forma mais precisa, escreve, no Prefácio da obra Para a Crítica

da Economia Política (1859), a real relação que se estabelece entre o Estado e a

sociedade civil23:

“...relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser


compreendidas nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado
desenvolvimento geral do espírito humano, mas pelo contrário, elas se enraízam nas
relações materiais de vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de
`sociedade civil`, seguindo os ingleses e franceses do século XVIII; mas que a
anatomia da sociedade burguesa, deve ser procurada na Economia Política” (Marx,
1996a: 51).

Portanto, Marx desmistifica a concepção

hegeliana, mostrando que o Estado, na verdade,

deve ser analisado a partir da constituição da

sociedade civil:

...na produção social da própria vida, os homens contraem relações


determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações
de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade
dessas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura
jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais
determinadas de consciência (Idem: 52).

O Estado, dessa forma, não é a

expressão da universalidade, mas sim a

23
Como muito bem observa Bobbio (1982), em sua análise sobre o conceito de sociedade civil, diferentemente de Hegel, que
além do sistema das necessidades inclui na sociedade civil a justiça, a administração e a corporação, Marx considera
sociedade civil apenas como sendo as relações de produção que formam a estrutura da sociedade, portanto, identifica-a

liii
expressão das relações sociais de produção

existentes na sociedade capitalista, portanto,

uma “universalidade alienada”. No caso da

sociedade capitalista, o Estado será estruturado

tendo como base a relação de exploração

estabelecida pelo capital. O Estado, assim,

representa a dominação de classe presente na

sociedade civil, para garantir a manutenção e a

reprodução das relações sociais estabelecidas

pela ordem do capital. Nas palavras de Marx e

de Engels (1998), o executivo do Estado

configura-se como “um comitê para administrar

os negócios coletivos da classe burguesa”

(Marx, 1998: 7).

Apesar dessa concepção restrita de Estado em Marx (Coutinho, 1994), o

autor d`O Capital, ao tratar criticamente a concepção hegeliana do Estado como

universalidade, desenvolve uma argumentação que não descarta a dimensão

universal presente no Estado capitalista. O que Marx aponta é que esta dimensão é

limitada pela estrutura da sociedade civil e não configura-se como essência do

Estado.

No texto de 1843, quando Marx ressalta que Hegel foi quem melhor

descreveu a aparência do Estado capitalista, ou seja, como o Estado capitalista

apresenta-se para a sociedade e não o que ele é efetivamente, o autor, nesses

termos, considera o caráter universal do Estado como aparência24.

apenas com o que Hegel denomina de sistema das necessidades.


24
Segundo Marx: “Não devemos censurar Hegel porque descreve o ser do Estado moderno tal e como é, mas sim por
apresentar o que é como essência do Estado” (Marx, 1978: 375)

liv
Para Marx, então, a dimensão universal do Estado não é falsa, pois compõe a

estrutura estatal, na medida em que configura-se como aparência do fenômeno.

Aqui cabe uma pequena digressão sobre a relação entre aparência e

essência no materialismo dialético, para melhor explicitarmos a assertiva acima.

Na concepção ontológica do conhecimento, o movimento de análise do objeto

inicia-se com o contato do sujeito com o dado, o fato objetiva e sensivelmente

presente. Dessa forma, o primeiro contato do sujeito com o objeto se dá pela

aparência do objeto. Portanto, a aparência do fenômeno é a primeira instância sobre

a qual o sujeito deve interrogar o objeto para que se atinja a sua essência25.

Nesse sentido, o dado, a aparência, o fato em si não é um elemento menor da

reflexão dialética26. Ela (aparência) constitui-se como a dimensão a partir da qual o

sujeito procurará apreender a essência do objeto em questão, seu movimento

interno, suas conexões, estruturas e contradições, para que seja possível captar as

determinações do fenômeno e, dessa forma, através da razão, via processo de

abstração, expressá-las como categoria lógica, para, posteriormente, retornar ao

objeto, visando verificar a adequação da reprodução ideal (categoria construída)

com o movimento real do fenômeno e reiniciar todo o processo de novo, a fim de

realizar abstrações cada vez mais sutis e, sendo assim, apreender o objeto em sua

totalidade27.

Esse movimento descrito é o processo de “reprodução do concreto por meio

do pensamento” (Marx, 1996b: 40). Portanto, fica claro que a aparência constitui o

25
Cabe sinalizar que a importância do dado, do empírico, não resvala em nenhum posicionamento empirista. Para uma crítica
ao empirismo, ver Lukács (1981: 65 - 67)
26
De acordo com Tonet, “(...) para uma perspectiva ontológica, as aparências não são meros epifenômenos, coisas sem
importância, trivialidades. Elas constituem um momento do ser social de igual consistência ontológica que a essência” (Tonet,
1995: 42).
27
Lukács destaca, de forma enfática, a relação dialética existente entre aparência e essência, ressaltando sua unidade e
distinção, necessárias para um estudo científico. Nas palavras do autor: “Trata-se, de uma parte, de arrancar os fenômenos de
sua forma imediatamente dada, de encontrar as mediações pelas quais eles podem ser relacionados a seu núcleo e a sua
essência e tomados em sua essência mesma, e, de outra parte, de alcançar a compreensão deste caráter fenomênico, desta
aparência fenomênica, considerada como sua forma de aparição necessária (...) Esta dupla determinação, este

lv
objeto e que, dessa forma, a dimensão de “universalidade” é parte constitutiva do

Estado, apesar de não ser sua essência.

Na realidade, para sermos mais preciso, essa “dimensão universal” diz

respeito às ações do Estado que atendem a interesses das classes subalternas. Ou

seja, o Estado não expressa o interesse geral e nem está voltado para o bem

comum, simplesmente ele também atua atendendo a determinados interesses das

classes subalternas, na medida da necessidade de garantia da estrutura de

dominação fundada na propriedade privada. Em outras palavras, uma sociedade

estruturada em classes sociais não há como haver interesse geral, pois os

interesses estão vinculados às estruturas de classe.

Marx, ao fazer a análise crítica da Filosofia do Direito, no que refere-se ao

poder governativo e à administração corporativa, explicita a antítese que Hegel

estabelece entre “propriedade privada e interesses das esferas particulares frente ao

interesse superior do Estado: contraposição entre propriedade privada e Estado”

(Marx, 1978: 361). Continuando, o crítico analisa que a solução da antítese,

apresentada por Hegel, nada mais é que “uma simples acomodação, um pacto, uma

confissão do dualismo irredutível” (idem). Em outras palavras, Marx mostra que

Estado não viabiliza interesse geral, no máximo ele promove uma acomodação entre

interesses. Assim, na medida em que o Estado acomoda interesses ele incorpora,

também, interesses das camadas dominadas da sociedade.

No capitalismo, as classes fundamentais que representam o capital e o

trabalho possuem interesses, do ponto de vista estrutural, antagônicos e

inconciliáveis, pois a participação nas decisões fundamentais da produção (o que

produzir, quanto produzir e como distribuir) são assimétricas, já que o poder está nas

reconhecimento e esta ultrapassagem simultâneos do ser imediato é precisamente a relação dialética. (Lukacs, 1981: 68)

lvi
mãos de quem detém os meios de produção e se apropria da riqueza produzida e

não daqueles que participam do processo a partir de sua força de trabalho.

No entanto, isso não significa dizer que alguns interesses da classe

trabalhadora não possam ser atendidos no capitalismo. Nesse sentido, o Estado

mostra-se como o elemento viabilizador desses determinados interesses,

apresentando-se, ideologicamente, como representante dos “interesses gerais”,

“expressão da racionalidade e universalidade”.

Determinados textos da juventude de Marx, numa nítida perspectiva radical

democrática, apresentam essa possibilidade; seja quando o autor afirma que Hegel

apresenta a antítese entre propriedade privada e Estado e descreve a aparência do

Estado moderno (Critica del derecho del Estado de Hegel, 1978: 361 e 375), seja

quando constata que a filosofia alemã do direito e do Estado é coerente com o

mundo moderno (Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução,

2002b: 51 e 52), ou, então, quando, ao fazer a crítica aos direitos humanos, Marx

discute a relação entre a emancipação política e a emancipação humana, mostrando

que a emancipação política liderada pela burguesia é um avanço em relação à

sociedade feudal, mas não leva à emancipação humana (A Questão Judaica, 2002a:

34-37)28.

Poderíamos dizer que essas observações marxianas são do tempo em que o

autor ainda não tinha amadurecido suas reflexões sobre o funcionamento da

sociedade burguesa e, também, não tinha assumido uma clara perspectiva

revolucionária de classe. Entretanto, se analisarmos com atenção alguns textos da

década de 50 e 70 (Mensagem do Comitê Central à Liga de março de 1850, Crítica

28
Bobbio, numa precisa análise da “Questão Judáica” concorda com a tese de que a emancipação humana é mais ampla que a
emancipação política, no entanto resgata a necessidade da emancipação política como elemento da emancipação humana.
Nas palavras do autor: “Tese incontestável, contanto que não nos esqueçamos que se a emancipação política não é suficiente,
é no entanto sempre necessária, não podendo existir emancipação humana que não passe pela emancipação política”
(Bobbio, 1979: 54).

lvii
ao Programa de Gotha e Anotações ao livro Estatismo e anarquia de Bakunin)

podemos perceber com clareza a importância dada por Marx ao Estado, no sentido

de que, através dele, alguns interesses das classes dominadas podem ser

alcançados.

O texto Mensagem do Comitê Central à Liga de março de 1850, cuja

centralidade encontra-se no desenvolvimento da estratégia da revolução

permanente, expressa em suas conclusões a clareza de Marx e Engels em relação

ao processo de mudanças necessárias para a construção do comunismo.

Em primeiro lugar, deixam claro que os trabalhadores não poderão, num

primeiro momento, propor medidas diretamente comunistas. Em segundo lugar,

indicam: 1) a necessidade dos trabalhadores obrigarem os democratas a “concentrar

nas mãos do Estado o maior número possível de forças produtivas”; e 2) a pressão

que deve ser exercida junto aos democratas para que sejam ampliadas e

radicalizadas as propostas reformistas que forem levantadas (Marx e Engels, 1984:

229-230).

O texto, então, mostra que mesmo num

quadro revolucionário, na perspectiva da

revolução permanente, as mudanças não são

imediatas e a mediação do Estado, ainda sob

direção da classe dominante, apresenta-se

como fundamental para a conquista dos

interesses dos trabalhadores, por isso a

necessidade da pressão junto ao Estado sob

direção burguesa. Se a ação junto ao Estado

para a ampliação do atendimento dos interesses

da classe trabalhadora é estratégica num

lviii
quadro revolucionário, devido à impossibilidade

de, num primeiro momento, viabilizar “medidas

diretamente comunistas”, num contexto fora do

horizonte revolucionário essa ação, por

conseqüência lógica e prática, mostra-se, muito

mais ainda, como fundamental para o

aprofundamento das conquistas de interesses

da classe trabalhadora. Esta concepção reforça

o entendimento de que o Estado, enquanto

estrutura de dominação, possui uma “dimensão

universal”, ou melhor, intervém, também,

atendendo a interesses das classes dominadas.

Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx, ao tratar da divisão da totalidade do

produto social, esclarece que antes de ocorrer qualquer divisão entre os produtores

individuais da coletividade, deve-se deduzir do produto social o necessário para

repor os meios de produção, ampliar a produção e construir um fundo de reserva

contra acidentes e transtornos devido a fenômenos naturais. Após essa dedução,

segundo o pensador alemão, inicia-se a repartição do ponto de vista do consumo.

Despesas de administração não concernentes à produção, necessidades coletivas

(escolas, instituições sanitárias, etc.) e fundo de manutenção das pessoas não

capacitadas para o trabalho conformam um segundo conjunto de itens que deve ser

garantido pelo produto social antes de ocorrer a repartição individual (Marx, sd: 212-

213).

Nesse segundo conjunto de itens o que temos, numa linguagem atual, são as

ações do Estado para área social. Dessa forma, fica claro que Marx não despreza a

tarefa de organizar recursos na sociedade para garantir as necessidades sociais da

lix
população. Portanto, do ponto de vista da distribuição em relação ao consumo

coletivo, ampliar as chamadas políticas sociais é uma necessidade para o

desenvolvimento de uma sociedade que ultrapasse os marcos do capitalismo.

Conforme o próprio Marx ressalta, ao comentar sobre os recursos destinados às

necessidades coletivas, “esta parte aumentará consideravelmente desde o primeiro

momento, em comparação com a sociedade atual, e irá aumentando à medida que a

nova sociedade se desenvolva” (Marx, sd: 213). Ou seja, nos termos indicados, a

ampliação dos recursos destinados às necessidades coletivas e a manutenção das

pessoas não capacitadas para o trabalho são tarefas de extrema importância para a

construção do comunismo, sendo a estrutura para a administração dessas ações

uma necessidade decorrente. Portanto, a ampliação de políticas sociais, via Estado,

é compatível com ações que pretendam a superação da ordem burguesa.

Por fim, em suas Anotações sobre o livro Estatismo e anarquia de Bakunin,

Marx, além de sublinhar que “uma revolução social radical está vinculada a

determinadas condições históricas do desenvolvimento econômico” (Marx, 2003:

152), eliminando qualquer possibilidade de interpretação voluntarista e politicista de

sua concepção, explicita que é o Estado que garante ao proletário, no momento em

que esse assume a posição de classe dominante – portanto o momento posterior à

derrubada da burguesia do poder –, utilizar “meios universais de constrangimento“

para combater as classes economicamente privilegiadas. Nesse sentido, o proletário

não se encontra mais isolado em sua luta. O poder do Estado, a partir desse

momento, passa a servir aos interesses da classe trabalhadora, enquanto classe

dominante, até que medidas cada vez mais amplas sejam implementadas no sentido

da coletivização dos meios de produção, visando a supressão da propriedade

privada e da condição de assalariado dos trabalhadores, portanto, eliminando a

lx
divisão de classes e, conseqüentemente, a estrutura utilizada para dominação. Ou

seja, extinguindo o próprio Estado.

Vemos nesse processo a dialética do Estado: a necessidade de sua

intervenção na sociedade, sob a direção dos trabalhadores, para estabelecer o

processo de sua própria extinção. Na interpretação leniniana no Estado e a

Revolução, o Estado sob a ditadura do proletariado não é mais o Estado

propriamente dito, pois está voltado para sua extinção - ou seja, para extinção da

sociedade de classes - e não para a manutenção da dominação de classe.

Ainda na polêmica com Bakunin, Marx destaca a necessidade da divisão de

trabalho e da organização para a administração da sociedade e distingue a estrutura

organizativa da estrutura de dominação (idem: 152). O Estado, enquanto estrutura

de dominação, extingue-se na medida da constituição do comunismo. No entanto,

existirá uma estrutura organizativa/administrativa dessa nova sociedade que não se

confundirá com dominação de classe. A idéia utópica de inexistência de estrutura de

administração e organização da sociedade não se aplica à concepção marxiana.

O autor, portanto, nos três textos tratados acima, procura mostrar que o

Estado é a mediação estratégica para implementação de mudanças na sociedade

visando a construção do comunismo. Marx reconhece no Estado uma estrutura que

deve ser utilizada em favor dos interesses da classe trabalhadora que é a única com

possibilidade de expressar-se como classe universal, pois “não pode emancipar-se a

si mesma, nem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade sem as

emancipar a todas (...) só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do

homem” (Marx, 2002b: 58).

Cabe aqui registrar que o tratamento dado ao Estado por Marx - apesar de

partir, em nossa compreensão, do entendimento de que o Estado possui uma

lxi
dimensão “universal” (atendimento a determinados interesses da classe

trabalhadora) - indica que para ocorrer uma intervenção mais ampla do Estado

voltado para os interesses da classe trabalhadora numa perspectiva socialista, o

operariado precisa tomar o poder de Estado, através de uma revolução explosiva.

Esse fato, no entanto, não anula a compreensão da existência da dimensão

universal do Estado, pelo contrário, reforça essa compreensão, na medida em que

identifica no Estado a função de mediação numa sociedade de classes, para garantir

a manutenção do poder da classe dominante, onde diferentes interesses, de forma

diferenciada, são atendidos. Haja vista as propostas presentes no “Manifesto”, na

“Mensagem de 1850”, na “Crítica ao Programa de Gotha” e na “Guerra Civil na

França” que possuem um nítido caráter progressivo, indicando, portanto, que até a

conclusão das reformas para suprimir a sociedade capitalista alguns interesses do

capital serão preservados.

Essa interpretação pode ser identificada também em Lênin, quando afirma

que a justiça e a igualdade só serão realizadas na segunda fase da sociedade

comunista. Ou seja, para o autor, durante a existência do “Estado de transição”

(ditadura do proletariado) - “primeira fase da sociedade comunista” - a justiça e a

igualdade não se realizarão plenamente. Se isso acontece é porque determinados

interesses do capital ainda estão em vigência, ratificando o entendimento de que o

Estado atende aos diferentes interesses presentes na sociedade. Então, enquanto

houver classes sociais haverá Estado, dominação de uma classe sobre a outra e

atendimento de diferentes interesses. Paradoxalmente, o Estado só deixa de

atender a interesses de diferentes classes sociais quando da extinção das mesmas

e, portanto, de sua própria existência. Em outras palavras, enquanto houver classes

sociais haverá Estado e enquanto houver Estado os diferentes interesses da

lxii
sociedade, sob dominação de uma determinada classe, serão atendidos de forma

diferenciada, mostrando a aparente perspectiva universal do Estado.

Além dos aspectos já destacados, cabe ainda ressaltar que Marx,

diferentemente de certas interpretações sobre seus escritos, reconhece

explicitamente as diversas formas de expressão estatal no capitalismo, não

igualando, de forma alguma, uma estrutura monárquica absolutista com uma

república democrática. Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx, utilizando a dialética

particular-universal, deixa claro que o Estado modifica-se com as fronteiras de cada

país e de acordo com o desenvolvimento da sociedade burguesa daquela região,

apesar de manter “certos caracteres essenciais comuns” (Marx, sd: 221).

A interpretação de Lênin sobre a concepção de Estado em Marx e Engels

reforça esse entendimento na medida em que o autor assinala que “na sociedade

capitalista, nas condições de seu desenvolvimento mais favorável, temos um

democratismo mais ou menos completo na república democrática”. Ou seja, a

república democrática expressa uma formação sócio-estatal capitalista mais

favorável à classe trabalhadora que outras formas de Estado, apesar, como reitera

Lênin, de ser uma formação social comprimida “nos limites estreitos da exploração

capitalista e, por isso, permanece sempre, em essência, um democratismo para a

minoria, apenas para as classes possuidoras, apenas para os ricos” (Lênin,

1980:281)

A partir de nossa interpretação sobre a concepção de Estado em Marx,

caberia indagar: se Marx pensava o Estado de forma contraditória, como assinalada

acima, por que ele não desenvolveu uma teoria mais explícita e “ampliada” de

Estado, buscando apresentar determinações mais precisas sobre essas

lxiii
contradições e, por outro lado, por que o pensador alemão manteve uma concepção

“explosiva” e violenta de revolução?

Em nosso entendimento, duas ordens de questões estão presentes no

desenvolvimento da produção marxiana.

A primeira delas diz respeito à questão que Marx se colocou após elaborar a

“Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, em 1843. Qual seja: se é a partir da

sociedade civil que devemos compreender o Estado, o que é a sociedade civil

burguesa? Nesse sentido, seu objetivo passou a ser compreender a sociedade civil

e desvelar as conexões existentes entre ela e o Estado para poder desmistificá-lo,

dessacralizá-lo. Essa passou a ser a tarefa principal de Marx em relação ao Estado.

Por outro lado, e aqui já entro na segunda questão, o século XIX foi um século

fundado no clima revolucionário, Marx participou ativamente dos levantes de 48,

viveu a crise dos anos 50 e acompanhou a experiência da comuna de 71. Em que

pese seu equívoco, para ele, em sua época, havia condições objetivas para a

tomada do poder de Estado pelo proletariado. Portanto, do ponto de vista teórico-

prático, os objetivos em relação ao Estado estavam mais evidentes no que se refere

à necessidade de dessacralizá-lo frente à classe trabalhadora e criar estratégias

para a tomada de poder e não levantar alternativas para uma atuação institucional

de conquista de espaço. Além disso, é fato também que nesse período, mesmo nos

países centrais do capitalismo com estrutura mais democrática, a dimensão de

coerção presente no Estado era muito mais acentuada que a de consenso. As bases

materiais para o desenvolvimento da concepção de Estado ampliado, nos termos

gramscianos, só se efetivarão a partir do final do século XIX e início do século XX,

lxiv
no marco da passagem do capitalismo concorrencial para o monopólico29. E como

ressalta Coutinho:

...parece-nos válido dizer que a ampliação do conceito de Estado em


pensadores marxistas mais recentes, quando comparados com Marx,
Engels, Lênin ou Trotski, não resultou apenas da escolha de um
ângulo de abordagem mais rico (menos abstrato); resultou também, e
sobretudo, do próprio desenvolvimento objetivo tanto do modo de
produção quanto da formação econômico-social capitalistas
(Coutinho,1994: 17).

Com as observações desenvolvidas acima, queremos destacar uma visão

mais complexa da concepção de Estado em Marx, ressaltando, parafraseando

Abensour (1998), o momento maquiaveliano do pensador alemão. Ou seja, o que

nos interessa na reflexão desenvolvida acima é explicitar, do ponto de vista político,

o traço geral apontado por Marx da dimensão contraditória do Estado - a qual lhe

permite atuar atendendo interesses divergentes da sociedade e, portanto, aparecer

como ente acima das classes -, para mostrar que, o Estado, apesar de ser

essencialmente expressão de dominação de classe, é a única estrutura na

sociedade capitalista capaz de realizar interesses das classes e camadas

dominadas, mesmo que faça isso apresentando-se acima da sociedade.

Nesse sentido, o que realizamos foi uma análise, com uma nítida ênfase

política, de textos de Marx, diferindo de Abensour numa questão fundamental: não

estabelecemos uma dualidade em Marx entre uma leitura científica – crítica

materialista da sociedade e do Estado - e uma filosofia política fundada na liberdade

(Idem:60). Muito pelo contrário, consideramos que a crítica materialista da sociedade

é fundamental para compreendermos a essência do Estado, e este fato não elimina,

em nosso entendimento, a particularidade do momento político em Marx, vinculando,

29
A categoria “Estado ampliado” não é um fenômeno decorrente do capitalismo em sua fase monopólica. No entanto, Gramsci
só pode desenvolver a teoria ampliada do Estado, a partir da fase monopólica do capitalismo. O capitalismo monopolista é a
condição objetiva e necessária para o desenvolvimento teórico da concepção do Estado Ampliado.

lxv
dessa forma, o pensador alemão na tradição da reflexão política moderna

inaugurada por Maquiavel no início do século XVI.

Por outro lado, o cerne do pensamento marxiano, como afirmou Lukács, está

em justamente analisar as questões da sociedade capitalista sob o ponto de vista da

totalidade. Sendo assim, pensar o político isolado da dinâmica global do capitalismo

é ferir a essência do método marxiano. Segundo Netto, ao comentar o fato de Lênin

arrancar uma teoria geral do Estado com base em Engels e não no próprio Marx:

Salvo erro meu, em Marx inexiste uma teorização deste teor – há


sempre, nele, determinações teóricas do Estado moderno (burguês) e
em relação, sempre, com a totalidade histórico-social mobilizada pela
dinâmica (e não somente pela lógica) do capital; a possibilidade de
uma teoria do Estado sem esta imbricação – com tudo o que ela
implica para a compreensão do Estado moderno (burguês),
imanentemente, e não só como referencialidade ‘econômica’ da
célebre ‘última instância’ – tem todas as características, a meu ver, de
ilegitimidade enquanto consequência do projeto marxiano (Netto,
2004: 136).

Como podemos perceber, nos termos tratados anteriormente, a questão do

Estado e de sua extinção na perspectiva marxiana evoca um quadro que distancia

essa concepção das análises estatistas de Lassalle, da visão anarquista de Bakunin

e da tradição mecanicista e economicista que imperou a partir do chamado

“marxismo-leninismo”.

Resumindo o balanço sobre a concepção de Estado em Hegel e Marx,

poderíamos dizer, utilizando a linguagem e a concepção hegeliana de razão e

liberdade, que a essência do Estado é a universalidade e que portanto a tarefa é

potencializar essa dimensão do Estado que é uma dimensão racional voltada para a

liberdade. Entretanto, segundo Marx, o Estado não pode desenvolver-se nos termos

da universalidade se não for superada a estrutura de desigualdade que está

presente na sociedade civil, nos termos marxianos ou no sistema de necessidades,

conforme Hegel.

lxvi
No entanto, o Estado atua, também, atendendo a interesses não dominantes

da sociedade, o que lhe permite, ideologicamente, apresentar-se como

representante de “interesses gerais”.

Ao dessacralizar e desvelar a essência do Estado, Marx não descartou a

necessidade da classe trabalhadora pressioná-lo e assumi-lo como classe

dominante para ampliar a conquista de seus interesses de classe. Ou seja, para

Marx o Estado é um elemento estratégico de mediação para o processo

revolucionário. A tomada do poder de Estado precede à mudança societária, por

isso a transição socialista, na perspectiva marxiana, é estruturada a partir da

ditadura do proletariado, que busca, através das ações do Estado, implementar

mudanças voltadas para a supressão da propriedade privada dos meios de

produção e, por conseguinte, para a extinção da estrutura de classes.

Entretanto, com a supressão da divisão da sociedade em classes sociais não

existiria mais Estado (expressão da dominação de classe), mas apenas uma

administração da sociedade – administração que não seria feita sem conflitos e

tensões, porém esses conflitos e tensões não teriam como fundamento

antagonismos de classe.

A partir da crítica marxiana à concepção de Estado em Hegel, podemos dizer,

para finalizar, que a Filosofia do Direito defende um Estado possível, no marco do

capitalismo, para viabilizar certas condições que amenizam a desigualdade e

promovam a realização da liberdade de forma concreta, ou seja frente as condições

objetivas postas.

Em outras palavras, só o Estado, tanto para Hegel quanto para Marx - apesar

das concepções distintas que os autores têm sobre a sociedade capitalista e o

lxvii
Estado -, tem poder e capacidade, numa sociedade de classes, de atuar viabilizando

interesses das classes e camadas da sociedade não dominantes.

Portanto, pensar no aprofundamento e universalização de direitos sociais, ou

seja, a ampliação e melhora das condições sociais da vida das classes e camadas

não dominantes da sociedade requer, necessariamente, ter o Estado como o

elemento estratégico central para a implementação dessa proposição.

Nesse sentido, refletir sobre a burocracia, como estrutura clássica de

organização e administração estatal, passa a ser uma questão/categoria que deve

ser tratada cuidadosamente tanto do ponto de vista teórico quanto prático-político.

1.3. O fenômeno burocrático: contradição, dominação e racionalidade

A função da burocracia no Estado

Antes de iniciarmos a reflexão sobre a burocracia gostaríamos de deixar claro

que nossa abordagem sobre o tema procurará fugir da tentação de defendê-la

entusiasticamente, ou de atacá-la enfurecidamente. Evitaremos, portanto, que nossa

concepção seja enquadrada, conforme Guerreiro Ramos (1983) propõe, como

conceito positivo ou como conceito negativo da burocracia30.

Utilizaremos como referências centrais, conforme ressaltado anteriormente,

Hegel e, principalmente, Weber, a partir da perspectiva da teoria social crítica

vinculada à tradição marxista. Porém, de acordo com a sugestão de Tragtenberg,

procuraremos:

...despertar do sono dogmático, pensar e refletir criticamente com


Weber [e Hegel] e não polemizar contra Weber [e Hegel], sem
subterfúgios, escamoteação dos problemas centrais, penetrando na
reflexão efetiva para superar, isto é, absorver a contribuição de

30
Guerreiro Ramos classifica os conceitos sobre a burocracia como sendo negativos (interpretação de Robert Michels, L. von
Mises, Mannheim, Merton, Selznick e Crozier, além dos escritores marxistas) ou como sendo positivos (Weber e Eisenstadt).

lxviii
Weber [e Hegel] e excedê-la. Superar em Weber [e Hegel] as
limitações do tempo e contexto social em que situa a sua obra;
discuti-la sem compromissos ideológicos que impliquem o sacrifício
do intelecto com o respeito que uma obra do porte que ele nos legou
implica (Tragtenberg, 1992: 156-157).

Nesse sentido, ao analisarmos criticamente as determinações da burocracia,

buscaremos captar as categorias que efetivamente correspondam ao fenômeno e

que estão presente nas obras de Hegel e Weber. Em relação a Marx e à tradição

marxista, o tratamento não será diferente.

Dessa forma, não estamos preocupados em definir a burocracia como

positiva ou negativa, mas sim extrair os traços essenciais e universais do fenômeno

para, nos capítulos seguintes, articulá-los com o desenvolvimento da administração

burocrática no Brasil. Assim, conforme ocorreu nos itens anteriores deste capítulo, o

tratamento que daremos ao fenômeno encontra-se num nível mais alto de abstração.

Isto posto, consideramos que podemos iniciar nossa reflexão a partir de Hegel.

O filósofo alemão identificará a burocracia, apesar de não usar esse termo,

como a classe universal:

A classe universal ocupa-se dos interesses gerais da vida social.


Deverá ela ser dispensada do trabalho direto requerido pelas
carências seja mediante a fortuna privada, seja mediante uma
indenização dada pelo Estado que solicita sua atividade, de modo
que, nesse trabalho pelo universal, possa encontrar satisfação o seu
interesse privado (Hegel, 1997:182).

A burocracia, sendo um dos componentes da materialidade do Estado - que,

como vimos, é a instituição no capitalismo capaz de atender interesses de camadas

não dominantes -, expressa, também, as contradições presentes no Estado.

Portanto, diferentemente do que Hegel apontava, ela não se efetiva como uma

classe universal.

A burocracia, por um lado, é a responsável por viabilizar, manter, conservar a

ordem social capitalista e, dessa forma, garantir os interesses da classe dominante.

Por outro lado, ela também implementa as ações do Estado destinadas ao

lxix
atendimento de interesses das classes dominadas, na perspectiva de manter a

ordem da propriedade privada/liberdade, garantindo, porém, o Bem. Por isso, a

aparência de classe universal. Pois, numa perspectiva que não encontra saída

estrutural para a sociedade, como é no caso da concepção hegeliana, a classe

universal é aquela que permite a realização de interesses das classes antagônicas.

Nos termos hegelianos, através da burocracia garante-se a propriedade

privada/liberdade e o Bem como expressão da racionalidade em si e para si, que é o

Estado (Hegel, 1997: 216-217).

Dando continuidade à sua caracterização da burocracia, o filósofo alemão, ao

tratar do poder do governo (idem: 266-272), mostra que assim como a sociedade

civil é o campo da disputa dos interesses individuais de todos contra todos, o

governo é o espaço em que se expressa a luta entre os interesses particulares e o

interesse geral. Dessa forma, a tarefa de garantir

a conservação do interesse geral do Estado e da legalidade entre os


direitos particulares, a redução destes àqueles exigem uma vigilância
por representantes do poder governamental, por funcionários
executivos e também por autoridades mais elevadas com poder
deliberativo, portanto colegialmente organizada (Hegel, 1997: 266-
267 – negrito nosso).
Aqui Hegel apresenta a determinação central do servidor, qual seja: garantir o

interesse geral do Estado frente aos interesses particulares. A burocracia, portanto,

é um instrumento do governo com responsabilidade de Estado para garantir o

interesse geral frente ao interesses particulares apresentados pelas corporações.

Marx, em sua glosa da Filosofia do Direito, mostra que na verdade não se

trata da garantia do interesse geral frente a interesses particulares, mas sim da

garantia de determinados interesses particulares frente a outros interesses

particulares.

Marx destaca que a burocracia age como uma corporação do Estado ao

enfrentar as corporações como se fossem uma burocracia da sociedade civil.

lxx
Segundo o autor, “na realidade, a burocracia se contrapõe, enquanto ‘sociedade civil

do Estado’ ao ‘Estado da sociedade civil’, às corporações” (Marx, 1978: 358).

Mesmo não possuindo ainda uma perspectiva revolucionária, Marx consegue

perceber que não há na burocracia uma orientação voltada para o interesse geral,

identificando nela a materialização de interesses particulares presente no Estado.

Nesse sentido, conforme Marx sinaliza, existe uma relação de afirmação-negação da

burocracia com as corporações.

A relação com a corporação torna-se essencial para a existência da

burocracia, pois sua razão de ser encontra-se na existência das particularidades da

sociedade civil, expressas pelas corporações, que devem ser subordinadas ao

interesse geral, que é vigiado e fiscalizado pela burocracia. Nessa perspectiva, a

burocracia tem que negar a corporação. Por outro lado, se não houver corporação,

ou melhor, se houver identidade entre os interesses particulares e o interesse geral,

não será necessário a existência de um aparato para subordinar o particular ao

geral. Nesse sentido, não seria necessária a existência da burocracia. Por isso, a

burocracia precisa restaurar a corporação como forma de manutenção/preservação

de sua existência. Desse ponto de vista, ocorre a afirmação da corporação por parte

da burocracia. De acordo com Marx:

O mesmo espírito que cria na sociedade a corporação cria no Estado


a burocracia. Portanto, tão logo se vê atacado o espírito corporativo é
também objeto de ataques o espírito burocrático, e se antes a
burocracia combatia a existência das corporações para afirmar sua
própria existência, agora trata de defender violentamente a existência
das corporações para salvar o espírito corporativo que é seu próprio
espírito (Marx, 1978: 358).

A existência de corporações está vinculada a interesses particulares que têm

no antagonismo de classe o conflito central. Essa situação de antagonismo é o

cerne das contradições e tensões a serem enfrentadas pela burocracia como

representante dos “interesses gerais” da sociedade. Portanto, a determinação

lxxi
fundamental da burocracia deve ser encontrada na estruturação da sociedade de

classes, na medida em que são os interesses antagônicos de classe que conformam

os conflitos substantivos numa sociedade, exigindo a intervenção do Estado, através

de sua ordem administrativa. Dessa forma, encontramos o limite estrutural da

burocracia como instrumento de realização da ampliação radical da universalização

e aprofundamento de direitos.

Em outras palavras, a burocracia, como um dos elementos da materialidade

do Estado, expressa também as contradições da sociedade de classes que exigem a

existência do Estado como estrutura de dominação política. Portanto, a burocracia

apresenta-se como uma das mediações entre o Estado e as classes sociais, visando

a manutenção da ordem. Nesses termos, a existência da burocracia está

vinculada ao Estado e, por conseguinte, à dominação de classe. Sendo assim, a

burocracia responde a uma dada organização social que supõe a existência de

dominados e dominantes, social e economicamente falando. Portanto, uma

sociedade que não comporta a radicalização e o aprofundamento dos direitos. Eis,

então, os limites da organização burocrática.

Entretanto, se é correto afirmar que existe um limite estrutural para a

burocracia atuar como instrumento de realização da ampliação radical da

universalização e aprofundamento de direitos, é também correto afirmar que a

burocracia como expressão do Estado capitalista, ou seja de uma sociedade dividida

em classes, deve atuar administrando interesses antagônicos para manter a ordem

e, nesse sentido, tem que atender a interesses das classes dominadas, como vimos

anteriormente. Sendo assim, a burocracia, como estrutura administrativa, ganha

relevância para processos de redução de desigualdade.

lxxii
Assim, encontramos na filosofia hegeliana e na crítica marxiana a relevância e

o limite da burocracia enquanto forma de organização administrativa para conduzir

as ações do Estado, através do poder governativo.

Entretanto, cabe aprofundarmos as determinações centrais da burocracia

para explicitarmos de forma mais concreta elementos que podem se apresentar

como potencialidades ou como limites desse tipo de organização administrativa para

a realização de uma finalidade voltada para ampliação de direitos sociais.

O caráter de dominação presente na burocracia e a racionalidade de sua

estruturação são determinações centrais que merecem destaques ao analisar a

burocracia. E, sem dúvida alguma, Weber é um autor indispensável para refletirmos

essas questões.

Burocracia e dominação

A dimensão de dominação de classe da burocracia já foi apontada

anteriormente - mas voltaremos a ela nos momentos que fizerem-se necessários.

Agora trataremos de uma outra dimensão da dominação que também está presente

na burocracia.

Segundo Weber, a burocracia implica dominação na medida em que ela é

uma estrutura administrativa e, para ele, toda administração é dominação pois

remete à obediência (Weber, 1999a: 32-34). Nas palavras do autor:

Toda a dominação manifesta-se e funciona como administração.


Toda administração precisa de alguma forma, da dominação, pois,
para dirigi-la, é mister que certos poderes de mando se encontrem
nas mãos de alguém (Idem, 1999b: 193).

Dominação, para Weber, significa “a probabilidade de encontrar obediência

para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas”

lxxiii
(Weber 1999a: 139). Nesses termos, Max Weber define a burocracia como sendo a

forma de dominação legítima de caráter racional, a dominação legal (idem: 141).

Em outras palavras, a ordem administrativa implica dominação na medida em

que é um conjunto de normas que procura regular a ação associativa, através da

orientação do comportamento do quadro administrativo e dos membros em relação à

associação. Ou seja, orientar o comportamento implica poder de mando e

“obediência” às normas estabelecidas para atingir determinado fim. E, como vimos

anteriormente, o conceito weberiano de dominação é justamente a probabilidade de

existência de obediência a uma ordem de determinado conteúdo, entre

determinadas pessoas. Assim, administração implica dominação.

O conceito de dominação utilizado por Weber tem um sentido mais estreito do

que o condicionado “pela situação de mercado ou por situações de interesse”, pois

implica apenas a questão da “obediência” (Weber, 1999b: 191). Esse sentido “mais

estreito” permite trabalhar com a dominação em diversos tipos de relação de

obediência, tornando-se, portanto, paradoxalmente, um conceito mais elástico.

A partir da perspectiva marxista, podemos dizer que esse tipo de dominação,

apontado por Weber, não desaparece com a extinção do Estado. A extinção do

Estado implica a extinção da dominação de uma classe sobre a outra. Assim, a

dominação exercida pelo quadro administrativo estatal como probabilidade de

encontrar obediência a determinadas ordens por determinadas pessoas pode

perpetuar numa sociedade sem classes.

A tarefa de eliminar esse tipo de dominação não se limita à estruturação de

uma nova ordem social, visto que se um quadro administrativo apropria-se

exclusivamente ou majoritariamente do poder de decidir a finalidade da

administração e dos meios objetivos para sua consecução (mesmo sendo essa

lxxiv
apropriação uma possibilidade teórica abstrata), esse quadro administrativo

transforma-se numa classe privilegiada em relação aos outros membros da

associação, perpetuando a relação de dominação, no sentido marxiano. Ou seja,

mesmo estabelecendo uma nova ordem social e econômica, se o poder de mando

ficar concentrado nas mão de um pequeno grupo responsável pela condução política

e administrativa, a dominação exercida poderá resultar numa dominação de classe,

na medida em que esse grupo se apropria, também, dos meios de produção. O que

efetivamente apresenta-se como mais opressivo que a dominação como mecanismo

de obter obediência. Nas palavras do próprio Weber:

...a dominação puramente condicionada pela situação de mercado ou


por situações de interesse pode ser sentida, precisamente por sua
falta de regulamentos, como algo muito mais opressivo do que uma
autoridade regulamentada na forma de determinados deveres de
obediência (Weber, 1999b: 191).

Portanto, do ponto de vista social, Weber concorda com Marx em que a

questão da dominação econômica é mais opressiva que a dominação como

mecanismo para obter obediência. Porém, diferentemente de Weber, Marx enfoca a

questão da dominação na sociedade não pelo caráter de “obediência” que ela

evoca, mas pelo o caráter político e econômico de classe que ela possui.

Por outro lado, convém também ressaltar que Marx não despreza ou minimiza

a dominação enquanto relação de mando-obediência, exercida pela burocracia, haja

vista a sua valorização da experiência da administração da Comuna de Paris. O

autor verifica naquela experiência a realização de uma República democrática: sua

essência estava no fato de ser “um governo da classe trabalhadora,(...) a forma

política, finalmente descoberta, na qual podia ser feita a libertação da economia do

trabalho” (Marx, 1984: 299).

Ou seja, apesar da questão central da dominação estar vinculada à questão

da classe e sua superação depender da “libertação econômica do trabalho”, Marx

lxxv
analisa positivamente a estrutura de gestão da Comuna, na medida em que ela

procura enfrentar a dominação estabelecida na relação de mando-obediência

presente na organização burocrática, a partir da reestruturação da administração,

realizada através da incorporação de mecanismos democráticos31.

Na tradição marxista, também é significativo lembrar algumas posições de

Lênin e Gramsci sobre a burocracia e a questão da dominação em seu sentido

estrito. Vejamos rapidamente algumas dessas observações.

A primeira questão a ser considerada, a partir da reflexão leniniana, diz

respeito à distinção que o autor faz entre burocracia e quadro técnico32. Ou seja, a

necessidade de superar a organização burocrática não significa desconhecer a

importância da especialização e do conhecimento para as questões da

administração da sociedade. Segundo o autor:

Não se deve confundir a questão do controle e do registro com a


questão do pessoal com formação científica, dos engenheiros, dos
agrônomos, etc.: estes senhores trabalham hoje subordinando-se aos
capitalistas e trabalharão ainda melhor amanhã subordinando-se aos
operários armados (Lênin, 1980: 290).

Lênin, dessa forma, distingue, na organização burocrática, a questão do

conhecimento e especialização da questão do controle da produção e da distribuição

e do registro do trabalho e dos produtos. Ou seja, a dominação da burocracia em

sentido estrito está vinculada à forma de controle e registro estabelecidos por ela.

Essa dimensão deve ser superada e o controle e registro devem ser realizados pelos

trabalhadores. Esse é um passo importante para a extinção da dominação, mas é

apenas um elemento restrito dela.

Gramsci aborda a dominação em seu sentido estrito quando trata da relação

entre comandar e obedecer e quando discute a disciplina.

31
Voltaremos a essa questão quando tratarmos da administração pública democrática.
32
Esta questão foi muito bem observada por Netto (2004: 118).

lxxvi
Para o autor, todo comando implica obediência e em toda obediência está

presente o comando. O comando sempre está relacionando a um fim que deseja-se

alcançar e esse comando pode ser hierarquicamente imposto ou ser efetivado por

acordo prévio e colaboração (Gramsci, 2000: 273).

Nesse sentido, a relação comando-obediência, que Weber considera como

dominação, é tratada por Gramsci como uma questão não vinculada diretamente à

dominação política, mas presente em toda relação que envolve comando; dessa

forma, Gramsci procura distinguir um comando autoritário de um comando exercido

por acordo e colaboração, a que poderíamos chamar de democrático.

Gramsci deixa mais explícita sua posição quando trabalha a questão da

disciplina. Segundo o marxista italiano, a disciplina pode ser autônoma e livre -

quando apresenta-se “como uma assimilação consciente e lúcida da diretriz a

seguir” - ou um acolhimento servil e passivo de ordens - quando realiza-se “como

execução mecânica de uma tarefa”. A distinção entre as duas expressões da

disciplina encontra-se na “origem do poder que ordena a disciplina”. Se a origem for

“democrática” – autoridade exercida num grupo socialmente homogêneo, através de

uma função técnica especializada – a disciplina será autônoma e livre; se a origem

do poder for arbitrária ou uma imposição extrínseca e exterior, ela será servil

(Gramsci, 2000: 308-309).

Como vê-se, a questão da dominação, em seu sentido weberiano, não deixa

de ser tratada pelos marxistas, apesar da questão central, para autores vinculados à

essa tradição, vincular-se à dominação de classe.

Retomando nossa argumentação, neste ponto cabe observar que a definição

de administração como dominação não é compartilhada pela concepção de

administração em geral desenvolvida por Paro: como não trabalha com a concepção

lxxvii
“estreita” de dominação, mas sim com a concepção da tradição marxista, não faz

sentido a sua utilização para determinar o conceito em geral de administração. Paro,

em sua definição de administração utiliza a racionalidade como categoria central,

seja na perspectiva da utilização dos recursos para atingir os fins, seja na

perspectiva da definição dos próprios fins33. Entretanto, se considerarmos o sentido

weberiano de dominação (sua relação com a obediência) e analisarmos a

formulação de Paro, verificaremos que a questão da obediência está implícita em

sua concepção. Pois, segundo o autor, coordenar o esforço humano coletivo é uma

das dimensões da utilização racional dos recursos para atingir fins, ou seja, é uma

das dimensões da administração. E coordenar o esforço coletivo implica,

necessariamente, em mando e obediência, por mais democrática que seja a

coordenação realizada.

Parafraseando Paro, pode-se dizer que Weber generaliza uma concepção de

administração situada historicamente. Ou seja, até hoje, a administração

concretamente falando, historicamente determinada, sempre apresentou-se como

uma estrutura de dominação, onde o poder de mando do quadro administrativo é

exacerbado, devido à dominação da classe dirigente. Portanto, a dominação

presente na administração é a expressão das relações de dominação presentes até

então em nossa sociedade. Assim, esse conceito de administração não está

totalmente depurado. É um conceito que expressa a forma de administração até

então existente, onde a dimensão de dominação, enquanto relação poder de mando-

obediência, se sobressai na medida que é determinada pela dominação política e

econômica de classe.

33
Desenvolveremos o tema da racionalidade e suas implicações na administração, de forma geral, e na burocracia,
especificamente, nas próximas duas seções.

lxxviii
Esse fato não desqualifica o significado do conceito weberiano, apenas indica

que devemos trabalhá-lo compreendendo que ele compõe o movimento real da

administração na sociedade atual e não se identifica com o conceito em geral de

administração.

O caráter de dominação é próprio, portanto, a toda ordem administrativa

existente até então. Porém, só a administração burocrática exerce a dominação de

forma racional, ancorada em parâmetros formais e legais. Ou seja, a definição de

Weber de burocracia nos remete a uma forma racional de administração necessária

para obter a obediência de um grupo de pessoas. Em resumo, a burocracia é uma

estrutura administrativa racional de dominação.

Cabe ainda ressaltar que o fato de Weber tratar a dominação sob o ponto de

vista da autoridade e da obediência não significa dizer que o sociólogo alemão

relativiza os problemas advindo da dominação exercida pela burocracia. Muito pelo

contrário, como Tragtenberg sublinha:

O que é real é que Weber estudou a burocracia porque via na sua


expansão no sistema social o maior perigo ao homem. Estudou para
criar os mecanismos de defesa ante a burocracia (Tragtenberg, 1992:
139).

Não é sem propósito que o autor de Economia e Sociedade mostra como a

burocracia possui e procura manter seu poder, através da articulação entre o

conhecimento técnico do especialista e o “saber oficial”34, que transforma em “saber

secreto” mediante a utilização do conceito de “segredo profissional”. Dessa forma, a

burocracia busca excluir o público da análise de suas ações, sugerindo que não

possuem conhecimento adequado para avaliar a ação administrativa ou alegando

ser o segredo um elemento da natureza de sua função (Weber, 1999b: 565).

34
Para Weber, o saber oficial é “o conhecimento somente acessível aos funcionários pelos meios do aparato oficial, dos fatos
concretos que determinam suas ações” (Weber, 1999b: 565).

lxxix
Sem desconsiderar a questão do segredo como constituinte de determinadas

funções objetivas da burocracia (por exemplo: determinadas funções diplomáticas,

estratégias de intervenção econômica, programas de segurança militar, ações

estratégicas empresariais), Weber nos esclarece que:

O poder da burocracia plenamente desenvolvida é sempre muito


grande e, em condições normais, enorme. E o ‘senhor’ ao qual serve
(...) encontra-se sempre, diante dos funcionários especializados
ativos na administração, na situação de um ‘diletante’ diante do
‘especialista’. Toda a burocracia procura aumentar mais ainda esta
superioridade do profissional instruído, ao guardar segredo sobre
seus conhecimentos e intenções (Weber, 1999b: 225)

Weber continua sua exposição com a seguinte observação:

A tendência ao segredo resulta em determinadas áreas


administrativas, de sua natureza objetiva(...). Mas muito além destas
áreas em que se guarda segredo por motivos puramente objetivos,
atua por parte da burocracia o puro interesse no poder. O conceito do
‘segredo oficial’ é sua invenção específica, e nada é defendido por ela
com mais fanatismo que precisamente esta atitude (...) (Weber,
1999b: 225-226).

O alerta weberiano sobre os perigos da burocracia, no entanto, vai além das

considerações acima. O pensador alemão, ao relacionar o processo de

burocratização com o processo de racionalização, como veremos detalhadamente

na próxima seção, conclui de maneira enfática que é um fato fundamental da

sociedade moderna “o avanço irrefreável da burocratização” (Weber, 1999b: 542).

Sendo assim, o autor apresenta como essenciais para se pensar formas de

organização política as seguintes questões:

1) Como é possível, diante desta tendência irresistível à


burocratização, salvar pelo menos alguns resquícios de uma
liberdade de ação ‘individualista’ em algum sentido?
2) Em face da indispensabilidade crescente (...), da posição de poder
do funcionalismo estatal (...), como pode haver alguma garantia de
que existam poderes capazes de manter dentro de seus limites a
prepotência enorme desta camada cada vez mais importante, e que a
controlem eficazmente? Como será possível uma democracia pelo
menos neste sentido limitado?
3) A terceira questão, a mais importante de todas, resulta da
consideração daquilo que a burocracia como tal não realiza, pois é
fácil constatar que sua capacidade, tanto na área da organização
pública, política-estatal, quanto na da economia privada, tem firmes
limites internos. O espírito dirigente (...) é algo distinto do ‘funcionário’.
Não necessariamente pela forma, mas pela essência (...). Quando

lxxx
uma figura dirigente é um ‘funcionário’, segundo o espírito de sua
direção, mesmo um funcionário muito competente – alguém, portanto,
que está acostumado a realizar seu trabalho de acordo com os
regulamentos e a ordem dada, cumprindo honestamente seus
deveres – então não presta para ocupar uma posição à cabeça de
uma empresa da economia privada, nem à cabeça de um Estado” (
Weber, 1999b: 543).

Weber, assim, nos oferece três elementos centrais para refletirmos sobre os

“perigos” da burocratização para a sociedade. A questão da liberdade individual, a

questão do controle da sociedade sobre a burocracia e a questão do “dirigente” da

sociedade numa ordem dominada pelo “funcionário”. Nesse sentido, diferentemente

do que muitos afirmam, Weber não possui uma atitude positiva, simplista e

esquemática sobre a burocracia.

Para finalizar a breve reflexão sobre a expressão da dominação presente na

burocracia, torna-se mister relacionar, sinteticamente, os elementos centrais

presentes na concepção marxiana e da tradição marxista tratada aqui com aqueles

trabalhados por Weber.

Em termos gerais, pode-se afirmar que tanto a concepção weberiana quanto

a marxiana e a da tradição marxista acima referida (Lênin e Gramsci) consideram a

dominação exercida pela burocracia como um problema a ser enfrentado.

Do ponto de vista weberiano, a preocupação concentra-se na dominação

administrativa que a burocracia exerce e a tendência dela vir a assumir o poder

governativo, a direção estatal, pois a dominação econômica não é considerada

sociologicamente por Weber.

Por outro lado, o ponto de vista marxiano e marxista, apesar de considerar a

dominação em sua dimensão tipicamente sociológica, como diria Weber

(probabilidade de obtenção de obediência), analisa que o elemento central de

enfrentamento deve ser localizado na relação que a burocracia possui com a

lxxxi
dominação de classe - ou seja, dominação política, segundo Marx - e sua tendência

a atuar para a perpetuação dessa dominação.

Até aqui, pode-se considerar, em tese, que o fato da burocracia exercer

dominação administrativa e política - no sentido marxiano do termo – exige como

tarefa para transformação da sociedade um movimento que articule a eliminação

processual da dominação administrativa exercida pela burocracia, com a superação

mediata da dominação de classe efetivada pela ordem burocrática, que está

relacionada com o modo de produção baseado na exploração do trabalho.

Nesse sentido, as indicações weberianas podem ser úteis para a definição de

estratégias mais imediatas de intervenção, desde que não se perca o horizonte da

transformação da atual ordem social.

A racionalidade burocrática

Do ponto de vista da sociedade capitalista, numa perspectiva que pretenda-se

de intervenção democrática de aprofundamento e ampliação de direitos, o problema

central que se coloca é o da identidade entre os valores burocráticos e os valores

capitalistas. Ou seja, até que ponto a estrutura burocrática serve apenas aos

interesses da classe dominante (burguesia) e até aonde sua racionalidade é apenas

instrumental, visando a ordem capitalista. A resposta a primeira questão foi dada a

partir da reflexão sobre a função da burocracia no capitalismo. A segunda questão

nos leva a refletir sobre a racionalidade burocrática e sua expressão material, o que

faremos a partir deste momento.

O primeiro aspecto a ser observado é o fato de Weber, ao definir uma

administração de caráter racional, pressupor a existência de administrações não

lxxxii
racionais vinculadas a outros tipos de dominação legítima (dominação tradicional35 e

dominação carismática36). Portanto, weberianamente falando, administração implica

dominação (onde há administração há dominação, apesar do contrário não ser

necessariamente verdadeiro, pois pode haver dominação sem a existência de

quadro administrativo), porém não implica racionalidade. Apenas a administração

burocrática é uma administração racional. Por isso, Weber afirma que “só existe

escolha entre ‘burocratização’ e ‘diletantização’ da administração” (Weber, 1999a:

146).

Sendo assim, a concepção weberiana de administração difere daquela que

apresentamos inicialmente fundamentada em Paro. Este, como vimos, define

administração pelo seu caráter racional, portanto descarta a possibilidade de

encontrarmos administração em atividades irracionais. No entanto, devemos,

também, nos perguntar sobre se o conceito de racionalidade de ambos se equivale,

pois, se assim não for, a diferença entre as concepções pode ser mais ampla, sutil e

complexa que aquela estabelecida apenas entre o corte racional/irracional.

Devemos, então, primeiramente e de forma sucinta, discutir a questão da

racionalidade, para depois refletirmos sobre a racionalidade da burocracia.

Paro trabalha com a concepção de razão vinculada à tradição marxista,

portanto tributária da razão moderna. Dessa forma, a razão constitui-se de duas

dimensões: a dimensão instrumental-analítica e a dimensão de emancipação.

35
De acordo com Weber: “Denominamos uma dominação tradicional quando sua legitimidade repousa na crença na santidade
de ordens e poderes senhoriais tradicionais(...). O dominador não é um ‘superior’, mas senhor pessoal; seu quadro
administrativo não se compõe primariamente de ‘funcionários’ mas de ‘servidores’ pessoais, e os dominados não são ‘membros
da associação’, mas 1) ‘companheiros tradicionais’ ou 2) ‘súditos’. Não são os deveres objetivos do cargo que determinam as
relações entre o quadro administrativo e o senhor: decisiva é a fidelidade pessoal de servidor” (Weber, 1999a: 148).
36
A dominação carismática é a dominação baseada na “qualidade pessoal considerada extracotidiana (...) e em virtude da qual
se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanas, ou, pelo menos, extracotidianos
específicos(...)” (Weber, 1999a: 158-159). Conforme o autor explicita, o “quadro administrativo do senhor carismático não é um
grupo de ‘funcionários profissionais’, e muito menos ainda tem formação profissional. Não é selecionado segundo critérios de
dependência doméstica ou pessoal, mas segundo qualidades carismáticas (...). Não há ‘colocação’ ou ‘destituição’, nem
‘carreira’ ou ‘ascenso’, mas apenas nomeação segundo a inspiração do líder, em virtude da qualificação carismática do
invocado” (Weber, 1999a: 159-160).

lxxxiii
Contudo, como o surgimento e o desenvolvimento da razão moderna está

intimamente relacionado ao processo de socialização da sociedade, viabilizado pela

sociedade burguesa, implicando no processo de industrialização e urbanização, o

que provoca a crescente necessidade de controle da natureza, ocorre - como

consequência desse desenvolvimento e amadurecimento do capitalismo - uma

supervalorização da dimensão instrumental-analítica da razão em detrimento da

dimensão emancipatória (Netto, 1994a: 31).

Essa hipertrofia é decorrente da própria lógica do capital que exige uma

crescente capacidade de manipulação da natureza, provocando a exacerbação da

dimensão instrumental da razão, inclusive estendendo essa racionalidade para o

“domínio das relações sociais” (Netto, 1994a:32).

Nesse sentido, a dimensão emancipatória da razão, vinculada aos fins

universalistas, voltada para a liberdade efetiva de todos os seres humanos,

apresenta-se como contraditória aos fins da sociedade burguesa.

Assim, porque a razão moderna, enquanto racionalidade instrumental, é

extremamente funcional ao capitalismo - na medida em que possibilita o

desenvolvimento de forças produtivas e processos de produção cada vez mais

sofisticados -, a dimensão emancipatória da razão moderna foi inibida e substituída

por uma finalidade particularista de manutenção da exploração do trabalho

assalariado.

Dessa forma, na sociedade burguesa a razão moderna não se realiza por

completo e é crescentemente reduzida à sua dimensão instrumental, na medida em

que não se questiona a finalidade para qual está sendo desenvolvida e aplicada.

Netto, ao abordar esse processo, afirma que:

a consolidação da ordem burguesa tende a reduzir a racionalidade à


intelecção(...). É a esta tendência que, em termos histórico-culturais,
deve-se creditar a hipertrofia prática do comportamento instrumental e

lxxxiv
a redução teórica da razão à racionalidade analítica (Netto: 1994a:
32).

Weber, conforme Tragtenberg sinaliza, ao não colocar em questão, em sua

sociologia, a legitimidade dos fins - devido a seu posicionamento sobre o juízo de

valor na ciência -, mas apenas referir-se à análise sobre os meios utilizados para

atingir fins determinados37, identifica razão e técnica. “A técnica é a mais perfeita

expressão da razão e a razão é a técnica do comportamento e da ação”

(Tragtenberg, 1992: 115-116). Weber, então, só trabalha com a dimensão da razão

instrumental, conforme sublinha Paro, apoiado em Mannheim:

a análise dos meios indica uma racionalidade em sua utilização, na


medida em que se procura adequá-los da melhor forma possível à
consecução do fim visado. É a racionalidade no sentido weberiano,
chamada por Mannheim de racionalidade funcional (Paro, 2000: 55).

Paro nos esclarece que a dimensão instrumental da razão (ou a racionalidade

funcional) se expressa

quer pelo emprego econômico (dispêndio mínimo de tempo e de


recursos na consecução do fim visado), tanto dos recursos materiais e conceptuais
quanto do esforço humano coletivo, quer pela adequação desses recursos aos fins
visados” (Paro, 2000: 54).

Portanto, o sociólogo alemão trabalha apenas com essa dimensão da razão.

Assim sendo, Weber opera uma cisão da realidade entre o mundo da racionalização

técnica e a área do irracionalismo que corresponde à esfera dos valores

(Tragtenberg, 1992:116).

Ao pensarmos na tipologia ideal weberiana sobre a ação social, podemos,

apressadamente, julgar que as análises dos autores acima elencados em relação à

racionalidade em Weber estão equivocadas, pois o sociólogo alemão trabalha com

ação racional relativa a fins e ação racional relativa a valores. Devemos, portanto,

esclarecer qualquer tipo de dúvida que possa pairar sobre este tema.

37
Conforme assinala Silva, segundo Weber a ciência contribui para definir os meios mais adequados a determinados fins,
indicar as previsíveis consequências da realização dos nossos objetivos, esclarecer a importância do que se procura atingir e
ajudar a explicitar os valores relacionados aos fins desejados. “Ou seja - o único dilema a que a ciência não responde é

lxxxv
A ação racional referente a fins, na definição de Weber, é aquela realizada

por

quem orienta sua ação pelos fins, meios e consequências


secundárias, ponderando racionalmente tanto os meios em relação às
consequências secundárias, assim como os diferentes fins possíveis
entre si: isto é, quem não age nem de modo afetivo38 nem de modo
tradicional39 (Weber, 1999a: 16).

A racionalidade encontra-se na ponderação dos fins e dos meios

estabelecidos para a ação. Ou seja, pondera-se o fim, não se define racionalmente o

fim.

Por outro lado, a ação racional referente a valores é aquela determinada “pela

crença consciente no valor – ético, estético, religioso ou qualquer que seja sua

interpretação – absoluto e inerente a determinado comportamento como tal,

independentemente do resultado” (Weber, 1999a: 15).

Em relação às ações afetiva e referente a valores, o sociólogo alemão nos

esclarece que “distinguem-se entre si pela elaboração consciente dos alvos últimos

da ação e pela orientação conseqüente e planejada com referência a estes, no caso

da última” (Weber, 1999a: 15).

Portanto, o conceito de ação racional referente a valores relaciona-se com a

ação realizada a partir da consciência que o ator tem dos valores que a

fundamentam e pela orientação planejada com referência a estes. Ou seja, a

racionalidade nesse caso está na consciência dos valores que orienta a ação, sejam

eles quais forem, e no planejamento estabelecido em função deles. Dessa forma, a

racionalidade não se encontra no valor, mas sim na consciência que se tem sobre o

valor estabelecido e pela ação planejada desenvolvida.

precisamente o mais importante; que fins fixar, que valores escolher” (Silva, 1988: 53)
38
Ação social afetiva é aquela determinada por afetos ou estados emocionais atuais (Weber, 1999a: 15).
39
Ação social tradicional é aquela determinada por costume arraigado (Weber, 1999a: 15).

lxxxvi
Assim sendo, os fins definidos, na ação racional referente a fins, e os valores,

na ação racional referente a valores, não são categorias que Weber atribuía à

racionalidade. Essa postura é coerente com a “neutralidade axiológica” defendida

por Weber, a partir da distinção que ele estabelece entre “julgamento de valor” e

“relação com valores”.

Para a concepção weberiana, conforme destaca Aron, a ciência não valida os

juízos de valor: ela baseia-se em premissas de valor, relacionando, inclusive, a

matéria estudada com valores, mas nunca julgando-os (Aron, 1990: 470).

Silva aprofunda essa análise indicando que existe um duplo sentido na

neutralidade axiológica de Weber:

Duplo já que a radical separação entre conhecer e julgar implica,


como sabemos, a incapacidade de fundamentar analiticamente
tomadas de posição, mas implica também que, dentro dos limites
impostos pelo subjetivismo das operações de seleção, a
demonstração científica está ou deve estar liberta de avaliações
normativas (Silva, 1988: 59).

Mesmo quando Weber mostra as

diferentes relações que podem ser

estabelecidas entre as ações racionais referente

a fins e valores, não está em questão a

racionalidade dos fins/valores. Ao tratar essa

questão, o sociólogo afirma o seguinte:

...pode suceder que esta [racionalização da ação] corra, de maneira


positiva, em direção a uma racionalização consciente de valores,
porém de maneira negativa, às custas não apenas do costume, mas
igualmente da ação afetiva, e finalmente também em direção à ação
puramanente racional referente a fins e não crente em valores, às
custas da ação racional referente a valores (Weber, 1999a: 19).

Em nenhum momento está em pauta a racionalidade do fim e/ou do valor

proposto. Apenas sinaliza que a racionalização da ação pode ser positiva em

direção a um valor conscientemente determinado, independente de questões de

costume ou afetiva, e, também, puramente relacionada a fins e não a valores.

lxxxvii
Essas relações ficam ainda mais intricadas quando o autor afirma que:

A decisão entre fins e consequências concorrentes e incompatíveis, por


sua vez, pode ser orientada racionalmente com referência a valores: nesse caso, a
ação só é racional com referência a fins no que se refere aos meios (Weber, 1999a:
16).

Essa formulação pode sugerir ao leitor desavisado que Weber, ao indicar que

a polêmica entre os fins pode ser resolvida pela racionalidade referente a valores,

estaria imputando racionalidade ao valor que servirá de orientação para os fins que

se quer atingir, através de meios racionais. Ou seja, o leitor pode interpretar que a

racionalidade referente aos valores definirá o fim a ser perseguido por uma avaliação

axiológica. Em outras palavras, dentre os fins incompatíveis opta-se pelo mais

racional.

No entanto, o que está presente na afirmação de Weber é o fato de que a

polêmica entre os fins será resolvida fundamentada nos valores que o sujeito em

ação opta conscientemente devido às suas referências éticas, estéticas e religiosas,

sejam elas quais forem. Vejamos:

Do ponto de vista da racionalidade referente a fins, entretanto, a


racionalidade referente a valores terá sempre caráter irracional, e tanto mais quanto
mais eleve o valor pelo qual se orienta a um valor absoluto; pois quanto mais
considere o valor próprio da ação (atitude moral pura, beleza, bondade absoluta,
cumprimento absoluto dos deveres) tanto menos refletirá as consequências desta
ação (Weber, 1999a: 16).

Assim sendo, Weber expõe o caráter “irracional” da racionalidade referente

aos valores em relação à racionalidade referente aos fins, na medida em que, para

ele, os valores não são racionais - racional é a consciência dos valores que orienta a

ação.

Weber, então, ao tratar da ação racional referente a fins, não a define

adequadamente, pois na verdade não discute a racionalidade dos fins, apenas

refere-se à racionalidade instrumental (a definição do melhor caminho e dos

lxxxviii
melhores instrumentos para a tingir determinados objetivos). Por outro lado, a ação

racional referente a valores seria a ação voltada para a definição dos objetivos e

finalidades ético-políticas de uma ação, sem levar em consideração, também, a

racionalidade dos objetivos definidos.

O importante a ressaltar é que sempre teremos uma ação racional referente a

fins relacionada a uma outra referente a valores. Ou seja, a ação racional

instrumental não existe abstratamente nem de forma neutra; a busca de um objetivo

pressupõe uma estrutura axiológica, apesar de nem sempre ela estar explícita ou ser

consciente. Por isso, a definição de administração de Paro é mais precisa, pois

explicita essa relação dialética entre fins e meios presente na ação racional

administrativa.

Resumindo, a racionalidade trabalhada por Weber, como já havíamos

indicado a partir de Tragtenberg e Paro, refere-se, substantivamente, às questões

relacionadas à adequação dos meios aos fins/valores definidos. A problemática da

racionalidade não atinge as questões sobre a pertinência racional dos fins e valores

definidos.

Como vimos, o conceito weberiano de burocracia é definido como a forma de

dominação legítima de caráter racional. A partir da explicitação das definições de

dominação e de racionalidade, referenciadas acima, podemos dizer que, para

Weber, a burocracia é a forma legítima de obter obediência de um grupo de

pessoas para atingir determinados objetivos, através do emprego econômico

de recursos materiais e conceituais e do esforço humano coletivo, assim como

da adequação desses recursos aos fins visados. Ou seja, a burocracia é

definida, por Weber, através de um conceito “estreito” de dominação e da dimensão

instrumental da racionalidade. Como destaca Tragtenberg:

lxxxix
A burocracia para ele é um tipo de poder. Burocracia é igual à
organização. É um sistema racional em que a divisão de trabalho se
dá racionalmente com vista a fins. A ação racional burocrática é a
coerência da relação de meios e fins visados (Tragtenberg, 1992:
139).

Dessa forma, o conceito de burocracia weberiana não explicita a relação de

dominação de classe presente na burocracia (como vimos na seção sobre

dominação) e nem o fim a que se propõe tal ordem administrativa.

A menção que Weber fará sobre a finalidade da burocracia é mostrar que ela

é adequada e necessária ao capitalismo, contribuindo para o desenvolvimento do

mesmo. No entanto, o autor não apresenta, diretamente, o capitalismo como

determinação de seu conceito de burocracia, pois trabalha com a dimensão

instrumental da razão dando ênfase aos aspectos de “emprego econômico” e

“adequação” na utilização dos recursos. Essa ênfase dada por Weber à

caracterização da burocracia será tratada adiante. Neste momento, cabe

explicitarmos melhor a relação entre burocracia e capitalismo no pensamento

weberiano.

Apesar de Weber apresentar a existência de estruturas burocráticas no Egito

na época do Novo Império, no principado romano tardio, na Igreja Católica Romana

e na China (Weber, 1999b: 204-205), ele deixa claro que a expressão definitiva da

burocracia só se dá com a intensificação do intercâmbio de mercadorias, propiciado

pelo desenvolvimento da economia capitalista.

Para Weber, o capitalismo ao mesmo tempo em que exige uma administração

burocrática oferece as condições para sua existência.

O capitalismo necessita de uma “administração contínua, rigorosa, intensa e

calculável”, por isso requer uma forma racional de dominação (Weber, 1999a: 146).

Por outro lado, o capitalismo possibilita, através dos recursos monetários a

existência da estrutura burocrática.

xc
Do mesmo modo que o capitalismo, em sua fase atual de
desenvolvimento, exige a burocracia – ainda que os dois tenham
raízes históricas diversas -, ele constitui também o fundamento
econômico mais racional – por colocar fiscalmente à disposição dela
os necessários meios monetários – sobre o qual ela pode existir em
sua forma mais racional (Weber, 1999a: 146).

Weber, quando analisa os pressupostos sociais e econômicos da burocracia,

mostra que a ampliação quantitativa e, principalmente, qualitativa das tarefas da

administração intensifica-se a partir do desenvolvimento da economia monetária que

tem no capitalismo seu mais alto grau de manifestação. Essas demandas para a

administração vão repercutir tanto na forma de administração privada (empresa

capitalista) quanto na pública (Estado).

Em relação à administração privada, Weber afirma:

A exigência da realização mais rápida possível das tarefas oficiais,


além de inequívoca e contínua, é atualmente dirigida à administração,
em primeiro lugar pela economia capitalista moderna. As modernas
empresas capitalistas de grande porte são elas mesmas, em regra
modelos inigualados de uma rigorosa organização burocrática. Suas
relações comerciais baseiam-se, sem exceção, em crescente
precisão, continuidade e, sobretudo, rapidez das operações (Weber,
1999b: 212).

Ele mostra que a grande empresa capitalista moderna é um dos exemplos

históricos mais importantes de um burocratismo claramente desenvolvido (Weber,

1999b: 205), na medida em que é por excelência fundada na economia monetária,

produzindo receitas contínuas, advindas do lucro privado, o que propicia o

surgimento e possibilita a manutenção da estrutura burocrática e de seu quadro

administrativo (Weber, 1999b: 208).

Em relação à administração estatal, o autor, ao tratar da ampliação qualitativa

das tarefas administrativas, afirma:

As exigências culturais crescentes, por sua vez, estão condicionadas,


ainda que em grau diverso, pelo desenvolvimento das camadas mais
influentes no Estado. Neste sentido, a burocratização progressiva é
uma função da propriedade crescentemente disponível para o
consumo e empregada neste e de uma técnica cada vez mais
refinada, correspondente às possibilidades assim criadas, do estilo de
vida. Quanto á repercussão na situação geral de necessidades, isto
condiciona a crescente indispensabilidade subjetiva de uma

xci
previdência interlocal e organizada em economia pública, isto é:
burocrática, para as mais diversas necessidades da vida, que
antigamente eram desconhecidas ou satisfeitas localmente ou pela
economia privada (Weber, 1999b: 211).

Essa relação entre burocracia e capitalismo revela um aspecto fundamental

da racionalidade burocrática. Como a racionalidade trabalhada por Weber é

instrumental - emprego econômico e adequação dos meios aos fins visados -, a

racionalidade atribuída à burocracia é a da utilização do pensamento, do raciocínio,

na manipulação dos meios necessários para atingir um fim determinado (Paro, 2000:

55). No entanto, o fim a que se destina a burocracia não fica explícito diretamente.

Mas ao desvelar as conexões entre capitalismo e burocracia, Weber explicita os fins

a que serve a burocracia. Ou seja, a burocracia apresenta-se como a ordem

administrativa racional para os fins da expansão capitalista.

Dessa forma, a racionalidade de fins implícita na concepção weberiana de

burocracia identifica-se com a racionalidade da economia capitalista. Ou seja, uma

racionalidade irracional, pois de caráter particularista, não universal, baseada na

exploração do homem pelo homem, enfim, uma racionalidade não libertária, não

emancipatória (Paro, 1990: 54-58).

Então, a racionalidade funcional, utilizada por Weber é ideológica, pois

escamoteia a existência de um fim determinado, na medida em que não existe

emprego econômico e adequação de recursos sem referência a fins. E como no

caso o fim não é racional no sentido moderno do termo, os meios também não o

são, pois o caráter racional da burocracia é limitado pela finalidade de sua

constituição.

Entretanto, Weber não analisa a racionalidade da burocracia como sendo

adequada apenas à economia capitalista. O sociólogo alemão aponta, também,

devido à “disciplina” – obediência às regras – e à “impessoalidade” da estrutura

xcii
burocrática, a possibilidade da burocracia colocar-se à disposição de diferentes

interesses de dominação: inclusive socialista (Weber, 199b: 223-224).

A questão, então, é: como a burocracia pode se colocar à disposição de

diferentes interesses, se afirmamos, anteriormente, que a utilização racional de

recursos para atingir fins determinados necessita de adequação entre fins e meios?

Ou seja, como a burocracia pode atender às finalidades distintas do capitalismo e do

socialismo?

Em nosso entendimento, isto acontece por dois motivos. Primeiro, porque ao

trabalhar com a concepção de racionalidade funcional e não explicitar os fins que

correspondem a determinado emprego econômico e adequado de recursos, Weber

confunde traços da burocracia - relativos ao referido emprego dos recursos para o

capitalismo -, que podem ser econômico e adequado, também, aos fins do

socialismo, com a totalidade da estrutura burocrática. Em outras palavras, o que

ocorre é que certas determinações da burocracia podem servir ao socialismo na

medida em que ele (socialismo) refere-se a uma sociedade em transição, portanto,

ainda com caráter de classe e necessitando de intervenções planejadas do Estado

na sociedade. E, dessa forma, tal como a sociedade capitalista, o socialismo exige

uma administração, ainda, com a dimensão de dominação.

O segundo motivo refere-se à autonomia relativa entre meios e fins. Apesar

de estarmos, até agora, mostrando que não há meios/recursos absolutos e neutros,

pois eles sempre estão relacionados a algum tipo de finalidade, isto não significa

dizer que os meios/recursos são operacionais apenas quando colocados à

disposição daquelas finalidades que os geraram ou às quais eles estão mais

diretamente vinculados. Ou seja, as tecnologias produzidas - inclusive as

administrativas - em determinado contexto histórico, com determinada finalidade,

xciii
apesar de não serem neutras, não estão condenadas a servir apenas àquela

finalidade. Podemos encontrar, na relação entre fins e meios/recursos, situações

diferenciadas, onde determinados meios/recursos, pela sua qualidade, estão

visceralmente vinculados a fins específicos e outros que apresentam-se como maior

autonomia frente aos fins estabelecidos.

Nesse sentido, a necessidade da burocracia para o socialismo está correta

parcialmente, pois é uma sociedade em transição e estamos considerando a

autonomia relativa entre meios e fins.

Na transição, as mudanças fundamentais ainda não foram realizadas, uma

nova sociedade, uma sociedade sem classes, ainda não está consolidada e, por

isso, são necessários Estado e burocracia como instrumentos de dominação, mas

que tenham como perspectiva a superação dessa estrutura. Por outro lado, a

autonomia relativa existente entre meios e fins permite vislumbrar meios que possam

ser utilizados para fins diversos.

Essa compreensão reforça a análise realizada anteriormente sobre o caráter

contraditório da burocracia, na medida em que ela possui como uma de suas

funções o atendimento a demandas das classes dominadas.

Do ponto de vista do conceito de administração de Paro, podemos dizer que a

burocracia weberiana é a forma determinada historicamente da administração na

sociedade capitalista. A burocracia é a expressão da administração capitalista, na

medida em que define racionalmente o emprego econômico e adequado dos

recursos para atingir os fins da expansão do capital. Nesse sentido, devemos

entender a burocracia não como um dos modelos de administração existente no

capitalismo, mas sim como a própria administração capitalista, que pode ser

xciv
organizada de diferentes maneiras, para garantir a dominação de classe, através de

ações que acabam atendendo determinadas demandas das classes dominadas.

Então, a partir da análise crítica do conceito weberiano de burocracia,

devemos aprofundar a definição explicitada anteriormente e entender que a

burocracia é a forma legítima de obter obediência de um grupo de pessoas e

exercer o poder de classe para atingir objetivos voltados para a expansão

capitalista, através do emprego econômico de recursos materiais e conceituais

e do esforço humano coletivo, assim como da adequação desses recursos aos

fins visados, que se expressam, também, pela necessidade de atender

determinadas demandas da classe dominada. Consideramos que dessa forma o

conceito de burocracia fica completo em suas determinações essenciais.

Concluindo nossa reflexão, podemos dizer que, ao trabalhar a racionalidade

instrumental como racionalidade, Weber não explicita determinados valores que

estabelecem e que influenciam o formato de determinada ação social.

O tratamento que o sociólogo dá a questão da burocracia é típica. Ou seja,

para ele, a burocracia é uma ação racional que possui validade independente da

finalidade a que destina-se. Como vimos, em nosso entendimento, esse pressuposto

é equivocado, pois é necessário que os recursos sejam adequados às finalidades.

Por isso, é fundamental explicitar que, do ponto de vista da perspectiva que

pretendemos desenvolver, o valor que define a ação racional administrativa - ou

seja: a orientação pautada na ampliação e aprofundamento de direitos sociais -,

demarca as possibilidades de analisarmos a interação entre fins e meios.

A partir da compreensão da racionalidade, na perspectiva vinculada à tradição

marxista, e do entendimento de que a burocracia em Weber identifica-se com a

administração capitalista, veremos agora os traços essenciais da expressão material

xcv
da racionalidade da administração burocrática e suas implicações para uma

perspectiva que se pretenda comprometida com uma administração pública

democrática.

Ou seja, partindo da concepção geral de administração desenvolvida por

Paro, buscaremos articular uma finalidade racional - no sentido do atendimento “às

necessidades humanas em sua globalidade”, considerando o homem em sua

“especificidade e universalidade” (Paro, 2000: 57) - com a utilização racional de

recursos para tal fim. Assim, procuraremos explicitar formas de racionalização do

trabalho e coordenação do esforço humano coletivo, a partir da crítica da

administração burocrática, que possam ser referências para uma administração

pública democrática, na medida em que a burocracia expressa uma forma de

administração com certo nível de racionalidade, oferecendo condições para atender

determinadas demandas das classes dominadas, devido ao seu caráter

contraditório, destacado anteriormente.

Portanto, procuraremos mostrar, tendo como perspectiva a idéia de que existe

uma certa autonomia dos meios em relação aos fins, que alguns parâmetros da

administração burocrática podem e devem ser incorporados para uma proposição de

ampliação e aprofundamento de direitos. Até porque, essa proposição só se

apresenta incompatível com o capitalismo se for efetivada de forma radical, tanto

quantitativa quanto qualitativamente.

Expressão material da racionalidade burocrática

Consideramos como núcleo da “expressão material da racionalidade

burocrática” as características concretas dessa experiência histórica de

administração, sistematizadas por Weber. A partir da apresentação dessas

xcvi
características procuraremos problematizá-las e destacar, na seção seguinte, a partir

da contradição burocrática, alguns traços que são importantes para o

desenvolvimento de uma administração pública democrática, ou seja, uma

administração pública voltada para o aprofundamento e a ampliação de direitos.

A racionalidade da burocracia, segundo o sociólogo alemão, está presente,

principalmente, na sua estrutura teórico-formal e sua superioridade encontra-se no

conhecimento profissional de seus quadros (Weber, 1999a: 146). A

burocratização é o processo racional e de especialização da administração.

Diferentemente do que comumente atribui-se à burocracia e, pior, ao conceito

weberiano de burocracia, ela não se configura como “um” modelo de administração

racional. Para Weber, ela é “a” administração racional.

Como vimos anteriormente, administrar, para Weber, é exercer dominação,

ou seja, obter obediência de determinadas pessoas para determinados objetivos.

Porém, nem toda a dominação é exercida através da administração. A burocracia,

então, é uma forma racional de dominação exercida por um quadro administrativo. A

racionalidade burocrática, segundo Weber, expressa-se através das seguintes

características, enquanto um tipo puro, no que refere-se à sua estrutura:

a) Princípios das competência fixas, mediante regras, leis ou regulamentos

administrativos;

b) Princípio da hierarquia de cargos e da sequência de instâncias, isto é, um

sistema fixamente regulamentado de mando e subordinação das

autoridades, com fiscalização das inferiores pelas superiores;

c) Baseada em documentos;

d) Pressupõe, em regra, uma intensa instrução da matéria;

xcvii
e) Requisição do emprego da plena força de trabalho do funcionário, quando

o cargo está plenamente desenvolvido, independentemente da carga

horária fixada;

f) Realização da administração dos funcionários de acordo com regras

gerais, mais ou menos fixas e mais ou menos abrangentes, que podem

ser aprendidas (Weber, 1999b: 198 – 200).

Em relação ao poder de mando e obediência, a burocracia estrutura-se de

forma que o senhor legal típico, enquanto ordena e manda, obedece à ordem

impessoal pela qual orienta suas disposições. Por outro lado, quem obedece,

obedece às regras e não ao senhor. A obediência, nesse sentido, está vinculada às

regras impessoais. (Weber, 1999a: 142).

Em relação ao quadro administrativo burocrático, enquanto funcionários, a

burocracia expressa-se da seguinte forma:

a) São livres e obedecem às obrigações objetivas;

b) São nomeados por uma hierarquia rigorosa;

c) Têm competências funcionais fixas;

d) São contratados formalmente, através de seleção, segundo a qualificação

profissional, avaliada mediante prova e certificada através de diploma;

e) São remunerados com salários em dinheiro;

f) Exercem o cargo como profissão única e principal;

g) Têm perspectiva de uma carreira;

h) Trabalham em separação absoluta dos meios administrativos e sem

apropriação do cargo;

i) Estão submetidos a um sistema rigoroso e homogêneo de disciplina e

controle do serviço. (Weber, 1999a: 144).

xcviii
São essas características, tanto da estrutura quanto do quadro administrativo,

que fazem da burocracia uma administração com características de racionalidade,

que vem responder a determinadas tarefas que crescem quantitativamente e que

intensificam-se qualitativamente, a partir do desenvolvimento da economia monetária

capitalista.

Porém, não só Weber identifica racionalidade na burocracia. Hegel, na

medida em que conceitua burocracia como a classe universal, aquela responsável

para garantir os “interesses gerais” do Estado, e sendo o Estado a razão em si e

para si, atribui a ela (classe universal) uma intervenção na sociedade segundo as

determinações da razão. Mas, diferentemente de Weber, Hegel, um expoente do

pensamento iluminista, considera a razão em sua dimensão finalística e não só

instrumental.

Concretamente, para Hegel, a burocracia é a responsável por executar e

realizar os atos do governo. Os indivíduos destinados às funções governamentais

(ou seja, a compor a burocracia) são escolhidos através de “provas” de aptidão.

Dessa forma, qualquer indivíduo pode vir a compor a burocracia e, nesse sentido,

fazer parte da classe universal e, assim, cumprir o dever relativo à profissão oficial

que exerce, que é a substância de sua situação. Para isso, deve o profissional ser

remunerado e não voluntário, pois a ação voluntária, como ressalta Hegel, tende a

ser desenvolvida por finalidades subjetivas e não objetivamente como deve ser uma

função de Estado (Hegel, 1997: 266-270 / §287-§294).

Como podemos perceber, a expressão material da burocracia em Hegel não

difere substantivamente da apresentada por Weber, apesar deste último determinar

com mais precisão sua configuração.

xcix
Por outro lado, Hegel, por que trabalha com uma concepção de racionalidade

na esteira do iluminismo, atribui uma racionalidade à burocracia - enquanto classe

universal, expressão do Estado racional - voltada para os interesses universais. No

entanto, como pudemos constatar anteriormente, através da crítica marxista, a

concepção hegeliana é uma concepção fortemente ideológica, na medida em que

não existe interesse geral numa sociedade de classe.

Assim sendo, a crítica que Marx direciona às determinações hegelianas da

burocracia, mostrando que Hegel apenas apresenta elementos que conformam a

descrição empírica da burocracia, em parte como ela realmente é e, em parte, como

ela se vê40, pode também ser utilizada em relação as características que Weber

atribui à administração burocrática.

A expressão material da administração burocrática (estrutura e quadro

administrativo), nas descrições de Hegel e Weber, manifesta-se formalmente.

Parafraseando Marx, podemos dizer que o formalismo é como a burocracia

realmente é.

Por outro lado, os conteúdos dessa ordem administrativa não são analisadas

de forma consistente pelos autores. Hegel ideologiza a burocracia como a

responsável em garantir os interesses gerais da sociedade e Weber atribui à

burocracia uma racionalidade abstrata. Ou seja, poderíamos dizer que a burocracia

racional e responsável pelos interesses gerais é como ela própria se vê. Podemos

afirmar que a descrição empírica realizada por Hegel e Weber corresponde a traços

efetivos que a burocracia possui e, por outro lado, a finalidade universal, de cunho

hegeliano, e a racionalidade abstrata weberiana expressam-se como aparências do

fenômeno burocrático.

40
“Hegel nos oferece uma descrição empírica da burocracia, em parte tal e como realmente é e em parte de acordo com a
opinião que ela tem de si mesma” (Marx, 1978: 358).

c
Isto significa que a base material da burocracia expressa possibilidades de

uma configuração com algum nível de racionalidade e voltada para interesses

diversos, na medida em que a aparência, como vimos anteriormente, faz parte do

fenômeno. Na próxima seção, a partir dessa discussão sobre a relação forma-

conteúdo da burocracia, destacaremos as possibilidades da organização burocrática

atuar na perspectiva de ampliação e aprofundamento de direitos.

Burocracia e administração pública democrática

Como já antecipamos anteriormente, o servidor livre é uma das expressões

da materialidade da burocracia que deve ser preservado, na medida em que

possibilita a entrada no quadro administrativo de funcionários com conhecimento e

liberdade que pode vir a oferecer resistência a determinados projetos colocados em

pauta. Vejamos melhor esse aspecto.

A possibilidade da burocracia ser um instrumento para uma finalidade de

administração pública voltada para ampliação e aprofundamento de direitos está,

primeiramente, vinculada diretamente à sua função contraditória como aparelho de

Estado. No entanto, é na sua particularidade, enquanto ordem administrativa, que

encontramos os elementos concretos de sua potencialidade, no sentido de operar

interesses das classes dominadas.

Uma das determinações da burocracia, segundo Marx, é o fato dela ser o

formalismo de um conteúdo que está fora dela (Marx, 1978: 358). Essa

determinação marxiana explicita que o suposto interesse geral que a burocracia

procura garantir na sociedade, enquanto expressão material da razão universal do

Estado, nada mais é do que um interesse particular privado frente a outros

interesses privados.

ci
Portanto, os fins formais da burocracia, entendidos como a preservação do

interesse geral na sociedade, entram em conflito com os seus fins reais que é a

garantia de determinados fins particulares. Dessa forma, os fins do Estado são

convertidos em fins burocráticos e os fins burocráticos em fins do Estado. Ou seja, a

burocracia opera a finalidade real do Estado, enquanto dominação de classe, e o

Estado apresenta-se, através da finalidade formal da burocracia, enquanto

universalidade. Concluindo, Marx afirma:

Na burocracia, a identidade do interesse do Estado e do fim privado


particular se estatui de tal modo que o interesse do Estado se
converte em um interesse privado particular frente aos outro fins
privados (Marx, 1978: 360).

De certa forma, a análise do formalismo da burocracia realizada por Marx é

também compartilhada por Weber, quando este afirma que “a burocracia puramente

como tal é um instrumento de precisão que pode colocar-se à disposição de

interesses de dominação muito diversos, tanto puramente políticos ou econômicos

quanto outros quaisquer” (Weber, 1999b: 224). Ou seja, para Weber o conteúdo da

burocracia também encontra-se fora dela.

No entanto, como já verificamos, a administração burocrática não é um

instrumento racional abstrato, ela está vinculada a determinado fim (o fim de

expansão capitalista). Isto não a impossibilita de expressar-se concretamente

através de mecanismos que podem servir a fins não capitalistas, na medida em que

ela apresenta contradições inerentes à sua função na sociedade burguesa.

A “mecanização rigorosa do aparato burocrático”, estabelecida através de

salário, carreira que não depende da arbitrariedade, sentimento de honra estamental

e possibilidade de crítica pública, além de ser compatível com a “subordinação

incondicional aos superiores”, estrutura o caráter profissional “objetivo” do cargo,

facilitando a adaptação às condições objetivas dadas (Weber, 1999b: 207).

cii
Portanto, segundo Weber, esses elementos que estabelecem a

“mecanização” remetem à subordinação do servidor/funcionário ao senhor e à

própria estrutura do Estado. Essa subordinação manifesta-se, para o sociólogo,

devido à centralidade que a disciplina e a obediência hierárquica possuem como

atributos da burocracia.

É interessante notar que Marx, nos anos 40 do século XIX, já indicava essa

análise sobre a burocracia. Segundo ele, para a burocracia “a autoridade é o

princípio de seu dever e a adoração da autoridade sua intenção”, dessa forma a

burocracia apresenta-se através da “obediência passiva, da fé na autoridade e de

um mecanismo de comportamento formal fixo, de princípios, idéias e tradições fixas”

(Marx, 1978: 360).

No entanto, simultaneamente, os elementos de “mecanização” combinados

com o instrumento de “direito ao cargo”41, propiciam uma autonomia relativa da

burocracia, devido à contradição de sua função na sociedade, permitindo, assim

também, sua atuação em confronto com o senhor e com a estrutura de dominação

do Estado. Dessa forma, conforme Weber sinaliza, viabiliza-se uma aliança entre a

burocracia e a disposição democrática dos dominados, na medida em que estes

vislumbram uma relação direta entre a diminuição do poder do senhor sobre os

funcionários e a diminuição de seu (do senhor) poder em si. Nas palavras do autor:

[A burocracia] encontra apoio para isto [direito ao cargo] na


disposição ‘democrática’ dos dominados, que exige a minimização da
dominação, na crença de que toda diminuição do poder arbitrário do
senhor sobre os funcionários implique um enfraquecimento do poder
senhorial como tal (Weber, 1999b: 232).

Por isso, em nosso entendimento, Weber percebe a possibilidade da

organização burocrática ser um instrumento para diversos fins. Pois, ao apresentar-

41
Segundo Weber, “a burocracia aspira, por toda parte, ao desenvolvimento de uma espécie de ‘direito ao cargo’, mediante a
criação de um procedimento disciplinar ordenado e a eliminação do poder totalmente arbitrário do ‘superior’ sobre o
funcionário, enquanto procura assegurar a posição deste, sua ascensão regular, seu sustento na velhice.” (Weber, 1999b:232).

ciii
se de forma racional, a burocracia, como o próprio sociólogo admite, não revela a

tendência concreta de seu efeito econômico - apesar de sua existência42 - e, nesse

sentido, “consiste pelo menos num nivelamento relativo” (Weber, 1999b:224).

Para completar, poderíamos dizer que determinados aspectos da estrutura

burocrática fortalecem sua dimensão de relativa autonomia. Por exemplo: a) a

existência dos princípios das competência fixas, mediante regras, leis ou

regulamentos administrativos; b) o processo da administração dos funcionários ser

realizado de acordo com regras gerais, mais ou menos fixas e mais ou menos

abrangentes, que podem ser aprendidas (Weber, 1999b: 198 – 200); e c) o fato de

que, em relação ao poder de mando e obediência, tanto o senhor legal típico quanto

a burocracia estão vinculados às regras impessoais (Weber, 1999a: 142).

Também Gramsci tratou da autonomia relativa da burocracia. Para este autor,

existe uma relação entre a classe social em que o burocrata é recrutado e o seu

valor político (Gramsci, 2000: 62-63). Nesse sentido, se um determinado Estado

possui um recrutamento difuso de profissionais para a ocupação de sua estrutura

burocrática, isso pode gerar uma seleção de quadros que possuem valores políticos

diversificados. Num contexto de socialização da educação e de seleção por

concurso público, a probabilidade de constituição de quadros burocráticos de valores

distintos amplia-se consideravelmente. Pois, como ressalta o autor, “as classes

expressam os partidos, os partidos elaboram os homens de Estado e de Governo,

os dirigentes da sociedade civil e da sociedade política” (Gramsci, 2000: 201).

Essa questão torna-se mais evidente quando Gramsci esclarece que todo o

indivíduo é funcionário do Estado “na medida em que, ‘agindo espontaneamente’,

sua ação se identifica com os fins do Estado” (Gramsci, 2000: 282) e não porque é

42
Para dirimir qualquer tipo de dúvida, cabe esclarecer que Weber, apesar de relacionar o desenvolvimento da burocracia com
o capitalismo, não imputa à burocracia a finalidade de expansão capitalista. O autor considera a organização burocrática

civ
empregado do Estado e submete-se à hierarquia burocrática. Assim sendo,

podemos encontrar na burocracia indivíduos que não se comportam como

“funcionários do Estado”43.

Dessa forma, garantir a autonomia relativa da burocracia, via proteção do

quadro administrativo e seleção baseada na competência, possibilita refratar a luta

de classes no interior do Estado, pois permite a entrada de funcionários no Estado

que não estão alinhados ao projeto político de dominação existente. Nesse caso,

forças de transformação podem ser encontradas, também, no interior da burocracia.

Não estamos querendo dizer com isso que a burocracia seja uma força de

transformação. Muito pelo contrário, ela encontra-se em autonomia relativa. Então, a

existência da burocracia significa a existência de diferentes projetos políticos no

interior da administração, mesmo havendo uma tomada de poder do Estado pelos

representantes das classes trabalhadoras. Por isso, a quebra da burocracia

necessita ser realizada, simultaneamente, à destruição do Estado, embora essas

extinções não signifiquem a extinção da administração e nesse sentido de algum

nível de dominação, weberianamente falando.

A burocracia, portanto, não é uma saída administrativa definitiva do ponto de

vista dos dominados. Porém, numa perspectiva imediata, ela (burocracia), por

expressar a existência de diferentes projetos políticos no interior da administração

pública, apresenta-se como a estrutura mais propícia para viabilizar a luta política no

seio da organização estatal, além de possibilitar a existência de qualidades técnicas

e profissionais no Estado a serviço de determinadas demandas das classes

dominadas.

racional para diferentes ordens econômicas.


43
Cabe também ressaltar que Gramsci admite a possibilidade de encontrar burocracias comprometidas com interesses
elevados e não utilitários (Gramsci, 2000: 283). A partir da análise histórica concreta, consegue identificar na burocracia
posturas políticas distintas. O autor, por exemplo, registra o caráter nacional das burocracias da França e da Inglaterra em
contraponto ao caráter de casta da burocracia italiana (Gramsci, 2002: 167).

cv
Por outro lado, a construção da universalidade e a realização da liberdade, ou

seja, a racionalidade da tarefa burocrática, no sentido hegeliano, podem fortalecer

na sociedade a luta por transformações estruturais, na medida em que setores da

burocracia possuem essa concepção de sua função e procuram atuar

comprometidos com uma sociedade que possa realizar efetivamente a

universalidade e liberdade. Nesse sentido, esses setores, aí sim, contribuiriam para

mudanças radicais do próprio Estado e de sua forma de administração.

Nesta seção, até o momento, trabalhamos com as potencialidades concretas

da burocracia para o fortalecimento de uma administração pública voltada para o

aprofundamento e ampliação de direitos. Cabe agora, explicitarmos, claramente, os

limites da organização burocrática para a estruturação de uma administração

radicalmente democrática.

O primeiro aspecto a destacar é o fato de que a burocracia, ao considerar-se,

efetivamente, “classe universal”, dificulta a articulação política com a sociedade,

favorecendo um comando autoritário, sem colaboração ou acordo prévio. Pois, ao

colocar-se como a portadora dos interesses gerais, atribui os obstáculos para

garantir a condução dos negócios públicos numa perspectiva universal à

interferência que os setores da sociedade (grupos, movimentos, instituições,

partidos) tentam fazer ou efetivamente realizam. Dessa forma, tende a isolar-se e

atuar autoritariamente frente às forças sociais concretas, ou melhor, isolam-se para

facilitar a influência de determinadas forças sociais com quem se afinam política e

ideologicamente. Esse procedimento produz o chamado “insulamento burocrático”,

que, segundo Nunes, significa:

... o processo de proteção do núcleo técnico do Estado contra a


interferência oriunda do público ou de outras organizações
intermediárias (...). O insulamento burocrático significa a redução do
escopo da arena em que interesses e demandas populares podem
desempenhar um papel (...); ao contrário da retórica de seus

cvi
patrocinadores, o insulamento burocrático não é de forma nenhuma
uma processo técnico e apolítico ... (Nunes, 1997: 34).

Essa questão implica a necessidade de, efetivamente, relativizar a autonomia

da burocracia, sob pena dela estruturar uma dominação autoritária, vinculada a

determinado setor social.

Em decorrência, merece atenção a possibilidade da burocracia vir a apropriar-

se dos meios de administração e produção e transformar-se numa classe dominante.

Essa possibilidade (mesmo que apenas teórico-abstrata) agrava a situação anterior,

na medida em que reflete a extrapolação das atividades da burocracia para a área

política e configura seu domínio integral da área econômica. Essa situação para

Weber é uma possibilidade real e por isso o autor preocupa-se em refletir, como

observamos, sobre a liberdade individual, o controle da sociedade sobre a

burocracia e a questão do “dirigente” da sociedade numa ordem dominada pelo

“funcionário”.

Em relação à questão da ordem dominada por funcionário, Weber esclarece

que este é um mau estadista, pois a base de sua intervenção é a disciplina e não a

ousadia e responsabilidade política (Weber, 1999b:539-540). Conforme ressalta

Tragtenberg, em sua análise de Weber:

Enquanto o burocrata sacrifica suas convicções pessoais à


obediência hierárquica, o líder político caracteriza-se por assumir
publicamente a responsabilidade de seus atos (Tragtenberg, 1992:
141).

No entanto, cabe ressaltar que a organização burocrática, apesar de ser um

meio de poder tecnicamente mais desenvolvido, não significa e nem implica,

diretamente, que a burocracia consegue impor suas idéias dentro do complexo

social em questão (Weber, 1999b: 224-225). Essa análise sublinha a relativa

autonomia da burocracia frente ao Estado e à sociedade e mostra que o poder da

burocracia possui limites, não é algo incontrolável, apesar de perigoso e poderoso.

cvii
Assim sendo, a dimensão de dominação presente na administração, de uma

forma geral, e na burocracia, especificamente, exige que, do ponto de vista

democrático, se organizem estratégias para conter os traços autoritários inerentes à

organização burocrática.

Portanto, a questão que se coloca, em relação à administração burocrática, é

saber como controlá-la, ou melhor, como estabelecer mecanismos de controle para

que ela não se aproprie dos meios de administração e produção da sociedade e se

estabeleça como classe dominante.

Essa preocupação já está presente em Hegel. O filósofo alemão, apesar de

conceber a burocracia como classe universal, indica a necessidade da existência de

mecanismos de controle, realizados pelo soberano, enquanto poder de Estado, e

pelas corporações, enquanto expressão das particularidades da sociedade civil, para

que a burocracia não se transforme em uma casta aristocrática. Assim, afirma o

autor:

A preservação do Estado e dos governados contra o abuso do poder


cometido pelas autoridades e pelos funcionários imediatamente
consiste, por um lado, na hierarquia e na responsabilidade e reside,
por outro, no reconhecimento das comunas e corporações impeditivo
de que o arbítrio individual se confunda com o exercício do poder
entregue aos funcionários, assim completando, vindo de baixo, a
vigilância que, vinda de cima, é insuficiente quanto aos atos
particulares de administração (Hegel, 1997: 271; §295).

Em seguida, o autor complementa:


As instituições da soberania, pelo lado superior, e os direitos das
corporações, pelo lado inferior, impedem que tal inteligência e tal
consciência [que os funcionários do Estado possuem] se coloquem na
posição isolada de uma aristocracia e que a cultura e o talento
venham a constituir-se em instrumentos de arbitrariedade (Hegel,
1997: 272; §297).

Weber também propõe mecanismos de controle para a burocracia. Para o

sociólogo alemão, a divisão de competências dos funcionários e o controle

parlamentar são fundamentais.

cviii
Em relação à divisão de competências, Weber aponta que essa estratégia

não permite a concentração de poder nas mãos de um único setor da burocracia.

Então, divide-se para garantir o controle (Weber, 1999b: 265 – 266).

A função do parlamento como instrumento de controle da burocracia é

ressaltada por Weber como forma de estabelecer um contra-poder de especialistas

para avaliar as ações desenvolvidas pela estrutura burocrática. Para isso, ressalta o

autor, são necessárias duas condições prévias: conhecimento especializado e o

“saber oficial”44, além de ser previsto o direito de argüição para que o parlamento

possa investigar, ocasionalmente, determinadas ações dos chefes administrativos e

de sua burocracia (Weber, 1999b: 564-565).

É interessante observar que, acerca dessa questão, aglutinam-se as diversas

matizes de pensamento.

Marx, por exemplo, ao refletir sobre a questão do controle da burocracia, a

partir da formulação hegeliana, aponta essa questão como uma dualidade não

resolvida. Ou seja, o controle frente à burocracia faz-se necessário, pois não se

constituem na sociedade efetivos interesses gerais. Como vimos, Marx sinaliza a

existência de diferentes interesses particulares em disputa na sociedade e mostra

que a burocracia expressa parte desses interesses. Portanto, do ponto de vista

estrutural, exige-se o controle da burocracia porque necessita-se controlar

determinados interesses contra os demais. Nesse sentido, para Marx, Hegel, ao

elaborar o controle como algo vindo da o poder soberano, de cima para baixo, e das

corporações, de baixo para cima, mantém a situação de dualidade na sociedade.

Em relação ao controle exercido pela autoridade soberana, de cima para baixo, Marx

sublinha que ela exerce os maiores abusos de poder - portanto, o controle para

44
Ver nota 34.

cix
evitar abuso de poder burocrático é realizado, por cima, pelo principal responsável

pelo abuso45. O controle vindo de baixo, exercido pelas corporações, na verdade é

“o conflito não dirimido entre a burocracia e as corporações” (Marx, 1978: 365).

No entanto se pensarmos, hipoteticamente, numa sociedade em transição,

onde o poder soberano está nas mãos de representantes das camadas, até então

dominadas (por exemplo dos trabalhadores, no caso do capitalismo), o controle da

hierarquia sobre a burocracia passa a ser necessário para garantir a estrutura de

dominação na sociedade.

Essa análise procura enfatizar que a questão relativa ao controle sobre a

burocracia é uma questão para a ordem social fundada na sociedade de classes e

não para superação desta ordem. Controlar a burocracia não é superá-la; portanto, a

questão de fundo que deve ser posta não é a do controle, mas sim a da superação.

Entretanto, o controle sobre a burocracia, numa ordem de desigualdade, é um

elemento que se coloca como necessário para ampliar os interesses das classes

dominadas. Nessa perspectiva, deve ficar explícito que uma estrutura de controle

sobre a burocracia, apesar de necessária numa sociedade de classes, não é um

elemento que promove a superação dessa ordem.

Uma das formas de superação da burocracia é a democratização efetiva da

administração. Para Marx, a Comuna de Paris foi o exemplo histórico de sua época,

na medida em que “ela arranjou para a República a base de organizações

verdadeiramente democrática” (Marx, 1984: 299).

A expressão democrática da administração da Comuna configurou-se pela

constituição de uma gestão pública exercida diretamente pelos trabalhadores eleitos

45
“Segundo o § 295 [da Filosofia do Direito], vemos que ‘a garantia do Estado e dos governos contra os abusos de poder das
autoridades e de seus funcionários’ se faz, em parte, pela ‘hierarquia’ (como se a hierarquia não constituísse o abuso principal
e os pecados pessoais dos funcionários pudessem ser comparados com seus necessários pecados hierárquicos ...)” (Marx,
1978: 365).

cx
por sufrágio universal e responsabilizáveis e substituíveis a qualquer momento, tanto

para área executiva-legislativa quanto para judiciária e demais ramos da

administração (Marx, 1984: 296-297).

Weber também apresenta como determinação central para a efetivação de

uma administração democrática o sistema de eleição, sorteio ou rodízio para

assumir as funções administrativas, direito de revogação, mandato imperativo e

dever rigoroso de prestar contas (Weber, 1999a: 191). Ou seja, a característica

essencial da administração democrática é ser exercida a partir por um quadro

administrativo eleito diretamente pela assembléia e subordinado a ela. Pois, como

ressalta o autor, a administração democrática “se baseia no pressuposto da

qualificação, em princípio, de todos para a direção dos assuntos comuns, e porque

minimiza a extensão do poder de mando” (Weber, 1999b: 193).

Essa determinação weberiana assemelha-se à de Marx. No entanto, para o

sociólogo, a administração democrática não é viável para a sociedade de massas,

pois, para a sua realização, as associações devem ser limitadas nas seguintes

dimensões:

1) localmente, 2) quanto ao número de participantes, 3) no que se


refere à situação social dos membros, e ele pressupõe 4) tarefas
relativamente simples e estáveis e 5) apesar disso, um grau não
totalmente insignificante de desenvolvimento da competência de
avaliar, objetivamente, meios e fins (Weber, 1999b: 193).

Diferentemente de Weber, para Lênin o capitalismo criou “as premissas para

que ‘todos’ possam realmente participar na administração do Estado”, através da

alfabetização geral e da educação e disciplina dos trabalhadores propiciada pelo

“grande, complexo e socializado aparelho dos correios, dos caminhos de ferro, das

grandes fábricas, do grande comércio, dos bancos, etc” (Lênin, 1980: 290).

Lembremos, no entanto, que Lênin remete à burocracia apenas à questão do

registro e controle e não descarta a necessidade de utilização do conhecimento do

cxi
especialista para tarefas a serem executadas sob o comando da classe

trabalhadora. Portanto, não há em Lênin nenhuma visão romântica de que a

sociedade socialista poderia dispensar os conhecimentos técnicos adquiridos pela

sociedade capitalista e manipulados pelos especialistas. O autor enfatiza que o

registro e o controle são os elementos principais “para o funcionamento regular da

primeira fase da sociedade comunista” (Lênin, 1980: 290). E, de acordo com sua

análise:

[O registro e o controle] foram simplificados em extremo pelo


capitalismo, até operações extraordinariamente simples de vigilância
acessíveis a qualquer pessoa alfabetizada, até o conhecimento das
quatro operações da aritmética e à entrega dos recibos
correspondentes (Lênin, 1980: 290-291).

Nesse sentido, Lênin articula o processo de democratização da administração do

Estado com a extinção da própria administração. Nas palavras do autor:

A partir do momento em que todos os membros da sociedade , ou


pelo menos a sua imensa maioria, tenham a prendido a administrar
eles próprios o Estado (...) – a partir desse momento começa a
desaparecer toda a administração em geral (Lênin, 1980: 291).

Torna-se necessário ressaltar que Lênin está tratando da administração do

Estado, da organização burocrática, da questão do controle e do registro, mostrando

que o processo de democratização suprime a necessidade de uma administração

burocrática.

Gramsci discute a questão da burocracia e sua organização, a partir do

debate sobre “centralismo burocrático” e “centralismo democrático”. Ou seja, o autor

também trata da relação burocracia-democracia.

A questão central que se coloca, para o marxista italiano, refere-se à forma

como se estabelece a relação entre organização e movimento da sociedade. O

“centralismo democrático” é o que se expressa efetivamente como orgânico, pois

constitui-se como

cxii
uma contínua adequação da organização ao movimento real, um
modo de equilibrar os impulsos a partir de baixo com o comando pelo
alto, uma contínua inserção dos elementos que brotam do mais fundo
da massa na sólida moldura do aparelho de direção, que assegura a
continuidade e a acumulação regular das experiências: ele é
‘orgânico’ porque leva em conta o movimento, que é o modo orgânico
de revelação da realidade histórica, e não se enrijece mecanicamente
na burocracia; e ao mesmo tempo, leva em conta o que é
relativamente estável e permanente ou que, pelo menos, move-se
numa direção fácil de prever, etc. (Gramsci, 2000: 91).

Gramsci trata da relação que deve ser estabelecida entre base e direção para

que a organização seja efetivamente democrática. Ou seja, a organização deve

estar aberta para incorporar os impulsos vindo de baixo no aparelho de direção,

evitando enrijecer-se enquanto burocracia. Dessa forma, o autor ressalta a

importância do controle da burocracia ser exercido a partir de baixo, para combater

seu centralismo (Gramsci, 2000: 274).

Contrariamente ao centralismo democrático, o centralismo burocrático

caracteriza-se pelo fato do grupo dirigente encontrar-se saturado, transformado em

um pequeno grupo preocupado com seus privilégios e evitando o surgimento de

forças contrastantes, mesmo que vinculadas aos interesses dominantes (Gramsci,

2000: 91).

Conforme podemos constatar, a partir das análise anteriores, o fundamental a

registrar é que as questões de controle sobre a burocracia devem ser pensadas a

partir de perspectivas democratizadoras da administração. Só assim pode-se

estruturar propostas efetivas de superação da ordem burocrática.

Sintetizando, a questão do controle, do ponto de vista dos dominados, remete

a estratégias de participação no poder, seja diretamente, como presente nas

propostas de Marx, Lênin e Gramsci, seja indiretamente, via corporações, na

perspectiva hegeliana, ou através da representação parlamentar na visão

weberiana. Por outro lado, do ponto de vista do dominante, o poder do soberano,

conforme destaca Hegel, e a divisão de tarefas da burocracia e a centralização do


cxiii
poder político, conforme apregoa Weber, são instrumentos essenciais para exercer o

controle da burocracia.

Dessa forma, podemos dizer que, de um ponto de vista radical, a democratização da

sociedade no geral e da administração em particular é a forma de superar a administração

burocrática. No entanto, num contexto de transição ou de uma situação onde o poder

político de governo esteja nas mãos de partido(s) afinado(s) com as demandas e

necessidades das classes trabalhadoras, o fundamental deve ser combinar o processo de

centralização de poder e comando da nova classe dirigente, visando direcionar as ações da

burocracia, com um processo de democratização da administração, onde a proporção dos

dois pólos articulem-se inversamente. Ou seja, conforme o avanço e consolidação da nova

sociedade ou de um projeto mais afinado com os interesses dos dominados, menos

centralização e burocratização e mais democratização.

Assim, a partir das considerações levantadas ao longo deste capítulo e

considerando o cenário de forte hegemonia liberal e conservadora, nossa tese

explicita-se no entendimento de que a estratégia central deve ser a de

fortalecer a estrutura burocrática do Estado para além dos centros

estratégicos, buscando aproveitar o “caráter racional” da burocracia, por um

lado, como forma de ampliar os espaços para propostas efetivas, eficientes e

eficazes, comprometidas com os dominados, que viabilizem melhorias

imediatas nas condições de vida da população e, por outro, como mecanismo

para contribuir com a formação de um quadro administrativo que tenha

condições de colocar-se a serviço da classe trabalhadora. Simultaneamente, é

fundamental propor o aprofundamento de mecanismos de democratização

para combater a tendência autoreferenciada da burocracia e sua

paralisia/reação a mudanças (Nogueira, 1998: 260-261), criando maior controle

social e controle público (Soares, 2003), como forma de propiciar

cxiv
transparência e fragilizar a direção hegemônica, criando, dessa forma,

condições para o fortalecimento de ações contra-hegemônicas.

Nesse sentido, entendemos que: a) o Estado deve ser forte, amplo e

intervencionista para viabilizar a construção da “universalidade”, apesar de

que ser amplo e forte não garante “universalidade”, mas é uma condição

central na sociedade capitalista que pretenda enfrentar com mais ênfase a

desigualdade sistêmica; e b) a partir de um Estado forte e amplo a ordem

administrativa deve possuir como espinha dorsal a racionalidade burocrática,

pois ela possibilita, como vimos, a construção contra-hegemônica.

No entanto, há de se frisar que Estado forte e ordem administrativa racional-

burocrática não garantem a construção da universalidade, mas são condições essenciais

para tal.

Sendo assim, é possível, se estivermos atento ao limite estrutural que a

burocracia oferece para o desenvolvimento da democracia e às questões de

dominação e controle presentes em sua realização, pensarmos numa matriz de

administração pública tendo como referência elementos da organização burocrática

que potencializam a intervenção administrativa numa perspectiva pautada no

atendimento das demandas e necessidades das classes dominadas, na medida em

que a “racionalidade” burocrática permite a utilização de algumas das expressões de

sua materialidade, visando a ampliação e o aprofundamento de direitos, numa

sociedade de classes.

O desenvolvimento de tal proposição

será realizada a partir da concepção teórica

esboçada neste capítulo, mediada pela análise

crítica do processo de estruturação e

consolidação do Estado brasileiro e de sua

cxv
organização administrativa (das formas

imperiais à ditadura de 1964), para,

posteriormente, debater sobre as implicações

do capitalismo contemporâneo nesse cenário e

apresentarmos sugestões para a construção e

fortalecimento de uma administração pública

efetivamente democrática, privilegiando a

gestão pública da área social.

cxvi
CAPÍTULO II – GÊNESE DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA

Reiteramos que a concepção que estamos desenvolvendo pressupõe a

finalidade de universalização e aprofundamento de direitos como perspectiva para a

administração pública. Repetimos, também, que para a existência dessa finalidade

necessita-se de Estado forte na área social - voltado para a “universalização” no

sentido hegeliano ou, mais precisamente, orientado para atender, de forma mais

ampla, às demandas e necessidades das classes subalternas - e uma ordem

administrativa fundada na burocracia, isto é, uma estrutura pautada na

racionalidade instrumental, vinculada ao fim universalista de aprofundamento de

direitos.

Cabe ressaltar que, em nossa concepção, como vimos no capítulo anterior,

nem o Estado nem a burocracia são instituições que podem se realizar efetivamente

de forma universalista. No entanto, numa sociedade capitalista elas se apresentam

como as únicas instituições que podem atender aos interesses das classes

subalternas de forma mais substantiva, uma vez que, sem Estado e burocracia, a

tarefa de expansão de direitos se torna inviável.

O Estado, para se estruturar com fim voltado para a universalização de

direitos e, em conseqüência, possuir uma ordem administrativa burocrática que

efetive essa finalidade, depende da existência na sociedade de uma hegemonia com

essa direção. Em outras palavras, é necessária uma hegemonia na sociedade civil

que produza uma ação estatal orientada para a perspectiva de universalização.

Portanto, a tarefa central para construção de uma ordem administrativa

democrática e universalista é construir essa hegemonia no Brasil (um projeto de

democracia de massa ou social-democrata, ou modelo europeu, segundo reflexão

de Coutinho). Nesse sentido, o modelo de desenvolvimento econômico deve estar

cxvii
orientado nessa direção, para que as políticas sociais possam seguir esse caminho.

Ou seja, a expressão material dessa direção hegemônica presente no Estado é

visível a partir da política econômica desenvolvida e de sua relação com as políticas

sociais.

Dessa forma, a estruturação de uma burocracia com sentido

“universalista”, além de depender da existência de um Estado “universalista”,

precisa ser estruturada de forma a potencializar aspectos de sua

racionalidade, como por exemplo: a) garantia de um certo nível de

“mecanização”; b) o “direito ao cargo”; c) existência dos princípios das

competência fixas, mediante regras, leis ou regulamentos administrativos; d)

realização da administração dos funcionários de acordo com regras gerais,

mais ou menos fixas e mais ou menos abrangentes, que podem ser aprendidas

e e) existência de regras impessoais como estrutura central do poder de

mando e obediência, que envolva tanto o senhor legal típico quanto o corpo

burocrático. Simultaneamente, é fundamental propor o aprofundamento de

mecanismos de democratização da burocracia, para viabilizar maior controle

social e público (Soares, 2003), como forma de propiciar transparência e

possibilitar maior participação das classes subalternas na definição e

acompanhamento das políticas públicas.

Sendo assim, para pensarmos em alternativas de gestão social voltadas para

a universalização e o aprofundamento de direitos, há de se ter clareza que o objetivo

central é a construção do Estado nessa perspectiva. Portanto, é fundamental a

construção de uma hegemonia na sociedade nessa mesma direção.

Dessa maneira, as tecnologias de gestão social empregadas devem favorecer

a essas construções e, para identificarmos aquelas mais próprias ao caso brasileiro,

cxviii
devemos entender a materialidade em que se desenvolvem tais políticas sociais em

termos da configuração de nosso Estado e de nossa organização administrativa,

visto que estas são as bases concretas a partir das quais devemos pensar as

alternativas democráticas de gestão social para o Brasil.

As características do Estado brasileiro, então, devem ser primeiramente

desenvolvidas, a partir da reflexão sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil

e da nossa “revolução burguesa”; em seguida/simultaneamente, devemos mostrar

as implicações da particularidade da construção do nosso Estado capitalista na

estruturação de nossa ordem administrativa estatal, principalmente de nossa área

social. Ao explicitarmos os traços predominantes do Estado e de sua ordem

administrativa, devemos apresentar pistas para uma gestão social que tenha como

perspectiva contribuir com a construção da hegemonia de aprofundamento e

universalização de direitos na atual conjuntura. A partir deste capítulo, propomo-nos

a realizar tal tarefa.

O objetivo deste item é mostrar como o patrimonialismo, como ordem

administrativa predominante no Brasil durante o período imperial e na República

Velha, vai se articulando com a estrutura burocrática nascente, conformando a base

da configuração de nossa administração pública.

A idéia básica aqui presente - e que será desenvolvida ao longo deste

capítulo e do próximo – resume-se no entendimento de que a administração pública

brasileira nasce, desenvolve-se e se consolida a partir de uma espinha dorsal que

combina patrimonialismo e burocracia, configurando uma unidade contraditória

coerente com a particularidade de nosso capitalismo periférico e de nossa

“revolução burguesa” não clássica.

cxix
O intento é chamar a atenção para o equívoco das interpretações

despolitizadas e dualistas que têm predominado nas análises sobre o

desenvolvimento da administração pública brasileira e que, por conseguinte, têm

apontado propostas equivocadas, muitas vezes ingênuas, para a superação de

nossas “deficiências” administrativas. Outrossim, o esforço ora empreendido busca,

também e sobretudo, confrontar-se e polemizar com as análises liberal, neoliberal e

social-liberal acerca da crise e da reforma da administração pública.

O ponto de partida que iremos utilizar é a análise desenvolvida por Nogueira

(1998: 93), na qual o autor observa que a “revolução burguesa” no Brasil produziu

...um Estado precocemente hipertrofiado e todo multifacetado, cujas


diversas camadas constitutivas – superpostas por sedimentação
passiva – acabaram por alimentar a formação de uma macrocefálica
bifrontalidade: ligadas aos múltiplos interesses societais por inúmeros
e muitas vezes invisíveis fios, duas avantajadas cabeças – uma
racional-legal, outra patrimonialista – iriam se comunicar e se
interpenetrar funcionalmente em clima de recíproca competição e
hostilidade, impedindo a imposição categórica de uma sobre a outra,
retirando a coordenação do todo e fragilizando o comando sobre as
diversas partes do corpo estatal (destaque no original).

O fato de assumirmos esse ponto de partida não significa, como será visto,

que concordamos com ele. Tal ponto de partida serviu como sugestão para o início

da investigação, uma hipótese que foi testada. Por isso, ao longo deste capítulo e do

próximo, exploramos dialeticamente a bifrontalidade - relação entre a dimensão

racional-legal e patrimonialista - da administração pública brasileira, buscando

explicar sua origem e desenvolvimento históricos e procurando identificar seus

limites enquanto categoria de análise.

2.1. Patrimonialismo: da tradição ibérica à particularidade colonial brasileira

O primeiro aspecto que abordaremos refere-se ao entendimento que temos

sobre a relação que existe entre dominação e ordem administrativa, questão já

cxx
abordada no capítulo anterior - mas que consideramos fundamental retomar e

sublinhar com mais clareza.

Do ponto de vista marxista, a ordem administrativa como superestrutura da

sociedade sofre, de maneira geral, influência advinda das determinações oriundas

das relações sociais de produção. Por outro lado, a ordem administrativa como

instrumento de materialização da dominação de classe presente no Estado sofre as

interferências da formação social específica.

Conforme destacamos anteriormente em relação à burocracia, embora seja

pertinente a qualquer ordenamento administrativo numa sociedade de classes, a

determinação fundamental de um ordem administrativa deve ser encontrada na

estrutura de classes da sociedade, na medida em que são os interesses antagônicos

de classes que conformam os conflitos substantivos numa sociedade, exigindo a

intervenção do Estado, através de sua ordem administrativa.

Isso não significa dizer que a questão da ordem administrativa seja um mero

epifenômeno da estrutura de poder e do modo de produção da sociedade. Existe

uma autonomia relativa da ordem administrativa que pode vir a fortalecer sua

dimensão burocrática, mesmo antes da existência de uma estrutura de dominação

prioritariamente racional-legal. Aqui aparece o enigma do ovo e da galinha a que se

refere Florestan Fernandes (1981:21) em relação ao debate sobre o que nasceu

primeiro - o capitalismo ou o “espírito capitalista”. Ou seja, o “espírito burocrático”

pode ir se formando antes de uma estruturação racional-legal de dominação, porém,

essa estruturação implicará mudanças no “espírito burocrático” em relação à sua

organização e conteúdo. Ao longo desta tese pretendemos empreender o

desenvolvimento dessa abordagem dialética.

cxxi
Por outro viés, a abordagem weberiana também nos permite desvelar as

conexões existentes entre dominação e ordem administrativa. De acordo com o

sociólogo alemão, para cada tipo de dominação legítima se estrutura um tipo de

ordem administrativa. Portanto, a ordem administrativa está intrinsecamente

vinculada ao tipo de dominação existente na sociedade.

Sendo assim, se considerarmos corretamente a tipologia ideal de Max Weber

(1999a) e o que ela pode oferecer ao trabalho histórico empírico46, poderemos

estabelecer a conexão entre a estrutura de dominação em diferentes períodos da

história brasileira e as respectivas ordens administrativas instituídas, de forma

materialista e dialética. Em outras palavras, apropriamo-nos da perspectiva

weberiana que percebe com clareza a relação existente entre estrutura de

dominação e ordem administrativa e nos afastamos em seguida do sociólogo

alemão, na medida em que procuraremos analisar essa relação a partir do método

materialista-dialético.

É fundamental, para o estudo em tela, decodificarmos, primeiramente, a

estrutura de dominação e a respectiva ordem administrativa organizada durante o

Império.

Como primeiro movimento para realizarmos tal decodificação, devemos

entender a origem da dominação e da estrutura administrativa brasileira, que está

vinculada ao período colonial.

Segundo Faoro (2004), a revolução portuguesa do século XIV organizará uma

forte estrutura centralizada de Estado, conduzida pelo rei, para agir como agente

econômico ativo, dando maior dinamismo às atividades comerciais. Por outro lado, a

46
De acordo com Weber (1999a: 141 e 142) a tipologia ideal oferece ao trabalho empírico “...somente a vantagem – que
freqüentemente não deve ser subestimada – de poder dizer, no caso particular de uma forma de dominação o que há nele de
“carismático”, de “carisma hereditário”, de “carisma institucional”, de “patriarcal”, de “burocrático”, de “estamental” etc., ou seja,
em que ela se aproxima de um destes tipos, além da de trabalhar com conceitos razoavelmente inequívocos. Nem de longe se
cogita aqui sugerir que toda a realidade histórica pode ser “encaixada” no esquema conceitual desenvolvido no que segue”.

cxxii
nobreza não perde seu papel na estrutura de poder, mas passa a compartilhá-lo

com a burguesia comercial nascente. Nesse contexto, forja-se um “quadro

administrativo, de caráter precocemente ministerial”, para garantir uma direção

mercantilista que mantivesse o poder da nobreza e incorporasse as forças do

comércio emergente (Faoro, 2004: 33-45).

Essa situação descrita por Faoro indica claramente - apesar de o autor não

elaborar, por motivos óbvios, tal análise - que o Estado português que surge após a

crise de 1383-1385 expressa os interesses da burguesia comercial e da nobreza,

mesmo que o poder não fosse exercido diretamente por essas classes. O Estado

português, dessa forma, para exercer a dominação expressando esses diferentes

interesses, mas ao mesmo tempo não sendo conduzido diretamente pelos

representantes dessas classes, necessitará de uma centralização de poder e de

uma ordem administrativa que o possibilite implementar o projeto político de base

comercial, ainda que não destitua o papel de influência no poder que a nobreza

possuía.

Tal questão marca a diferença da história portuguesa em relação à maioria

dos países europeus que, na época, ainda se encontravam fortemente estruturados

em bases feudais - ou seja, o poder fortemente descentralizado nas mãos dos

senhores e a burguesia comercial emergente ainda sem influência política

determinante.

No contexto português, a materialização da dominação, através da ordem

administrativa, exigirá uma estrutura com um nível considerável de especialização

para poder viabilizar o projeto comercial. Por outro lado, o poder centralizado nas

mãos do rei requisitará um quadro administrativo de confiança pessoal para

cxxiii
implementar e organizar a ação estatal. Uma combinação de especialização com

ausência de impessoalidade.

Convém destacar também, para compreendermos a configuração

administrativa portuguesa, que a característica patrimonialista, enquanto indistinção

entre bens públicos e privados do rei, está presente desde o período das lutas

contra os sarracenos e os espanhóis, quando, sob a liderança do rei, juntava-se a

sociedade em torno de um destino. Conforme salienta Faoro (2004: 4):

A coroa conseguiu formar, desde os primeiros golpes da reconquista,


imenso patrimônio rural, cuja propriedade se confundia com o
domínio da casa real, aplicado o produto nas necessidades coletivas
ou pessoais, sob as circunstâncias que distinguiam mal o bem público
do bem particular, privativo do príncipe.

A revolução de 1383/1385 não colocará em xeque o patrimônio real, mas sim

a hegemonia do clero e da nobreza, marcando, dessa forma, definição e

implementação do projeto mercantilista.

De acordo com Mazzeo (1997: 43), “a revolução de 1383/1385, que põe no

trono o Mestre de Avis, liderada pela burguesia mercantil, lançará pioneiramente as

bases de um Estado mercantil, de tipo moderno, pressuposto objetivo para a

posterior expansão colonial portuguesa”.

Sendo assim, o Estado português organizará uma ordem administrativa que

precisará de especialistas para desenvolver o projeto comercial, entendido como um

empreendimento particular do rei, e que, por conseguinte, exigirá quadros de

confiança pessoal para lidar com esse patrimônio real que se confunde com o

patrimônio público.

Entre os séculos XIV e XV, o Estado português ergue um arcabouço


administrativo complexo, objetivando apoiar as atividades tanto de
governo, propriamente dito, como as econômico-comerciais da
burguesia mercantil (...). Agora a burguesia mercantil participa
ativamente das decisões governamentais, pois está incrustada no
aparelho do Estado um órgão burocrático-administrativo que expressa
a própria passagem do feudalismo para o capitalismo” (Mazzeo,
1997: 44).

cxxiv
Para Faoro (2004: 47), essa engenharia institucional configurará a “ordem

administrativa patrimonialista de estamento” de Portuga, como uma ordem

altamente centralizada, com um quadro administrativo com um bom nível de

especialização, vinculado pessoalmente ao rei, devendo responder com lealdade ao

senhor, responsável pela implementação do projeto comercial, entendido como uma

empreendimento privado da realeza.

Esse quadro administrativo, na medida que se organiza com base na relação

de confiança que estabelece com o rei, vincula-se a uma lógica tradicional de

dominação47, fundada na lealdade que se deve ter ao poder exercido pelo senhor.

Simultaneamente, ao não se diferenciar o interesse público dos interesses privados

do rei, reforça-se o caráter patrimonial dessa ordem administrativa tradicional.

Weber define com precisão o patrimonialismo. Para o sociólogo alemão, “ao

surgir um quadro administrativo (e militar) puramente pessoal do senhor, toda a

dominação tradicional tende ao patrimonialismo” (Weber, !999a: 151 – grifo no

original). A dominação patrimonial, continua o autor, como ordem administrativa

tradicional, possuirá como uma tendência inerente “submeter ilimitadamente ao

poder senhorial tanto os súditos políticos extrapatrimoniais quanto os patrimoniais e

de tratar todas as relações de dominação como propriedade pessoal do senhor,

analogamente ao poder e à propriedade domésticos” (Weber 1999b: 247).

Weber explicita, ainda, as características do quadro administrativo da

dominação tradicional, mostrando que a ele faltam: competência fixa segundo regras

objetivas, hierarquia racional fixa, nomeação regulada por contrato livre, ascenso

regulado, formação profissional e salário fixo e salário pago em dinheiro (Weber,

1999a: 149). O autor também destaca a forma de recrutamento, indicando ser

47
Ver nota 35 no Capítulo 1.

cxxv
realizado a partir de pessoas tradicionalmente ligadas ao senhor (recrutamento

patrimonial) ou em virtude de: a) relações pessoais de confiança; b) pacto de

fidelidade com o senhor e c) funcionários livres que entram na relação de piedade

com o senhor (Weber, 1999a:148-149).

Como podemos verificar, a interpretação de Faoro sobre a ordem

administrativa portuguesa é extremamente vinculada ao conceito weberiano de

dominação tradicional e sua estrutura patrimonialista. Entretanto, ainda falta

considerarmos com um pouco mais de atenção o caráter estamental dessa ordem.

Para Weber, no patrimonialismo estamental não há separação total entre os

administradores e os meios e recursos para administrar. Ou seja, o quadro

administrativo se apodera, pelo menos, de parte essencial dos meios e recursos da

administração. Tal situação é identificada por Faoro na administração portuguesa.

Portanto, a estruturação de um quadro administrativo vinculado ao rei que

dirige e comanda a sociedade, através do monopólio dos meios administrativos, e

que não representa as classes sociais fundamentais (apesar de expressarem os

interesses presentes na sociedade), produz uma situação de maior autonomia e

autoritarismo do Estado frente à sociedade.

Porém, em nosso entendimento, isso não configura um estamento que paira

acima das classes. Essa ordem administrativa, apesar de possuir maior autonomia

frente às classes sociais, monopolizar os recursos da administração e interferir de

forma mais autoritária na sociedade, implementa um projeto social adequado aos

interesses das classes dominantes, seja através do desenvolvimento do comércio,

seja mantendo a influência política da nobreza, mesmo sob uma ótica de imbricação

entre o público e o privado.

cxxvi
É importante destacar que a centralização exigida pela estrutura política

portuguesa, aliada à atividade comercial, exige um mínimo de especialização e

racionalidade para a organização administrativa. Por isso, o Estado patrimonial vai

se burocratizando, na medida do desenvolvimento da centralização política e da

expansão capitalista. Conforme ressalta o sociólogo alemão, o funcionalismo

patrimonial, com a progressiva divisão das funções, apresenta aspectos que são

peculiares da ordem burocrática, como especialização e racionalidade. Entretanto,

tais elementos não estabelecem a “distinção burocrática entre a esfera privada e a

oficial” (Weber, 1999b: 253).

Ora, a estrutura administrativa de Portugal é a base da organização

administrativa brasileira que se desenvolverá ao longo do período colonial (Faoro,

2004; Schwartzman, 1988; Prado Júnior, 1981). O Brasil colônia, como

empreendimento de exploração da coroa portuguesa, será administrado a partir da

configuração do Estado português. A centralização política e administrativa é a

estrutura material fundamental para o exercício do poder.

Isso não significa dizer que a centralização conseguia fazer com que a

administração chegasse a todos os pontos do território brasileiro. Caio Prado Júnior,

ao analisar as instituições brasileiras do período colonial, que, segundo ele, na

melhor opção “não passam de plágios ou arremedos muito mal disfarçados” da

administração da metrópole, indica que o efeito mais nefasto da transposição da

lógica portuguesa para o Brasil foi o de “centralizar o poder e concentrar as

autoridades; reuni-las todas nas capitais e sedes, deixando o resto do território

praticamente desgovernado e a centenas de léguas muitas vezes da autoridade

mais próxima” (Prado Júnior, 1981: 302).

cxxvii
Muito mais importante, no entanto, do que constatar que a ordem

administrativa portuguesa foi transplantada para o Brasil, é entender o porquê e

como tal ordem conseguiu se instalar e se estruturar na colônia.

Como vimos, o Estado patrimonialista português, apesar de centralizador,

altamente autônomo, organizado sobre um quadro administrativo estruturado a partir

de sua lealdade ao rei e agindo autoritariamente na sociedade, como se estivesse

acima das classes, expressa efetivamente as aspirações da nobreza e da burguesia

comercial, procurando conciliar os interesses contraditórios dessas elites

dominantes.

O Brasil colônia entra no circuito do mercantilismo mundial, alimentando o

processo de acumulação primitiva dos países centrais48 (Cardoso de Mello, 1998) -

as riquezas existentes no país são exploradas e encaminhadas à metrópole para

sustentar o rei e sua nobreza, garantindo também os lucros da burguesia comercial.

Portanto, do ponto de vista econômico, o Brasil irá sustentar a elite dominante

portuguesa e participar do desenvolvimento capitalista mundial.

O sistema colonial, assim visto, expressa o papel das colônias na


produção mundial, isto é, na divisão internacional do trabalho, que
efetivamente se estrutura. Dessa forma, a colonização e a produção
em grande escala de mercadorias determinarão o surgimento do
sistema colonial que, então, deve ser entendido a partir de sua
articulação estrutural com o modo de produção capitalista, que surge
concretizando-se nas formações sociais particulares americanas, as
colônias (Mazzeo, 1997: 61, itálico no original).

Nesse sentido, a ordem administrativa portuguesa se adéqua ao objetivo da

exploração de nossas riquezas. Dois traços da ordem administrativa colonial serão

marcantes no sentido de garantir a função de enriquecimento da metrópole e de

manter/aumentar o poder das elites dominantes. O primeiro deles é a ausência

48
Conforme ressalta Cardoso de Mello (1998: 39), “A economia colonial organiza-se, pois, para cumprir uma função: a de
instrumento de acumulação primitiva de capital. (...) A produção colonial deveria ser, deste modo, mercantil. Não uma produção
mercantil qualquer, porém produção mercantil que, comercializável no mercado mundial, não concorresse com a produção
metropolitana. (...) Produção colonial, em suma, quer dizer produção mercantil complementar, produção de produtos agrícolas
coloniais e de metais preciosos.”

cxxviii
quase que absoluta da especialização na estrutura administrativa. Caio Prado Júnior

(1981: 333-335) aborda essa questão com precisão, ao analisar a falta de

organização, eficiência e presteza do funcionamento administrativo da colônia, a

complexidade de órgãos, a confusão de funções e competências, ausência de

método e a excessiva centralização de poder na metrópole.

O segundo traço que merece destaque refere-se à corrupção instalada na

administração colonial: “De alto a baixo da escala administrativa, com raras

exceções, é a mais grosseira imoralidade e corrupção que domina

desbragadamente” (Prado Júnior, 1981: 335).

A transposição da administração portuguesa para o Brasil, tendo como função

operar a exploração colonial e manter a estrutura de dominação vigente, não

requisitará uma estrutura de especialização, tal qual a existente em Portugal, que é a

responsável pela organização de empreendimentos comerciais de vulto. Por isso, a

ordem administrativa da corte exigirá uma dimensão burocrática mais presente, que

irá se expandindo, como nos mostra Faoro, por dentro do Estado Patrimonial

Português. No caso brasileiro, o objetivo centrado na exploração mercantil provocará

na ordem administrativa patrimonialista a ausência de especialização e, por

conseguinte, um espaço maior para o desenvolvimento da absorção privada das

riquezas públicas. A dimensão burocrática, como especialização e ordenamento

racional das ações, praticamente não existe na ordem administrativa colonial,

enquanto, por outro lado, a dimensão patrimonial se apresenta com todo o seu vigor.

Neste sentido, a observação de Caio Prado Júnior (1981: 337) é primorosa:

Assente numa tal base, a administração colonial não podia ser outra
coisa que foi. Negligencia-se tudo que não seja percepção de tributos;
a ganância da coroa, tão crua e cinicamente afirmada, a
mercantilização brutal dos objetivos da colonização, contaminará todo
mundo. Será o arrojo então geral para o lucro, para as migalhas que
sobravam do banquete real. O construtivo da administração é
relegado para um segundo plano obscuro em que só idealistas
deslocados debateram em vão.

cxxix
O caráter estamental do patrimonialismo português também estará presente

na administração colonial, na medida em que os administradores da colônia irão

controlar e se apropriar dos meios administrativos disponíveis, como veremos

adiante.

Outro aspecto importante a destacar do período colonial, pois irá influenciar a

estruturação política e administrativa do Brasil, diz respeito à estrutura social e

econômica que, como analisa Prado Júnior, é a base da unidade de agrupamento da

população. A propriedade rural organiza a vida social. Em torno dessa unidade

vivem os escravos, os agregados e os vadios. O proprietário rural, portanto,

expressa o poder de fato existente na sociedade colonial, a vida gira ao redor dessa

estrutura básica de raiz local, formando o “clã patriarcal”. “Quem realmente possui aí

autoridade e prestígio é o senhor rural, o grande proprietário. A administração é

obrigada a reconhecê-lo...”. Nesse contexto, ocorrerá o processo que aristocratiza o

proprietário rural, na medida em que ele deixa de expressar apenas a unidade

escravista e de exploração econômica da colônia, para estabelecer

relações mais amenas, mais humanas que envolvem toda a sorte de


sentimentos afetivos. E se de um lado estas novas relações
abrandam e atenuam o poder absoluto e o rigor da autoridade do
proprietário, doutro elas a reforçam, porque a tornam mais consentida
e aceita por todos (Prado Júnior, 1981: 287-289).

Essa situação levará a administração colonial a conviver com o poder local

exercido pelos proprietários rurais. Isso projeta uma organização administrativa que,

apesar de fortemente centralizada, deverá se articular com o poder local, para

dominar as populações dispersas, evitar anarquia e garantir a disciplina. Faoro

(2004: 146-153) mostra como a estruturação do governo local será realizada como

estratégia de controle efetivada pelo governo central. O poder real centralizado

visava criar, pelo alto, a ordem política no Brasil. A repressão e a conciliação dos

cxxx
interesses em conflito serão as formas utilizadas pela coroa para lidar com o poder

local.

Mesmo no momento de maior centralização de poder, a coroa se articulará

com o governo local. Nesse contexto, os recursos da administração servirão como

mecanismos de cooptação das lideranças locais, promovendo uma profunda

articulação entre o poder central, exercido pela coroa, e o poder local, dirigido pelos

proprietários rurais.

Duas estruturas político-administrativas da colônia expressam com clareza

essa relação entre o poder central e o poder local, através da submissão do último

ao primeiro.

A primeira delas são as Câmaras: órgãos da administração local, presididas

por um juiz presidente de nomeação feita pela coroa e composta por oficiais eleitos

na localidade, tinham como objetivo funções judiciais (processar e julgar crimes de

injúrias verbais, pequenos furtos e infrações, além de resolver litígios sobre

servidões públicas) e executivas (fiscalização do comércio de gêneros e organização

da limpeza pública). As Câmaras também nomeavam os servidores para executar

suas funções. Se, por um lado, as Câmaras eram presididas por um juiz de

confiança da coroa, por outro lado, também absorviam as lideranças locais, via

eleição, dispondo de condições de integrar seu corpo funcional com outros membros

da localidade, através das nomeações (Prado Júnior, 1981: 314-317).

A segunda estrutura são os corpos de ordenanças, órgãos administrativos

que compõem, junto com as tropas de linha e as milícias, o setor militar da colônia.

As ordenanças como forças locais eram responsáveis para atender a serviços locais:

comoção interna e defesa. Elas, nesse sentido, serão fundamentais para manter a

ordem legal e administrativa do Brasil. Todavia, para a coroa viabilizar tal intento, o

cxxxi
comando das ordenanças ficará nas mãos dos proprietários rurais que, como vimos,

formam a unidade econômica e social da colônia, na medida em que expressam um

poder tradicional (patriarcal) frente ao grupamento humano que vive gravitando em

torno de sua propriedade, riqueza e autoridade. Portanto, nada mais imediato do que

transformar o poder real em poder legal.

Revestidos de patentes e de uma parcela de autoridade pública, eles


[proprietários rurais] não só ganharam em prestígio e força, mas se
tornaram em guardas da ordem e da lei que lhes vinham ao encontro;
e a administração, amputando-se talvez com essa delegação mais ou
menos forçada de poderes, ganhava no entanto uma arma de grande
alcance: punha a seu serviço uma força que não podia
contrabalançar, e que de outra forma teria sido incontrolável. E com
ela penetraria a fundo na massa da população, e teria efetivamente a
direção da colonia. (Prado Júnior, 1981: 327).

Em nosso entendimento, é esse elan forjado no período colonial que

produzirá, simultaneamente, o início do fortalecimento do poder e da dominação dos

proprietários rurais e a incorporação da lógica patrimonialista de administração

pública na estrutura do poder local. De acordo com a análise de Carvalho (2001:21),

Não se pode dizer que os senhores fossem cidadãos. Eram, sem


dúvida, livres, votavam e eram votados nas eleições municipais. Eram
os “homens bons” do período colonial. Faltava-lhes, no entanto, o
próprio sentido da cidadania, a noção da igualdade de todos perante
a lei. Eram simples potentados que absorviam parte das funções do
Estado, sobretudo as funções judiciárias. Em suas mãos, a justiça (...)
tornava-se simples instrumento do poder pessoal. O poder do
governo terminava na porteira das grandes fazendas.

Por outro lado, convém também destacar, ocorrerá a incorporação dos

interesses agrários pelo poder central.

Sendo assim, a dimensão patrimonialista da administração pública brasileira

será constituída a partir de dois vetores: o da própria estrutura de dominação da

coroa, que se expressa através da organização centralizada do poder central,

efetivada pela transmutação da ordem administrativa portuguesa para o Brasil, e

aquele que será forjado pelo próprio desenvolvimento da estrutura econômica, social

cxxxii
e política da ordem colonial brasileira, na qual o poder dos proprietários rurais será

fundamental para a garantia da ordem legal e administrativa ditada pela coroa.

Portanto, desenvolve-se no Brasil uma estrutura patrimonialista que parte do

poder central e se irradia como referência administrativa adequada para a

formalização do exercício do poder patriarcal dos proprietários rurais. O

patrimonialismo nas terras brasileiras, dessa forma, deitará raízes na estrutura

do poder central e também na organização do poder local.

Esse amálgama administrativo sela a dominação exercida pelos

representantes da burguesia comercial - que se alojam nos centros urbanos, são

principalmente portugueses e, invariavelmente, são atendidos pela ordem

administrativa central - e pelos proprietários rurais que, além de produzir as

mercadorias destinadas à comercialização, são os responsáveis pela garantia da

ordem legal ditada pela coroa. Dessa forma, podemos perceber como a ordem

administrativa construída no Brasil está coerente com a estrutura de dominação,

exercida pela burguesia comercial e os proprietários rurais, conduzida pelo Estado

Patrimonialista português, que ganhará forma particular ao se organizar no Brasil.

Conforme ressalta Faoro (2004: 176),

A burguesia, nesse sistema, não subjuga e aniquila a nobreza, senão


que a esta se incorpora, aderindo à sua consciência social. A íntima
tensão, tecida de zombarias e desdéns, se afrouxa com o curso das
gerações, no afidalgamento postiço da ascensão social. A via que
atrai todas as classes e as mergulha no estamento é o cargo público,
instrumento de amálgama e controle das conquistas por parte do
soberano.

Nesse sentido, a organização político-administrativa da colônia combinará a

dimensão tradicional patrimonialista advinda do Estado português com a que brota

da articulação entre o poder central e o poder local patriarcal exercido pelos

proprietários rurais.

cxxxiii
Embora Faoro tenha o mérito de apresentar como o patrimonialismo se

estrutura no Brasil a partir da centralização do poder para operacionalizar o projeto

mercantilista, em nosso entendimento, não destaca, com a ênfase necessária, o

papel da força econômica e política dos proprietários rurais na constituição da

dominação no Brasil, bem como o seu desdobramento em relação à estruturação da

ordem administrativa patrimonialista. Nem tampouco, obviamente, ressalta a

expressão de classe que o Estado colonial representa; muito pelo contrário, acentua

a autonomia do Estado frente às classes sociais, como se o caráter patrimonial do

poder transformasse a ordem administrativa e a autoridade do rei em estruturas

acima das classes.

O autor, ao analisar a situação brasileira, afirma:

As classes, nas suas conexões com o domínio, o comando e a


política, ganham ascendência com a sociedade burguesa, com a
revolução industrial. Num período pré-capitalista (...), elas se
acomodam e subordinam ao quadro diretor, de caráter estamental
(...). As formas sociais e jurídicas assumem caráter constitutivo na
estrutura global, estabilizando as manifestações econômicas, freando
o domínio das classes. Essa posição subalterna das classes
caracteriza o período colonial, com o prolongamento até os dias
recentes, sem que o industrialismo atual rompesse o quadro (...).
Numa sociedade desta sorte pré-capitalisticamente sobrevivente,
apesar de suas contínuas modernizações, a emancipação de classe
nunca ocorreu. Ao contrário, a ascensão social se desvia, no topo da
pirâmide, num processo desorientador, com o ingresso no estamento.
A ambição do rico comerciante, do opulento proprietário não será
possuir mais bens, senão o afidalgamento, com o engaste na camada
do estado-maior de domínio político (Faoro, 2004: 203).

Diferentemente de Faoro, em nossa perspectiva a emancipação da classe

burguesa nos países periféricos será feita de forma articulada à

oligarquia/aristocracia existente, tendo o Estado como elemento garantidor desse

pacto de dominação e a estrutura administrativa como forma de materializar e

objetivar tal dominação. O fato de o processo ser diferente dos casos clássicos de

estruturação do capitalismo não significa dizer que não há ascensão social da

burguesia, nem que o Estado paire acima das classes sociais.

cxxxiv
Nesses casos não clássicos, a ascensão burguesa ocorre não eliminando a

classe pré-capitalista, mas se articulando a ela, e utilizando o Estado e sua ordem

administrativa como forma de garantir o novo pacto de dominação, evitando a

participação dos setores populares e democráticos. Dessa forma, a burguesia

ascendente opta por um processo de transição fundado na aliança com as elites pré-

capitalistas. Assim, incorpora a cultura tradicional do antigo regime, e o Estado e seu

corpo administrativo vão se autonomizando mais fortemente, na medida em que são,

por um lado, a expressão desse pacto e, por outro lado, o sujeito político

responsável para manter o pacto de dominação construído na sociedade. Configura-

se, dessa forma, uma transição fundada na modernização conservadora (Barrington

Moore Jr.), ou, nas palavras de Gramsci, uma “revolução passiva”49, embora, em

nenhum momento, isso projete um Estado acima das classes sociais.

Por isso, consideramos fundamental sublinhar que a manutenção do

patrimonialismo no Brasil não decorre apenas, nem sobretudo, da estrutura

estamental do Estado centralizador, pois este tem de ir se burocratizando para

atender às demandas da expansão capitalista e da construção da unidade nacional.

Nem, tampouco, o patrimonialismo é produto do atraso de parte de nossa elite

econômica. Na verdade, o patrimonialismo brasileiro se mantém vivo devido,

principalmente, à articulação que se efetiva, no início, sob a batuta do Estado

Patrimonial colonial, entre a burguesia comercial e os proprietários rurais, selando

uma conciliação entre os interesses divergentes, visando realizar a dominação

49
Gramsci (2001:393), ao tratar do historicismo crociano, explicita de forma precisa a concepção de “revolução passiva” ou
“revolução-restauração”; de acordo com o autor, essas categorias “exprimem, talvez, o fato histórico da ausência de uma
iniciativa popular unitária no desenvolvimento da história italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento se verificou como
reação das classes dominantes ao subversivismo esporádico, elementar, não orgânico, das massas populares, através de
‘restaurações’ que acolheram uma certa parte das exigências que vinham de baixo; trata-se, portanto, de ‘restaurações
progressistas’ ou ‘revoluções-restaurações’, ou, ainda, ‘revoluções passivas’. Seria possível dizer que se tratou sempre de
revoluções (...) nas quais os dirigentes salvaram sempre o seu ‘particular’”.

cxxxv
política no País. Em relação a essa conciliação, Mazzeo (1997: 91) afirma de forma

conclusiva:

Historicamente débil e, em última instância, subsumida aos desígnios


do monopólio metropolitano, a burguesia brasileira [proprietários
rurais] esteve direcionada às composições e acordos com os
burgueses reinóis, colocando assim, as fronteiras da convivência
pacífica nos limites da garantia da produção escravistas do tráfico de
negros – o suprimento fundamental de mão-de-obra para as lavouras
monocultoras.

Assim, forja-se a gênese da influência da estrutura “patriarcal” presente na

área rural brasileira, a qual, do ponto de vista da dominação, exercerá seu poder

durante toda nossa história imperial e republicana, visto que as mudanças que

ocorrerão no país serão efetivadas, sempre, com a participação dessa elite

tradicional, a partir do entrelaçamento dos seus interesses com os da burguesia

nacional e estrangeira. Mas isso veremos, com mais detalhe, no item seguinte.

Entretanto, antes de passarmos para a próxima seção, cabe, ainda, ressaltar

três aspectos importantes do período em questão.

O primeiro deles diz respeito ao fato, como vimos anteriormente, de a

administração colonial prescindir de uma estrutura formal-racional de corte

burocrático, devido ao significado da colonização destinar-se basicamente à

exploração das riquezas naturais em benefício do comércio europeu (Faoro, 2004:

115), contribuindo, assim, com o processo de acumulação primitiva capitalista.

Essa situação se altera com a chegada da corte e de seu aparato burocrático

no Brasil, no início do século XIX. Ou seja, a chamada “inversão brasileira”, por

ocasião da substituição da capital do Império Português de Lisboa para o Rio de

Janeiro, fortalece o caráter patrimonial do poder central nas terras brasileiras.

Entretanto, tal “inversão” também traz para cá o que será o embrião da estrutura

burocrática brasileira, na medida em que as decisões que requeriam especialização

e racionalidade, principalmente relacionadas às questões de comércio internacional

cxxxvi
e relações exteriores, passaram a ser tomadas no Brasil a partir do aparelho de

Estado Português que migrou com a coroa. Em outras palavras, a dimensão

burocrática da administração patrimonial portuguesa, que não se encontrava

presente na administração colonial, passa a existir no Brasil a partir de 1808. Com a

a chegada da corte ao Rio de Janeiro, conforme salienta Faoro (2004: 249), “a

nobreza burocrática defronta-se aos proprietários territoriais, até então confinados às

câmaras, em busca estes de títulos e das graças aristocráticas. A corte está diante

de sua maior tarefa (...): criar um Estado e suscitar as bases econômicas da nação.”

O segundo aspecto a sublinhar refere-se ao papel dos proprietários rurais na

ordem administrativa colonial. Apesar de tal tema já ter sido objeto de reflexão,

consideramos necessário afirmar, para evitar qualquer tipo de dúvida sobre nossa

análise que, ao apontarmos a função dos proprietários rurais na organização

econômica, social, política e administrativa, não estamos supondo que o centro do

poder colonial se encontre nas mãos desse segmento. Certamente, conforme

afirmam Prado Júnior e Faoro, a exploração colonial enquanto empreendimento da

burguesia comercial portuguesa, conduzida pelo Estado Patrimonial, ao alicerçar,

através da ordem administrativa, os interesses da nobreza e da burguesia, não

possibilita qualquer margem de dúvida sobre quem detém o poder. No entanto, para

esse poder expressar-se em terras brasileiras, evitando a dispersão, fragmentação e

anarquia político-administrativa, os proprietários rurais cumprirão um papel

fundamental em defesa do poder central, como salienta Mazzeo. Essa situação

marcará o início do processo de fortalecimento político desse segmento. Por outro

lado, não podemos esquecer que as riquezas exploradas e enviadas a Portugal são

extraídas e/ou produzidas sob comando desses proprietários. Sendo assim, apesar

de o centro de poder não estar não mãos desses senhores, não significa dizer que

cxxxvii
eles não cumprem um papel fundamental na estrutura político-administrativa da

colônia. Inclusive, consideramos que aí se define geneticamente o poder dos

proprietários de terras no Brasil e sua influência na ordem administrativa brasileira,

que se expressará, de forma contundente, na República Velha, depois de passar por

um processo de amadurecimento no Império.

O último aspecto a sinalizar refere-se ao processo de exclusão das massas

populares que o pacto de dominação vigente no período colonial desencadeará. De

acordo com Mazzeo (1997:88):

É nesse contexto histórico-social que se desenvolve a “ideologia da


conciliação” brasileira, expressão de uma burguesia débil
economicamente [proprietários rurais] – anômala – que, para se
manter no poder, concilia sempre com os interesses externos e,
internamente, pauta-se pela violenta repressão das massas populares
que, em um nível externo, a escravidão encarna e expressa.

Para completar a análise de Mazzeo, na perspectiva do que irá ocorrer no

período imperial e no da República Velha, diríamos que a nascente burguesia

comercial brasileira, além de, também, conciliar com os interesses externos da

burguesia estrangeira, conciliará internamente com os interesses das elites

tradicionais (proprietários rurais), visando à exclusão das massas da participação

política e à possibilidade de usufruir da estrutura do Estado brasileiro de forma

compartilhada com os segmentos de origem latifundiária e escravista. Mas este

assunto detalharemos a seguir.

2.2. Consolidação do patrimonialismo e a origem burocrática da ordem

administrativa brasileira: o período imperial e a primeira república

O período imperial possui como uma de suas características o fato de os

proprietários rurais saírem do isolamento colonial e conseguirem se constituir como

cxxxviii
a base do poder político. Tal fato configura-se como central para entendermos o

desenvolvimento da ordem administrativa brasileira.

Esse processo é produto das contradições que vão se acirrando ao longo do

desenvolvimento do “sistema colonial”. Prado Júnior indica três contradições

centrais. A primeira é a contradição entre os interesses da burguesia comercial,

credora da grande lavoura, e os dos proprietários de terra (a “nobreza” da terra),

latifundiários, senhores de engenho, que são os devedores dessa burguesia. A

segunda é a contradição étnica baseada na estrutura escravista colonial, que

produziu o preconceito racial em relação ao negro e em relação ao índio. A última

contradição assinalada pelo autor, apesar de ser utilizada muito mais como

justificativa das ações extremadas da época e não pela centralidade de sua

importância, vincula-se aos abusos realizados pela ordem administrativa em relação

à cobrança de impostos, ao recrutamento militar etc. Segundo o autor, mesmo antes

da chegada da corte portuguesa ao Brasil, essas contradições “já estão latentes, e

começam a se manifestar em sintomas alarmantes que põem em xeque toda a

estrutura colonial” (Prado Júnior, 1981: 70).

A contradição, apresentada por Prado Júnior, entre a burguesia comercial e

os grandes proprietários de terras configura-se como o centro das questões que

influenciarão a modelagem da ordem administrativa do Brasil, enquanto país

independente, constituída a partir do Estado Patrimonialista português, mas que

ganha traços particulares oriundos do sistema colonial brasileiro.

Com a abertura dos portos, após a chegada da família real ao Brasil, cresce a

presença dos comerciantes ingleses em terras brasileiras. Segundo Faoro (2004:

248-258), essa situação gera o retraimento da classe mercantil nativa e portuguesa

e provoca a ascensão dos proprietários rurais. O comércio vinculado ao aparelho

cxxxix
governamental perde hegemonia frente às fazendas, na medida da expansão da

presença dos ingleses no comércio com o Brasil. Esse quadro se complexifica mais

se levantarmos a tensão existente entre a ordem administrativa colonial, com sua

vinculação com a estrutura de poder dos proprietários rurais, e a emigrada

administração da corte, com sua organização burocrático-patrimonial articulada aos

interesses da burguesia comercial.

Em outras palavras, tal panorama reflete o início da aproximação dos

proprietários rurais da corte, saindo, assim, de seu isolamento, e a perda de força da

burguesia comercial portuguesa e de sua contraparte, a ordem administrativa

central. Além disso, esse cenário reforça os sentimentos de identidade brasileira.

A revolução portuguesa de 1820 precipita as tensões políticas, provocando o

retorno de D. João VI a Portugal, em 1821, e gerando no Brasil um receio de

regresso ao estatuto colonial de subordinação a Lisboa, a partir da possibilidade do

retorno, também, do príncipe regente. Para a burguesia comercial, isso significaria a

perda de autonomia para comercializar com diferentes países e, para os

fazendeiros, a preocupação se referia às possibilidades de instabilidade e tumulto

político (Monteiro, 1996).

Nessa conjuntura, segundo Coutinho (1993: 78), efetiva-se a independência

brasileira como um “rearranjo do grupo dominante”:

... o fato de o primeiro imperador brasileiro ter sido filho do rei de


Portugal; ele foi Pedro I no Brasil e Pedro IV, algum tempo depois, em
Portugal. Isso revela quanto foi débil aquela ruptura, a ruptura que
nos trouxe de uma situação colonial para a condição de país
independente. Além disso, junto com este imperador, herdamos
também a burocracia portuguesa, que aqui estava e que foi reforçada
com a vinda de D. João VI, em 1806. Portanto, se observarmos bem,
o processo de independência não representou absolutamente uma
revolução no sentido forte da palavra, isto é, uma ruptura com a
ordem estatal e sócio-econômica anterior, mas de certo modo não foi
mais do que um rearranjo no grupo dominante.

cxl
Do ponto de vista econômico, “a queda do ‘exclusivismo metropolitano’ e a

subseqüente formação do Estado Nacional marcam, indiscutivelmente, o início da

crise da economia colonial no Brasil” e a gênese e desenvolvimento da economia

mercantil escravista cafeeira, que teve como origem para seu desenvolvimento o

aporte do capital mercantil nacional, expandido a partir da vinda da família real para

o Brasil (Cardoso de Mello, 1998: 53-54).

Portanto, ao longo do século XIX, no quadro do desenvolvimento do

capitalismo industrial dos países centrais, ocorrerá a crise da economia colonial, na

medida em que não são mais necessários produtos agrícolas coloniais e metais

preciosos, mas sim alimentos e matérias-primas produzidas em massa. Nesse

contexto, exige-se da periferia a continuidade de uma produção mercantil

complementar, não mais no sentido de participar da acumulação primitiva, mas

antes para rebaixar os custos de reprodução da força de trabalho e dos elementos

componentes do capital constante, a partir do fornecimento, a baixo custo, de

produtos alimentares e matérias-primas (Cardoso de Mello, 1998: 44-45). A

economia mercantil-escravista nacional cafeeira terá essa função durante o Império.

Em 1830, o Brasil se torna o primeiro produtor mundial de café e este o

primeiro produto de exportação do Brasil e da América do Sul. “Neste mesmo

momento, a economia mercantil-escravista cafeeira assumirá seus traços definitivos:

grande empresa produzindo em larga escala, apoiada no trabalho escravo,

articulada a um sistema comercial-financeiro, controlados, uma e outro,

nacionalmente” (Cardoso de Mello, 1998: 57-58).

Politicamente, a primeira grande tarefa da independência será a constituição

do Estado nacional. Isso exigirá a centralização do poder e uma organização

cxli
administrativa com certo nível de racionalidade e especialização para produzir leis e

regulamentos que conformassem a unidade nacional brasileira.

No entanto, a base de sustentação do Império se constituiu, fortemente, a

partir dos recursos advindos da rápida expansão da economia cafeeira (Monteiro,

1996:131); portanto, os grandes fazendeiros não poderiam ser esquecidos na

formação da estrutura de dominação brasileira. Essa situação leva à ampliação da

aristocratização dos proprietários rurais. Segundo Faoro (2004: 287), nesse

momento é criada a “aristocracia nacional” que, em termos quantitativos, com

apenas 8 anos conseguiu suplantar a portuguesa de 736 anos de existência50.

A centralização do governo será realizada buscando apoio no poder dos

proprietários rurais e, por outro lado, esses proprietários, buscarão continuar se

beneficiando das estruturas de poder do Estado patrimonial.

Sendo assim, se havia, por um lado, a necessidade de expandir a dimensão

racional-legal da ordem administrativa, por outro lado era necessário reforçar os

alicerces patrimoniais que ligavam o poder central à ordem senhorial tradicional. A

ordem administrativa do Brasil independente será montada sobre a estrutura

patrimonialista da corte portuguesa que se manteve no País, porém ampliando sua

dimensão racional e de especialização e aprofundando as relações de

patrimonialismo que a ligavam com o poder dos proprietários rurais.

Portanto, a estrutura do Estado patrimonial-burocrático português e sua

centralização serão funcionais para a tarefa de construção da unidade nacional

desenvolvida no período imperial, necessária para conter os movimentos radicais

que poderiam colocar em perigo a ordem e os poderes dominantes. Por outro lado,

essa centralização reduz o poder dos proprietários rurais, que desejam a unidade

50
“...a monarquia portuguesa, depois de 736 anos de existência, possuía 16 marqueses, 26 condes, 8 viscondes e 4 barões,
enquanto a brasileira, nos primeiros oito anos de vida, não se contentava com menos de 28 marqueses, 8 condes, 16

cxlii
nacional e o controle dos movimentos radicais, mas desejam, também, maior

participação na condução do processo político. Nesse movimento, encontramos a

determinação central das tensões relativas ao processo de

centralização/descentralização presente durante o Império.

Era fundamental conter o “jacobinismo” republicano, existente entre


os setores que constituíam as camadas médias urbanas, objetivando
criar as condições para a unificação da condução do processo
político. Essa unidade foi, então, personificada na pessoa do príncipe
Regente, o que implicou a continuidade da estrutura burocrático
político-administrativa trazida de Portugal (Mazzeo, 1997: 129).

Tal processo é muito bem registrado por Faoro, ao analisar a arquitetura

político-administrativa baseada no Poder Moderador – “poder minoritário

concentrado na aristocracia em construção e na alta burocracia” (Faoro, 2004: 290)

– que conviveu com períodos de maior autonomia do Poder Local, através das

medidas oriundas da criação da Guarda Nacional (1831), do Código de Processo

Criminal (1832) e do Ato Adicional (1834), e maior centralização do poder, efetivada

pela Lei Interpretativa do Ato Adicional (1840), pelo restabelecimento do Conselho

de Estado (1841), pela reforma do Código de Processo Criminal (1841) e pela

subordinação da Guarda Nacional ao Ministro da Justiça (1850).

Esse processo - que envolve, primeiramente, a descentralização do poder e,

em seguida, a centralização - estrutura e fortalece, em diferentes níveis, as diversas

forças dominantes, representadas pela burguesia comercial, a nascente burguesia

agrária (restrita, basicamente, a setores paulistas produtores de café) e os

proprietários rurais tradicionais.

A criação da Guarda Nacional será uma estratégia para garantir a ordem

legal, após a abdicação de 7 de abril, procurando afastar o exército de qualquer

possibilidade de monopolização e tutela da condução política. Para isso, de certa

viscondes e 21 barões” (Faoro, 2004: 287),

cxliii
forma, será resgatada a experiência colonial das ordenanças. Ou seja, será criado

um aparato auxiliar ao exército, que terá como função, de acordo com seu primeiro

artigo, “defender a Constituição, a Liberdade, a Independência, e a integridade do

Império: para manter a obediência às leis, conservar ou restabelecer a ordem e a

tranqüilidade pública...” (Faoro, 2004: 302). Esse aparato ficará sob controle do

poder civil, que nomeará chefes políticos locais para exercerem o comando local das

guardas, cujo posto de maior graduação será o de coronel. Portanto, essa instituição

viabilizará o compromisso entre o poder central monárquico e o poder político local

dos proprietários de terra, como forma de garantir o processo de construção da

unidade nacional, evitando e controlando os movimentos de radicalização presentes

no período. Conforme sublinha Carvalho (2001: 37), a “Guarda Nacional (...) era

sobretudo um mecanismo de cooptar os proprietários rurais, mas servia também

para transmitir aos guardas algum sentido de disciplina e de exercício de autoridade

legal”.

O Código de Processo Criminal, ao instituir o juiz de paz como autoridade

eletiva, pré judicial, com o objetivo de conciliar litígios e evitar conflitos, reforçará o

poder local dos proprietários rurais, na medida em que será um cargo eleitoral

municipal. Nas palavras de Faoro:

O estatuto processual, conjugado com a guarda nacional,


municipalista e localmente eletiva no seu primeiro lance, garante a
autônoma autoridade dos chefes locais, senhores da justiça e do
policiamento. (...) Não era, em conseqüência, o municipalismo o fruto
das reformas, senão o poder privado, fora dos quadros legais, que se
eleva sobre as câmaras, reconhecido judiciariamente. (Faoro, 2004:
307).

O Ato Adicional estabelecerá uma ordem política que procurará evitar,

simultaneamente, o centralismo monárquico e a fragmentação local, através da

constituição do poder das Assembléias Legislativas Provinciais, dirigidas por um

presidente nomeado pelo Imperador, que tinha como objetivo, a partir da legislação

cxliv
estabelecida pelas Assembléias, executar e fazer cumprir as leis, prover os

empregos, dar posse e suspender funcionários provinciais e municipais (Avellar,

1976: 213-214). Essa engenharia buscava garantir o controle das localidades pelo

poder central, através de uma estrutura regional (a presidência da província).

Conforme analisa Abrúcio (2002: 33), “face à fraqueza do Estado nacional em

controlar todo o território brasileiro, a engenharia institucional do Império fez do

presidente de província o elo entre o governo central e as bases políticas locais”.

No entanto, o governo central, muitas das vezes, ficava com as mãos atadas

frente aos poderes locais, na medida em que estes controlavam todo o aparato

político, judicial e administrativo montado. O Presidente da Província, a partir da

base de apoio local e do controle dos recursos administrativos que possuía51,

poderia expressar uma força que se contrapunha ao poder central, ainda que

estivesse vinculado a ele pelo processo de nomeação.

Um determinado grupo político, ao assumir a Assembléia Provincial,

pressionava a nomeação de um determinado presidente e organizava a criação e

distribuição de empregos públicos para seus correligionários, fortalecendo as

lideranças municipais de seu partido, que assumiam as funções de juiz de paz,

eleitoralmente conseguidas. Essa teia de articulação forçará a nomeação, para a

Guarda Nacional, dos proprietários de terra com prestígio municipal e provincial,

portanto do mesmo grupo de poder dos vencedores das eleições. Dessa forma,

constitui-se “o fechamento do círculo da quase autarquia das fazendas projetada no

mundo político” (Faoro, 2004: 307-309).

51
Conforme sinaliza Abrúcio (2002: 34), “o presidente da província tinha vários instrumentos para cooptar a classe política
local: primeiro, designava as autoridades municipais, sendo os policiais (...) os mais importantes; segundo, tinha um enorme
poder de nomeação para empregos públicos; terceiro, indicava os nomes para o Poder Central de quem poderia ocupar cargos
na Guarda Nacional e obter os títulos nobiliárquicos, tão cobiçados pelos grandes fazendeiros".

cxlv
Entretanto, é forçoso lembrar que, contraditoriamente, o Presidente da

província não disporá de total liberdade política, na medida em que será nomeado

pelo Imperador e não eleito pelo voto local. Esse fato garante ao governo central um

certo poder para influenciar as questões locais e subordinar o Presidente a seus

interesses, criando um sistema de tensão entre o poder central e o poder local,

tendo como estrutura de equilíbrio a presidência da província.

Nesse contexto, as eleições no Brasil se configuravam como processos de

disputa entre facções locais, a partir da interferência do governo central, via

Presidente da Província, para conquistar os recursos de poder disponíveis nas

localidade. Nas palavras de Carvalho (2001: 33):

O que estava em jogo não era o exercício de um direito de cidadão,


mas o domínio político local. O chefe político local não podia perder
as eleições. A derrota significava desprestígio e perda de controle dos
cargos públicos , como os de delegados de polícia, de juiz municipal,
de coletor de rendas, de postos na Guarda nacional. Tratava, então,
de mobilizar o maior número possível de dependentes para vencer as
eleições.

Nesse quadro, continua o autor, o voto não significava a ação política

consciente, em torno de propostas e projetos políticos, como forma de participar do

processo político da nação, mas, sim, estava vinculado estreitamente às disputas

locais. O votante, dessa forma, agia como dependente de um chefe local. No

entanto, quanto mais independente se tornava ou era o votante e na medida em que

percebia a importância do voto para o chefe político, mais ele barganhava e utilizava

o voto como mercadoria a ser negociada (Carvalho, 2001:35-36).

Para a tese, em relação a essa engenharia de descentralização montada

sobre o tripé da Guarda Nacional, do Código Criminal e do Ato Adicional, apesar de

ter funcionado integralmente apenas durante 7 anos, duas questões merecem

destaque.

cxlvi
A primeira refere-se ao fortalecimento da estrutura patrimonialista que vai se

consolidando como lógica da ordem administrativa, nos domínios territoriais mais

longínquos das terras brasileiras, pois a administração pública vai se constituindo

como extensão da propriedade dos “senhores rurais”, coronéis da Guarda Nacional,

que controlam o poder policial, a partir de sua riqueza e prestígio político, e, por isso

influenciam as demais estruturas de poder local e são reverenciados pelo poder

central, via Presidente da Província. Dessa forma, conforme assinala Faoro (2004:

310), “a moldura legal tem diante de si forças atomizadas, isoladas e não solidárias,

perdidas nas fazendas, para as quais o aparelhamento administrativo serviria

apenas para consolidar o estatuto de domínio da unidade fechada do latifúndio,

dirigido por um senhor”.

A outra questão está relacionada ao processo de fortalecimento da

dominação dos proprietários rurais, baseada na lógica patrimonialista, que criará as

condições subjetivas, sobretudo políticas, sobre as quais se erguerão as fundações

do edifício “coronelista” e da “política dos governadores” desenvolvidas durante a

República Velha, o que detalharemos adiante.

As medidas adotadas a partir de 1841 terão como objetivo a retomada da

centralização do poder, devido ao quadro de dispersão e autonomismo e dos focos

de pressão oriundos das influências territoriais dos fazendeiros e da ação dos

“exaltados” da cidades e das capitais das províncias (Faoro, 2004: 317).

Por outro lado, a situação econômica do período reforça o entrelaçamento

entre o comissário e o fazendeiro. O crescimento da exportação de café conduz ao

fortalecimento econômico da burguesia mercantil e, em conseqüência, estabelece a

reaproximação do comerciante à estrutura estatal.

Nesse quadro de mudanças econômicas, sociais e políticas, o Estado

cxlvii
brasileiro irá sofrer a pressão do setor urbano comercial exportador que se

constituirá como o polo de concentração de capital. As ações do Estado

beneficiando o setor comercial e financeiro, que continua a dominar a economia,

muito bem apontadas por Faoro, não significarão, de fato, o abandono do

proprietário rural pelo Estado, visto que, como demonstra Cardoso de Mello, se por

um lado o produtor rural cafeeiro depende do capital comercial, devido aos elevados

custos de produção, o comerciante e o financista dependem do produtor cafeeiro, já

que se trata do único investimento existente rentável (Cardoso de Mello, 1998: 67-

69).

Como a dispersão e a fragmentação do poder não interessam às elites

dominantes, o movimento de centralização é marcado para garantir a unidade

nacional e, simultaneamente, favorece a burguesia comercial e os grandes

proprietários, em detrimento da participação no poder dos demais proprietários

rurais.

A primeira medida de impacto da centralização é a Lei Interpretativa do Ato

Adicional. Essa lei buscou reduzir o caráter descentralizador do Ato Adicional,

retirando das assembléias provinciais a autoridade sobre os funcionários gerais com

exercício nas províncias. Dessa feita, os empregos e a polícia voltam a ser

comandados centralizadamente (Avellar, 1976 e Faoro, 2004).

A outra medida de destaque é o restabelecimento do Conselho de Estado. Tal

medida recoloca uma estrutura vitalícia, composta pela oligarquia, como garantia do

exercício do poder político-administrativo sob autoridade do monarca (Faoro, 2004:

332-333).

A reforma do Código Criminal e a subordinação da Guarda Nacional ao

Ministro da Justiça completam o quadro da reação centralizadora. Através da

cxlviii
reforma do Código, institui-se o chefe de polícia em cada província, nomeado pela

Corte, entre juízes de direito e desembargadores, assessorados por delegados e

subdelegados, também escolhidos pelo poder central, que terão competências e

atribuições similares aos dos juízes de paz. Dessa forma, esvazia-se o poder dos

juízes de paz e, em conseqüência, a dos chefes locais. Por fim, a subordinação da

Guarda Nacional ao Ministro da Justiça conclui o processo de esvaziamento da

influência do poder local na estrutura político-administrativa do Império.

O retorno à centralização produz um processo de burocratização da

administração pública, principalmente a partir da reformulação do Código de

Processo Criminal, na medida em que aumenta o grau de especialização na

condução das questões judiciais, pois os chefes de polícia seriam indicados dentre

os quadros de juízes de direito (juízes escolhidos dentre os bacharéis em direito) e

desembargadores. Porém, a impessoalidade não é a tônica do processo de escolha,

mantendo-se, assim, a característica patrimonial de recrutamento de quadros

administrativos, a partir de relações pessoais de lealdade estabelecidas entre o

príncipe e o funcionário.

Com essa organização elimina-se o equilíbrio de forças entre o poder central

e o poder local existente sob a vigência das medidas descentralizadoras. Estrutura-

se a engenharia político-administrativa de cima para baixo. Assumir o poder na alta

hierarquia do Império significa ampliar a influência para o conjunto do território

nacional. O movimento de baixo para cima se esvaziou. Conforme analisa Faoro

(2004: 334), a luta política, portanto, desloca-se da localidade para o centro do

poder.

Com o esvaziamento do poder local a oligarquia formada pelos grandes

fazendeiros e comerciantes concentra o poder em suas mãos, vinculando-se ao

cxlix
Imperador. Dessa forma, reproduzem-se as relações políticas presentes antes da

independência. Faoro decifra o processo interpretando um alijamento do proprietário

rural da estrutura de poder. Vejamos a análise do autor que, apesar de extensa, vale

ser registrada:

A velha armadura política se amolda, sem absorvê-la, à sociedade,


que se inquieta, se agita, inconformada, ao braço sufocante e
civilizador da monarquia tradicional. Sobre a sociedade dominada,
uma realidade colonizadora, minoritária conduz o fazendeiro e lhe
impede o orgulho caudilhista, domina o político, domesticando-o à
ordem oligárquica (...). A estrutura colonial, filha da tradição, converte,
cunha e disciplina os sertões e o campo, burocratizando o agricultor e
o senhor de engenho com o uniforme da guarda nacional, sucessor
das ordenanças e milícias, a comenda e o título de barão. Réplica
política da dependência do homem da terra ao mercador de escravos,
ao fornecedor urbano, ao dispensador do crédito e comprador das
safras (...).
Ocupado o campo de domínio burocrático, a influência política, depois
do breve período da Independência e da indefinição regencial, será
cada vez mais irradiada do centro para a periferia, numa obra de
compressão centralizadora a que não estará alheio o interesse da
classe comercial, dona do crédito, do financiamento, do tráfico de
escravos e do dinheiro. (...) Tudo indica que a nova categoria política,
encharcada de burocratas, se apropriará dos meios e instrumentos
eleitorais, domesticando o territorialismo expansivo, afogando a
competição num arranjo de controle social e governamental. A
fazenda, que emerge poderosa nas lutas da Independência, cede
lugar aos legistas, sobretudo aos juízes. Com a prosperidade da
agricultura, dado o vínculo escravista, não se tornam mais poderosos
os agricultores, mas os donos do crédito e das exportações,
propugnadores da ordem centralizadora, que na política, será propícia
aos letrados (Faoro, 2004: 335 e 366).

Na visão de Faoro há uma estreita relação entre a burguesia comercial e o

Estado, alijando os proprietários rurais da estrutura de dominação. Já mencionamos

anteriormente, ao tratar do período colonial, como o autor não destaca, com a

ênfase necessária, o papel da força econômica e política dos proprietários rurais na

constituição da dominação no Brasil bem como o seu desdobramento em relação à

estruturação da ordem administrativa patrimonialista. Na questão relativa ao Império,

Faoro reproduz, de certa forma, a mesma análise do Brasil colônia, destacando, de

forma correta, o papel da burguesia mercantil, pois, como muito bem interpreta

Cardoso de Mello, o setor urbano comercial exportador é o polo de concentração de

cl
capital. No entanto, diferentemente do autor d’O Capitalismo Tardio, Faoro não

analisa a mútua dependência entre o capital mercantil e financeiro e a produção

cafeeira, fato que o leva a subestimar, mais uma vez, o papel dos proprietários rurais

na estrutura de dominação brasileira.

Em decorrência dessa forma de analisar a situação, o autor de Os Donos do

Poder não consegue perceber que, ao esvaziar o poder local e reorientar a

organização política “de cima para baixo”, as medidas centralizadoras do Império, ao

invés de alijarem os proprietários rurais do poder, estabelecem um mecanismo de

controle das disputas locais, a partir do governo central e da oligarquia composta

pelos grandes comerciantes e fazendeiros. Fragoso e Teixeira da Silva (1996: 200)

são precisos na análise da Lei de 1841, para mostrar o funcionamento do

mecanismo de controle criado:

Apesar de seus traços básicos, a lei de 1841 não pode ser encarada
simplesmente como um esgotamento do poder local, ou seja, dos
proprietários de terra. Na verdade, o que de certa forma se verifica é
o estabelecimento do governo como administrador do conflito local e
das disputas entre grupos dominantes, pois a nomeação por ele dos
delegados e subdelegados não viola a hierarquia local de poder.
Assim, faz-se necessário sublinhar que os elementos não integrantes
dos grupos dirigentes locais eram excluídos das funções de mando
públicas com as medidas de 1841, e o governo, ao reforçar o poder
do Estado, o fazia de forma a trazer para a esfera pública a
administração do conflito privado, isso sem ferir o conteúdo privado
do poder local.

A partir dessa perspectiva, concordamos com Mazzeo (1997) sobre o

processo de conciliação que se dá no Brasil nesse período. Para o autor, ocorre uma

conciliação qualificada por ele como de “bonapartismo colonial”52, principalmente em

relação ao segundo reinado.

Bonapartismo, pois, visto que se organiza um governo que busca conter as

52
Segundo Mazzeo, o “bonapartismos colonial” estrutura a gênese da autocracia burguesa no Brasil. Nas palavras do autor: “O
bonapartismo colonial aparece, desse modo, como o elemento de consolidação políticade uma sociedade extremamente
autocrática, comandada por uma burguesia débil e subordinada aos pólos centrais do capitalismo, para o qual a sociedade civil
se restringe aos que detêm o poder econômico, e as massas trabalhadoras constituem a ameaça constante aos seus
interesses de classe. O bonapartismo colonial será o articulador de uma política de Estado manipuladora e alijadora das
massas populares; será enfim, a encarnação e a gênese da autocracia burguesa no Brasil” (Mazzeo, 1997: 133).

cli
lutas “desencadeadas com o processo de emancipação: a eclosão da luta intestina

entre as frações da burguesia agrária, os movimentos populares e rurais e, ainda, os

embates com os setores radicalizados da pequena burguesia urbana” (idem: 132).

Embora o governo se apresente como “imparcial”, acima das contradições de

classes, buscando mostrar-se com bastante independência frente à sociedade,

efetivamente, encontra-se vinculado aos interesses das camadas hegemônicas e

dominantes.

O bonapartismo é qualificado de colonial, pois, diferentemente dos casos

clássicos que visava à expansão das relações capitalistas, o caso brasileiro se

mostra como responsável pela manutenção da ordem tradicional. Conforme análise

de Mazzeo (1997: 133):

...no Brasil, o bonapartismo mantém a estrutura escravista de


produção, continuidade da economia colonial, caracterizando a não
ruptura com o atraso econômico e social, assim como a debilidade de
sua burguesia. A conciliação, dessa forma, direciona-se à subsunção.
Concilia-se com o arcaísmo (...) e concilia-se com a Inglaterra, a nova
“metrópole”.

Por outro lado, conforme sintetiza Florestan Fernandes (1981: 27), o processo

de desenvolvimento da economia cafeeira “abrange duas fases: 1º) a ruptura da

homogeneidade da ‘aristocracia agrária’; 2º) o aparecimento de novos tipos de

agentes econômicos, sob a pressão da divisão do trabalho em escala local, regional

ou nacional.”

Para o sociólogo paulista, a expansão da grande lavoura, no contexto de

constituição do Estado nacional, intensifica a saída do isolamento de parcela dos

“senhores rurais”. Essa parcela de proprietários rurais vai se urbanizando e

secularizando suas idéias e perspectivas sociais e políticas, ou seja, vai se

“aburguesando”. Simultaneamente, ocorre, também, devido à expansão da

clii
urbanização e dos serviços, o surgimento de tipos humanos53 que não estavam

diretamente vinculados e subordinados - de forma a impedir manifestações de

opiniões autônomas - aos códigos senhoriais da área rural, apesar de

estabelecerem com a “aristocracia agrária” uma relação de lealdade pessoal

baseada em valores tradicionais. Segundo Fernandes, serão esses novos tipos

humanos que constituirão “os representantes mais característicos e modernos do

‘espírito burguês’” (Fernandes, 1981: 27-28).

Nesse processo, conforme assinala o mesmo sociólogo (Fernandes 1981:

103-125), ocorre a intensificação do aburguesamento, principalmente no setor

cafeeiro, do proprietário rural e sua transformação em “fazendeiro homem de

negócio”, ao mesmo tempo em que ocorre no setor comercial uma busca de status

aristocrático, próprio dos proprietários rurais.

Nessa perspectiva, embora, ao se transformar em homem de negócio, o

fazendeiro perca sua configuração e prestígio aristocrático, ele procura manter seu

poder no âmbito da fazenda, da família e da comunidade local. É a dimensão

“coronel” (Fernandes, 1981) que o fazendeiro vem desenvolvendo desde a criação

da Guarda Nacional.

Nesse contexto, rompe-se com uma certa homogeneidade, até então

existente, na “aristocracia agrária”. O “fazendeiro homem de negócio” se distinguirá,

enquanto proprietário rural, substantivamente do padrão senhorial existente desde a

época colonial. Seja devido à sua identificação com a ordem burguesa e à

consciência que adquire em desenvolver sua empresa em termos nitidamente

racionais e capitalista, não dependendo de medidas irracionais conduzidas pela

53
De acordo com Fernandes (1981: 28), esses novos tipos humanos são: “os negociantes a varejo e por atacado, os
funcionários públicos e os profissionais ‘de fraque e de cartola’, os banqueiros, os vacilantes e oscilantes empresários das
indústrias nascentes de bens de consumo, os artesãos que trabalhavam por conta própria e toda uma massa amorfa de
pessoas em busca de ocupações assalariadas ou de alguma oportunidade ‘para enriquecer’.”

cliii
estrutura patrimonial de poder, seja porque passa a não possuir mais status

senhorial e, deixando, por isso, de ter acesso amplo às benesses do Estado.

O quadro econômico nessas circunstâncias vai se desenvolvendo até um

ponto em que a lógica escravista e a pouca disponibilidade de terra vão se

apresentando como obstáculos para a acumulação tipicamente capitalista.

O Estado nesse quadro irá cada vez mais sofrer as pressões dos novos

atores (fazendeiros de café e burguesia comercial e financeira). Sua estrutura

patrimonial de base aristocrática e rural, apesar de cada vez mais burocrática -

devido às necessidades postas para a criação do Estado nacional e de organização

da economia mercantil escravista, não mais colonial -, não corresponde mais às

demandas de desenvolvimento e à nova correlação de forças presentes na

sociedade. Por outro lado, no próprio interior do Estado, conforme sinaliza

Fernandes (1981: 50 e 159), setores intermediários e superiores da burocracia

tendiam a defender “‘soluções políticas’ que mantinham ou ampliavam a

modernização do Estado e sua intervenção construtiva na criação do substrato

econômico, social e cultural requerido por uma nação integrada e independente”, na

medida em que “se identificavam com a expansão interna do capitalismo”, apesar de

serem, na origem do recrutamento, vinculados aos interesses e valores tradicionais,

marcando, o caráter conservador da origem de nossa burocracia54.

Assim, as demandas políticas liberais e republicanas se articulam com as

demandas de descentralização e de maior participação no poder operadas pelos

fazendeiros, ou melhor, pelo capital cafeeiro, núcleo do poder econômico de então.

54
De acordo com Fernandes (1981: 157), a base de recrutamento do quadro administrativo está localizada no que ele chama
de estamentos intermediários, “membro de ‘famílias tradicionais’ ou de ‘grandes famílias’, que pertencia à sociedade civil, mas
não possuía condição senhorial propriamente dita. Graças às suas ocupações, alianças e nível social, esse elemento se incluía
e era incluído, pela tradição e por motivos especificamente ‘modernos”, nos estamentos dominantes; chegava mesmo, por
causa de dotes pessoais ou de necessidades criadas pela fusão do patrimonialismo com a burocracia, a fazer parte das elites
(...). Fossem o que fossem (...), na vida prática deviam lealdade a tais interesses e valores e ao ‘código de honra’
tradicionalista”.

cliv
Dessa forma, a república se apresenta como saída política possível para uma

nova correlação de forças econômicas e sociais.

Dois processos merecem ser objeto de destaque nesse contexto. O primeiro

refere-se à articulação existente entre o proprietário rural tradicional e o surgimento

do comerciante que procura possuir o status aristocrático, buscando, dessa forma,

aproximar-se do Estado para adquirir as benesses patrimoniais. O segundo diz

respeito ao surgimento do fazendeiro homem de negócio que, por um lado, procura

manter seu poder de mando - mesmo não tendo as prerrogativas aristocráticas -,

através do exercício de seu poder junto à família, fazenda e comunidade, e, por

outro lado, busca no Estado a garantia de seu empreendimento.

Tais processos expressam as teias que se entrelaçam entre as frações das

classes dominantes no Brasil, as quais articulam referências tradicionais e racionais,

no sentido weberiano, para objetivar a dominação no país. A burguesia comercial, a

despeito de exigir, para seu empreendimento, mecanismos racionais, aproxima-se e

busca usufruir dos traços tradicionais do poder, aliando-se à elite agrária senhorial.

O fazendeiro, principalmente o produtor de café, apesar de se aburguesar, procura

manter seu domínio tradicional na localidade onde atua.

Nesse sentido, referências patrimonialistas e burocráticas passam a

conformar a ordem administrativa brasileira, devido a essa situação subjetiva

presente nas classes dominantes, que possui como condição objetiva para o seu

desenvolvimento, a estrutura “patriarcal”, base da economia colonial, que se

combina com o desenvolvimento da economia mercantil escravista cafeeira nacional

no quadro de constituição do Estado nacional.

Se articularmos essas observações com a análise de Cardoso de Mello,

podemos chegar à seguinte conclusão: o Estado nacional brasileiro será forjado a

clv
partir da hegemonia dos proprietários rurais em articulação com setores nativos da

burguesia comercial que expressam a composição da classe dominante da

economia mercantil escravista nacional, que será estruturada a partir da crise da

economia colonial (produto da queda do “exclusivo metropolitano” e da formação do

Estado nacional) (Cardoso de Mello, 1998: 53).

Portanto, o Estado nacional se estruturará a partir de uma dominação

tradicional implicando uma ordem administrativa patrimonialista. Conforme sublinha

Fernandes (1981: 152), “como a ordem estabelecida não se alterou em seus

fundamentos propriamente societários, as convenções, o código de honra tradicional

e os mecanismos de dominação patrimonialista continuaram a diluir e a neutralizar

os elementos competitivos”.

Simultaneamente, a construção do Estado para consolidar a economia

mercantil escravista em nível nacional requer instrumentos administrativos de cunho

racional. Nesse sentido, é necessário que a dominação se expresse nacionalmente.

O recurso para isso é a utilização da lógica racional que planeja e implementa a

integração e unidade da nação como mecanismo de modernização da sociedade

brasileira.

Nesses termos, a estrutura administrativa brasileira, para objetivar a

dominação no nível local e privado, que tinha como elemento cultural os elos

tradicionais, organiza-se de forma patrimonialista. Entretanto, para essa dominação

realizar-se no âmbito nacional e implantar uma economia nacional, era essencial

uma ordem formal-legal, portanto burocrática.

Sendo assim, a gênese da ordem administrativa brasileira se funda no

patrimonialismo e na burocracia, não porque se forja uma dicotomia entre o

“velho” e o “novo” entre o “atraso” e o “moderno”, mas sim devido à

clvi
necessidade de objetivar a dominação das classes dominantes (proprietários

rurais e burguesia comercial) em nível local e nacional simultaneamente, a

partir do momento em que ocorre a passagem da sociedade colonial para uma

sociedade nacional, que implicou a existência de um sistema tradicional

escravista e um sistema capitalista emergente articulados intensivamente55.

Em suma, o caráter nacional do Estado, por um lado, e a emergência das

relações capitalistas, por outro, exigiram que as elites estruturassem sua dominação

através, também, de mecanismos racionais burocráticos e não mais apenas através

dos mecanismos patrimonialistas. A dominação, nesse sentido, objetiva-se através

de uma ordem administrativa patrimonialista e burocrática.

É importante perceber que, na medida do desenvolvimento dessas estruturas

administrativas com lógicas distintas e da ampliação dos setores da sociedade

desprendidos das relações tradicionais de dominação, crescem os conflitos intra-

organizacionais e começam a ocorrer conflitos no campo dominante, produto do

esgotamento da economia mercantil escravista e da necessidade de se organizar

uma economia exportadora capitalista (Cardoso de Mello, 1998: 88), ou nos termos

de Fernandes, um sistema competitivo que indicasse a expansão capitalista no

Brasil. Sendo assim, como muito bem percebido por Weber, se o objetivo passa a

ser a expansão capitalista, a estrutura de dominação deve ampliar as condições

políticas, jurídicas e institucionais, através do ordenamento racional-legal, para que o

objetivo seja alcançado, tanto economicamente (expansão do capitalismo) como

socialmente (integração e unidade nacional). Ou seja, para tal objetivo o Estado

deve possuir uma dimensão burocrática capaz de garantir o desenvolvimento do

55
Nesse sentido, Fernandes (1981: 157 e 159) falará da “fusão do patrimonialismo com a burocracia” e da “combinação da
dominação patrimonialista com a dominação burocrática”

clvii
capitalismo (em termos de uma economia exportadora) e a construção nacional,

necessidade inerente ao desenvolvimento capitalista.

É mister frisar que esse objetivo, ao ser conduzido pelos proprietários rurais,

no sentido de manter sua dominação e preservar seus privilégios, exigirá também

uma estrutura vinculada à tradição (patrimonialismo) para conter ímpetos radicais de

racionalidade que venham a democratizar o poder e ampliar o leque de cidadãos,

restringindo a capacidade de dominação existente.

Contraditoriamente aos interesses dos proprietários rurais, a expansão do

capitalismo e a estruturação de um Estado Nacional levam à ampliação de setores

da sociedade que não estão vinculados aos circuitos da tradição e que começam a

se identificar com os objetivos capitalistas e nacionais, assim como parte da própria

elite rural também passa a incorporar o projeto capitalista e de integração nacional.

Como conseqüência, instaura-se maior pressão para que ocorra a ampliação das

estruturas racionais e legais de objetivação da dominação, gerando o fortalecimento

da dimensão burocrática do Estado.

No entanto, cabe frisar que a dimensão burocrática desenvolvida possui como

origem um quadro administrativo vinculado à tradição e à ordem senhorial, não se

estruturando como um vetor modernizante central, determinando, dessa forma, o

caráter conservador da gênese da burocracia brasileira. Em outras palavras, isso

significa dizer que a burocracia brasileira nasce devido à necessidade de

especialização apresentada pelo projeto de integração nacional e de expansão da

economia mercantil, porém se afasta da dimensão de impessoalidade requerida por

uma estrutura efetivamente burocrática.

Nesse quadro, o emprego público será também um instrumento para a

expansão do poder da aristocracia e um espaço para adquirir status político e social.

clviii
Na avaliação arguta de Faoro (2004: 390), “a primeira conseqüência, a mais visível,

da ordem burocrática, aristocratizada no ápice, será a inquieta, ardente, apaixonada

caça ao emprego público. Só ele nobilita, só ele oferece o poder e a glória, só ele

eleva, branqueia e decora o nome.”

Resumindo, a construção do império independente ocorre mantendo a

estrutura de poder colonial e incorporando de forma intensiva os senhores rurais

como esteio da nova ordem, através da utilização do Estado para garantia de seus

interesses econômicos e conquista de status, caracterizando a lógica tradicional

patrimonialista. Por outro lado, a construção de Estado nacional exige ações

racionais que pressupõem o fortalecimento do corpo burocrático do Estado. Nesse

contexto, a crise da economia colonial está posta e o advento da economia

exportadora capitalista está à vista, reforçando, com tal processo, a necessidade de

burocratização do Estado. Dessa forma, elementos patrimonialistas e burocráticos

se entrelaçam e conformam a ordem administrativa nacional. Isso não significa dizer

que será uma relação sem tensão, porém uma tensão sempre delimitada pela

conciliação estabelecida entre a ordem colonial e a nova ordem nacional.

O final da década de 1860 marca o início da crise da economia mercantil

escravista, a partir, como vimos anteriormente na análise de Cardoso de Mello, do

momento em que a lógica escravista e a pouca disponibilidade de terra passam a

ser obstáculos para a acumulação tipicamente capitalista.

Apesar do início da crise, a economia mercantil escravista ainda terá uma

sobrevida, na medida em que o desenvolvimento da indústria de beneficiamento de

café e da ferrovia acabam poupando trabalho escravo nessas atividades, além de

reduzir os preços dos transportes e melhorar a qualidade do produto, possibilitando

melhores preços internacionais (Cardoso de Mello, 1998: 81).

clix
Entretanto, ao mesmo tempo, o desenvolvimento da estrada de ferro e a

indústria de beneficiamento se opõem à economia mercantil escravista, criando

condições para o surgimento do trabalho assalariado. Por outro lado, a escassez da

força de trabalho começa a ser sentida na medida em que a acumulação “repõe, a

cada instante, o ‘problema da falta de braços’, que assume, a cada momento, maior

gravidade” (Cardoso de Mello, 1998: 83). Sendo assim, do ponto de vista

econômico, a República Velha é produto do esgotamento da economia mercantil

escravista nacional e do surgimento da economia exportadora capitalista (Cardoso

de Mello, 1998).

Do ponto de vista global, o desenvolvimento do capitalismo mundial, em sua

fase imperialista, apresenta a exigência de uma nova relação com a periferia

(abandono da função da acumulação primitiva para redução dos custos da força de

trabalho e dos componentes do capital constante). Nesse contexto, processou-se a

transição da economia colonial para a economia exportadora capitalista, em que a

intermediação comercial e financeira se expressa como o elo entre a economia

brasileira e o imperialismo Inglês.

A oligarquia agrária paulista cafeeira, que emerge durante o Império, projeta-

se no cenário político nacional, a partir de sua liderança econômica, na passagem

da economia escravista nacional para uma produção capitalista voltada para a

exportação.

Esse é o cenário onde, segundo Florestan Fernandes, atuará um dos

principais autores e fautores de nossa revolução burguesa: o fazendeiro homem de

negócios, base da burguesia agrária brasileira.

O fundamental para o estudo em questão é destacar o significado político do

fazendeiro homem de negócio (principalmente na área do café), como constituinte

clx
da classe econômica dominante, a partir da década de 60 do século XIX, que

assumirá a hegemonia política durante o primeiro período republicano, explicitando

sua relação com a ordem administrativa desenvolvida, principalmente no que se

refere à manutenção e ao fortalecimento do patrimonialismo no Brasil.

Como vimos anteriormente, no quadro de desenvolvimento da economia

mercantil escravista nacional cafeeira, processa-se a transformação de setores do

senhorio rural em fazendeiros homens de negócio.

Os fazendeiros homens de negócio constituirão a oligarquia agrária que

dominará política e economicamente a República Velha. Tais fazendeiros

dissociaram a fazenda e a riqueza produzida por ela do status senhorial. Essa

transição de senhores para fazendeiros se realiza ao longo do século XIX e se

explicita, por um lado, o processo de aburguesamento do proprietário rural, por outro

lado, determina o vínculo desse setor com a estrutura tradicional de poder. Esse

vínculo torna-se mais evidente na dimensão “coronel” que esses atores

desenvolverão a partir do final do século XIX, da qual trataremos adiante.

Neste momento, cabe compreender o processo econômico que fundamenta a

transformação desses “fazendeiros homens de negócio”, protótipo de uma burguesia

agrária nascente, numa oligarquia antiburguesa.

Como muito bem analisado por Oliveira (1978: 407), esses fazendeiros se

constituirão como burguesia agrária, no Império e no início da República, e se

metamorfosearão em oligarquia antiburguesa, até o final da República Velha.

A constituição como oligarquia antiburguesa é determinada

fundamentalmente pela dimensão econômica dos interesses desse grupo.

Sinteticamente, conforme analisa Oliveira (idem: 408-410), a especialização na

produção de mercadoria de realização externa, desenvolvida pela economia

clxi
brasileira, acarretou que o financiamento para tal fosse também externo. Essa

situação produziu um “círculo vicioso” entre a produção agro-exportadora e a

intermediação comercial e financeira externa, em que o valor gerado pela economia

agro-exportadora era absorvido substancialmente nos custos da intermediação

comercial e financeira, criando, assim, a necessidade de retornar à intermediação

para repor a produção. Nesse quadro, produz-se um estrangulamento na

capacidade de o país ampliar a divisão social do trabalho no rumo do capitalismo

industrial, na medida em que os recursos eram consumidos pela intermediação

externa que nada tinha a ver com a realização interna da produção não exportadora.

Nas palavras do autor, “o financiamento da acumulação de capital nos setores não

exportadores não passava pela intermediação comercial e financeira externa típica

da economia agro-exportadora, que consumia a maior parte do excedente social

produzido não apenas pelas atividades de exportação, mas pela totalidade do

sistema econômico” (Oliveira, 1978: 410).

A defesa dessa lógica econômica pelos setores agro-exportadores,

principalmente o cafeeiro, ao mesmo tempo em que negava sua sustentação,

negava o desenvolvimento de outros setores da economia. Nesse ponto, “a

burguesia agrária termina por transformar-se numa oligarquia antiburguesa, e

regionalmente cada fração da classe burguesa terminou por configurar-se nas

famosas oligarquias regionais” (Oliveira, 1978: 412).

Complementando a análise de Oliveira, a observação de Fernandes

(1981:171) sobre a forma como a organização capitalista fora absorvida pela ordem

senhorial, na passagem do Império para a República, mostra que

...a insensibilidade e relutância não eram ditadas apenas por motivos


‘tradicionais’ (como querem alguns) ou ‘nacionalistas’ (como
pretendem outros). Elas se vinculavam a uma defesa sistemática,
larga e profundamente consciente, de estruturas econômicas e de
poder, que as camadas senhoriais e suas elites consideravam sob

clxii
sérios riscos – não pelo mercado mundial, em si mesmo, mas por
causa do aparecimento de um mercado interno complexamente
entrosado ao mercado mundial e amplamente determinado por forças
que, com o tempo, não seriam mais controláveis pelas irradiações
econômicas do poder da ‘aristocracia agrária’.

Sendo assim, a forma de assimilação da ordem capitalista pela ordem

senhorial se apresenta, também, como mais uma determinação que contribuirá para o

fortalecimento e continuidade das estruturas patrimonialistas, a partir da república, na

medida em que estão bloqueadas as possibilidades de avanço da divisão social do

trabalho no rumo do capitalismo industrial, seja pelos componentes de ordem

econômica, seja pelas opções de cunho político tomadas pelas classes dominantes.

Segundo Fernandes (1981: 167):

O horizonte cultural orienta o comportamento econômico


capitalista mais para a realização do privilégio (ao velho estilo),
que para a conquista de um poder econômico, social e político
autônomo, o que explica a identificação com o capitalismo
dependente e a persistência de complexos econômicos
semicoloniais (na verdade, ou pré-capitalistas ou
subcapitalistas).

Nesses termos, ainda de acordo com Fernandes (1981: 176), a fase aguda da

crise do trabalho servil levou consigo a ordem senhorial e escravocrata, “mas não o

seu substrato social e político: a base oligárquica do poder autocrático dos ‘ricos’ e

‘privilegiados’”. Sendo assim, a República é realizada com o substrato da ordem

senhorial, ou seja, com poder oligárquico e autocrático dos ricos e privilegiados.

Portanto, o capitalismo, enquanto ordem social, estrutura-se no País a partir do

substrato social e político da ordem senhorial, o que viabiliza a manutenção e o

fortalecimento da estrutura de dominação tradicional.

Nesse sentido, a descentralização do poder é um elemento chave para conduzir

a expansão capitalista da economia sob orientação do setor agrário. O advento da

República implica, assim, a extinção dos mecanismos de centralização do poder,

presentes no segundo reinado (Poder Moderador, Senado Vitalício, Conselho de

Estado e Guarda Nacional), e a introdução do federalismo no país (Teixeira da Silva e

Fragoso, 1996).

clxiii
A estrutura coronelista constitui, pois, a base da engenharia política que

consolidará o poder do setor agrário sob hegemonia dos produtores de café, na

medida em que viabilizará a participação política daqueles proprietários de terra que

estavam alijados do poder e organizará a descentralização política cunhada pelo

federalismo. Na formulação clássica de Victor Nunes Leal (1986), o coronelismo seria

um arranjo político de articulação, adequação, acomodação entre o regime político de

base representativa e o poder local privado decadente.

Como vimos anteriormente, após a abolição e o advento da república, apesar

da perda de prestígio aristocrático e do declínio econômico de alguns proprietários

rurais, o poder político local se mantém sustentado com base na tradição do

mandonismo, presente tanto na estrutura patriarcal colonial quanto na hierarquia

militar da Guarda Nacional do Império. No entanto, como reforça Queiroz (1978:

159-160), o coronelismo é uma expressão do mandonismo local que se distingue

das tradições da colônia e do império, pois se configura como uma estrutura de

poder local tipicamente republicana, a despeito de seus vínculos com a lógica

tradicional.

Conforme aponta Carvalho (2001: 41), o “coronel era o posto mais alto na

hierarquia da Guarda Nacional. O coronel da Guarda era sempre a pessoa mais

poderosa do município. Já no Império ele exercia grande influência política. Quando

a Guarda perdeu sua natureza militar, restou-lhe o poder político de seus chefes”.

Queiroz (1978: 156) ratifica essa análise ao afirmar que, depois da extinção

da Guarda Nacional, pouco depois da proclamação da República, “persistiu no

entanto a denominação de ‘coronel’, outorgada espontaneamente pela população

àqueles que pareciam deter em suas mãos grandes parcelas do poder econômico e

político”.

A expressão do poder dos chefes locais se realizava principalmente através

clxiv
da proteção que ele oferecia à população, sobretudo junto à população eleitora.

Quanto mais condições de distribuir favores, maior a influência do coronel na esfera

estadual e nacional, na medida em que possuía maior capacidade de mobilização

eleitoral para os candidatos apontados pelas oligarquias.

Nessa perspectiva, o coronel, como chefe político local cumprirá, a função de

mediação entre a população local e o poder estadual cujo fortalecimento dependia

das relações que o chefe do poder local estabelecia com a população.

Por outro lado, conforme esclarece Abrúcio (2002: 38), o chefe local era

controlado pelo governador do estado, devido a três razões: em primeiro lugar,

porque o poder federal era frágil e não competia com os estados; em segundo,

devido à pouca autonomia política e financeira dos municípios, que acabavam

dependendo do apoio do governo do estado; e, em último, derivado da dependência

assinalada, já que o chefe local precisava do governo do estado para acessar

recursos estatais não só em seu benefício, mas de sua clientela e para garantir

segurança para seus aliados nas lutas entre facções rivais. Faoro (2004: 626)

mostra que a subordinação do município ao estado, sob alegação de evitar o

anarquismo e proteger a integração nacional, instaura-se respaldada pelo art. 68 da

Constituição de 1891, na medida em que o poder estadual passa a ser o

responsável pela nomeação dos prefeitos e a possuir os recursos disponíveis para

utilização local.

Essa relação de mútua dependência estabeleceu o que se convencionou

chamar de “compromisso coronelista”. A oligarquia estadual, que controlava o

governo do estado, precisava dos votos mobilizados pelos chefes locais e estes,

principalmente os que se encontravam em decadência econômica, necessitavam

dos recursos do estado para si e para sua clientela. Por isso a formulação clássica

clxv
de Nunes Leal sobre esse sistema, apresentada anteriormente, é precisa. Como

recorda Abrúcio, o autor de Coronelismo, enxada e voto ainda expressa este sistema

como sendo de reciprocidade no qual “de um lado, os chefes municipais e ‘coronéis’,

que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado,

a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos

favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e o poder das

desgraças” (Leal, 1986: 43).

Nesse contexto, o emprego público, disponibilizado pelo governo estadual

para conseguir votos, firmava uma relação de lealdade entre o funcionário e o

governante, eliminando qualquer possibilidade de impessoalidade no trato da

administração pública, reduzindo a autonomia do servidor, na medida em que seu

recrutamento se estrutura em bases tipicamente patrimonialistas. Sendo assim,

“formava-se uma rede de lealdade sustentada pela intermediação estatal” (Abrúcio,

2002: 39).

Faoro (2004: 622) ratifica essa análise, ao entender que, antes de ser líder

político, o coronel é líder econômico, mas será coronel por receber delegação do

poder estadual para o exercício do poder político. Nesse sentido, o poder político do

coronel não é mero reflexo de seu poder econômico, materializado em seu

patrimônio pessoal. O vínculo que lhe outorga poderes públicos virá do aliciamento

político.

Para nossa discussão é importante perceber que essa forma peculiar de

delegar poder público para o campo privado, expresso pelo compromisso

coronelista, fortalece a dimensão patrimonialista da administração pública em sua

vertente local.

Nessa ótica, a dimensão pré-burocrática da administração pública se

clxvi
consolida na estrutura local de dominação, que se inicia com a dimensão patriarcal

do senhor colonial, desenvolve-se, através da experiência descentralizadora do

império, principalmente através da organização da Guarda Nacional, e chega ao seu

ponto de maturação na República Velha, através do sistema coronelista.

O patrimonalismo, nesse quadro, é inconteste. Como afirma Faoro (2004:

631), “obviamente, a linha entre o interesse particular e o público, como outrora,

seria fluida, não raro indistinta, freqüentemente utilizado o poder estatal para o

cumprimento de fins privados.” Em outra passagem o autor ressalta: “o coronel

utiliza seus poderes públicos para fins particulares, mistura não raro, a organização

estatal e seu erário com os bens próprios” (idem: 637).

A dimensão patrimonialista da ordem administrativa desenvolvida localmente,

através do sistema coronelista, não deixará impune a estrutura estadual e federal. A

dominação tradicional presente na República Velha se manifesta na relação entre

oligarquia estadual e coronel e entre oligarquias estaduais e o Presidente da

República. Conforme ressalta Faoro (2004:562), “o velho estamento imperial se

dissolve, desta sorte, num elitismo de cúpula, regredindo a estrutura patrimonialista

para o âmbito local, local no sentido do entrelaçamento de interesses estaduais e

municipais.”

A “política dos governadores”, operacionalizada por Campos Sales, amarra as

pontas do patrimonialismo, na medida em que estabelece para o âmbito nacional

relações de compromisso semelhantes à organizada no sistema coronelista. De

forma mais precisa, o sistema coronelista é a base de sustentação da política de

governadores, na medida em que viabiliza a “maximização do poder das oligarquias

estaduais” (Mendonça, 1996: 252).

Assim, através da “política dos governadores” se consolida o poder

clxvii
oligárquico estadual sob hegemonia dos estados economicamente mais fortes,

institucionalizando-se, dessa forma, um pacto entre as oligarquias estaduais e entre

estas e o governo federal, sob liderança de São Paulo e Minas Gerais.

Dentre os principais aspectos da “política dos governadores”, sintetizados por

Abrúcio (2002: 35-37), destacam-se: a centralidade dos governadores de estado no

sistema político, seja no âmbito estadual, seja no federal; o processo de definição da

presidência da república passar por um acordo entre os governadores de São Paulo

e Minas, representantes das elites econômicas desses estados; a fragilidade da

presidência da república para dirimir conflitos entre os estados hegemônicos; a

inexistência de partidos nacionais, que fortalecia, ainda mais, o poder dos

governadores de estado e o fato de esse pacto de governadores ter possibilitado a

perpetuação no poder de todas as oligarquias que estavam presentes no Governo

Campos Sales, gerando um “congelamento na competição nos estados”.

Esse sistema se retroalimenta e enfatiza a “troca de favores” como

mecanismo principal de fazer política, na medida em que a ausência de disputa

entre projetos políticos distintos leva a ação política a se centrar na “pequena

política”, gramscianamente falando, abrindo espaço para a utilização da “troca de

favores” e da “corrupção” como mecanismos de “cooptação”. Na ausência de

projetos políticos distintos, pouco importa o grupo que estará no poder, o que vale é

o poder pelo poder e a possibilidade de ter acesso às suas benesses, portanto, os

instrumentos para fazer política se distanciam daqueles necessários para fazer o

convencimento em torno de idéias e propostas alternativas para a sociedade. Faoro

(2004: 588) sublinha enfaticamente tal questão:

O problema do político era o poder, só o poder, para os chefes e para


os Estados, sem programas para atrapalhar ou ideologias
desorientadas. O agente ideal para esta ação será o realista frio,
astuto mais que culto, ondulante nos termos, sagaz na apreciação
dos homens, aliciador de lealdades e pontual na entrega de favores.

clxviii
Nesses termos, a fragilidade do poder federal - embora num período em que

se fez necessário agir nacionalmente com certa racionalidade e especialização para

comandar a política econômica voltada para a sustentabilidade da economia

exportadora capitalista – advinda da “política dos governadores” e do sistema

coronelista, enfraquece a já inexpressiva dimensão burocrática da ordem

administrativa brasileira. Em outras palavras, o patrimonialismo burocrático

centralizado do período imperial não mais condiz com a nova correlação de forças

centrada na hegemonia política e econômica da oligarquia cafeeira. Da burocracia

centralizada necessita-se apenas da condução da política econômica, com certo

cariz de racionalidade, que venha a favorecer a dinâmica da produção-

intermediação-exportação do café. A dominação política se irradia nacionalmente

através do sistema patrimonialista local, fundado na combinação da “política dos

governadores” com o sistema coronelista.

O sistema político assim montado esvazia as possibilidade substantivas de

expressão política da cidadania, por outro lado, a estrutura social basicamente

agrária, a história colonial, a escravidão e a, ainda emergente e incipiente, classe

trabalhadora urbana-industrial reforçam o quadro de fragilidade do exercício da

participação política na sociedade republicana.

Carvalho (2002: 56-57) ressalta a situação fundada no coronelismo da

seguinte forma:

O coronelismo não era apenas um obstáculo ao livre exercício dos


direitos políticos. Ou melhor, ele impedia a participação política
porque antes negava os direitos civis. Nas fazendas, imperava a lei
do coronel, criada por ele, executada por ele. Seus trabalhadores e
dependentes não eram cidadãos do Estado brasileiro, eram súditos
dele.
(...) Não havia justiça, não havia poder verdadeiramente público, não
havia cidadãos civis. Nessas circunstâncias, não poderia haver
cidadãos políticos. Mesmo que lhes fosse permitido votar, eles não
teriam as condições necessárias para o exercício independente do
direito político.

clxix
A fragilidade da classe operária nascente - seja devido a seu peso

quantitativo e qualitativo na estrutura social e econômica do país, seja por conta da

orientação anarco-sindicalista voltada para as demandas diretamente econômicas,

não se organizando partidariamente, não definindo estratégias de aliança para

operacionalizar a luta política – corrobora com o cenário de ausência de cidadania

política (Antunes, 1982: 63-66).

Do ponto de vista das oligarquias dominantes, a estrutura política montada

satisfazia a seus interesses e evitava qualquer possibilidade de inclusão de outros

setores sociais no processo político.

Nesse sentido, o Estado buscava uma relação mais amistosa com os

trabalhadores vinculados aos setores necessários à exportação (ferroviários e

marítimos) e tratava os trabalhadores fabris através da forma clássica liberal:

repressão (Antunes, 1982: 65).

Frente ao exposto, a “questão social” tratada como caso de polícia, dispensa

uma estrutura estatal ampliada, o que reduz, também, as possibilidades de

fortalecimento da dimensão burocrática da ordem administrativa.

Esse contexto, que começa no segundo reinado e se consolida na República

Velha, leva Wanderley Guilherme dos Santos a caracterizá-lo como falso laissez-

faire, pois restrita a área urbana - na medida em que a penetração dos mecanismos

liberais de regulação da força de trabalho foram muito lentamente incorporados na

área rural - e no que concerne à economia, devido à aprovação da Lei Eloy Chaves,

em 1923, que de certa forma vulnerabiliza a defesa de não intervenção do Estado na

área social.

É consenso entre analistas de diferentes correntes que o liberalismo no Brasil

clxx
foi incorporado de forma peculiar. Uma verdadeira “idéia fora do lugar”, conforme

observa Schwarz (1977), uma vez que se irradia no Brasil, durante o Império, em

plena vigência da escravidão, e se consolida durante a República Velha, em que o

sistema de favores, e não a universalidade de direitos e procedimentos, forma a

base das relações políticas e da dinâmica do Estado. Nas palavras do autor, “o

escravismo desmente as idéias liberais; mais insidiosamente o favor, tão

incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e desloca, originando um

padrão particular” (Schwarz, 1977: 16).

Apesar desse caráter de estar “fora do lugar”, o liberalismo no Brasil, para

Fernandes (1981: 38), foi fundamental como impulso para a revolução nacional.

Portanto, sem perder de vista as limitações e deformações que sofreu


numa sociedade e numa cultura tão avessa às suas implicações
sócio-econômicas, políticas, intelectuais e humanitárias, a aceitando-
se que, ainda assim, ele só se constituiu em realidade histórica para
as minorias atuantes dos estamentos senhoriais, o liberalismo foi a
força cultural viva da revolução nacional brasileira.

Portanto, o liberalismo, a despeito de ter se constituído como essa força viva

para a construção da sociedade nacional brasileira, não implicou mudanças na

ordem social, econômica e política, entrelaçando-se com os mecanismos

patrimonialistas existentes.

Mazzeo elabora uma observação extremamente pertinente a respeito da

característica do liberalismo no Brasil. Segundo o autor, não se pode debitar à

manipulação das elites o caráter do liberalismo brasileiro, esse seria apenas um dos

aspectos do fenômeno. A centralidade da compreensão deve se pautar na forma de

“absorção colonial” do liberalismo, na medida em que ela é “concretamente,

engendrada pela organização produtiva agroexportadora e escravista” (Mazzeo,

1997: 94 – grifo do autor).

Por outro lado, o desenvolvimento da economia mercantil escravista nacional,

clxxi
realizada durante o Império, submetida aos interesses ingleses e tardia em relação

ao capitalismo europeu, marcará objetivamente as possibilidades de nosso

liberalismo.

Nesse quadro, o liberalismo incorporado estará voltado basicamente para

viabilizar os interesses econômicos da nascente burguesia agrária. Portanto, a

superestrutura jurídica e política refletirá essa opção teleológica direcionada para a

acumulação da elite dominante e não para a incorporação dos diferentes setores

sociais no processo de desenvolvimento. A opção pela exclusão das classes

subalternas e da burguesia industrial emergente nessa lógica é nítida.

Por isso, durante a República Velha, de acordo com Antunes,

A garantia do pacto de dominação por parte do estado oligárquico


deu-se através de um liberalismo excludente que aglutinava os
setores burgueses exportadores – que detinham a hegemonia dentro
deste pacto – e as oligarquias não exportadoras e excluía, além dos
setores subalternos, os interesses ligados à burguesia industrial
emergente.

Nesse sentido, conforme destaca Mazzeo (1997: 124), “...vemos que a

absorção do liberalismo [no Brasil] será restrita em seu aspecto econômico, mesmo

assim, mantido em parte, apenas no direito de livre comerciar e produzir (produção

esta limitada à agricultura).”

Sendo assim, nesse cenário da primeira república, que se complementa com

a particularidade da incorporação do liberalismo no Brasil, reforça-se o

patrimonialismo existente na administração pública brasileira e a burocracia não se

expande, continuando restrita e a serviço da oligarquia.

Dessa feita, na República Velha, o

Estado, enquanto estrutura de dominação, será

capturado para atender às reivindicações dos

comerciantes e dos fazendeiros de café,

predominantemente, ou seja, do capital cafeeiro.

clxxii
Nesse sentido, a lógica racional-burocrática,

necessária ao desenvolvimento capitalista,

deverá ser mantida, porém de forma articulada à

lógica patrimonialista, necessária à manutenção

do poder e das aspirações tradicionais de

status, mando e utilização privada do bem

público, presentes tanto na cultura dos

proprietários de terra quanto na dos

comerciantes.

clxxiii
CAPÍTULO III - A DIALÉTICA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

BRASILEIRA SOB HEGEMONIA BURGUESA: Burocracia e Patrimonialismo da

Era Vargas à Ditadura Militar

3.1. A inflexão de 1930: burocracia e patrimonialismo imbricados como elementos

estruturais da ordem administrativa brasileira

A Revolução de 30 é um ponto de inflexão na trajetória do Brasil e da

administração pública brasileira, na medida em que representa o início de um novo

projeto político para a sociedade: industrialização e urbanização, sob comando da

intervenção estatal.

Do ponto de vista da economia política, esse projeto, como muito bem

demonstrado por Cardoso de Mello (1998) e Oliveira (2003), apesar das diferenças de

análise existente entre os autores (Antunes, 1982), é conduzido a partir da articulação

entre a economia agrária e a indústria emergente, constituindo um entrelaçamento

entre características pré-capitalistas e capitalistas de produção, seja através da

relação entre o capital cafeeiro e o capital industrial nascente, como aponta Cardoso

de Mello; seja através da relação entre a produção agrícola baseada numa intensiva

exploração de trabalho e a recente produção industrial que se beneficia daquela

exploração, como afirma Oliveira. Ou seja, o importante é assinalar que, de um ponto

de vista ou de outro, a industrialização no Brasil surge e se desenvolve de forma

integrada aos interesses agrários. Essa é a contribuição fundamental desses autores

ao fazerem a crítica à concepção cepalina para interpretar o desenvolvimento do

capitalismo no Brasil e pensar a relação entre os interesses tipicamente capitalistas e

aqueles vinculados à tradição agrária.

De acordo com Cardoso de Mello, o crescimento industrial no período da

República Velha se baseia no crescimento da rentabilidade do capital cafeeiro (1890-

1894), quando a opção em investir na indústria requeria apenas que ela gerasse uma

clxxiv
taxa de rentabilidade positiva, pois “a taxa de acumulação financeira sobrepassou,

em muito, a taxa de acumulação produtiva” (Cardoso de Mello, 1998: 100).

Nesse quadro, como assinala Cardoso de Mello (1998: 100), o capital industrial

nasceu como desdobramento do capital cafeeiro empregado tanto no núcleo

produtivo do complexo exportador (produção e beneficiamento do café) quanto em

seu segmento urbano (atividades comerciais, serviços financeiros, transporte...). Tal

fato mostra como o início do crescimento industrial no Brasil vai possuir como matriz

o capital agrário-tradicional.

Segundo a análise de Oliveira, “longe de ter havido transferência de recursos

ou de renda do setor exportador para os demais setores, houve o contrário” (Oliveira,

1978: 410). Portanto, para o autor, a relação entre o setor agrário e o setor industrial

não se estabelece a partir da inversão do capital cafeeiro no setor industrial.

Sinteticamente, segundo Oliveira (2003: 45-47), a relação dialética entre a agricultura e

o setor industrial emergente se expressa na funcionalidade da agricultura para o

crescimento industrial, via fornecimento da força de trabalho e de alimentos, através

da manutenção do padrão “primitivo” de acumulação na agricultura, “baseado numa

alta taxa de exploração da força de trabalho”. De acordo com o autor:

...a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo


relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no
novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a
introdução das relações nova no arcaico libera força de trabalho
que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a
reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de
acumulação liberado exclusivamente para os fins de expansão
do próprio novo (Oliveira, 2003: 60 – itálicos no original).

A análise dos críticos da concepção cepalina, apesar de divergentes, apresenta

uma concepção dialética seja da relação entre o capital industrial e o capital cafeeiro,

conforme sinaliza Cardoso de Mello, seja da articulação entre a agricultura e

crescimento industrial, de acordo com Oliveira. As análises identificam contradições

nas relações apontadas, ainda que tal contradição se constitua como uma unidade.

Para Cardoso de Mello (1998: 103-104), a contradição é sempre delimitada pela

relação de dependência existente entre capital cafeeiro e capital industrial. Oliveira


clxxv
(2003: 65) destaca que “esse ‘pacto estrutural’ preservará modos de acumulação

distintos entre os setores da economia, mas de nenhum modo antagônicos, como

pensa o modelo cepalino”.

Nessa perspectiva, essa relação intrínseca entre o capital cafeeiro e o capital

industrial (Cardoso de Mello) ou entre a agricultura e o setor industrial (Oliveira)

determinará uma dominação de classe composta pela burguesia industrial e a

oligarquia tradicional agrária, dominação esta que necessitará de elementos

burocráticos e patrimonialistas para a sua materialização/realização. Como a elite

rural e oligárquica é a gênese do capital industrial ou elemento fundamental para o

processo de crescimento urbano-industrial, a expansão das relações capitalistas no

Brasil não pode ser realizada rompendo com a oligarquia tradicional, já que, apesar de

a burguesia industrial ir se autonomizando da oligarquia agrária, os laços genéticos e

estruturais e os privilégios dessa relação (capitalismo sem risco, concentração de

riqueza, utilização privada dos recursos públicos) determinarão as estruturas de

dominação do país.

Na concepção de Faoro (2004: 685 e 686) o que ocorre nesse período é uma

“transformação dentro da ordem”. A estratégia, como lembra o autor, traçada por

Antônio Carlos, governador de Minas Gerais, e aceita por Getúlio Vargas, consistia em

“revolta sim, reformas sim, mas longe do ‘grave risco do perder o domínio sobre as

massas’, suscetíveis de se seduzirem ‘por amantes inesperados e impetuosos’. Nada

de tocar nos alicerces sobre que repousa a estrutura social”.

Oliveira (2003: 63) assinala de forma precisa que “a mudança das classes

proprietárias rurais pelas novas classes burguesas empresário-industriais não

exigirá, no Brasil, uma ruptura total do sistema, não apenas por razões genéticas, mas

por razões estruturais”.

Florestan Fernandes (1981: 241) completa a análise mostrando que o

desenvolvimento capitalista no Brasil se processa a partir de uma dupla articulação:

“1.°) internamente, através da articulação do setor arcaico ao setor moderno (...); 2.°)

clxxvi
externamente, através do complexo econômico agro-exportador às economias

capitalistas centrais.”

Segundo Fernandes, não surgiu no setor empresarial nenhum grupo que

combatesse essa dupla articulação. A opção da burguesia industrial foi se aliar à

oligarquia rural e se subordinar ao capital internacional. Nas palavras do autor:

A dupla articulação impõe a conciliação e a harmonização de


interesses díspares (tanto em termos de acomodação de setores
econômicos internos quanto em termos de acomodação da
economia capitalista dependente às economias centrais); e, pior
que isso, acarreta um estado de conciliação permanente de tais
interesses entre si. Forma-se, assim, um bloqueio que não pode
ser superado e que, do ponto de vista da transformação
capitalista, torna o agente econômico da economia dependente
demasiado impotente para enfrentar as exigências da situação
de dependência. Ele pode, sem dúvida, realizar as revoluções
econômicas que são intrínsecas às várias transformações
capitalistas. O que ele não pode é levar qualquer revolução
econômica ao ponto de ruptura com o próprio padrão de
desenvolvimento capitalista dependente (Fernandes, 1981: 250).

Esse tipo de transição da economia capitalista brasileira produziu uma aliança

entre a burguesia industrial emergente e setores da oligarquia agrária para processar

o projeto de industrialização e urbanização de forma dependente ao capital

internacional.

Nesse quadro, o que está em processo no Brasil é a expansão e

desenvolvimento do capitalismo industrial, a partir de seu nascimento e consolidação

efetivados no período compreendido entre 1888 e 1933 (Cardoso de Mello, 1998: 109).

Do ponto de vista interno, o desenvolvimento do capital cafeeiro produziu as

condições para o surgimento do capital industrial, ao mesmo tempo em que

inviabilizava sua consolidação, devido ao “círculo vicioso” apontado por Oliveira.

Esse bloqueio da industrialização se realizará até a “Crise de 29”, quando se inaugura

uma resposta industrializante e urbana para o enfrentamento do contexto econômico

e político da época. Nas palavras de Cardoso de Mello (1998: 109), “o intenso

desenvolvimento do capital cafeeiro gestou as condições de sua negação, ao

engendrar os pré-requisitos fundamentais para que a economia brasileira pudesse

responder criativamente à ‘Crise de 29’”.

clxxvii
Do ponto de vista político, a tentativa de Washington Luís manter a oligarquia

cafeeira paulista no poder, não cedendo o mandato presidencial para Minas Gerais,

conforme rezava a “política do café-com-leite”, precipitou as articulações entre as

oligarquias agrárias não alinhadas com São Paulo, setores das classes médias,

militares críticos ao poder oligárquico tradicional e a burguesia industrial emergente.

Nesse sentido, a crise interna das oligarquias agrárias propiciou, do ponto de

vista político, uma saída econômica para a Crise de 29 que passava pela

implementação de um projeto de industrialização e urbanização do País, via

protagonismo estatal. Nas palavras de Fiori (1995:127),

É somente a partir de 1930, quando se combinam os efeitos da


crise econômica internacional com uma revolução política
interna que encerra a República Velha (1889-1930) e se abrem as
portas ao regime ditatorial do Estado Novo (vigente entre 1937 e
1945), que o Estado passou a assumir ativamente o papel de
regulador da economia.

O bloco dominante que vai implementar esse projeto tem como base uma

articulação entre setores das oligarquias agrárias, a burguesia industrial emergente,

setores das classes médias e setores militares. No primeiro período da

industrialização (até os anos 1950), a oligarquia agrária será, nessa composição, a

classe hegemônica; num segundo momento (dos anos 1950 até os anos 1980), ela

perderá hegemonia para a burguesia industrial, apesar de continuar compondo a elite

dominante. A incorporação da classe operária será realizada através de uma

“hegemonia seletiva” (Coutinho, 1993) efetivada a partir da “regulação da cidadania”

(Santos, 1987), conforme detalharemos adiante.

Torna-se importante, no momento, destacar que a classe operária, como

sinaliza Oliveira (2003), será usada pela burguesia industrial para a conquista da

hegemonia no interior do pacto de dominação, no entanto, será preservada a

participação das classes proprietárias rurais no poder e nos ganhos da expansão do

sistema. Em outras palavras, as mudanças que se processam a partir de 1930 no País

evidenciam o fortalecimento da burguesia industrial na estrutura de poder (período de

clxxviii
1930 até 1950) e a conquista de sua hegemonia frente aos proprietários rurais

(período de 1950 até 1980). Entretanto, devemos enfatizar que tais mudanças não

excluem a participação das oligarquias agrárias no poder, apenas deslocam o seu

posicionamento na dominação, deixando de ser a classe hegemônica, a partir da

década de 1950. A classe operária, nesse contexto, não participa da estrutura de

poder, sendo incorporada parcial e seletivamente, para garantir a exploração

intensiva da força de trabalho na perspectiva de viabilizar a “acumulação primitiva”56

da economia.

Nas palavras de Oliveira (2003: 65), a industrialização no Brasil ocorre numa

conjuntura adversa, “portanto, um de seus requisitos estruturais é o de manter as

condições de reprodução das atividades agrícolas, não excluindo, portanto,

totalmente, as classes proprietárias rurais nem da estrutura do poder nem dos ganhos

de expansão do sistema”. Em seguida, o autor conclui que, como contrapartida, “a

legislação trabalhista não afetará as relações de produção agrária, preservando um

modo de ‘acumulação primitiva’ extremamente adequado para a expansão global”.

Nesse quadro, durante o primeiro período Vargas, a intervenção estatal

caracterizou-se pelo início da estruturação do chamado Estado desenvolvimentista.

Ou seja, diferentemente do que ocorreu nos casos clássicos de transição capitalista,

nos quais a industrialização, e, portanto, a ampliação das relações capitalistas,

precedeu a construção do Estado interventor, no Brasil foi o Estado que, a partir de

1930, impulsionou e estimulou o processo de desenvolvimento urbano-industrial e,

em conseqüência, a ampliação das relações capitalistas, através do processo de

industrialização restringida57.

56
Oliveira (2003: 43) faz duas considerações para tratar da “acumulação primitiva” no caso de economias periféricas, a partir
do conceito marxiano. Em primeiro lugar o autor afirma que, no caso das economias periféricas, o essencial não é a
expropriação da propriedade, mas sim a expropriação do excedente “que se forma pela posse transitória da terra”. Em segundo
lugar, o autor sublinha que a acumulação primitiva nas economias periféricas não ocorre apenas na origem da acumulação,
mas ela se apresenta como mecanismo estrutural dessas economias.
57
Conforme indica Cardoso de Mello o período compreendido entre 1933 e 1955 refere-se a um processo de “industrialização
restringida. “Há industrialização porque a dinâmica da acumulação passa a se assentar na expansão industrial, ou melhor,
porque existe um movimento endógeno de acumulação, em que se reproduzem, conjuntamente, a força de trabalho e parte

clxxix
No contexto da industrialização restringida, conforme salienta Cardoso de

Mello (1998: 114), ao Estado cabe: proteger a economia contra as importações

concorrentes, evitar o fortalecimento da classe trabalhadora e de seu poder de

barganha e realizar investimentos em infra-estrutura. “Quer dizer, um tipo de ação

político-econômica inteiramente solidário a um esquema privado de acumulação que

repousava em bases técnicas ainda estreitas.”

Sendo assim, do ponto de vista da ordem administrativa do Estado brasileiro,

essa alteração de projeto político, que tem como base de sustentação a aliança entre

a oligarquia agrária e a burguesia industrial, não provocará ruptura com a

“bifrontalidade” da administração pública no Brasil. O que ocorrerá será uma

ampliação, desenvolvimento e fortalecimento da estrutura burocrática do Estado,

necessários para promover a implantação (1930-1950) e a aceleração (1950-1980) da

acumulação e da expansão das relações capitalistas no Brasil. Tal fato se dá, porém,

com a manutenção do elemento patrimonialista como componente fundamental para

operar a dominação de classe existente, na medida em que se necessita do apoio das

oligarquias agrárias para impulsionar uma industrialização e urbanização excludente,

evitando o risco de rupturas e de ampliação radical de direitos da classe trabalhadora

e, portanto, da redução de privilégios das classes dominantes. Para garantir essa

industrialização excludente (incorporação seletiva e regulada de setores da classe

trabalhadora), além do apoio das oligarquias, o Estado estruturará uma burocracia

fortemente autoritária, mesmo porque desenvolvida em períodos ditatoriais (1930-

1945 e 1964-1984).

Em outras palavras, nesse quadro, o Estado se fortalece para ser o

protagonista central da expansão capitalista de base industrial, numa perspectiva de

incorporação seletiva e regulada da classe operária, através de uma coalizão da

crescente do capital constante industriais; mas a industrialização se encontra restringida porque as bases técnicas e
financeiras da acumulação são insuficientes para que se implante, num golpe, o núcleo fundamental da indústria de bens de
produção, que permitiria à capacidade produtiva crescer adiante da demanda, autodeterminando o processo de
desenvolvimento industrial” (Cardoso de Mello, 1998: 110).

clxxx
oligarquia agrária com a burguesia industrial. Tal coalizão necessitará, para objetivar

sua dominação, de uma ordem administrativa que mantenha a estrutura genética da

administração pública brasileira (bifrontalidade), variando apenas em tonalidades: a

burocracia passa a se sobrepor, paulatinamente, à dimensão patrimonialista e possuirá

como característica central a negação da política e o autoritarismo (na medida em que

identifica política com clientelismo - vê-se como estrutura racional e superior em

termos administrativos em relação aos elementos patrimonialistas - e se desenvolve a

partir de regimes ditatoriais). Esse traço da burocracia propiciará a criação de

estruturas insuladas (Diniz, 1997 e Nunes, 1997), as quais viabilizarão a formação dos

chamados “anéis burocráticos” (Cardoso, 1975).

Antes, porém, de detalharmos o processo de desenvolvimento da

administração pública nesse período, convém tratarmos de uma questão teórica que

entendemos ser de fundamental importância para o estudo em tela. Trata-se do

aprofundamento da questão da “bifrontalidade” da administração pública elaborada

por Marco Aurélio Nogueira, que tem sido utilizada como ponto de partida para

interpretarmos a ordem administrativa brasileira.

Dessa forma, o primeira questão a apontar, mesmo que sumariamente, refere-

se à necessidade de explicitar que esse caminho a ser trilhado, aberto por Marco

Aurélio Nogueira, afasta-se da formulação de Faoro a respeito da construção estatal e

da ordem administrativa brasileira pós-193058. A concepção marxista de Nogueira não

deixa dúvidas quanto à relação que deve ser buscada entre as classes sociais e a

constituição do Estado, mesmo concebendo a autonomia do político em relação à

economia.

Faoro, a partir da perspectiva weberiana, autonomizará o político e sua

estrutura para materializar a dominação (a ordem administrativa), para além das

possibilidades efetivas de tal processo ocorrer. Nesse sentido, apesar de uma precisa

58
Nas seções anteriores deste trabalho, em diversas passagens, já havíamos apontado as diferenças entre a concepção
presente nesta tese e aquela desenvolvida por Faoro.

clxxxi
análise sobre o comportamento do Estado varguista frente à sociedade (ou melhor,

frente às camadas médias e populares), o autor conclui apresentando o Estado como

um ente acima das classes sociais. Vejamos a análise:

Liberal, sim, mas de teor tutelador, de caráter positivista e não


rousseauniano, com a soberania popular como pressão a ser
atendida pelo governo, guardando este a liberdade de selecionar
as reivindicações. Os problemas sociais deveriam ser
incorporados ao mecanismo estatal, para pacificá-los, domando-
os entre extremismos, com a reforma do aparelhamento, não só
constitucional, mas político-social. Mudança para realizar o
progresso nacional, sem a efetiva transferência do poder às
camadas médias e populares, que se deveriam fazer representar
sem os riscos de sua índole vulcânica. Estas correntes ocupam
o cenário, na verdade, antes que assumam consciência de seus
interesses, antecedendo às transformações econômicas que
justifiquem seu poder. Daí, na perspectiva do poder, a necessidade
de um Estado orientador, alheado das competições, paternalista na
essência, controlado por um líder e sedimentado numa burocracia
superior, estamental e sem obediência a imposições de classe
(Faoro, 2004: 693 – negritos nosso).

Essa forma de ver as coisas leva o autor, a despeito de considerar o

entrelaçamento entre a expansão capitalista industrial e estrutura tradicional da

agricultura (Faoro, 2004: 711-717), a interpretar o processo político como conduzido

por poder estatal constituído de uma estrutura burocrática-estamental que arbitra as

tensões entre as classes e não como um poder e estruturas constituídos a partir das

lutas empreendidas entre as classes e frações de classes. Nas palavras do autor:

Trilhando a estrada real, que seus tutelados e adversários deixam


aberta, o ditador segue, aparentemente solitário, ao encontro da
nação. Um sistema estamental, com a reorganização da estrutura
patrimonialista, ocupa o espaço vazio, rapidamente, diante dos olhos
atônitos de camaradas e inimigos. Um poder se alevanta, sobre as
classes, sobre os partidos e facções, sobre o Exército e o povo, com
um líder que poucos vêem (Faoro, 2004: 697).

O poder estatal já se sentia em condições de comandar a economia –


num regresso patrimonialista, insista-se – com a formação de uma
comunidade burocrática, agora mais marcadamente burocrática que
aristocrática, mas de caráter estamental, superior e árbitro das
classes (Faoro, 2004: 717 e 718).

Assim, mais uma vez, Faoro, ao supervalorizar a estrutura central do poder do

Estado, não destaca o enraizamento local da estrutura de poder, identificando essa

centralização e burocratização como um mecanismo de retomada do

clxxxii
patrimonialismo e não como uma exigência do novo projeto político (industrialização

e urbanização) conduzido por uma coalizão conservadora das classes dominantes.

Daí decorrem dois problemas. O primeiro refere-se ao fato de o autor não entender a

burocratização processada como um componente de modernização da estrutura

administrativa no sentido de viabilizar a criação das condições para a ampliação das

relações capitalistas no país, mas sim como um momento reacionário de

organização administrativa (“reorganização da estrutura patrimonialista”, “regresso

patrimonialista”). Nesse sentido, a estrutura administrativa não ganha densidade

burocrática, weberianamente falando, para implementar o projeto de ampliação das

relações capitalistas, via industrialização e urbanização.

O segundo problema aparece na análise realizada pelo autor que não

percebe a continuidade da influência e, portanto, da participação no poder das elites

agrárias tradicionais. Segundo Faoro (2004: 706), “entre o povo e o ditador só a

burocracia, sem coronelismo, sem oligarquias, mas num vínculo ardente com as

massas, gerando o populismo autocrático, esteio hábil para evitar o predomínio de

outros grupos”.

Em nosso entendimento, como detalharemos adiante, a ditadura Vargas não

esvazia as oligarquias e o coronelismo. Via burocracia, ela reforça o poder central,

para controlar os poderes oligárquicos e coronelistas, no sentido de enquadrá-los

para o novo projeto político e econômico em desenvolvimento. Dessa forma,

organiza-se uma outra estrutura para viabilizar a participação das oligarquias

tradicionais no poder. Essa nova estrutura, obviamente, não será formal, mas se

expressará na direção que será dada à condução da industrialização: não alteração

da estrutura de poder oligárquica e coronelista.

Por outro lado, a expansão da burocracia se coloca como exigência objetiva

clxxxiii
para operacionalizar o projeto de industrialização. Especialização e estruturação de

regras e normas estáveis são fundamentais para o desenvolvimento capitalista.

Assim, em nosso ponto de vista, não ocorre um regresso ao patrimonialismo,

mas, como sugere Nogueira, uma compatibilização, ou “bifrontalidade” entre o

patrimonialismo e a burocracia.

Explicitadas as diferenças entre a concepção de Faoro e aquela que marca o

caminho sugerido por Nogueira, para melhor compreendermos a ordem

administrativa brasileira, mesmo que resumidamente, cabe agora problematizarmos

alguns aspectos referentes à abordagem desenvolvida pelo autor marxista.

Nogueira indica que várias vozes diagnosticaram a precariedade da

administração pública brasileira, seu “caráter patrimonialista e resistência à

introdução de técnicas, procedimentos e estruturas organizacionais de tipo racional-

legal, bem como, por extensão, sua ineficácia e sua ineficiência” (Nogueira, 1998:

89)

Em nosso entendimento, a questão central da administração pública no Brasil

não está relacionada à ineficácia e ineficiência e nem à resistência à introdução de

técnicas e procedimentos de tipo racional-legal. É mais adequado falar que a

administração pública brasileira correspondeu ao tipo de dominação e projetos

políticos a que ela era submetida. Da integração nacional do Império, passando pelo

projeto de economia exportadora capitalista, sob hegemonia da oligarquia agrária

cafeeira, e chegando ao projeto de industrialização sob direção de oligarquias, numa

combinação com a burguesia industrial emergente, todos esses processos foram

conduzidos pela administração pública, garantindo a manutenção do pacto de

dominação estabelecido em cada momento. Ou seja, a administração pública

sempre cumpriu suas funções de operacionalizar os projetos de dominação

clxxxiv
presentes em cada período histórico, propiciando a realização do projeto e dos

interesses dominantes em pauta. O que ocorreu foi sempre a exclusão de setores

subalternos na participação das decisões sobre as propostas a serem

implementadas e sobre a distribuição das riquezas produzidas. Porém, como a

incorporação dos setores subalternos não constava dos projetos em tela, a

administração pública não pode ser considerada ineficaz tendo como parâmetro a

participação desses setores na definição e distribuição das riquezas produzidas. Por

outro lado, se a ineficiência aludida significa indicar que os projetos são

desenvolvidos através de um grande custo, visto que a administração é permeada

de corrupção e apropriação privada de recursos, o equívoco se encontra ao não se

perceber que esses instrumentos patrimonialistas (que não distinguem o público do

privado) são fundamentais para garantir o tipo de pacto de dominação estruturado,

que incorpora setores tradicionais da sociedade. Ou seja, os projetos definidos para

a industrialização brasileira nunca abriram mão da participação dos setores

tradicionais, por conseguinte, os custos para sua incorporação não podem ser vistos

como problema de eficiência administrativa. Em suma, ineficiência e ineficácia não

podem ser tratadas abstratamente, como se estivessem relacionadas a um projeto

industrializante clássico de tipo europeu e americano e fundado numa racionalidade

típica instrumental capitalista, ou voltada para a “universalidade de procedimentos”

numa nítida orientação democrática.

Em seguida, Nogueira (1998: 89) afirma que há um descompasso entre

governar e a ação administrativa e que a história da República Federativa é a de

atenuar tais descompassos e atualizar o aparato estatal. Em minha opinião, o que

ocorre ao longo da história da república é a adequação do aparelho administrativo

às configurações das diferentes fases do projeto de expansão capitalista, a partir

clxxxv
sempre de um pacto de dominação que combina a burguesia industrial e a oligarquia

agrária e a exclusão (incorporação seletiva e parcial) das classes subalternas.

Ato contínuo, o autor faz uma ressalva à questão da adequação da ordem

administrativa, ao longo da República, afirmando que simultaneamente ocorre a

reiteração das bases que levaram à precarização da máquina pública, mesmo nos

momentos de tentativa de atualização do aparato administrativo. Da forma tratada, a

reiteração é apresentada quase como se fosse uma questão técnico-administrativa e

não como uma dimensão cuja raiz é a estrutura de dominação que dirige a ordem

administrativa, como nos ensina Weber.

Nogueira (1998: 90), então, corretamente, afirma que esse estado de coisas

se explica, por um lado, pela raiz da formação do Estado nacional brasileiro, que tem

origem na passagem da Colônia para o Império e, posteriormente, para a República,

fortalecendo a lógica do mandonismo local e não os procedimentos racionais. No

entanto, nesse trecho, o autor parece conceber que a perpetuação do mandonismo

é um desvio de nosso desenvolvimento capitalista e não uma particularidade dele,

como afirma no capítulo que trata de nossa revolução burguesa. Nesse sentido, a

incorporação do debate sobre a revolução passiva/modernização conservadora na

transição brasileira para o capitalismo é feita parcialmente, ao não ser articulada

explicitamente com a dimensão administrativa da dominação. Por isso, em nosso

entendimento, a análise operada por Nogueira apresenta uma autonomização

excessiva da estrutura administrativa. Ou seja, diferentemente de Faoro, a

análise de Nogueira, que acaba sugerindo a autonomização excessiva da estrutura

administrativa, não se refere à concepção de Estado acima das classes, está

relacionada ao fato de o autor não articular explicitamente a revolução passiva com

clxxxvi
a ordem administrativa brasileira, a qual está subordinada a uma estrutura de

dominação que combina setores “atrasados” e “modernos” da sociedade.

Por outro lado, Nogueira analisa que a reiteração das bases que levaram à

precarização da máquina administrativa pública e seus descompassos e desajustes,

decorreram do inchaço da estrutura burocrática, na medida em que a administração

pública “esteve sempre marcada pelo desempenho de funções vicárias e

compensatórias, empenhando-se em atender à necessidade de absorver o

excedente de mão-de-obra que brotava do incipiente sistema produtivo do País”

(Nogueira, 1998: 91). Adiante, Nogueira afirma que esse processo de deformação e

agigantamento artificial vinculou o sistema organizacional aos mecanismos de troca

política. Aqui o autor parece ter invertido o sinal, pois, na verdade, a estrutura

tradicional baseada na troca política é que infla artificialmente a máquina pública e

não o contrário.

Para concluir, o autor de As Possibilidades da Política (1998:91) sentencia:

Desde cedo, portanto, o setor público esteve instrumentalizado pelas


oligarquias locais/regionais e pelos grupos econômicos dominantes.
Acabou, então, por ser fortemente condicionado por interesses,
hábitos e estilos do mundo privado, que buscou formatar o espaço
público como uma fonte de privilégios pessoais ou grupais e de
distribuição de cargos, benesses e prebendas.

Nesse trecho, Nogueira, mais uma vez, apresenta uma concepção que

remete à excessiva autonomização da administração, na medida em que analisa a

instrumentalização do poder público pelas oligarquias como uma distorção e não

como essência da expressão da dominação. A administração, para o autor, foi

condicionada por estilos do mundo privado e não constituída por um padrão de

dominação tradicional. Em nosso entendimento, não há uma invasão no espaço

público de padrões privados do mandonismo local, mas sim uma estruturação da

administração que comporta o padrão de dominação tradicional que se reflete nas

clxxxvii
dimensões patrimonialistas existentes.

Sendo assim, o que “dificultou a convivência da burocracia estatal com

padrões superiores de racionalidade, eficiência e organicidade” não foi a “intimidade

entre o mundo público e mundo privado” (Nogueira, 1998:91), mas o fato de a ordem

administrativa brasileira ter se constituído a partir de padrões tradicionais e racionais

de dominação, em decorrência do pacto de dominação formado a partir da

peculiaridade de nossa revolução burguesa.

A concepção não radicalmente dialética de Nogueira aparece também quando

o autor afirma, baseando-se em Mário Wagner Vieira da Cunha, que a burocracia

brasileira, apesar de estimulada pela Revolução de 30, foi vencida na sua disciplina

pela pressão direta dos interesses econômicos dominantes (Nogueira, 1998: 92). A

pressão direta dos interesses dominantes está presente em qualquer ordem

administrativa, o que particulariza o caso brasileiro é o fato de nossa ordem

administrativa incorporar estruturalmente uma dimensão patrimonialista que abre

espaços diretos para utilização privada de bens públicos. O modelo administrativo

cunhado pela revolução de 30 não se constitui como um modelo de tipo racional-

legal que encontra obstáculos para se implementar. O modelo proposto é de

manutenção da imbricação do patrimonialismo com burocracia a fim de manter o

pacto de dominação entre os interesses oligárquicos e os da burguesia industrial

emergente, porém sob a ampliação dos mecanismos de tipo racional-legal, por conta

da necessidade de implementação do projeto de industrialização e urbanização. Em

outras palavras, a Revolução de 30 não apresenta uma proposta de suprimir os

traços tradicionais da administração pública para constituir um modelo puro

burocrático weberiano que é impedido de se realizar devido à história patrimonialista

de nossa administração. Esse parece ser o equívoco de interpretação de muitos

clxxxviii
autores e, dentre eles, o de Marco Aurélio Nogueira.

O autor em análise parece indicar que os “surtos reformadores” da

administração pública tinham o objetivo de implementar uma burocracia racional-

legal e não adequar a administração a uma determinada fase da expansão

capitalista brasileira, sob um pacto de dominação que articulava tradição e

racionalismo como componentes das elites econômicas - cuja tradição está mais

presente em setores da oligarquia agrária. Apesar do processo de aburguesamento

ter ocorrido, o racionalismo intrumental capitalista se expressa, predominantemente,

na burguesia industrial que, no entanto, incorpora comportamento tradicional

(Fernandes, 1981).

A despeito de, acertadamente, Nogueira afirmar que esses diagnósticos têm

como referência a forma adquirida pela revolução capitalista no Brasil, o autor não

articula dialeticamente essa situação com o desenvolvimento da administração

pública. Ou melhor, não incorpora, de forma radical, para a administração pública a

concepção de modernização conservadora, entendendo as relações entre

patrimonialismo e burocracia no sentido que os críticos da razão dualista fizeram

para analisar a imbricação entre o “atraso” e o “moderno” no desenvolvimento

capitalista brasileiro. Ou seja, entender que a industrialização burguesa forma uma

unidade contraditória com setores agrários e urbanos não capitalistas e que,

portanto, esse traço não se constitui como óbice ao desenvolvimento de nosso

capitalismo, mas sim estrutura nosso particular desenvolvimento urbano-industrial.

Conforme analisa Oliveira (2003: 32), a dualidade enfocada entre o “setor atrasado”

e o “setor moderno” não passa de uma oposição formal, uma vez que “de fato, o

processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários,

clxxxix
em que o chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atrasado’, se se

quer manter a terminologia”.

A idéia de “bifrontalidade” expressa a não radicalidade do pensamento de

Nogueira, visto que, se, por um lado, apresenta a interpenetração funcional e a

contradição entre os termos patrimonialismo e burocracia, por outro lado, parece

indicar uma dualidade presente na administração pública. Nas palavras do autor:

Cristalizada e reproduzida ao longo do tempo, tal bifrontalidade


expressou-se na situação desigual e desequilibrada da máquina
administrativa, na sua permeabilidade ao clientelismo, na sua
congênita resistência à mudança, na sua incapacidade de
implementar de modo conclusivo os projetos reformadores que
desenhava para si própria (negrito nosso).

A questão, nos termos de Nogueira, parece se configurar da seguinte forma: a

revolução burguesa brasileira que se processa por meio de uma modernização

conservadora, de uma revolução passiva, ao incorporar as classes não capitalistas

no processo de industrialização e não possuir uma burguesia industrial forte,

depende do Estado para operar a transição. Assim sendo, a ordem administrativa

burocrática construída para implementar a expansão capitalista em sua dimensão

industrial esbarra com a estrutura patrimonialista histórica e sofre com as

interferências políticas da incorporação das classes tradicionais, promovendo a

bifrontalidade da administração pública.

Essa forma de ver as coisas expressa um certo dualismo entre a dimensão

burocrática e a patrimonialista da estrutura administrativa brasileira. A coalizão de

classes que processa a transição capitalista interfere na ordem administrativa, que

precisa ser burocrática, devido ao projeto industrializante em marcha, e obstaculiza o

desenvolvimento da burocracia, sobretudo ao se levar em consideração o passado

patrimonialista da administração pública brasileira. Ou seja, o patrimonialismo é uma

dimensão que permanece presente na administração pública devido ao passado e à

cxc
interferência de fora para dentro realizada pelas elites dominantes tradicionais, na

medida em que nossa modernização possui o caráter conservador.

Dessa maneira, a combinação patrimonialismo e burocracia não se apresenta

como um imbricação estrutural para realizar a dominação estabelecida por um pacto

entre setores tradicionais (com pinceladas modernas) e modernos (com pinceladas

tradicionais) que conduzirão o projeto de expansão capitalista de 1930 até a ditadura

militar. Por isso, o autor se refere a obstáculos que nossa revolução burguesa

apresenta para o desenvolvimento racional-legal da administração pública.

Entretanto, nossa revolução burguesa não apresenta obstáculos para o

desenvolvimento racional-legal da administração pública. Antes, nossa revolução

burguesa determina o imbricação estrutural entre burocracia e patrimonialismo na

configuração da administração pública. Nesse sentido, parafraseando Oliveira (2003:

31), poderíamos dizer que a lógica dualista de Nogueira procura articular rigor

científico da análise com consciência moral, visando apresentar proposições

reformistas para a questão da administração pública.

Essa forma de precisar a questão não se trata apenas de um preciosismo

semântico ou acadêmico, ela possui conseqüências prático-políticas fundamentais

para o aprimoramento da administração pública no sentido do aprofundamento de

sua racionalidade e legalidade. Se a análise sobre a bifrontalidade da ordem

administrativa brasileira está baseada na existência, por um lado, de um passado de

estrutura patrimonialista e, por outro lado, da interferência “de fora para dentro” na

administração, devido à pressão política das elites dominantes tradicionais, a lógica

indica que a superação da situação passa pela mudança da cultura patrimonialista

herdada de nossa história administrativa e por evitar a interferência das elites

tradicionais na condução da administração pública.

cxci
No entanto, como consideramos que ocorre uma imbricação dialética entre

patrimonialismo e burocracia, derivada de nossa revolução burguesa passiva e

negociada, não existe apenas uma cultura patrimonialista incrustrada na

administração, o que ocorre de fato é um pacto de dominação que requer a

manutenção dos elementos tradicionais da administração. Portanto, não existe

apenas um padrão cultural patrimonialista, existe uma estrutura de dominação que

exige a manutenção desse padrão como lógica administrativa. Conseqüentemente,

a questão central não está na pressão de fora para dentro na administração, mas

sim na organização de uma administração que incorpora elementos tipicamente

tradicionais para realizar a dominação.

Sendo assim, em termos ideais, a consolidação de uma administração

racional-legal no Brasil implica, por um lado, a ruptura do pacto de dominação

que combina setores tradicionais com a burguesia industrial e, por outro lado,

a incorporação da classe trabalhadora. Isso não significa dizer que medidas

técnicas e racionais não possam e devam ser implementadas na administração

pública, mas sim que existe um limite estrutural para a efetivação de uma

administração racional-legal sob a égide de um pacto de dominação que

combina tradição e racionalismo capitalista.

As seguintes passagens ratificam minha análise sobre o texto de Nogueira:

Naqueles anos [referência aos anos 1930], começou a ser visualizado


o desafio de criar uma administração pública moderna, burocrática,
sintonizada com os novos tempos que se previa para o País (1998:
94).

O impulso reformador do Dasp, porém, não chegou a se completar:


dele não nasceu a administração pública moderna, ágil, eficiente e
eficaz (...) (1998: 95).

... o reformismo daspiano não sanou as contradições básicas da vida


administrativa estatal, nem chegou a inverter as tendências que
modelavam o amadurecimento da administração pública (1998: 95-
96).

cxcii
Em nosso entendimento, a interpretação de que nesse período está presente

um projeto de modernização burocrática da administração não passa da aparência

do processo, pois a essência é o desenvolvimento de uma ordem administrativa

baseada no imbricação do patrimonialismo com a burocracia.

Continuando com a apresentação das análises de Nogueira, temos:

...o esforço da administração para consolidar os inúmeros códigos


legais que disciplinassem a atividade educacional, agrícola, sanitária,
e ganhar maior racionalidade e maior agilidade (...) tendeu a se fazer
à margem da administração formal, substituída por órgão da
denominada administração indireta ou autárquica, criados (...) para
facilitar a utilização política do aparato administrativo (...).
... a experiência reformadora ativada noas anos 30 não pode
preservar-se das injunções de natureza política e cultural que
acompanharam a explicitação daquela etapa do desenvolvimento
capitalista brasileiro. Impregnou-se das tendências e características
do ambiente em que havia nascido, sendo paulatinamente devorada
pelo autoritarismo, pelos mecanismos de controle e regulação da
cidadania, pelo clientelismo e pela incorporação, às estruturas
estatais (...), dos interesses sociais que se desejava constituir
como base privilegiada de apoio político ao novo regime. O Dasp
perdeu, por exemplo, a batalha pela introdução e universalização
do sistema do mérito no serviço público, atropelado pelas
nomeações de funcionários, "extranumerários", pelas indicações
políticas, pelos concursos manipulados (Nogueira, 1998: 96-97 –
negrito nosso).

Essa última citação expressa bem a concepção de que o processo de

modernização da ordem administrativa sofreu "injunções de natureza política e

cultural" e, por isso, não se efetivou. Ora, a ordem administrativa é produto da

estrutura de dominação, portanto derivada das relações políticas. Nesse sentido, o

autor, ao relacionar a não modernização administrativa às questões de injunções

políticas, não percebe que a ordem administrativa estruturada a partir de 1930 não

poderia possuir caráter racional burocrático típico e que os elementos clientelistas e

de incorporação de determinados interesses sociais, necessariamente, deveriam fazer

parte da organização administrativa brasileira. Dessa forma, não foi uma injunção "de

fora para dentro" na administração pública que preservou sua natureza

patrimonialista. A dimensão patrimonialista se faz necessária devido ao pacto de

dominação existente, portanto, ela é intrínseca à ordem administrativa, tanto quanto a

dimensão burocrática, que está se fortalecendo devido ao projeto de industrialização

cxciii
que precisa ser implementado. Sendo assim, a lógica racional-legal não foi

"devorada" pelo traços tradicionais da administração, não houve "batalha" perdida,

mas sim a estruturação de uma ordem administrativa que combina burocracia e

patrimonialismo, pois está relacionada a um pacto de dominação que articula

interesses das oligarquias agrárias com interesses da burguesia industrial emergente.

Apesar do ponto de partida do autor, para analisar o desenvolvimento da

ordem administrativa brasileira, ser original, já que se vincula à tradição marxista e

articula o desenvolvimento da administração pública à revolução passiva, o

desdobramento de sua análise absorve concepções “culturalistas” e/ou

desvinculadas do processo de nossa revolução burguesa. Esse desvio da análise de

Nogueira está presente na forma corrente como o tema vem sendo tratado por

diferentes intérpretes do desenvolvimento da administração pública. Vejamos,

sumariamente, alguns exemplos.

Bresser Pereira (1996: 271-272) parte da concepção de que a “administração

pública burocrática foi adotada para substituir a administração patrimonialista”,

embora o patrimonialismo mantivesse sua força no quadro político brasileiro. Para o

autor, o cenário atual de avanço democrático apresenta um quadro cultural e político

que condena tanto o patrimonialismo quanto o burocratismo, abrindo possibilidades

para um novo modelo de gestão: a administração pública gerencial. Dessa maneira, o

desenvolvimento da administração pública é analisado de forma evolucionista, pois o

processo de implantação da ordem burocrática é visto como aprimoramento e

superação da ordem patrimonialista, assim como o gerencialismo se coloca num

patamar acima do modelo burocrático, partindo de um diagnóstico, “no mínimo

discutível por não corresponder à realidade brasileira” - conforme ressalta Lima

Júnior (1998: 18) - de que o quadro atual condena o patrimonialismo e a burocracia.

Luciano Martins (1997) relaciona, explicitamente, a cultura política brasileira

(patrimonialismo, clientelismo, etc) aos processos que obstacularizaram a eficiência e

eficácia da administração pública. Segundo o autor, “a tentativa feita na década de

cxciv
1930 e nos meados da década de 1940 para modernizar a administração e formar em

todos os níveis do aparelho do estatal algo parecido com uma burocracia weberiana

foi parcialmente distorcida e, mais tarde, abandonada pela cultura política clientelista

profundamente enraizada” (Martins, 1997: 19). Portanto, na visão do autor, a partir de

1930 se implantou um projeto de organização burocrática weberiana que não se

efetivou devido à cultura patrimonialista existente no País.

A análise de Pinho (1998), bastante inspirada em Martins (1997) e Nogueira

(1998), apesar de apresentar pistas corretas ao relacionar ordem econômica, ordem

política e ordem administrativa59, mantém um viés culturalista, ao afirmar que, a partir

do Dasp, “as mesmas mãos que queriam ser weberianas não conseguiam, ou não

podiam resistir ao poder histórico do patrimonialismo” (Pinho, 1998: 3). Em outra

passagem o autor conclui que na atual conjuntura é possível a administração pública

brasileira incorporar uma dimensão gerencialista, porém adverte que “os riscos são

dessa nova camada também se contaminar pelo vírus patrimonialista” (Pinho,1998: 9).

Na concepção do autor o patrimonialismo é entendido como um óbice, presente na

cultura política brasileira, ao desenvolvimento de modelos de gestão mais racionais,

eficientes e eficazes. Assim sendo, o patrimonialismo se expressa como um traço

cultural que se mantém no País interferindo de forma negativa no desenvolvimento da

administração pública.

Ribeiro (2002) caminha na linha interpretativa de que após a revolução de 30 o

projeto de administração pública que se propõe é um projeto voltado para viabilizar a

industrialização, através da instauração de uma ordem burocrática, “superando-se a

forma patrimonialista de administrar a coisa pública” (Ribeiro, 202: 2). Como se pode

observar, a análise desenvolvida pela autora segue a perspectiva de que, a apartir de

1930, o objetivo da estruturação da ordem administrativa é implantar a lógica racional-

legal, eliminando os traços patrimonialistas.

59
Conforme destaca o autor, ao tratar da persistência do padrão patrimonialista na administração pública, “Quem gere a ordem
econômica é fundamentalmente a mesma ordem política. Assim, a burocracia pode ser weberianizada até um ponto que não
atrapalhe os intereses patrimonialistas fortemente enraizados e instalados, assim também o capitalismo no Brasil não poderia

cxcv
Lima Júnior (1998), apesar de concluir que poucas foram as tentativas reais de

organizar uma ordem efetivamente burocrática no País e que o patrimonialismo e o

clientelismo “têm sido os traços estruturais de nossa administração pública” (Lima

Júnior, 1998: 18), não explica o porquê desses traços estruturais, dando margem a

interpretações de cunho exógeno. Ou seja, as influências políticas tradicionais

inviabilizam o desenvolvimento da racionalidade burocrática da administração pública

brasileira. Segundo o autor, no período de 1930-1945 “não foram bem-sucedidas as

tentativas de se profissionalizar o servidor público e torná-lo imune às relações

espúrias com os políticos” (1998: 9), adiante, continua o analista, “a burocracia

sempre foi permeável ao processo político como um todo, ao clientelismo,

desempenhando funções muito específicas, porém quase nunca em nome do

interesse público” (1998: 11).

Torres (2004) analisa com precisão a necessidade de uma ordem administrativa

racional-legal para o desenvolvimento do capitalismo. No entanto, o autor, ao vincular

essa necessidade à questão meramente técnica, entende que a superação ou a

relativização da ordem administrativa patrimonialista se dará pela adequação das

demandas tecnológicas a uma oferta de administração burocrática60. Nesses termos,

o autor não percebe a particularidade do capitalismo brasileiro, que se desenvolve a

partir de condições pré-capitalistas, não estabelecendo a conexão entre a questão da

dominação e a ordem administrativa, o que determina a exigência da manutenção de

padrões tradicionais de administração (patrimonialismo). Além disso, o autor incorre

no equívoco de atribuir a injunções políticas os problemas de implantação do modelo

burocrático no Brasil. Nas palavras de Torres (2004: 150), “o processo de implantação

de um modelo weberiano no Brasil é marcado por características e injunções políticas

ainda permeadas por um viés patrimonialista muito intenso”.

ser também suficientemente ‘weberianizado’” (Pinho, 1998: 8)


60
”Um processo histórico de expansão quantitativa e qualitativa da administração pública e privada, exigida pelo
desenvolvimento do capitalismo, irá relativizar a total supremacia da administração patrimonial no Brasil , que se mostra em
descompasso com os novos avanços tecnológicos e institucionais que o capitalismo promove e potencializa” (Torres, 2004:
146).

cxcvi
Edson Nunes (1997), de forma precisa, aborda a questão a partir dos seguintes

aspectos: a) critica a visão dualista sobre o Brasil; b) parte de uma perspectiva que

combina “preocupação com a economia e um foco sólido na interação entre várias

dimensões institucionais, dentro da esfera política de um caso nacional” (1997: 16); c)

tem como objetivo “demonstrar como emergiram novos tipos de organizações

políticas e sociais, como se tornaram institucionalizadas e que impacto causaram em

grupos, resolução de conflitos, padrões de intermediação de interesses e

governabilidade” (1997: 17); d) evita o dualismo, ao trabalhar com o que ele denomina

de quatro “gramáticas” que estruturam a relação entre Estado e sociedade no Brasil

(clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de

procedimentos); e) conclui que não houve uma “canibalização da ordem tradicional”,

mas sim uma combinação sincrética da “gramáticas” na institucionalização das

relações estabelecidas entre o Estado e a sociedade.

No entanto, apesar dessa abordagem – que entendemos ser correta -,

interpreta esse processo como sendo conseqüência da operacionalização de

reformadores de mentalidade dualista, visando fugir dos obstáculos tradicionais. Ou

seja, segundo o autor, o sincretismo das “gramáticas” se institucionalizou devido a

uma condução dualista das reformas necessárias para modernizar o país. Em outras

palavras, para impedir que o atraso interferisse na modernização, foram criadas

estruturas de relação entre Estado e sociedade para proteger as ações modernizantes

daquelas vinculadas à ordem tradicional, gerando, assim, o sincretismo, uma vez que

as estruturas arcaicas se mantiveram e se combinaram com aquelas que foram

criadas para viabilizar uma orientação modernizante. Dessa forma, a interpretação do

autor não articula o desenvolvimento do capitalismo brasileiro a um pacto de

dominação que combina “atraso” e “moderno” e que, portanto, implica uma ordem

administrativa “sincrética” entre elementos patrimonialistas e burocráticos.

Diversas passagens do livro de Numes (1997) ratificam a interpretação

desenvolvida. Vejamos:

cxcvii
O uso extensivo de agências estatais insuladas foi uma resposta
ao dilema criado pelo imperativo da liderança estatal no
desenvolvimento econômico, associado à incapacidade de
reformar o aparelho de Estado tradicional, para que ele pudesse
desempenhar a função desenvolvimentista. Dadas as
circunstâncias concretas do período pós-45, o clientelismo
gerou um espaço para o insulamento burocrático, solução que as
modernas forças capitalistas encontraram para fugir à dominação
política do clientelismo (1997: 98 – negritos nosso).

O movimento em prol da modernização do país ganhou um


grande alento a partir da Revolução de 30. A despeito das
freqüentes dúvidas sobre o processo (...) e sobre os agentes da
modernização; há um razoável consenso de que a oligarquia rural e
a ordem particularista por ela mantida impediam a modernização
(1997: 103– negritos nosso)

Os criadores das burocracias insuladas, igualmente


escravizados pela percepção da dualidade, trabalharam para criar
no Brasil uma sociedade moderna que pudesse fugir precisamente
dos constrangimentos criados pela ordem tradicional (1997: 120–
negritos nosso)

As elites modernizantes freqüentemente encaravam o


Congresso, os políticos e os partidos como obstáculos ao
progresso. (...) O objetivo de superar a fragmentação da política
tradicional justificou a criação de instituições corporativas nos
anos 30. As tentativas de escapar à natureza clientelista do
Congresso e dos partidos políticos levou à institucionalização das
burocracias insuladas na década de 50. O objetivo de escapar à
natureza esquerdista, populista, clientelista e corrupta dos partidos
políticos conduziu ao aprofundamento do insulamento
burocrático e ao banimento e à cassação de direitos civis dos
políticos profissionais depois de 1964 (1997: 120– negritos
nosso).

É mister frisar que, longe de se estar criticando as produções apresentadas em

seu conjunto – ao longo desta tese, vários aspectos das análises dos autores em

pauta são incorporadas para compreender o desenvolvimento e as determinações da

administração pública brasileira -, o objetivo aqui é apenas ressaltar a diferença de

nossa concepção, em relação ao processo de desenvolvimento da burocracia no

Brasil, da maioria das interpretações vigentes que tendem a analisar a implantação da

ordem racional-legal no Brasil, a partir de 1930, como uma forma de superar os traços

patrimonialistas da administração, identificando o fracasso como sendo produto das

interferências políticas e da cultura tradicional remanescente no país. Entretanto,

nossa análise aponta para a perspectiva de que a partir de 1930 ocorre o

desenvolvimento e o fortalecimento da dimensão burocrática da ordem administrativa

cxcviii
brasileira, não porque se pretende superar o patrimonialismo, mas porque são

necessários padrões racionais para viabilizar a expansão capitalista no Brasil, via

projeto de industrialização e urbanização. Assim, não se implementa um projeto de

superação da ordem patrimonialista, já que a particularidade periférica do capitalismo

brasileiro se estrutura a partir do entrelaçamento de interesses agrários tradicionais e

pré-capitalistas com interesses da burguesia industrial emergente, exigindo-se,

portanto, a manutenção da ordem administrativa tradicional, de cariz patrimonialista.

Nessa perspectiva, a observação de Fernandes (1981: 262) é primorosa para

compreendermos a relação estabelecida no Brasil entre a “oligarquia agrária

tradicional” e a “burguesia moderna”:

...o estilo de dominação da burguesia reflete muito mais a


situação comum das classes possuidoras e privilegiadas, que a
presumível ânsia de democratização, de modernização ou de
nacionalismo econômico de algum setor burguês mais
avançado. Por isso, ele antes reproduz o ‘espírito mandonista
oligárquico’ que outras dimensões potenciais da mentalidade
burguesa. As coisas tornariam outro rumo se, de fato, aqui e
alhures os setores urbano-comerciais e urbano-industriais
fossem levados a tomar uma posição antioligárquica irredutível,
o que exigiria que a dupla articulação se diluísse
automaticamente através do próprio desenvolvimento
capitalista.”

Essa forma de compreender a relação entre a “oligarquia agrária tradicional” e

a “burguesia moderna” e sua implicação na estruturação da ordem administrativa

brasileira parece ser o divisor de águas entre as interpretações correntes do

desenvolvimento da administração pública brasileira e aquela que estou propondo

nesta tese.

Assim sendo, tendo como referência o entendimento de que ocorre no Brasil

uma imbricação da dimensão burocrática com a dimensão patrimonialista na

estruturação da administração pública, veremos, a partir deste momento, os

elementos que constituíram historicamente tal estruturação, ao longo do período

compreendido entre os anos 30 e o início dos anos 80 do século passado.

O primeiro aspecto a desatacar refere-se ao entendimento que no período de

1930 até o final da ditadura militar, o que ocorre no Brasil, em termos de desenvolvimento

cxcix
da ordem administrativa, é a sua organização para operacionalizar a expansão de nosso

capitalismo periférico, dependente e associado, do início da industrialização até a fase de

consolidação monopólica, conduzido, desde sua origem, pelo pacto de dominação

estruturado pela articulação entre interesses agrários tradicionais e a burguesia industrial,

incorporando os setores populares de forma “seletiva” e “regulada”.

Portanto, a linha de análise proposta entende que as mudanças processadas na

administração pública respondem ao movimento global do capitalismo brasileiro, devendo

ser entendidas sob esse prisma e não como um processo de racionalização da

administração. Assim sendo, procuramos fugir das leituras endógenas e evolucionistas da

administração pública - que interpretam a história da ordem administrativa brasileira como

se fosse a história das ações voltadas para a sua racionalização e/ou o processo que

articula patrimonialismo, burocracia e gerencialismo, enquanto diferentes modelos de gestão

– daquelas que interpretam a administração pública brasileira como uma estrutura que não

se alterou substantivamente ao longo do desenvolvimento da sociedade brasileira,

mantendo-se permanente ou predominantemente patrimonialista, independentemente das

mudanças operadas na hegemonia do pacto de dominação e de sua ordem administrativa

necessárias para impulsionar a expansão capitalista.

Do ponto de vista da ordem administrativa, a criação do Departamento

Administrativo do Serviço Público (Dasp), em 1938, como órgão responsável para

organizar e desenvolver a administração numa perspectiva racional-legal, apresenta-

se como marco fundamental do fortalecimento da estrutura burocrática brasileira,

com contorno nitidamente weberiano. Além disso, como lembra Torres (2004: 147), “é

iniciado um amplo processo de criação de estatutos e normas para as áreas mais

fundamentais da administração pública, especialmente quanto à gestão de pessoas

(1936), compras governamentais (1931) e execução financeira (legislação de 1940)”.

Nunes qualifica essa dimensão da intervenção do Dasp como a tentativa de

institucionalizar o “universalismo de procedimentos” na administração pública

brasileira. Edson Nunes (1997) utiliza o conceito de “universalismo de

cc
procedimentos” para definir o processo de regulação do espaço público onde as

normas formalmente elaboradas são utilizadas por todos os membros da comunidade

política, ou aplicadas a eles, de forma impessoal, para viabilizar a representação

política, a proteção contra os abusos de poder do Estado, a organização das

demandas sociais, dentre outras ações. O universalismo de procedimentos constitui-

se como um dos componentes essenciais da democracia. Nas palavras do autor, “em

geral o universalismo de procedimentos é associado à noção de cidadania plena e

igualdade perante a lei, exemplificada pelos países de avançada economia de

mercado, regidos por um governo representativo” (Nunes, 1997: 35). Dessa forma e de

acordo com o ponto de vista teórico desenvolvido neste trabalho, podemos entender

o “universalismo de procedimentos” como um produto da dimensão racional da

burocracia que pode ser utilizada para fins de aprofundamento e universalização de

direitos. Portanto, o “universalismo de procedimentos” não se estrutura como um

mecanismo distinto da burocracia, ele se manifesta a partir da existência de determinados

aspectos presentes na expressão material da racionalidade burocrática que pode ser

potencializada para uma administração pública democrática61.

Como visto anteriormente, a ampliação da dimensão burocrática da ordem

administrativa brasileira está diretamente relacionada à necessidade de

operacionalizar o projeto de industrialização e urbanização, que implica a ampliação

do aparelho de Estado62, na medida em que este se configura como protagonista

central do processo em voga. Nas palavras de Oliveira (2003: 42), “o crescimento das

funções do Estado implica necessariamente o crescimento da máquina estatal,

portanto da burocracia e da tecnocracia”.

61
Ver no Capítulo 1, as seções sobre Expressão material da racionalidade burocrática e Burocracia e administração
pública democrática.
62
A título de exemplo podemos verificar a ampliação dos órgãos públicos no período. Em 1861, o País contava com sete
ministérios (Império, Negócios Estrangeiros, Justiça, Fazenda, Guerra, Marinha e Agricultura, Comércio e Obras Públicas).
Durante a República Velha, a situação não se alterou, em 1906, tínhamos, também, sete ministérios (Fazenda, Justiça e
Negócios Interiores, Viação e Obras Públicas, Relações Exteriores, Guerra, Marinha e Agricultura, Comércio e Indústria). A
partir de 1930, além da criação de três ministérios (Aeronáutica, Educação e Saúde e Trabalho, Indústria e Comércio),
cresceram consideravelmente o número de agências estatais (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de
econoia mista) (Ramos, 1983: 344-345). De acordo com Lima Júnior (1998: 8), “até 1939, haviam sido criadas 35 agências
estatais; entre 1940 e 1945 surgiram 21 agências”.

cci
Fiori (1995: 128) ressalta que a reforma institucional implementada “a partir da

Revolução de 30 e, sobretudo, a partir do Estado Novo, em 1937, permitiu a

constituição de uma burocracia especializada e meritocrática, a qual capacitou o

Estado a controlar e administrar funções macroeconômicas e centralizar e normatizar

as principais áreas da atividade produtiva nacional”. No entanto, como se refere a um

projeto conduzido por um pacto de dominação que incorpora a elite tradicional

agrária e exclui setores significativos das classes subalternas, a ampliação da

dimensão burocrática não significará a eliminação de estruturas vinculadas à ordem

tradicional patrimonialista. Conforme sinaliza o próprio autor (1995: 109),

...trata-se de um pacto conservador no qual o seu braço forte, o


capital agrário-mercantil e bancário, nunca viu no Estado o
condotieri de um projeto de afirmação nacional, econômica ou
militar. Sempre optou pela associação subordinada com o capital
internacional, produtivo ou financeiro, como única forma
possível de financiar uma industrialização tardia e periférica que
jamais tornou-se um projeto verdadeiramente nacional, ao estilo
prussiano ou japonês.

Nessa perspectiva, o desenvolvimento da administração pública, a partir de

1930, não se configurará como um processo de racionalização ampla da ordem

administrativa, para implementar o projeto de industrialização e urbanização, mas sim

num processo que, ao ampliar a dimensão burocrática, combinará a lógica racional-

legal com os traços patrimonialistas da lógica tradicional. Assim, a autonomia da

burocracia pública será limitada “pelo diâmetro desse compromisso conservador

entre as várias facções de nossa burguesia, flexível à sua ampliação e absolutamente

intolerante às arbitragens penalizadoras” (Fiori, 1995: 110), e, nós

complementaríamos, pela sua expansão de forma imbricada com os elementos

patrimonialistas.

Simultaneamente, considerando que a partir de 1937 se instaura a ditadura

varguista, a expansão burocrática será realizada sob um quadro de ausência

democrática, produzindo um efeito de distanciamento da burocracia da esfera política,

reforçando, dessa feita, sua dimensão autocrática. Por outro lado, o governo Vargas

utilizará a expansão da burocracia, via Dasp, como um dos elementos para viabilizar

ccii
sua sustentação política, pois garantirá o controle da administração pública em suas

mãos (Abrúcio, 2002; Torres, 2004 e Lima Júnior, 1998). Ou seja, a expansão da

burocracia pública, via Dasp e seus braços nos estados (os chamados Daspinhos),

combinada com a nomeação dos interventores dos estados, contribuiu para o

fortalecimento do poder central contra os poderes locais, numa perspectiva,

nitidamente centralista. As interventorias serão, do ponto de vista político,

“verdadeiras correias de transmissão do Governo federal para os estados (...)

[formando] um sistema e não peças isoladas entre si” (Abrúcio, 2002: 45). Os

“Daspinhos”, por outro lado, “faziam o papel de extensão administrativa do Poder

Central, pois eram subordinados ao Dasp e ao Ministério da Justiça” (Abrúcio, 2002:

46)63.

Conforme observa Nunes (1997: 53-54), essa utilização do Dasp para efeito da

operacionalização da ditadura Vargas implementou o “insulamento burocrático”64 na

administração pública brasileira.

A implementação do “insulamento burocrático” efetivou uma ação paradoxal

com o “universalismo de procedimentos” também operado pelo órgão. Ou seja, a

estrutura burocrática organizada a partir de 1930 será constituída por uma dimensão

“insulada” e outra “democrática”, sob predomínio da primeira. Além disso, ressalta

Nunes (1997: 53), a Lei dos Estados e Municípios (1939) pôs fim à autonomia local, na

medida em que “a arrecadação (...) foi praticamente toda transferida para o governo

federal (...) [reduzindo] drasticamente os recursos para o clientelismo, antes à

disposição das elites regionais”.

Portanto, o desenvolvimento da dimensão burocrática da ordem administrativa

brasileira, além de funcional para a tarefa de expansão capitalista, será utilizado,

63
Faoro (2004: 686-687) também destacará a importância da ampliação burocrática e o estabelecimento das interventorias
para o fortalecimento do poder central.
64
Conforme vimos no capítulo anterior, “...o insulamento burocrático é o processo de proteção do núcleo técnico do Estado
contra a interferência oriunda do público ou de outras organizações intermediárias. (...) O insulamento burocrático significa a
redução do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel (...) ao contrário da
retórica de seus patrocinadores, o insulamento burocrático não é de forma nenhuma uma processo técnico e apolítico...”
(Nunes, 1997: 34).

cciii
também, para o processo de centralização do poder, num movimento de ruptura com

o excesso de descentralização presente na República Velha, combinando

“universalismo de procedimentos” com “insulamento burocrático”.

Nesses termos, a burocracia se expande no Brasil a partir de três determinações

fundamentais: a) criar condições institucionais para implementar o projeto de expansão

capitalista, estruturando “universalismo de procedimentos”; b) manter relações com o

esquema de privilégios patrimonialistas já existente e que será ampliado e centralizado; c)

viabilizar a sustentação do regime ditatorial, via fortalecimento do poder central, através de

estratégias de “insulamento burocrático”. Esse processo constitui a modernização

conservadora na administração pública. Dessa forma, a administração pública

brasileira terá um caráter racional-legal e de especialização nas questões relativas à

industrialização e centralização do poder; buscará formas de articular a dimensão

burocrática com a patrimonialista tradicional que permanecerá em certas áreas da

gestão pública e, transversalmente, incorporará uma cultura autoritária e insulada,

devido a sua utilização pelo regime ditatorial como instrumento de sustentação

política.

Assim se estabelecem dimensões diversas na estruturação do quadro

administrativo brasileiro. Por um lado, estrutura-se a distinção entre “áreas nobres”

(Fazenda, Forças Armadas, Itamaraty e Banco do Brasil, Banco Central...) e “áreas

subalternas” (principalmente as vinculadas à área social), onde as condições de

trabalho, a estrutura burocrática profissional e os salários se distinguem de acordo

com o status da área. Por outro lado, estabelece-se uma distinção entre “altos

escalões da burocracia”, organizados com base no mérito, especialização e

impessoalidade e os “escalões inferiores”, organizados por uma frágil burocratização

combinada com a lógica tradicional-patrimonialista efetivada através do clientelismo

(Martins, 1997).

É por isso que serviços diplomáticos estrangeiros e instituições


internacionais, que somente lidam com esses altos escalões,
percebem a burocracia brasileira como competente e eficiente; a

cciv
população, que precisa tratar no dia-a-dia como outro lado da
moeda, tem uma percepção completamente diferente (Martins,
1997: 18)

O Estado interventor varguista, com o firme propósito de consolidar a ordem

capitalista no Brasil, também se preocupará com a questão social. Dessa forma,

"progressivamente, o Estado brasileiro passa a reconhecer a questão social como

uma questão política a ser resolvida sob sua direção" (Sposati et alli, 1998). Mesmo

porque, a intervenção do Estado na área social era essencial para regular as relações

entre capital e trabalho, criando, assim, as bases para o desenvolvimento industrial.

Em 1933, são criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que

constituem a base do sistema nacional de previdência gerido pelo Estado brasileiro.

Os IAPs eram entidades autárquicas, organizadas por categoria profissional,

vinculadas ao Estado, através do Ministério do Trabalho, e filiavam compulsoriamente

todos os componentes sindicalizados da categoria profissional que abrangia.

Em outras palavras, para possuir um IAP, uma categoria profissional precisava,

primeiramente, ser reconhecida legalmente como profissão pelo Ministério do

Trabalho e possuir sindicato regulamentado. Ou seja, o Estado regulava o acesso dos

trabalhadores aos direitos sociais.

Essa engenharia político-institucional caracteriza uma concepção de

“cidadania regulada”, já que as políticas sociais e, portanto, os direitos sociais são

estabelecidos não com base em valores políticos, mas na regulação ocupacional dos

trabalhadores.

A partir de então, a intervenção social passa a se constituir como um

instrumento privilegiado do Estado para prover serviços, visando à ampliação

“regulada” da cidadania e à construção de uma “hegemonia seletiva” para garantir a

implementação do projeto de “modernização conservadora”, no marco da ordem

capitalista.
Os conceitos de “cidadania regulada” e “hegemonia seletiva” possuem uma interessante correlação. O primeiro conceito,

como visto, mostra a forma pela qual, durante o período varguista e populista, os governos no Brasil viabilizavam direitos

ccv
sociais.
Assim, apenas as categorias profissionais urbanas reconhecidas legalmente pelo Estado é que possuíam acesso a
determinados direitos sociais (Santos, 1987). O segundo conceito, desenvolvido por Carlos Nelson Coutinho, mostra que
, no

período em tela, utilizou-se, para governar, uma estratégia que não estabelecia uma hegemonia ampla na sociedade,
mas sim promovia alianças com alguns setores das classes subalternas, conquistando, dessa forma, uma hegemonia limitada,

baseada na seletividade dos segmentos sociais com os quais definia se aliar. O instrumento utilizado pelos governos para conquistar

essa “hegemonia seletiva” era, justamente, a concessão de determinados direitos sociais. Em outras palavras, a “cidadania regulada”

foi a forma utilizada para se estabelecer a “hegemonia seletiva”, que caracterizou a forma da relação
do Estado com as

classes trabalhadoras durante o período compreendido entre 1930 e 1964 (Coutinho, 1993).

A organização institucional para materializar os serviços previdenciários e a

assistência médica, via IAP’s, apresenta-se como uma estrutura exemplar que articula

organicamente as dimensões burocráticas e patrimonialistas da ordem administrativa

brasileira, além de formatar a estrutura pela qual se fará a incorporação seletiva da

classe trabalhadora no processo de industrialização e urbanização do país.

Cada IAP, destinado à determinada categoria profissional, possuía um

conselho administrativo com participação paritária de empregadores e empregados,

sendo a escolha da presidência reservada ao poder público, via Ministério do

Trabalho. Ao presidente do IAP cabia designar um funcionário do instituto para

secretariar o conselho administrativo. Dentre as atribuições do conselho

administrativo dos IAP’s encontrava-se a tarefa de admitir o pessoal para trabalhar no

instituto. Tal engenharia produziu diversas conseqüências.

Em primeiro lugar, a organização por categoria profissional dos IAP’s, regulada

pela ação do Estado, promoverá a incorporação seletiva da classe trabalhadora

através do recurso do corporativismo65 estatal. Grosso modo, o corporativismo

estatal possui como característica principal a identificação entre Estado e sociedade.

No caso do corporativismo estatal vinculado às classes subalternas, as

65
Para Philippe Schmitter “o corporativismo pode ser definido como um sistema de representação de interesses no qual as
unidades constitutivas são organizadas em um pequeno número de categorias únicas e obrigatórias, não competitivas,
organizadas hierarquicamente e funcionalmente diferenciadas, reconhecidas pelo Estado que concede deliberadamente o
monopólio da representação no interior das respectivas categorias” (Schmitter, 1981: 52-53, in Araújo e Tapia, 1991). O autor
ainda distingue dois tipos de corporativismo: o “estatal” e o “societal” (ou neocorporativismo). Para um maior detalhamento da
temática sobre corporativismo e neocorporativismo ver: Araújo e Tapia, 1991; Diniz e Boschi, 1991.

ccvi
representações e representantes dos interesses sociais se encontram subordinados à

autoridade estatal, quando não são criados por ela. Ou seja, não há autonomia da

sociedade civil frente ao Estado, o que propicia o estabelecimento de uma relação de

controle partindo do Estado para a sociedade66.

Em segundo lugar, a atribuição de admissão de pessoal para trabalhar nos

institutos constituía um recurso de poder fundamental para a elite sindical, o que

gerava a “submissão política dessa liderança à orientação de quem controlasse o

Ministério do Trabalho”, produzindo, assim, o “que se convencionou denominar, na

literatura, de peleguismo” (Santos, 1987: 71). Além disso, essa forma de admissão de

pessoal se caracteriza por estabelecer uma relação de lealdade entre o dirigente e o

funcionário, configurando-se como um elemento típico da administração

patrimonialista.

Por fim, cabe registrar que a escolha de um técnico, servidor do instituto, para

secretariar o conselho administrativo, expressa “uma das remotas raízes do poder da

burocracia estatal em administração de instituições públicas” (Santos, 1987: 29).

Outrossim, como ressalta Malloy (1976: 104), desenvolve-se, a partir desse momento,

um grupo de especialistas em questões previdenciárias no interior da máquina

pública, que “viriam desempenhar papéis proeminentes (...) como analistas, como

administradores e como ativistas de previdência social”.

Assim sendo, a estrutura previdenciária consolida uma organização pública que

combina especialização burocrática com lealdade patrimonialista, para promover a

incorporação seletiva da classe trabalhadora no projeto industrializante em

desenvolvimento.

Entretanto, a legislação previdenciária implementada no período não abrangia

os trabalhadores rurais (diga-se de passagem, a maioria da população) e nem todas

as profissões urbanas foram regulamentadas simultaneamente ou em um curto

66
Adiante veremos a forma que se processa o corporativismo estatal brasileiro vinculado às classes dominantes.

ccvii
espaço de tempo. Assim, havia necessidade de atender às demandas sociais dos

excluídos do sistema previdenciário.

Essa população excluída da política social organizada pelo Estado através dos

IAPs buscará suas necessidades de proteção social no campo da assistência social,

desenvolvida por instituições filantrópicas, vinculadas, principalmente, a entidades

religiosas ou a ações de políticos. Sônia Fleury (1991) interpreta essa situação como

de uma “cidadania invertida”, na qual determinados segmentos da sociedade (aqueles

que não possuem profissão regulamentada pelo Estado) têm acesso à assistência

social, uma vez que não são reconhecidos como cidadãos. A condição de não-

cidadania é o que possibilita o acesso a benefícios sociais, daí a inversão da

cidadania sinalizada pela a autora.

Para constituir o Estado Nacional e fortalecer o poder central para implementar

o projeto urbano-industrial capitalista, era necessário organizar as ações destinadas à

população excluída da proteção pública e, também, buscar o apoio do poder local.

Visando ao atendimento dessas necessidades, uma das estratégias utilizadas foi a

centralização dos recursos da assistência social no âmbito de instituições federais

(Conselho Nacional de Serviço Social/CNSS, Legião Brasileira de Assistência/LBA e

Serviço de Assistência ao Menor/SAM)67, para propiciar, simultaneamente, a

organização das ações assistenciais e a adesão dos políticos locais ao projeto em

implantação, através da manutenção de relações clientelistas.

A assistência social se desenvolverá, então, tendo como elementos

predominantes as práticas caritativas e assistencialistas desenvolvidas pela igreja e o

clientelismo típico, oriundo da República Velha, que encontrará na centralização do

poder uma nova forma de processá-lo. Nesse contexto, as instituições da sociedade

civil que atuam na área da assistência social, para obterem recursos junto aos órgãos

públicos, via de regra, terão que solicitar o apoio dos políticos locais que

67
Conforme destacam Iamamoto e Carvalho (1982), essas instituições estatais ampliaram significativamente o mercado de
trabalho para os assistentes sociais, categoria profissional estruturada a partir da segunda metade dos anos 1930.

ccviii
intermediarão a relação entre os dois pólos (instituições da sociedade civil –

organizações públicas federais). Dessa forma, cria-se uma cadeia de troca de favores

entre o poder central e o poder local - o primeiro necessitando do apoio político do

segundo e este necessitando de recursos para manter seu controle junto à população,

na medida em que, a partir da Lei de 1939, como vimos, a arrecadação foi transferida

para o governo central - e entre o poder local e as instituições assistenciais – o líder

local reivindicando apoio político da população e as instituições necessitando de

recursos para manter suas ações.

Simultaneamente, para operar a distribuição de recursos, organizar as

informações sobre as instituições e desenvolver intervenções de apoio técnico ou

atendimento direto, era necessário organizar uma estrutura burocrática com um corpo

de especialistas.

Portanto, no campo assistencial também será forjada uma estrutura imbricada

de elementos burocráticos e patrimonialistas.

Sendo assim, a população destituída de cidadania terá que recorrer a

instituições privadas (seculares ou vinculadas às igrejas) para prover algumas de

suas necessidades sociais e o Estado promoverá, através de suas instituições e/ou

de sua omissão, a proliferação de organizações da sociedade civil destinadas ao

atendimento assistencial a diferentes segmentos sociais.

De forma geral, podemos dizer que a política social no Brasil será constituída

tendo como base as concepções de “cidadania regulada”, na perspectiva da política

previdenciária - destinada aos trabalhadores urbanos que possuíssem sua profissão

reconhecida legalmente -, a qual será implementada com base na lógica corporativo-

estatal, e a “cidadania invertida” como expressão da ação assistencial - destinadas

aos demais segmentos da população -, configurando-se como recurso de clientelismo

do poder central.

Criou-se, então, no País um sistema diferenciado de intervenção na área social.

Para os trabalhadores urbanos regulamentados estruturou-se um sistema público de

ccix
proteção social, baseado na previdência social e assistência médica, desenvolvido

pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões; para os demais trabalhadores e o

restante da população, ou seja, aos excluídos do sistema público, destinou-se o

aparato assistencial existente, apoiando sua expansão, através de subvenções

públicas (Mestriner, 2001).

É importante destacar que esse formato de desenvolvimento de políticas

sociais no Brasil se adéqua ao processo de incorporação seletiva e limitada das

classes subalternas às riquezas produzidas nacionalmente pelo advento da ordem

industrial. Ou seja, não existe um projeto de universalização e aprofundamento de direitos

sociais e, portanto, a estrutura burocrática organizada para operar as políticas sociais se

efetiva, também, de forma seletiva e limitada. Em linhas gerais, esse padrão de operar as

políticas sociais não sofrerá alteração até o advento do golpe de 1964.

3.2. A expansão da burocracia no contexto da irrupção do capitalismo monopolista

A partir da década de 1950, conduzir a economia brasileira para um novo

patamar de desenvolvimento capitalista passa a ser o objetivo central da coalizão

dominante.

Segundo Cardoso de Mello (1998: 117), a partir da década de 1950, mais

precisamente entre 1956 e 1961, estrutura-se no país um novo padrão de acumulação

caracterizado por um processo de industrialização pesada que “implicou um

crescimento acelerado da capacidade produtiva do setor de bens de produção e do

setor de bens duráveis de consumo antes de qualquer expansão previsível de seus

mercados”.

Fernandes (1981: 251- 288) identifica esse período como sendo o de início da

irrupção do capitalismo monopolista no Brasil e mostra, com precisão, como esse

processo se desenvolve no país mantendo a “dupla articulação”. Ou seja, para

impulsionar o salto industrializante a opção da burguesia industrial foi subordinar-se

ao capital estrangeiro e articular-se aos setores tradicionais. Portanto, “o novo padrão

ccx
de desenvolvimento capitalista terá de gerar, em termos estruturais, funcionais e

históricos, novas modalidades de dependência em relação as economias centrais e

novas formas relativas de subdesenvolvimento” (Fernandes, 1981: 259).

Do ponto de vista da economia nacional, conforme salienta Fernandes (1981:

269),

...o capitalismo monopolista terá de adaptar-se para coexistir


com uma variedade de formas econômicas persistentes,
algumas capitalistas, outras extracapitalistas. Não poderá
eliminá-las por completo, pela simples razão de que elas são
funcionais para o êxito do padrão capitalista-monopolista de
desenvolvimento econômico na periferia. Em outras palavras,
para se aninhar e crescer nas economias capitalistas periféricas,
esse padrão de desenvolvimento capitalista tem de satelitizar
formas econômicas variavelmente “modernas”, “antigas” e
“arcaicas”, que persistiram ao desenvolvimento anterior da
economia competitiva, do mercado capitalista da fase
neocolonial e da economia colonial. Tais formas econômicas
operam, em relação ao desenvolvimento capitalista monopolista,
como fontes de acumulação originária de capital.

Além da já citada análise desenvolvida por Oliveira (2003) sobre articulação

entre o setor agrícola tradicional e o setor industrial, o autor, para complementar o

quadro de articulação entre padrões pré-capitalistas e capitalistas para o

desenvolvimento urbano-industrial brasileiro, mostra a funcionalidade da expansão

extracapitalista do setor terciário nesse empreendimento, fazendo a crítica às

interpretações acerca da “inchação” do setor. Segundo Oliveira, não existe

“inchação” do setor terciário, na medida em que sua ampliação está relacionada à

acumulação urbano-industrial, a qual exige das cidades um conjunto de serviços para

operacionalizar o crescimento que se encontra em processo. No entanto, o

crescimento industrial intensivo operado no período, “em 30 anos passa de 19% para

30% de participação no produto bruto, não permitirá uma intensa e simultânea

capitalização nos serviços, sob pena de esses concorrerem com a indústria

propriamente dita pelos escassos fundos disponíveis para a acumulação

capitalística”. Essa contradição, como ressalta o autor, será resolvida pelo

“crescimento não capitalístico do setor Terciário” (Oliveira, 2003: 56-57). Portanto,

não existe “inchação” no setor terciário. Oliveira, dessa forma, decodifica a

ccxi
funcionalidade do crescimento não-capitalístico do setor Terciário para acumulação

nesse período e, por conseqüência, como ele engendra a forma arcaica no espaço

urbano.

Esse quadro traçado por Oliveira ressalta as articulações entre os setores

capitalistas e pré-capitalistas ou extracapitalistas para operar a industrialização

brasileira, sobre a qual o capital monopolista deverá interagir, conforme destacado

por Fernandes.

A expansão monopolista verificada no período se apóia, por um lado, no capital

internacional68, que se transfere para o Brasil na forma de capital produtivo, e, por

outro lado, na ação desempenhada pelo Estado que, segundo Cardoso de Mello (1998:

118),

foi decisiva, em primeiro lugar, porque se mostrou capaz de


investir maciçamente em infra-estrutura e nas indústrias de base
sob sua responsabilidade (...). Coube-lhe, ademais, uma tarefa
essencial: estabelecer as bases da associação com a grande
empresa oligopólica estrangeira, definindo claramente, um
esquema de acumulação e lhe concedendo generosos favores.

Nesses termos, o projeto desenvolvimentista se consolida no País.

Politicamente, o desenvolvimentismo se apresenta, conforme analisa Ianni (1989: 98),

como ideologia da conversão do capital agrícola, comercial e bancário em capital

industrial, a conversão do poder econômico da burguesia em poder político e, por fim,

a conversão do Estado patrimonial em Estado burguês. A partir da década de 1950

será consolidado o Estado desenvolvimentista brasileiro, cujo início se encontra na

inflexão econômica, política e social ocorrida no País a partir da revolução de 30.

Segundo Fiori (1995: 123), o consenso em torno do projeto de criar uma economia

nacional industrializada liderada pela intervenção planejada do Estado, consolidou-se

a partir dos anos 1950 na América Latina. De acordo com o autor, “pode-se dizer que

68
“Naturalmente, a presença da grande empresa estrangeira não se explica apenas pela existência de excelentes
oportunidades de inversão a serem colhidas, mas, também, em última instância, pela própria dinâmica de competição
oligopólica nos países centrais, cujo ponto de chegada consistiu, como se sabe, na conglomeração financeira e na expansão
oligopólica a escala mundial” (Cardoso de Mello, 1998: 119).

ccxii
a supremacia Estado desenvolvimentista na América Latina foi a contraface da

hegemonia Keynesiana na Europa”.

Apesar de certas diferenças entre as concepções sobre o que significa esse

período do ponto de vista do desenvolvimento da economia capitalista brasileira,

cabe destacar que o pacto que conduzirá esse processo para todos os intérpretes

citados será o mesmo que conduziu a Revolução de 30, porém a partir deste

momento, a hegemonia estará sob a condução da burguesia industrial.

A ordem administrativa brasileira deverá se adequar a esse contexto de

aceleração do desenvolvimento industrial e de início da “irrupção do capitalismo

monopolista”, para poder operar o projeto em tela, no marco da manutenção da

“dupla articulação”.

A estratégia operada, do ponto de vista administrativo, será marcada pela

reprodução das características centrais da administração pública que se estrutura a

partir de 1930. Entretanto, essa estratégia expandirá, significativamente, a dimensão

“insulada” da ordem burocrática - dimensão utilizada para viabilizar a ação racional

destinada à organização institucional, legal e econômica necessária para a fase da

industrialização em pauta, combinada com a exclusão dos setores populares –,

fortalecerá a dimensão patrimonialista através, principalmente, da manutenção do

poder dos governadores de estado e da implementação das políticas sociais

(prioritariamente as de assistência social) e, por fim, estagnará as iniciativas pautadas

para a ampliação da dimensão do “universalismo de procedimentos” presente na

ordem burocrática.

O processo de expansão do “insulamento burocrático” é realizado a partir da

Assessoria Econômica instituída no segundo governo Vargas e, principalmente,

através dos Grupos Executivos formados por JK (Nunes, 1997: 101 e 110). Ou seja, a

ordem burocrática brasileira vai se fortalecendo a partir da dimensão que reduz o

“escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um

ccxiii
papel” (Nunes, 1997: 34). Portanto, as potencialidades democráticas da ordem

burocrática não serão desenvolvidas e exploradas.

O pacto de dominação e o projeto industrializante a ser implementado vai

sendo definido ao longo do processo de nossa revolução burguesa, a partir da

articulação política entre os setores dominantes que estão vinculados à ordem

tradicional e à burguesia industrial, sob as condições de um capitalismo periférico,

em que, como já foi visto, capital agrícola e industrial interagem dialeticamente, numa

mútua dependência (Oliveira, 2003 e Cardoso de Mello, 1998). A divisão de trabalho

entre os setores da economia para promover a acumulação estava definida e os

espaços do Estado para operar o projeto de industrialização com participação dos

setores agrários foram se constituindo a partir da montagem da ordem administrativa

que expressava o pacto de dominação estabelecido. Nesse sentido, conforme sinaliza

Fiori (1995: 135-136), a ação do Estado para articular o financiamento da

industrialização estava condicionada ao veto político e ideológico do suporte

conservador que compunha o pacto de dominação estabelecido69.

Nesse quadro, os limites gerais, do ponto de vista econômico e político, que

demarcavam a implementação da industrialização foram determinados70. Cabia à

fração dirigente das classes dominantes operacionalizar as ações necessárias para

efetivar a industrialização nos contornos delimitados. A ordem administrativa

brasileira deverá ser adequada a esse processo de expansão capitalista que mantém

a “dupla articulação” e exclui as camadas populares.

No contexto do pacto de dominação conservador, a constituição de uma

burocracia insulada foi a estratégia administrativa adotada para responder à

aceleração da industrialização, em termos políticos e técnicos. Nesse sentido,

podemos dizer que o insulamento operado, muito mais que evitar a interferência

69
Abrúcio cita um estudo no qual indica “que de 1946 até 1962 mais de duzentos projetos de reforma agrária foram bloqueadas
pelas elites políticas das regiôes menos desenvolvidas”. Corroborando com a análise de Fiori, segundo o autor, “os grupos do
norte e Nordeste permaneceram com o poder de veto no Congresso em questões que alterassem o status quo das oligarquias
dessas regiões” (Abrúcio, 2002: 52).
70
Vale ressaltar, mais uma vez, que esses limites não são estáticos e nem isentos de contradições. Dependem sempre da

ccxiv
clientelista e populista no planejamento do processo de industrialização e

urbanização do país, conforme sinalizam Nunes (1997)71 e Fiori (1995)72, visava excluir

a classe trabalhadora da participação das definições sobre os rumos da expansão

capitalista, na medida em que os grandes contornos do projeto desenvolvimentista

eram determinados pelo veto político e ideológico do pacto conservador e a ocupação

do Estado, em seu conjunto, deveria corresponder à dominação existente. Portanto,

as determinações centrais da expansão do “insulamento burocrático” no Brasil se referem à

necessidade técnica e política de processar a “irrupção do capitalismo monopolista”,

mantendo a “dupla articulação”, e de controlar as classes trabalhadoras em relação à sua

participação política e seu acesso às riquezas produzidas. Assim, a tarefa principal do

insulamento burocrático no Brasil não se destina a evitar o patrimonialismo presente

na cultura político-administrativa, apesar de contribuir, também, para obliterar as

interferências indesejadas de frações das classes dominantes, fossem elas

vinculadas a setores urbanos ou rurais. Portanto, concordamos inteiramente com

Nunes (1997: 34) quando afirma que “o insulamento burocrático não é de forma

nenhuma um processo técnico e apolítico”.

Nesse contexto, o que se efetiva, do ponto de vista político, a partir da

expansão da burocracia insulada é a privatização do Estado pelas frações dirigentes

das classes dominantes. De acordo com Fiori (1995: 137):

O poder de veto dos vários blocos de interesse regional ou


setorial, reconhecidos pelo pacto original e reafirmados graças à
sua contribuição financeira ou eleitoral para a reprodução
política da ordem dominante, acabaram sedimentando grupos
que se apropriaram, literalmente, dos centros de decisão estatal
responsáveis pelo proteção de seus mercados cativos.

A expansão do “insulamento burocrático”, a partir da década de 1950,

propiciará a estruturação de uma nova forma de apropriação do público pelo privado,

correlação de forças que se expressa na sociedade, a partir das lutas de classes efetivadas concretamente.
71
Ver citações acima.
72
De acordo com o autor, no plano da gestão “o Estado formou os grupos executivos (...) para desenhar e acompanhar a
implementação das várias metas setoriais do Plano de metas, gerando uma espécie de burocracia paralela, mas enxuta e
impermeável às pressões da política populista e clientelista que caracterizavam, naquele momento, os traços fundamentais de
funcionamento do sistema político democrático brasileiro” (Fiori, 1995: 129).

ccxv
que não se confundirá com a ordem patrimonialista em relação a não distinção entre o

interesse público e o privado fundada na tradição. Ou seja, existem diferenças entre

gestão patrimonialista e gestão racional capitalista, apesar de ambas propiciarem a

acumulação privada.

A gestão patrimonialista confunde bem público com o bem privado, na medida

em que todos os bens pertencem ao senhor cuja dominação é de caráter tradicional.

A gestão racional capitalista, obviamente, privilegiará uma determinada classe

social ou frações dessa classe a partir da utilização de recursos públicos para

promover a acumulação. Porém, essa ação não é desenvolvida a partir de atributos

tradicionais e da falta de limites entre a esfera privada e a pública, mas sim dentro de

um racionalidade instrumental voltada para o desenvolvimento capitalista. Por isso,

discordamos das interpretações que colocam tudo sob o manto do patrimonialismo

ou identificam a privatização do Estado unicamente como vinculada à estrutura

patrimonial. As ações legais desenvolvidas pelo Estado são racionais e não

patrimonialistas, ainda que beneficiem privadamente setores, grupos ou pessoas. O

Estado não foi criado para garantir universalidade e interesses gerais, ele existe para

garantir a ordem capitalista e, portanto, a apropriação privada das riquezas

produzidas na sociedade. Tal fato não pode ser confundido com patrimonialismo.

Conforme destacam Diniz e Boschi (1991: 17), pelo viés do corporativismo, o modelo

político implantado no País para impulsionar a industrialização “forneceu as bases

institucionais para um novo padrão de regulação público/privado, que diferiu

fundamentalmente das relações prévias fundadas na visão do público como mera

extensão do poder privado.”

O caso do “insulamento burocrático” é exatamente este. Não podemos

confundi-lo com patrimonialismo, mas identificar, na sua configuração, os traços que

não correspondem à dimensão impessoal e formal de uma ordem burocrática típica

ideal.

ccxvi
Nesse sentido, concordamos com Schwartzman (1988: 7) que os canais

informais criados pelo Estado para se relacionar com a sociedade – mais

precisamente com os setores das classes dominantes - referem-se à lógica

patrimonial, na medida em que não estabelecem impessoalidade e regras formais

para definir a configuração da relação a ser estabelecida. Além disso, a forma de

recrutamento do quadro administrativo que constituirá as agências responsáveis

pelo planejamento e acompanhamento do processo de industrialização será feito a

partir de uma escolha discricionária da Presidência da República e não a partir de

uma seleção pública por mérito, precarizando a lógica burocrática devido à ausência

de impessoalidade. Porém, a existência desses traços tradicionais na estrutura da

administração paralela não configura tal estrutura como fundada na ordem

patrimonialista.

Conforme anota Nunes (1997: 110),

As agências encarregadas do desenvolvimento econômico


precisavam de dois recursos para levar seus planos efetivamente
adiante: pessoal competente e capital suficiente. JK imaginou
maneiras de providenciar ambos e utilizou o privilégio do Executivo
para preencher os cargos na burocracia insulada sem adotar qualquer
procedimento formal. Os Grupos Executivos foram compostos com
pessoal requisitado à SUMOC, à CACEX, ao BNDE, ao DASP, aos
ministérios, etc. (...) Em parte, ao requisitar os funcionários mais
competentes dos vários órgãos, Juscelino contornou não só a
burocracia tradicional, mas também qualquer tipo de universalismo de
procedimentos porventura existente.

Dessa forma, a dimensão racional da burocracia será desenvolvida

parcialmente. Como essa dimensão estará combinada a mecanismos de

recrutamento que não privilegiam a impessoalidade - apesar de garantir

competência técnica para o projeto em tela –, impedir-se-á a possibilidade de existir

um quadro administrativo comprometido, direta ou indiretamente, com interesses das

classes trabalhadoras. Por outro lado, a existência de canais informais de articulação

entre o Estado e a sociedade promoverá a privatização do público pelos setores que

ccxvii
terão acesso a tais canais. Assim, a potencialidade da dimensão burocrática para

operar ações que atendam a interesses das camadas não dominantes, e, portanto,

ampliar o “universalismo de procedimentos”, será extremamente restrita. Por outro

lado, ao se instituirem espaços burocráticos insulados para operar o projeto

industrializante, será retirado do congresso o papel de negociador político entre as

diferentes forças sociais. Esse fato enfraquecerá, ainda mais, a dimensão

democrática da luta política e sua relação com o aparelho administrativo do Estado,

criando uma arena decisória na burocracia federal afastada da democracia.

Assim, cabe ressaltar que ocorrerá uma mudança na função que a

dimensão insulada da burocracia exercia. No período compreendido entre 1937

e 1945 o “insulamento burocrático” serviu, prioritariamente, para a

sustentação da ditadura Vargas A partir da década de 1950 ele servirá,

prioritariamente, para viabilizar o projeto de expansão capitalista brasileiro.

Porém, o cariz antidemocrático de então permanecerá, na medida em que,

através do insulamento, será impedida a participação das classes

trabalhadoras no desenho do desenvolvimento capitalista a ser expandido no

país. Assim sendo, o desenvolvimento da burocracia insulada contribuirá para

a manutenção da estrutura de concentração de renda, riqueza e poder,

distanciando a ordem administrativa brasileira de uma perspectiva de

aprofundamento e universalização de direitos.

O arranjo político institucional baseado no “insulamento burocrático”

complementará, no entendimento de O´Donnell (1976) e Diniz e Boschi (1991), o

corporativismo estatal brasileiro que se caracterizará por ter dois componentes. O

primeiro deles é o “estatizante”, que se expressa através da relação que o Estado

estabelece com as organizações da sociedade que representam interesses do

ccxviii
trabalho, visando subordiná-las às suas orientações, ou seja, uma ação de controle

das classes populares. O outro componente é o “privatista”, que corresponde ao

processo de avanço de setores da sociedade civil, vinculados às classes e setores

dominantes, em direção ao Estado, criando áreas institucionais de influência desses

setores nas decisões políticas. Portanto, existe um caráter segmentar do

corporativismo estatal brasileiro na medida em que há distinção da forma com que o

Estado se relaciona com os setores populares em relação àquela com que ele se

relaciona com os setores dominantes73. Dessa forma, estará criada a possibilidade

política de conduzir a expansão capitalista, excluindo as classes populares e

garantindo às frações dirigentes das classes dominantes processar a privatização do

Estado. Nunes (1997: 113) sintetiza esse movimento de forma precisa:

O insulamento burocrático forneceu ao país uma administração


econômica racional, gerida por elites profissionais modernizantes
associadas a grupos empresariais internacionalizados. Embora essas
elites se percebessem como portadoras legítimas de valores
modernos e universalistas, o resultado de sua ação não foi
absolutamente a criação de um “domínio público”. Suas atividades
não tinham por objetivo a expansão das bases para uma cidadania
universalista no país; ao invés disso contribuíram para manter
inalteradas as bases da “cidadania regulada”...

Diferentemente do que pode ser sugerido por esse arranjo da ordem

administrativa brasileira, a burocracia insulada não expressa autonomia nem

neutralidade técnica do corpo administrativo que a compõe.

A falta de autonomia se manifesta por um lado, como vimos anteriormente, a

partir dos contornos definidos da expansão capitalista ditados pelo pacto de

dominação conservador e, por outro lado, pela participação direta de setores

empresarias no planejamento das ações destinadas à industrialização.

A inexistência de neutralidade técnica em qualquer campo é fato amplamente

debatido nas ciências sociais (Meszáros, 1996; Lowy, 1985 e 1989). No caso em

73
De acordo com O’Donnell (1976), este arranjo caracteriza um “corporativismo bifronte”.

ccxix
questão, tal fato fica demarcado, na medida em que a forma de recrutamento

operada para compor as agências insuladas estava definida politicamente. “As

novas agências, embora tecnicamente competentes, eram profundamente

politizadas e pautaram suas atividades por opções políticas claras, atitude que

também influenciou o recrutamento de seu pessoal” (Nunes, 1997: 19).

Nesse contexto, abre-se o caminho para a privatização do Estado por parte

das elites dominantes que, como lembra Fiori (1995: 110 e 154), “se o empresariado

sempre resistiu ideologicamente ao intervencionismo estatal, acabou cedendo

sempre, em troca da proteção indiscriminada que produziu, do ponto de vista

institucional, o que alguns chamaram de cartorialização e outros de privatização do

Estado”.

Nesse sentido, encontramos uma relação direta entre a dimensão insulada da

burocracia, produzida pela ausência de impessoalidade no recrutamento e no

estabelecimento de canais de interlocução com os diferentes setores da sociedade,

apesar da existência da especialização e competência técnica do corpo burocrático,

e o processo de privatização do Estado que esvazia a dimensão pública republicana

da estrutura político-institucional brasileira.

Dessa maneira, cabe registrar que se a expansão da burocracia não for

realizada preservando a dimensão impessoal e “universalista de procedimentos” de

sua racionalidade, não contribuirá para um projeto que se pretenda voltado para o

projeto destinado à universalidade e ao aprofundamento de direitos. Portanto, isso

não significa dizer que a burocracia seja incompatível com um projeto de

democratização no quadro do capitalismo, muito pelo contrário.

No contexto da consolidação do Estado desenvolvimentista, combinando com

a expansão insulada da burocracia (eliminação dos aspectos formais e impessoais

ccxx
de sua racionalidade), que tinha como objetivo central planejar e executar o projeto

de expansão capitalista no marco da “irrupção do capitalismo monopolista” sob a

égide da “dupla articulação”, será efetivada a ampliação dos mecanismos

clientelistas, vinculados à lógica patrimonialista coerente com a manutenção da

dominação tradicional, ainda em vigor.

Os espaços institucionais prioritários para efetivar a ampliação dos

mecanismos clientelistas serão, por um lado, o campo das políticas sociais e, por

outro, a forma de organizar o poder regional no quadro democrático.

No campo das políticas sociais, será mantido o padrão criado na década de

1930, seja na previdência e assistência médica, seja na assistência social. Portanto,

não haverá alteração nas lógicas de funcionamento das instituições, tampouco da

estrutura administrativa criada para operá-las. Ocorrerá apenas a expansão do

modelo forjado na década de 193074, no qual as classes trabalhadoras continuarão

sendo incorporadas seletivamente e de forma parcial.

Sendo assim, as características da administração pública na área das

políticas sociais serão mantidas. Por um lado, a expansão quantitativa das

instituições da área previdenciária promoverá a intensificação da combinação de

especialização burocrática com lealdade patrimonialista, conquistada através da

manutenção da política tradicional de empreguismo em troca de apoio político,

visando à incorporação seletiva e parcial da classe trabalhadora, via institutos de

previdência. Conforme analisa Nunes (1997:112):

Juscelino impediu que o DASP realizasse concursos para o serviço


público, com a justificativa de que era um processo muito caro, mas
ele próprio é acusado de ter feito perto de sete mil nomeações
políticas, apenas no primeiro ano de governo. Entretanto, a maior
parte delas foi feita por João Goulart nos ministérios do Trabalho e da

74
Há um consenso na bibliografia que trata o tema que no período compreendido entre 1945 e 1966 não ocorre mudanças na
estrutura de organização das políticas sociais brasileiras. Neste período há uma expansão das instituições e da lógica de
funcionamento das políticas sociais criadas na década de 30. Para maior aprofundamento ver Santos (1987), Vianna (1998),
Draibe (1989), entre outros.

ccxxi
agricultura e em suas autarquias, principalmente os institutos de
previdência...

Por outro lado, a ampliação da estrutura clientelista da assistência social,

apontada anteriormente, articular-se-á com a necessidade de ampliação de

especialistas que possibilitem a organização das ações de distribuição de recursos

públicos e apoio técnico para as instituições filantrópicas existentes, agora em maior

volume.

A manutenção do poder regional - mais especificamente, a forma principal

como as elites oligárquicas tradicionais continuarão exercendo a dominação política

de caráter tradicional em nível nacional -, será realizado a partir da não alteração

das relações de propriedade da terra. Apesar de extensa, cabe citar a análise de

Fiori (1995) sobre a questão, pois, além de precisa, é central para entendermos,

adiante, o poder que os governadores possuirão neste período:

Como, entretanto, jamais tivesse tido poder, condições ou mesmo


disposição de alterar as relações de propriedade da terra, a proposta
centralizante do Estado desenvolvimentista acabou sendo atenuada,
corroída ou mesmo pervertida por uma relação de permanente tensão
– e cooptação – entre a vontade central e o poder político dos
inúmeros e heterogêneos interesses regionais (Fiori, 1995: 142).

Em seguida, destaca o autor:

Não há dúvida de que, com a industrialização, as relações entre


atraso e modernidade se complexificaram, afastando-se de um
simples modelo dualista. A idéia de heterogeneidade estrutural
aponta exatamente para essa nova configuração, onde bolsões de
atraso político e econômico distribuem-se através de todas as regiões
e setores de atividades. Mas não há dúvida, entretanto, de que do
ponto de vista estritamente político-eleitoral, mantém-se uma certa
superposição capaz de permitir a existência, até hoje, de regiões do
País onde predominam as velhas oligarquias apoiadas em relações
políticas de tipo pessoal, assentadas no favor ou na dependência
econômica. Graças a isso, durante todo o ciclo desenvolvimentista,
essas oligarquias que controlaram a economia e o poder político,
nessas regiões mais atrasadas, obtiveram posições e favores junto ao
Estado central graças, exatamente, a esse seu grande poder de
mobilização eleitoral, indispensável à reprodução política da ordem
conservadora (Fiori, 1995: 143).

Dessa forma, a oligarquia agrária tradicional participará efetivamente da

estrutura de dominação no País, via seu poder local de mobilização político-eleitoral.

ccxxii
Abrúcio (2002) nos esclarece como esse processo se realiza concretamente.

Segundo o autor, após a abertura política processada depois da queda de Vargas, o

poder dos estados é recuperado, porém não nos mesmos termos da primeira

república, visto que o poder central, então, já se encontrava mais forte no país,

tornando as relações federativas mais equilibradas, seja entre União e estados, seja

entre os próprios estados. Nesse quadro, afirma o autor, “uma nova política dos

governadores surgiu e as bancadas estaduais na Câmara Federal possuíam poder

suficiente para barganhar por mais recursos do tesouro nacional para suas

clientelas” (Abrúcio, 2002: 50).

Nessa recomposição política, os estados do sudeste, principalmente São

Paulo e Minas Gerais, passam a ser sub-representados na Câmara Federal. No

entanto, como ressalta lucidamente o analista, a subrepresentação não fora de todo

ruim, pois, além dos interesses dos estados mais industrializados serem melhor

articulados via agências burocráticas insuladas, a subrepresentação “evitaria o

fortalecimento dos setores emergentes dos grandes centros urbanos e

industrializados” Abrúcio (2002: 51).

Um aspecto fundamental nesse quadro, como ressalta Abrúcio, diz respeito

ao papel dos governadores. Como as eleições presidenciais não ocorriam no mesmo

período que as proporcionais e que as destinadas aos governos dos estados, os

candidatos a deputado preferiam estar vinculados aos candidatos mais fortes ao

executivo estadual. Assim, criava-se uma dependência do deputado ao governador

eleito que o apoiara. Além disso, como destaca o autor, os governadores

controlavam os chefes políticos locais, através da distribuição de cargos públicos.

Dessa forma, analisa Abrúcio (2002: 54):

A realidade “coronelística”, fortalecedora do Executivo estadual frente


aos chefes locais, permaneceu em boa parte do país na Segunda
República, dada a continuidade da estrutura agrária arcaica em

ccxxiii
diversas regiões. Os vetos aos projetos de reforma agrária no
Congresso tinham uma intrínseca ligação com o pacto entre
Executivos estaduais e chefes locais, pois grande parcela dos
deputados federais precisava desse pacto para conquistar a reeleição
ou otimizar sua carreira para cargos majoritários. Por detrás dos vetos
dos deputados, estava o veto do sistema político estadual, cujo maior
beneficiário era o governador.

Então, a ordem administrativa no contexto de consolidação do Estado

desenvolvimentista se desenvolverá a partir da expansão da dimensão da

racionalidade capitalista e da especialização técnica da burocracia, num

quadro de insulamento de uma estrutura paralela de gestão, evitando a

utilização dos mecanismos de mérito e impessoais na composição de seus

quadros. Essa expansão será articulada à manutenção dos espaços

patrimoniais e clientelistas no campo das políticas sociais - visando à

incorporação seletiva e parcial das classes trabalhadoras - e na forma de

participação das camadas dominantes tradicionais na estrutura de poder.

Dessa forma, a dimensão de racionalidade da burocracia em seu sentido de

estruturação formal e impessoal de procedimentos será bloqueada,

inviabilizando a construção de uma ordem administrativa que pudesse

contribuir substantivamente com o fortalecimento de ações voltadas aos

interesses das classes populares.

As agências estatais, principalmente aquelas não insuladas e não identificadas

como agências clássicas do Estado (relações exteriores, forças armadas e

arrecadação fiscal), serão formadas por um segmento de especialistas, recrutados ou

não por mérito, combinado com um quadro não especializado, formado através de

contratações de caráter nitidamente patrimonialista75. Esse tipo de composição do

quadro administrativo prejudica profundamente o desenvolvimento da racionalidade

burocrática, no sentido de seu aproveitamento para a estruturação de uma

75
“A despeito das tentativas, durante anos, de reforma do serviço público e da retórica moralizadora de muitos governantes,
somente 12% dos empregados de todo o serviço público tinham sido admitidos sob as bases do mérito no final da década de
1950. Segundo o Censo dos Servidores Públicos de 1966, somente 12,93% dos servidores tinham sido admitidos, até 1966,

ccxxiv
perspectiva de universalização e aprofundamento de direitos. Por outro lado, a

estrutura burocrática formada por funcionários recrutados por mérito, via concurso

público, e outros através de mecanismos extrapatrimoniais de lealdade introduz nas

agências a forma clientelista de operar (ausência de sentido público), o que acaba

fazendo com que esse comportamento seja também incorporado pelos segmentos

burocráticos tradicionais. Nunes (1997: 33) analisa essa situação da seguinte forma:

As instituições formais do Estado ficaram altamente


impregnadas por este processo de troca de favores, a tal ponto
que poucos procedimentos burocráticos acontecem sem uma
“mãozinha”. Portanto, a burocracia apóia a operação do
clientelismo e suplementa o sistema partidário. Este sistema de
troca não apenas caracteriza uma forma de controle de fluxo de
recursos materiais na sociedade, mas também garante a
sobrevivência política do “corretor” local. Todo o conjunto de
relações característico de uma rede está baseado em contato
pessoal e amizade leal.

Dessa feita, conforme resume Nogueira (1998), o insulamento burocrático

simbolizou a tendência de relegar a administração direta a um plano secundário.

Esse cenário da administração pública dos anos 50 do século passado será

radicalizado, a partir da ditadura militar, através da sua institucionalização, operada

via Decreto-lei n.º 200/67.

3.3. Intensificação do insulamento burocrático como estratégia da consolidação da

fase monopólica do capitalismo brasileiro

O Decreto-lei n.º 200/67 expressa o coroamento legal e institucional da

estrutura administrativa desenvolvida na década de 1950 para operar a “irrupção do

capitalismo monopolista”. Ou seja, o Decreto-lei n.º 200 não apresenta inovação

substantiva em relação à estrutura da ordem administrativa que já vinha sendo

adotada desde a década de 1940 e que foi intensificada na década de 1950, ele apenas

aprofunda e institucionaliza a tendência esboçada naquele período. Obviamente, ao

aprofundar e institucionalizar os traços presentes na expansão da administração

sob as bases do mérito” (Nunes, 1997: 118).

ccxxv
pública ocorrida na década de 1950, a expressão fenomênica dos processos sociais,

econômicos, políticos e culturais em curso serão evidenciados.

Nesse sentido, em sua aparência, a reforma administrativa de 1967, se

expressará como um novo modelo de gestão a ser desenvolvido no Brasil (Bresser

Pereira, 1996 e Torres, 2004). No entanto, em sua essência, ela apenas potencializará

os elementos advindos da década de 1950, através da normatização e

institucionalização de seus mecanismos, para consolidar o processo de

monopolização capitalista no quadro da estratégia desenvolvimentista.

A reforma administrativa de 1967, no contexto da ditadura militar, é, portanto,

um imperativo necessário para lançar definitivamente o capitalismo brasileiro à fase

monopólica de seu desenvolvimento, após sua passagem pela industrialização

restringida (1933-1955) e industrialização pesada (1956-1967). Assim, essa reforma se

apresenta como continuidade e ruptura da realizada na década de 1930. Continuidade,

pois se encontra vinculada ao projeto de industrialização iniciado com a revolução de

30, no marco do desenvolvimentismo, e ruptura, posto que, no quadro de

esgotamento da estratégia utilizada para a construção dos alicerces para o

desenvolvimento industrial capitalista, manifestado na depressão de 1962-1967, eram

necessárias mudanças para retomar a expansão ocorrida entre 1956-196176, visando à

consolidação monopólica do projeto de capitalismo periférico, associado e

dependente.

Na análise de Fiori (1995), esse processo se caracteriza, uma vez mais como

uma “fuga para frente”. Para fugir dos conflitos e contradições do projeto de

economia dependente e associada, o Estado desenvolvimentista projetava-se para

frente, buscando ampliar as condições de acumulação, através de sua maior

intervenção na economia.

76
Conforme assinala Oliveira (2003: 101), a aceleração econômica do período introduz uma mudança qualitativamnete
significativa: “a implantação, nos ramos ‘dinâmicos’, das empresas que requerem uma homogeneidade monopolística da
economia como condição sine qua non de sua expansão”

ccxxvi
Dessa forma, entendemos que a reforma de 1967 é a expressão mediata do

projeto econômico de monopolização do capitalismo, no contexto de uma opção

política das classes dominantes orientada, por um lado, para manter a “dupla

articulação” e, por outro lado, para excluir as classes trabalhadoras do processo de

participação política das decisões sobre o desenvolvimento e da ampliação do acesso

às riquezas produzidas, mantendo assim, como destaca Oliveira (2003), o caráter

concentrador de poder, renda e propriedade. De forma clara, o sociólogo afirma que a

diferença fundamental do sistema pós-64 do de etapas anteriores talvez se expresse

“na combinação de um maior tamanho com a persistência dos antigos problemas.

Sob esse aspecto, o pós-64 dificilmente se compatibiliza com a imagem de uma

revolução econômica burguesa, é mais semelhante com o seu oposto, o de uma

contra-revolução” (Oliveira, 2003: 106 – itálicos no original).

Netto (1991: 27) sintetiza de forma precisa esse contexto:

a articulação político-social que fundava o Estado brasileiro às


vésperas de 1964 problematizava a continuidade do padrão
desenvolvimento dependente e associado que se engendrara em
meados da década de cinqüenta. O Estado que se estrutura
depois do golpe de abril expressa o rearranjo político das forças
socioeconômicas a que interessam a manutenção e a
continuidade daquele padrão, aprofundadas a heteronomia e a
exclusão. Tal Estado concretiza o pacto contra-revolucionário
(...), readequando-o às novas condições internas e externas que
emolduravam, de uma parte, o próprio patamar a que ele chegara
e, de outra, o contexto internacional do sistema capitalista (...).
Readequado, aquele esquema é definido em proveito do grande
capital, fundamentalmente dos monopólios imperialistas.

Para complementar e aprofundar a análise sobre o significado do golpe militar

de 1964, considero fundamental destacar duas observações de Fernandes (1981). A

primeira delas está diretamente relacionada ao conceito de “autocracia burguesa”. O

autor sublinha a necessidade de um elevado grau de estabilidade política para

viabilizar o desenvolvimento capitalista em sua fase monopólica. Ou seja, para

garantir o processo de monopolização no capitalismo dependente é necessária “uma

extrema concentração de poder político estatal” (Fernandes, 1981: 269). Por outro

ccxxvii
lado, como sinaliza o sociólogo, nos momentos críticos operou-se uma dissociação

entre o desenvolvimento político e o econômico. Nas palavras do autor:

Isso fez com que a restauração da dominação burguesa levasse


de um lado, a um padrão capitalista altamente racional e
modernizador de desenvolvimento econômico; e,
concomitantemente, servisse de pião a medidas, políticas,
militares e policiais, cotra-revolucionárias, que atrelaram o
Estado nacional não à clássica democracia burguesa mas a uma
versão tecnocrática da democracia restrita, a qual se poderia
qualificar , com precisão terminológica, como uma autocracia
burguesa (Fernandes, 1981: 267-268).

O segundo aspecto refere-se à manutenção da articulação entre setores pré-

capitalistas e capitalistas para viabilizar a consolidação monopólica, o que implica a

manutenção da participação da elite tradicional, principalmente agrária, na estrutura

de dominação do estado nacional. Consideramos oportuno, reproduzir a análise do

autor que, apesar de extensa, mostra-se essencial para fundamentar a perspectiva de

ordem administrativa que tem sido desenvolvida nesta tese:

...o capitalismo monopolista terá de adaptar-se para coexistir


com uma variedade de formas econômicas persistentes,
algumas capitalistas, outras extracapitalistas. Não poderá
eliminá-las por completo, pela simples razão de que elas são
funcionais para o êxito do padrão capitalista-monopolista de
desenvolvimento econômico na periferia. Em outras palavras,
para se aninhar e crescer nas economias capitalistas periféricas,
esse padrão de desenvolvimento capitalista tem de satelitizar
formas econômicas variavelmente “modernas”, “antigas” e
“arcaicas”, que persistiram ao desenvolvimento anterior da
economia competitiva, do mercado capitalista da fase
neocolonial e da economia colonial. Tais formas econômicas
operam, em relação ao desenvolvimento capitalista-monopolista,
como fontes originárias de capital (Fernandes, 1981: 269).

Diferentemente, portanto, das interpretações (Bresser Pereira, 1996 e 1998b e

Grau, 1998) que identificam a reforma administrativa de 1967 como um marco no

processo de aprimoramento do desenvolvimento da ordem administrativa brasileira -

no caminho da incorporação de mecanismos gerencias voltados para maior eficiência

na condução administrativa, distinguindo a reforma de 1967 da de 1936 e do

desenvolvimento da administração paralela na década de 1950 -, consideramos que,

efetivamente, o que ocorre no Brasil, do ponto de vista administrativo, a partir do golpe de

ccxxviii
1964, é a institucionalização e expansão da estrutura anterior, porém sob a égide da

consolidação monopólica do capitalismo brasileiro.

A expansão da estrutura administrativa se processa através da

descentralização77, operada, principalmente, pela ampliação da administração

indireta. Os diferentes dados a respeito dessa ampliação são contundentes (Martins,

1997; Lima Júnior, 1998; Pinho, 1998; Rezende, 2004)78.

Portanto, a experiência da burocracia insulada dos anos 1950 se expande

nesse período, a partir de uma orientação formal-legal expressa no Decreto-lei n º.

200/67.

Se, como vimos anteriormente, o insulamento dos anos 1950 se configura

como uma estratégia para processar o projeto de “irrupção do capitalismo

monopolista”, sob a perspectiva da “dupla articulação” e da exclusão das classes

trabalhadoras - obliterando, também, diga-se de passagem, as interferências

indesejadas de frações das classes dominantes -, a partir da ditadura, a situação se

agrava de forma exponencial, mudando qualitativamente o formato de articulação

entre o setor privado e o setor estatal para operar, agora, a consolidação de tal

estratégia.

Do ponto de vista administrativo, a mudança qualitativa se expressará através

da ampliação quantitativa da administração indireta e da substituição das assessorias

e grupos executivos de planejamento por uma estrutura fundada nas empresas

estatais, autarquias, fundações e sociedades de economia mista79 e no poder

executivo federal, via Ministério do Planejamento (Fiori, 1995; 24).

77
Conforme indica Torres (2004: 153 e 154), a descentralização proposta em 1967 se refere a três planos: na própria
administração direta, através da distinção entre direção e execução; na relação estabelecida entre administração federal e
unidades da federação e, por fim, na transferência para a administração indireta e iniciativa privada de determinadas ações.
78
Martins (1997: 22) informa que, na metade dos anos 1970, em relação a empresas públicas e controladas pelo Estado havia,
no Brasil, 571 delas, nos três níveis administrativos, sendo que 60% haviam sido criadas entre 1966 e 1976; Lima Júnior (1998:
14) aponta que de 440 empresas públicas, abrangendo o período entre 1939 e 1983, foram criadas 267 no período 1964-1983;
Pinho (1998: 4 e 5) apresenta o levantamento realizado por Braz Araújo, o qual indica que de 173 informações conseguidas
sobre as empresas estatais federais existentes em 1975 (total de empresas estatais existentes em 1975 era de 217), 130 foram
criadas entre 1965 e 1975; para finalizar, Rezende (2004: 61), a partir de vários volumes do “Orçamentos da União”, elabora
um quadro sobre as organizações públicas criadas pelo governo federal (1908-1984), o qual informa que do total de 384
organizações criadas ao longo do período, 274 foram instituídas entre 1964 e 1984, sendo que 216, a partir de 1967.
79
Para um sumário das distinções entre esses tipos de instituições que compõem a administração indireta, ver Torres (2004:
155).

ccxxix
Como sugere Nunes (1997: 42), o insulamento burocrático, processado na

década de 1950, permitiu o surgimento daquilo que Fernando Henrique chamou de

“anéis burocráticos” (Cardoso, 1975). Os “anéis burocráticos”, de acordo com o

sociólogo e ex-presidente, traduzem-se nos mecanismos políticos criados para

incorporar as forças econômicas privadas beneficiárias do sistema80 nos processos

de decisão necessários para a implementação do projeto em tela. Dessa forma, os

“anéis” se diferenciam dos lobbies, na medida em que se estruturam em círculos de

poder (informação e pressão) constituídos para viabilizar a articulação entre setores

do Estado e setores das classes sociais. Portanto, de acordo com Cardoso (1975:

208),

O que os distingue de um lobby é que são mais abrangentes (ou


seja, não se resumem ao interesse econômico) e mais
heterogêneos em sua composição (incluem funcionários,
empresários, militares etc.) e, especialmente, que para ter
vigência no contexto político-institucional brasileiro, necessitam
estar centralizados ao redor do detentor de algum cargo. Ou
seja, repetindo, não se trata de um instrumento de pressão da
sociedade sobre o Estado, mas da forma de articulação que sob
a égide da “sociedade política”, assegura ao mesmo tempo um
mecanismo de cooptação para integrar nas cúpulas decisórias
membros das classes acima referidas que se tornam
participantes da arena política, mas a ela se integram quae
personae e não como “representantes” de suas corporações de
classe.

Dessa feita, os “anéis burocráticos” formados a partir da expansão da

administração indireta, principalmente, através de sua intervenção na economia,

institucionalizam um processo de participação política de setores das classes

dominantes independentemente da existência de mecanismos de democracia,

eliminando, portanto, os espaços políticos possíveis de participação das camadas

populares e dos setores democráticos da sociedade.

Assim, a privatização do Estado operada nos moldes da década de 1950

expande, intensifica e se institucionaliza (a despeito da inexistência de uma relação

orgânica entre a burguesia nacional e o Estado); a burocracia se concentra na sua

80
Cardoso (1975: 206) aponta como beneficiários do regime “os setores industrial exportadores, os setores contratistas de
obras, os setores extrativo-exportadores, o grande capital multinacional – ligado às atividades anteriores ou à industria de
transformação – e o capital financeiro mobilizado para sustentar a nova etapa de acumulação e do crescimento econômico”.

ccxxx
dimensão de especialização e de expansão da racionalidade capitalista; e, por fim,

fragiliza-se, ainda mais, o desenvolvimento das potencialidades democráticas da

ordem burocrática.

Dentro desse panorama, consideramos a idéia dos “anéis burocráticos” como

fecunda para compreendermos a relação de continuidade e ruptura existente entre as

estratégias da década de 1950 e aquelas operadas a partir do golpe de 64.

No entanto, é fundamental explicitar que o desdobramento operado por

Cardoso, a partir dessa reflexão, não é incorporado nesta tese. Estamos nos referindo

à polêmica e equivocada análise sobre a constituição de uma “burguesia de Estado”.

Para o autor, nesse processo de expansão das empresas estatais, a elite burocrática

se configurará como agente econômico estatal capitalista com interesses próprios

competindo com os agentes privados e buscando hegemonia.

Como esclarece Coutinho (1980: 104), em seu ensaio crítico sobre a tese da

burguesia de Estado, o equívoco de Cardoso se encontra no fato de que ele “não vê a

dinâmica básica do CME [Capitalismo Monopolista de Estado], que se funda na

articulação orgânica entre Estado e monopólio numa totalidade concreta. Para ele, ao

contrário, nosso atual sistema econômico é um ‘sistema híbrido’”.

Continuando a análise, o autor verifica que, nos termos indicado por Cardoso,

nosso capitalismo apresenta uma contradição interna que se expressa na luta entre

as variantes “Capitalismo de Estado” ou “Capitalismo de Empresa”.

Em seguida, Coutinho mostra que Cardoso utiliza também a categoria

“burguesia de Estado” para compreender a raiz de nosso autoritarismo. Para

Cardoso, a razão de ser dos regimes autoritários das sociedades dependentes se

encontra nos “interesses sociais e políticos dos estamentos burocráticos que

controlam o Estado e que se organizam cada vez mais no sentido de controlar o setor

estatal do aparelho produtivo” (Cardoso, 1975: 40).

Nesse sentido, o analista aponta que, implicitamente, a concepção do

sociólogo é de fundo liberal, “segundo a qual a intervenção estatal é em si autoritária,

ccxxxi
oposta ao liberalismo (econômico e político) que seria próprio do setor privado”

(Coutinho, 1980: 110). Em conseqüência, conforme questiona Coutinho - diga-se de

passagem de forma brilhante e com 15 anos de antecipação -, tal concepção, ao

estabelecer uma relação orgânica entre expansão estatal e autoritarismo, “não

poderia levar água ao moinho dos antiestatistas, dos que defendem (dentro da ‘lógica’

do CME) a devolução à iniciativa privada de todos os setores estatais que cessada a

fase de maturação dos investimentos, possam agora gerar diretamente lucros para o

setor privado?” Nessa esteira de raciocínio, o crítico observa que a discussão sobre a

empresa pública “sem colocar o problema de quem controla o aparelho executivo do

Estado (ou seja, sem colocar a questão do CME) significa, em última instância,

consciente ou inconscientemente, adotar o ponto de vista do liberalismo ou

neoliberalismo econômico”. De forma generosa, o analista finaliza: “Estou certo de

que Cardoso recuaria de conclusões desse tipo. Mas sua tese de ‘burguesia de

Estado’ – da ligação orgânica entre estatismo e autoritarismo – não conteria as

premissas que preparam essas conclusões?” (Coutinho, 1980: 111).

Sendo assim, a noção dos “anéis burocráticos” é aqui incorporada como sendo um

mecanismo político criado para que o Estado pudesse viabilizar o desenvolvimento do

capitalismo monopolista no Brasil, articulando e integrando os diversos capitais. Ou seja, a

forma particular encontrada pelo Estado brasileiro para defender os “interesses

globais da reprodução capitalista, o que, em nosso tempo, significa objetivamente a

reprodução do capital como capital monopolista; e [que] para isso, tem de criar um

corpo executivo numeroso e relativamente autônomo, que se legitima em nome da

‘racionalidade técnica’ (...) e se situa acima das ‘paixões’ imediatas dos capitalistas

singulares” (Coutinho, 1980: 99).

A ampliação da administração indireta, que possibilitou o surgimento dos

“anéis burocráticos”, provocará, também, duas outras consequências para a

administração pública.

ccxxxii
A primeira delas refere-se à incorporação de critérios empresariais na

administração pública, gerando um processo de competição intra-burocrático, em

que a cooperação e a solidariedade entre agências é substituída pelo ethos da

concorrência. Por isso, mais uma vez, expressa-se a aparência de um novo modelo de

gestão sendo introduzido na administração pública.

A segunda conseqüência diz respeito ao tratamento diferenciado que se

estabeleceu entre a administração indireta, priorizada para receber investimentos em

termos de infra-estrutura, qualificação profissional e remuneração dos servidores e a

administração direta, “responsável pelas poíticas públicas mais fundamentais na área

social, era sucateada, desmotivada, mal remunerada e desaparelhada, deixando boa

parte da população brasileira sem uma ação estatal minimamente razoável” (Torres,

2004: 156 e 157).

Essas duas conseqüências serão nefastas para o desenvolvimento e

fortalecimento do universalismo de procedimentos e expansão de direitos no interior

da ordem burocrática da administração pública. Em primeiro lugar, o espírito de

competição e concorrência entre as agências da administração indireta se expandirá

para o conjunto da administração pública, prejudicando fortemente a integração e

articulação dos diferentes organismos da administração direta que são fundamentais

para o desenvolvimento das políticas sociais. Em segundo lugar, o sucateamento da

administração direta afetará de forma substantiva as estruturas destinadas à

implementação de políticas sociais, preservando as áreas vinculadas à fazenda,

relações exteriores e forças armadas.

Vejamos as mudanças operadas no campo social, durante o período em

questão, buscando compreender a lógica que produziu o sucateamento da área.

Em relação à intervenção do Estado na previdência social, foram excluídos

das decisões os representantes dos trabalhadores, embora o regime tenha

imprimido velocidade à expansão da cobertura previdenciária legal à população. Em

ccxxxiii
novembro de 1966, foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS),

unificando todos os institutos existentes até então (com exceção do IPASE) e

uniformizando os benefícios81. A partir desse momento, a lógica da “cidadania

regulada” passa a ser desmontada pela nova estrutura da política social brasileira.

Ainda no que diz respeito à previdência social, em 1971 foi criado um

programa para atender ao setor rural. Em 1972 instituiu-se a inclusão obrigatória dos

empregados domésticos no sistema do INPS.

Em 1974, foram também criadas unidades permanentes de planejamento nos

ministérios e a carreira de técnico em planejamento. O Ministério do Trabalho e

Previdência Social foi desmembrado, dando origem ao Ministério do Trabalho e ao

Ministério da Previdência e Assistência Social, ampliando-se, assim, a atuação dos

serviços sociais.

O Ministério da Previdência e Assistência Social passa a ser a instituição

dirigente do sistema de previdência social, com a função de supervisionar e

coordenar programas específicos, como o do INPS, bem como de desenvolver

programas de previdência e assistência social no âmbito dos planos globais sociais

e econômicos.

Em 1977, cria-se o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social

(SINPAS) com o objetivo de reorganizar e racionalizar a previdência social, que se

encontrava em situação crítica em face do extraordinário crescimento dos gastos de

atendimento médico do INPS.

Com a restrição dos direitos civis e políticos, os direitos sociais

implementados pela ditadura militar, por meio de suas políticas sociais, marcaram o

início do desmonte do aparato de regulação da cidadania, unificando, uniformizando

81
Cabe registrar que a uniformização dos benefícios ocorreu em 1960 após aprovação da Lei Orgânica da Previdência Social.

ccxxxiv
e ampliando os serviços sociais, com certa tendência universalizante. Como não se

procedeu a uma alteração substancial das bases de financiamento das políticas

sociais, ampliaram-se os serviços de baixa qualidade. Na palavras de Werneck

Vianna:

...a ditadura recente disseminou direitos sociais entre os antes


excluídos, mas nivelou esta cidadania social em patamares tão
baixos que a estigmatizou, afastando do sistema público os
trabalhadores formais e a imensa gama de novos segmentos
médios assalariados – também criaturas do projeto
modernizante” (Werneck Vianna, 1998: 143).

Nesses termos, conforme sinaliza a autora, institui-se uma “americanização

perversa” na seguridade social brasileira. A universalização das políticas sociais se

processa de maneira combinada à mercantilização de serviços. Dessa forma, forja-

se um sistema público de baixa qualidade para a massa da população brasileira,

devido a não priorização de investimentos na estrutura da administração direta

ressaltada acima. Por outro lado, cria-se um sistema privado (principalmente nas

áreas de saúde e educação) para as camadas média e alta da sociedade. Portanto,

desenvolvem-se políticas sociais de tendência universalizante, conduzidas pelo

Estado, porém constituídas sobre uma estrutura institucional residual e precária para

desenvolver tal tarefa. Nesse sentido, como ressalta Fiori (1995: 131), criam-se as

condições para a manutenção da “submissão de certas políticas estatais (sobretudo

as sociais) aos interesses de uma ação parlamentar restrita ao varejo da troca de

voto pelos serviços e favores públicos...”.

Outras características das políticas sociais do período são a fragmentação, a

centralização e a burocratização das instituições responsáveis por sua

implementação. Destaque-se ainda que, sob a orientação da doutrina de segurança

nacional, as políticas sociais e, principalmente, as ações assistenciais servem,

sobretudo, para desenvolver a “política do controle” da sociedade (Vieira, 1995),

ccxxxv
articulando assistência e repressão82, ou como assinala Fiori (1995: 46), “em vez do

Estado de bem-estar social, o que temos é uma combinação de paternalismo e

repressão”.

A não efetivação da universalização dos serviços possibilitou que se

mantivesse, dessa forma, a situação de “cidadania invertida” para a grande maioria

da população brasileira em combinação com a expansão de serviços sociais públicos

de baixa qualidade.

Mestriner (2001) destaca, no caso da assistência social, o crescimento da

estrutura e racionalidade da área, apontando para uma burocratização contínua do

setor, através de instituições organizadas nacionalmente, como a LBA e a então

criada Fundação Nacional para o Bem-estar do Menor (FUNABEM).

As políticas sociais de baixa qualidade foram organizadas através de uma

estrutura administrativa também de baixa qualidade, a expansão de serviços não foi

acompanhada por um incremento proporcional nos investimentos para sua

implementação, devido à priorização destinada a outras áreas da administração direta

(relações exteriores, forças armadas e fazenda), mas principalmente pelo

investimento nas organizações da administração indireta responsáveis pela

intervenção econômica do Estado. Apesar disso, houve no período uma expansão da

estrutura administrativo-burocrática do setor social.

Cabe ainda ressaltar que o campo das políticas sociais e, principalmente, na

área da assistência social, a articulação com padrão tradicional patrimonialista

continuou vigendo como forma de processar a ordem administrativa da área,

principalmente através do Conselho Nacional de Serviço Social e de suas relações

com o Congresso Nacional e com determinadas entidades filantrópicas (Mestriner,

2001: 176-179).

82
De acordo com Sposati et ali (1998), o processo de negação de assistência, por parte dos profissionais do serviço social, é
reforçado nesse período devido aos elementos autoritários e tecnocráticos que são incorporados às ações assistenciais.

ccxxxvi
Outra dimensão importante para destacar a continuidade da estrutura

patrimonialista e clientelista no Brasil refere-se à utilização da patronagem no âmbito

da administração direta nos estados.

Conforme analisa Abrúcio (2002), os governos militares, apesar de restringirem

o poder das esferas estaduais, através da mudança na sistemática orçamentária, que

reduzia a interferência do Congresso, e da alteração do quadro tributário, que

centralizava os recursos na união, penalizando os entes estaduais, mantiveram a

estrutura administrativa estadual como recurso para o clientelismo.

Nesse sentido, os governos militares tiveram que controlar os governos

estaduais, visto que estes ainda possuíam recursos para influenciar a base local.

Assim, conforme destaca Abrúcio (2202: 82):

O importante é sublinhar que as Administrações Diretas


estaduais continuaram sendo o principal locus de patronagem
da esfera subnacional. Por isso, enquanto o Governo Federal
tivesse o controle das governadorias o poder de patronagem das
Administrações Diretas estaduais seriam usadas a favor do
regime; no momento em que o regime perdesse o controle das
governadorias, as máquinas estaduais tornariam mais difícil a
manutenção do esquema de patronagem baseado na relação
União/municípios.

Tal situação explicita que, além da forma de recrutamento da administração

indireta não exigir seleção por mérito, pelo lado da administração direta, a reforma de

1967 também “não conseguiu introduzir e consolidar o mérito como princípio

organizador da nova burocracia” (Rezende, 2004: 58).

Nesse quadro, cabe frisar que o processo de privatização do Estado brasileiro

ocorre em duas diferentes frentes.

A primeira delas refere-se à privatização do Estado operada pelas elites

dominantes, principalmente, aquelas vinculadas à burguesia industrial. Nesse caso,

as análises de Fiori (1995) e Oliveira (2003) são precisas em relação à articulação

estabelecida entre o empresariado industrial nacional, o Estado e o capital

estrangeiro.

ccxxxvii
Conforme a análise dos autores, o empresariado nacional optou por uma

relação de subordinação ao capital estrangeiro em detrimento de uma relação

orgânica nacionalista e estatizante com o Estado Nacional.

...o Estado atuou deliberadamente no sentido de privilegiar o


capital, poderia ter atuado transferindo tecnologia para as
empresas de capital nacional. Tal não ocorreu (...). É preciso
pensar que a figura do Estado onipresente nunca foi pensada,
nem era da perspectiva ideológica do empresariado industrial
nacional (Oliveira, 2003: 77).

... um Estado que nunca conseguiu ir além dos limites que lhe
foram impostos por um empresariado que, contraditoriamente,
conseguiu ser profundamente antiestatal, não obstante sua
longa história de anemia schumpeteriana e dependência do
próprio Estado (Fiori, 1995: 58).

Essas análises deixam explícito que a burguesia brasileira não quis se aliar ao

Estado para promover o desenvolvimento com bases nacionais. Um dos motivos,

certamente, refere-se ao fato de que se aliar ao Estado aumentaria a possibilidade de

uma incorporação mais intensa da classe trabalhadora que, na segunda metade dos

anos de 1950 e na década de 1960 já se manifestava de forma mais crítica e combativa

em relação à estrutura de super-exploração da força de trabalho e ao formato de

incorporação regulada e seletiva, via relação estabelecida com o Estado, que

demarcavam as possibilidades restritas de acesso às riquezas produzidas. Assim,

como destaca Fernandes (1981: 346):

As classes e estratos de classe burgueses patrocinaram (...),


portanto, um intervencionismo estatal sui generis. Controlado,
em última instância, pela iniciativa privada, ele se abre, em um
pólo, na direção de um capitalismo dirigido pelo Estado, e, em
outro, na direção de um Estado autoritário. Ambas as noções
são ambíguas. Contudo, elas traduzem uma realidade concreta.
O Estado adquire estruturas e funções capitalistas, avançando,
através delas, pelo terreno do despotismo político, não para
servir aos interesses “gerais” ou “reais” da Nação, decorrentes
da intensificação da revolução nacional. Porém, para satisfazer o
consenso burguês, do qual se tornou instrumental, e para dar
viabilidade histórica ao desenvolvimento extremista, a
verdadeira moléstia infantil do capitalismo monopolista da
periferia.

Como vimos, o processo de privatização do Estado pelas elites empresarias se

processou, primordialmente, através dos chamados “anéis burocráticos”, cujos

“canais informais”, criados para efetivar a influência do empresariado nas definições

ccxxxviii
sobre as orientações do projeto industrializante, possuíam um forte caráter tradicional

e patrimonialista, apesar de a estrutura administrativa global não poder ser

confundida com uma ordem patrimonialista, na medida em que esses canais

viabilizavam, em última instância, uma racionalidade para o desenvolvimento da fase

monopólica do capitalismo. Ou seja, esses mecanismos propiciaram o

desenvolvimento do capital em seu conjunto, através da ação de uma burocracia

competente, racional e especializada para implementar os objetivos em tela. Portanto,

esses mecanismos, embora se utilizem de elementos da ordem tradicional, não se

configuram, em seu conjunto, como uma administração patrimonialista.

Nesse contexto, de acordo com Fiori (1995: 78-82), processa-se a “rejeição de

uma via prussiana clássica”, pois marcada por ambigüidades: antiestatismo e

desenvolvimentismo; desorganização da via desenvolvimentista, através da

substituição do setor financeiro privado pelo financiamento estatal, que levou ao

endividamento e à especulação improdutiva; o fio da navalha de uma aliança

conservadora e de uma estratégia econômica liberal-desenvolvimentista, que

possibilitou, por um lado, que a ação estatal garantisse a ordem, os subsídios, os

insumos e a infra-estrutura, mas que, por outro lado, impediu a intervenção do Estado

para realizar a monopolização e centralização financeira necessárias para a expansão

capitalista; inexistência de solidariedade efetiva entre o empresariado e o Estado e a

postura predominantemente predatória do primeiro em relação ao segundo83.

O outro processo de privatização do Estado ocorre através da manutenção da

lógica tipicamente patrimonialista, senão como lógica hegemônica, pelo menos como

uma dimensão fortemente estruturada, principalmente nos setores da administração

pública responsáveis pela implementação de políticas sociais e nas administrações

diretas estaduais. No sentido inverso da privatização operada via agências vinculadas

às questões relacionadas à política econômica, essa estrutura, que preserva o

83
Behring (2003: 102), baseada em Florestan Fernandes, resume a situação da seguinte forma: “Com a opacidade do regime
militar, abriam-se novas condições para as elites associarem-se mais intimamente com o capital financeiro, reprimirem a
subversão da ordem e se literalmente do Estado, num contexto de crescimento acelerado e sob controle”.

ccxxxix
patrimonialismo na esfera das políticas sociais e na administração direta subnacional,

será desenvolvida incorporando, também, traços racionais e de especialização,

devido ao crescimento da máquina pública e à necessidade de organizar

determinadas ações que efetivamente produzam impacto social junto à população.

Portanto, mesmo nessa área onde o patrimonialismo continua fortemente presente,

isso não acontece isoladamente, muito pelo contrário, a dimensão burocrática da

administração pública se expande consideravelmente, apesar de, nesse quadro,

imiscuir-se com o clientelismo ou se afastar da política, evocando ser a portadora da

universalidade ou da neutralidade técnica.

Nesse cenário, dois aspectos podem explicar a distância da burocracia da

política/democracia: a) o fato de seu desenvolvimento no Brasil estar relacionado às

ditaduras Vargas e dos militares (Torres, 2004: 152 e Nogueira, 1998: 92) e b) a

estratégia que a burocracia utilizou para se distinguir da estrutura

patrimonialista/clientelista: o afastamento da política entendida (de certa forma com

razão, apesar de uma concepção equivocada) como o espaço do fisiologismo.

Nogueira (1998; 98), em sua análise sobre a questão, mostra que a dimensão

racional-legal burocrática da ordem administrativa brasileira acabou reforçando o

papel do Estado como interventor na sociedade, porém sem estabelecer uma canal

transparente e universalista com a sociedade, constituindo uma via não democrática

de intervenção. Nesse sentido, a democracia se transformou em retórica liberal-

patrimonialista, pois pregava a não intervenção do Estado (maior liberdade do

indivíduo) e/ou o estabelecimento de uma relação mais próxima do Estado com a

política, porém com o intuito de privatizá-lo no sentido tradicional.

Assim posto, o resgate da análise de Fernandes (1981), realizada por Behring

(2003: 101), mostra-se extremamente pertinente. A autora relembra que, para o

sociólogo, assim como para Caio Prado, “o horizonte histórico da burguesia brasileira

dificilmente seria/será suficientemente amplo, no sentido da realização de uma

revolução nacional democrática”.

ccxl
Historicamente, isso se comprovou na construção do Estado brasileiro. A

burguesia sempre utilizou o Estado nos momentos em que ele poderia garantir seus

privilégios. Reforçou a estruturação do Estado para atender a seus interesses

particularistas com pouca atenção à incorporação das massas. Os impulsos

democratizadores sempre foram combatidos e, a cada momento de acirramento do

combate, as estratégias escolhidas pelas classes dominantes para o enfrentamento

da situação eram as manobras autoritárias e ditatoriais. A conseqüência dessas

estratégias era o reforço do Estado para controlar as pressões democratizadoras num

quadro de “hegemonia burguesa crítica” (Vasconcelos, 1989). Portanto, o Estado

sempre foi utilizado pelas classes dominantes como um instrumento de garantia de

seus privilégios e, nesse sentido, era defendido.

Em termos gerais, poderíamos sintetizar o período militar como sendo o

momento em que fica explicitado que a estrutura do Estado e da administração

pública, no quadro da expansão capitalista brasileira, organiza-se de forma que os

interesses da classe trabalhadora ficassem subalternizados. O significado da ditadura

militar e seu processo de modernização conservadora implicou uma liberalização da

administração pública (Decreto-lei n.º 200), um enrijecimento burocrático e

fortalecimento do Estado para o capital e uma expansão de baixa qualidade com

burocracia precária para a área social.

Resumidamente, no contexto do desenvolvimento e consolidação da fase

monopólica do capitalismo brasileiro (1950-1979), a materialidade da configuração da

administração pública brasileira pode ser vista da seguinte forma: a) para as questões de

segurança, relações internacionais e questões fiscais – BUROCRACIA valorizada e

reconhecida; b) para a questão social – Mix de BUROCRACIA centralizadora, autoritária e

sucateada, fundada no corporativismo estatal (Estado controlando as instituições da

sociedade civil, principalmente as vinculadas ao trabalho, para viabilizar a incorporação

seletiva e regulada) e PATRIMONIALISMO, fundado na estrutura clientelista (para garantir a

lealdade política de setores tradicionais, através da relação entre Poder central-Poder local

ccxli
e Poder local-população - clientela); c) para a intervenção nas questões diretamente

econômicas (política mometária, fiscal, industrial) - BUROCRACIA INSULADA, baseada no

corporativismo estatal (Estado privatizado por interesses do capital – a expressão material

dessa estrutura burocrática são as administrações indiretas criadas no regime militar e,

conseqüentemente, a formação dos “anéis burocráticos”).

O Estado brasileiro, no contexto do processo de industrialização e urbanização

(pós-1930), estrutura-se como o protagonista central desse processo de forma

autoritária (era Vargas e ditadura militar). Nesse sentido, hipertrofia-se e beneficia as

elites (velhas-oligárquicas e novas-burguesas) no desenvolvimento desse projeto. Por

outro lado, a racionalidade burocrática nunca fora fortemente estruturada no País,

convivera com patrimonialismo e evitara a “política”, apesar de ter criado

mecanismos para sofrer influência das elites econômicas.

Como foi possível constatar, o processo de desenvolvimento da administração

pública, apresentado e analisado nesta seção, longe de se configurar como uma

continuidade estática dos traços presentes desde a época colonial até a finalização da

República Velha, manifesta-se num movimento de continuidade e ruptura, em que o

novo se apresenta, principalmente, nas seguintes dimensões: a) na conquista da

hegemonia, no seio da classe dominante, de um projeto tipicamente burguês de

industrialização e urbanização do país; b) na incorporação da classe trabalhadora,

mesmo que seletiva e parcial, até os anos 1960, e universal, com baixa qualidade e

repressiva, pós-1964 e c) na ampliação da esfera burocrática da administração pública

- fosse para a implementação e desenvolvimento da estrutura econômica capitalista,

fosse para a organização e expansão das políticas sociais -, a qual se tornou

predominante, a partir da década de 1960 .

Nesse contexto, no Brasil, não houve o problema de se ter Estado frágil, mas

sim forte para a oligarquia e, posteriormente, para a burguesia, e nunca para a classe

trabalhadora, ou, pelo menos, que procurasse atender, de forma mais substantiva ou

conseqüente, aos interesses dessa classe. Assim, nosso problema se expressou na

ccxlii
ausência de um Estado que assumisse um papel mais forte de mediador dos

interesses da classe trabalhadora e não apenas de agente que reforça a ação voltada

para subjugar as camadas subalternas, além de ter desenvolvido uma burocracia forte

para as finalidades econômicas capitalísticas e frágil para implementar políticas

sociais (Nogueira, 1998: 12-14).

Esse tipo de configuração estatal brasileira levou Simom Schwartzman (1982) a

classificar a dominação em nosso país como “neopatrimonial”. Trata-se de um tipo de

dominação moderna, exercida pela burocracia e a chamada classe política, que se

distingue, por um lado, da dominação racional-legal, devido à estruturação de um

papel mínimo ou inexistente do contrato social e da legalidade jurídica, típicos da

dominação tradicional, e, por outro lado, distingue-se do patrimonialismo, na medida

em que possui racionalidade técnica.

A ênfase dada por Schwartzman, em relação à concepção neopatrimonial se

configurar como um sistema moderno de dominação, recai sobre a dimensão

contratual da dominação e não na racionalidade técnica do sistema. Portanto, a

denominação neopatrimonial apresenta a dimensão contratual/legal como

determinação central do sistema moderno e não a da racionalidade técnica (a

especialização). A questão problemática, nos termos colocados pelo autor, refere-se,

como bem sinaliza Cohn (1982), à utilização da noção de “moderno” no mesmo nível

analítico de “tradicional”, quando Weber trabalha com “tradicional” e “racional-legal”

como níveis analíticos típico-ideais e “moderno” numa perspectiva empírica (Estado

moderno). Essas inversões de níveis distintos de categorias de análise, conforme

aponta Cohn (1982), deveriam passar por um processo de “argumentação muito mais

cuidadosa do que a adotada para acomodar o esquema construído por Schwartzman

no quadro teórico weberiano. Trata-se de tarefa intricada que ele nem chega a

contemplar”.

Outro aspecto a destacar diz respeito ao fato de Weber trabalhar a dominação

tradicional como fundada nas relações de lealdade pessoal baseadas na tradição, que

ccxliii
podem ser operadas num sistema com nível maior (feudalismo) ou menor

(patrimonialismo) de contratualidade. Assim, parece-nos equivocado o tratamento

dado à dimensão tradicional da dominação no caso brasileiro, na medida em que a

inexistência ou existência ínfima do contrato significa a manutenção da

discricionaridade pessoal baseada nos laços de lealdades advindos dos mecanismos

tradicionais da ação social, os quais tornam a dominação legítima, posto que, do

contrário, teríamos uma dominação ilegítima (sem relação formal/contratual e sem

relação de vínculos pessoais de lealdade), saindo completamente da matriz

weberiana. Contraditoriamente a essa observação, o termo “neopatrimonialismo”

acaba induzindo uma análise que relativiza o papel e a função que a burocracia

desempenhou no Brasil em relação à expansão do capitalismo brasileiro desde sua

fase de industrialização restringida até a consolidação monopólica. Por sua vez,

weberianamente falando, o sistema de racionalidade típica do Estado moderno está

diretamente vinculado à criação das condições para o desenvolvimento capitalista,

através de uma ordem administrativa burocrática. Dessa maneira, parece correto

afirmar que a determinação central da dominação, no contexto da modernidade, é a

racionalidade que possibilita a implementação e desenvolvimento do capitalismo,

como mais ou menos presença de elementos que constituem sua formação típico-

ideal. Nesse sentido, a identificação de traços da dominação tradicional-

patrimonialista presente numa ordem administrativa vinculada ao processo de

desenvolvimento capitalista já se encontra incorporada na proposição weberiana se

entendermos a utilização dos tipos ideais84.

Sendo assim, concordando com Gabriel Cohn (1982), consideramos muito mais

pertinente, do ponto de vista metodológico, trabalharmos os tipos-ideais de

dominação desenvolvidos por Weber como instrumento para explorar a análise de

uma dada realidade que para caracterizar um dado sistema político. Nesse sentido, o

conceito de “neopatrimonialismo”, criado por Schwartzman, tende a reduzir as

84
Ver nota 46.

ccxliv
possibilidades analíticas que a utilização dos tipos ideais weberianos permite efetivar.

Em outras palavras, o conceito de “neopatrimonialismo” é mais pobre, do ponto de

vista de sua capacidade heurística, do que os conceitos de Weber, na medida em que

o novo conceito sintetiza diferentes aspectos de tipos ideais distintos elaborados pelo

sociólogo alemão, colocando-os sobre um mesmo rótulo. Esse procedimento, por um

lado, produz uma criação, no mínimo, polêmica, a qual mereceria um maior cuidado

conceitual, como observa Cohn (1982). Por outro lado, ao sintetizar num conceito

diferentes traços típico-ideais, Schwartzman inviabiliza a exploração da riqueza dos

tipos ideais como mecanismos de interpretação da realidade, “dada pelo

estabelecimento de relações significativas entre tipos” (Cohn, 1982).

Portanto, para evidenciar os diferentes traços da administração pública

brasileira, parece muito mais fecundo, em vez de criar novas nomenclaturas, que mais

obscurecem que esclarecem a realidade social, trilhar pelo caminho proposto de

interlocução com diferentes analistas, visando à apreensão das determinações

constitutivas da essência de nossa ordem administrativa, ou seja, seu movimento

interno, suas conexões, estruturas e contradições, para que seja possível captar os

elementos constituintes desse fenômeno, a fim de apreender o objeto em sua

totalidade.

Por fim, para concluir nossa crítica ao “neopatrimonialismo”, cabe registrar

que o ponto de partida do conceito desenvolvido por Scwartzman vai de encontro à

perspectiva adotada neste trabalho, na medida em que relaciona o exercício da

dominação a uma “classe política” e à “burocracia”, não estabelecendo articulações

claras entre essa elite dominante e os interesses de classes, autonomizando

radicalmente a política, de tal forma que parece considerar que a “classe política” e a

“burocracia” se encontram acima da sociedade.

Assim, para finalizar o presente capítulo, cabe sintetizarmos as reflexões

desenvolvidas até aqui. Nesse sentido, é fundamental, primeiramente, retomarmos a

análise sobre a formação do Estado brasileiro e a estruturação de sua ordem

ccxlv
administrativa, lembrando que a orientação da industrialização, desde a fase inicial

até a consolidação monopólica, pautou-se na perspectiva da “dupla articulação” e da

exclusão das camadas populares.

Tal situação implicou, na dimensão política, a formação de um pacto

conservador de dominação, a partir do comportamento presente na esfera econômica.

Dessa forma, a relação arcaico-moderno aparece também na configuração do

Estado brasileiro e na constituição da ordem administrativa. Portanto, a ordem

política se entrelaça dialeticamente com os rumos do desenvolvimento do capitalismo

brasileiro, influenciando as decisões econômicas, visando à garantia da manutenção

do poder dos setores agrários tradicionais combinado com o da emergente burguesia.

O Estado e a administração pública, então, vão expressar essa hegemonia.

A coalizão das classes dominantes, composta pelos setores agrário e

industrial, através da estrutura de dominação, agirá para reproduzir a ordem

estabelecida, incorporando, parcialmente, os setores populares, de acordo com a

pressão existente e importância para a acumulação.

Do ponto de vista da ordem administrativa, articulam-se elementos “novos”

(burocráticos) e “arcaicos” (patrimonialistas) como forma de garantir o pacto de

dominação conservador existente, via implementação das ações do Estado. Logo, a

ordem administrativa é composta de um imbricação entre a dimensão

patrimonialista e a burocrática que, dialeticamente, são funcionais, do ponto

de vista estrutural, para a operação de dominação presente.

Por um lado, é necessário formular e implementar o projeto de expansão

capitalista. Necessita-se, então, de um quadro administrativo especializado e

profissional, assim como certas regras e normas bem definidas, ou seja, necessita-

se de burocracia.

ccxlvi
Entretanto, esse planejamento deve garantir a manutenção e a reprodução

dos interesses das classes dominantes. Nesse sentido, criam-se canais informais de

comunicação entre elites empresariais e a burocracia.

Como o projeto é de industrialização, faz-se necessário atender a

determinados interesses das classes trabalhadoras. Assim, a administração pública

deve possuir mecanismos burocráticos para viabilizar o atendimento de tais

interesses, desde que não estejam estratégica e diretamente ligados aos centros de

decisão dos projetos de expansão capitalista, nem que possam interferir

significativamente em sua condução.

Simultaneamente, os setores tradicionais, como participantes do pacto de

dominação, apresentam-se como fiadores do projeto de expansão capitalista, apesar de não

serem mais a fração dominante. Sendo assim, a ordem administrativa do Estado deverá

organizar um espaço para a continuidade da influência dos setores tradicionais na condução

política do projeto de industrialização. Dessa forma, a dimensão patrimonialista se apresenta

como necessária – embora deixe de ser hegemônica - para a manutenção da estrutura de

dominação da sociedade brasileira.

Nesse sentido, o patrimonialismo se configura como uma determinação

central do nosso modelo de desenvolvimento capitalista, não se constituindo

como um obstáculo para tal. Portanto, não se apresenta como um elemento de

atraso que deve ser superado.

Dessa maneira, a ordem administrativa brasileira vai ser uma imbricação

de patrimonialismo e burocracia não por uma dualidade entre o “arcaico” e o

“novo”, mas sim pela necessidade de ter uma ordem administrativa adequada

à lógica de dominação e à estrutura de poder forjada por nossa “revolução

burguesa”.

Nessa perspectiva, o patrimonialismo na ordem administrativa brasileira não

ccxlvii
se configura como uma dimensão cultural que precisa ser modernizada para a

superação do “velho” (tradicional). Ele se configura como elemento constituinte da

particularidade de nossa administração pública, advinda da particularidade do nosso

pacto de dominação conservador, responsável pelo projeto de implantação,

desenvolvimento e consolidação das relações capitalistas no Brasil.

Essa argumentação ainda pode ser reforçada, do ponto de vista teórico, a

partir de Weber. Segundo o autor, como já ressaltado anteriormente, os tipos de

administração estão vinculados a determinadas estruturas de dominação e, do ponto

de vista metodológico, os tipos puros não existem, são apenas recursos para

interpretar a sociedade. Portanto, se temos no Brasil uma estrutura de dominação

que articula o tradicional com o racional, a ordem administrativa expressará tal

articulação.

Assim sendo, o desenvolvimento do Estado moderno no Brasil e a ordem administrativa

burocrática não foram fortes na perspectiva da universalização de direitos, devido à

coalizão conservadora das classes que conduziu o projeto de expansão das relações

capitalistas e à parcialidade da racionalidade burocrática desenvolvida.

A estruturação e o desenvolvimento da administração pública brasileira para implementar

o projeto de industrialização não efetivou plenamente uma estruturação burocrática. Por

um lado, a ordem administrativa contemplou a articulação com o

patrimonialismo/clientelismo, visando garantir a manutenção dos interesses dos setores

tradicionais e propiciando sua participação na estrutura de dominação. Por outro lado,

para atender aos interesses imediatos da burguesia industrial nascente, organizou e

expandiu o “insulamento” e os “anéis” burocráticos. Por essas razões, o Estado e a

burocracia no Brasil não produziram ampliação significativa de direitos.

ccxlviii
No entanto, o Estado e a burocracia, no período em análise, mesmo nas condições

brasileiras de reduzida permeabilidade para as classes trabalhadoras e produto de uma

coalizão conservadora de classes, atenderam a determinados interesses das classes

trabalhadoras.

Sendo assim, sob o processo de

desenvolvimento e consolidação do projeto de

expansão das relações capitalistas no Brasil,

conduzido por um pacto de dominação

conservador, que produziu uma determinada

particularidade de Estado e de administração

pública, será formulado e implementado no País

o projeto neoliberal de reforma do Estado e de

reforma administrativa, os quais analisaremos

no capítulo seguinte.

ccxlix
CAPÍTULO IV - NEOLIBERALISMO E CONTRA-REFORMA ADMINISTRATIVA:
BUROCRACIA MONOCRÁTICA E PATRIMONIALISMO EM TRANSFORMISMO

4.1. Antecedentes: anos 1980, início dos 1990 e a resistência ao modelo neoliberal

A crise mundial que eclodiu no início dos anos 1970 já se manifestava no final dos anos 1960,

a partir da desaceleração do crescimento econômico (crise de superprodução), do déficit

comercial americano e da intensificação, no mercado financeiro, das apostas contra o dólar,

devido à impossibilidade de o governo americano sustentar simultaneamente o valor da

moeda e a competitividade das exportações norte-americanas. No entanto, a crise só se

expressa claramente quando da ocorrência de dois fatos: o fim da conversibilidade do dólar,

efetivada pelos Estados Unidos para recompor sua balança comercial, e o primeiro choque do

petróleo. Assim, se projeta o fim da paridade fixa entre o dólar e o ouro (ruptura do acordo de

Bretton Woods), gerando uma crise monetária internacional e, devido ao choque do petróleo,

gera-se uma crise energética. Nesse cenário, Japão e Alemanha, como importadores de

petróleo e exportadores de bens de capital, fazem a reestruturação produtiva e elevam os

preços dos bens de capital para fazer frente ao contexto de desvalorização do dólar e aumento

do preço do petróleo (Tavares e Fiori, 1993 e Teixeira, 2000).

Os EUA importam petróleo e exportam bens de capital. Não fazem

reestruturação, atuam na desvalorização da moeda para controlar o balanço de

pagamentos, através da melhora das exportações. Entretanto, esse controle é frágil,

pois, ao desvalorizar o dólar para viabilizar preços competitivos, provocam,

simultaneamente, a fuga de capital, prejudicando as contas de capitais.

Nesse quadro, o Brasil, apesar de exportar produtos agrícolas e manufaturas,

sofre duplamente: importa petróleo e importa bens de capital.

Simultaneamente, o superávit obtido pela OPEP, devido ao aumento do preço

do petróleo, amplia o investimento no mercado financeiro europeu. O euromercado,

ccl
que já vinha crescendo devido ao crescimento econômico produzido a partir dos

anos 1950, se ampliou com a entrada dos dólares da OPEP.

Dentro desse panorama, devido ao excesso de liquidez, o mercado financeiro

europeu (euromercado) promoveu empréstimos a juros baixos, baseados em taxas

flutuantes.

No Brasil, com a "crise do milagre", esboçada a partir de 1973, vindo no contexto da crise

mundial do capitalismo, o controle social imposto pelo regime militar começa a entrar em

declínio.

No entanto, no início da década de 1970, o Brasil conseguira passar pela crise econômica,

através do processo de endividamento externo. O endividamento serviu para enfrentar a

elevação dos preços do petróleo e dos bens de capital e continuar estimulando e apoiando o

crescimento econômico pautado no processo de industrialização85. “Com os empréstimos os

países pobres e em desenvolvimento compravam produtos das economias desenvolvidas,

azeitando economias que estavam em recessão e contribuindo para que elas suportassem

melhor a crise” (Gonçalves e Pomar, 2000: 12).

Nesse contexto, o processo de "modernização conservadora", implementado pela ditadura

militar, tanto no período conhecido como "milagre econômico" quanto ao longo do governo

Geisel, produziu a aceleração do processo de industrialização e urbanização da sociedade

brasileira. Com isso, trouxe à tona um novo quadro de relações sociais e de organização

sociopolítica. O novo operariado, o trabalhador rural sindicalizado, a nova classe média e os

moradores dos bairros populares, entre outros, complexificaram o tecido social do Brasil pós-

1970.

85
De acordo com Gonçalves e Pomar (2000: 11), “a dívida passou de US$ 13,8 bilhões de dólares (fins de 1973) para US$
52,8 bilhões de dólares (em 1978)”.

ccli
A estruturação do mercado de trabalho, realizada a partir de 1930 até 1980, efetivou-se

através da ampliação dos empregos assalariados, sobretudo dos registrados e da redução de

ocupações por conta própria, sem remuneração e do desemprego. Segundo Pochmann (2002:

68):

Para uma taxa média anual de expansão da População Economicamente Ativa


de 2,6% entre 1940 e 1980, o emprego assalariado com registro aumentou
6,2%. No mesmo período, o emprego assalariado total cresceu a uma taxa
média anual de 3,6% e o emprego sem registro a uma taxa de 0,6%, enquanto
o desemprego variou 0,5%, por conta própria 1,8% e o sem remuneração
0,6%.

Essa expansão “ocorreu, em grande medida, por força da implementação e consolidação do

projeto de industrialização nacional, bem como devido à institucionalização das relações de

trabalho, compartilhada pelo conjunto de normas legais difundidas a partir de um código de

trabalho no país (CLT)” (Pochmann, 2002: 70). Em outras palavras, conforme assinala o

autor, as políticas macroeconômicas voltadas para a expansão produtiva e exportação

viabilizaram, de forma permanente, o crescimento do número de ocupações. Fiori (1993: 141)

corrobora com essa análise:

... como resposta ou ‘ajuste’ diante do primeiro choque energético, o governo


Geisel (1974-1978), através de seu II Plano Nacional de Desenvolvimento,
desencadeia um ambicioso programa destinado a completar a industrialização
pesada e redirecionar a economia brasileira para as exportações.

Entretanto, apesar da intensa estruturação do mercado de trabalho no período 1940/1980,

nossas taxas sempre foram abaixo das taxas dos países desenvolvidos. Nestes, a taxa de

assalariamento urbana passava de 80% em 1980. No caso brasileiro, a taxa passou de 42%

(1940) para 62,8% (1980) (Pochmann, 2002: 70). Outro aspecto que marca a estruturação do

mercado de trabalho brasileiro, como destacado anteriormente, é o fato de ter sido realizada

cclii
sob um processo de grande concentração de renda e riqueza86. Ou seja, a situação de

desigualdade social existente no país se manteve mesmo no período de estruturação do

mercado de trabalho.

Oliveira (2003: 100-105) demonstra que a situação de manutenção da desigualdade social

durante a expansão capitalista no período pós-1964, mais precisamente a partir de 1967,

explica-se pela necessidade de se realizar um processo de acumulação compatível com a

estratégia de monopolização e aceleração da industrialização do período, através do

aprofundamento da exploração do trabalho como mecanismo central para resolver as

contradições entre relações de produção e desenvolvimento das forças produtivas, na medida

em que é “necessário aumentar a taxa de lucros, para ativar a economia, para promover a

expansão” (idem: 100). Nesse sentido, afirma o autor, o aprofundamento da taxa de

exploração do trabalho se apresenta como requisito estrutural da expansão monopólica:

Levado inicialmente pelas exigências da aceleração dos anos 1957/1962 a


aumentar a taxa de exploração do trabalho, a fim de financiar internamente a
inversão, o sistema caminhou para um conflito entre as relações de produção
e forças produtivas, cujo desenlace foi aprofundar, como condição política de
sua sobrevivência (...). No entanto, isso seria apenas uma “morbidez” do
sistema, se não fosse um requisito estrutural.

Contudo, essa necessidade estrutural do desenvolvimento do capitalismo

brasileiro só pôde se efetivar pelo fato de não existir escassez de trabalho e nem

organização autônoma e forte o suficiente dos trabalhadores. Dessa feita, são

criadas, também, do ponto de vista do trabalho, as condições para aprofundar a

exploração87.

86
Oliveira (2003: 97), baseado em trabalho de João Carlos Duarte, mostra o aumento de concentração de renda no Brasil:
“enquanto o 1% superior em 1960 se apropriava de 11,72 da renda total, em 1970 essa porcetagem aumenta para 17,7%; os
5% superiores em 1960 detinham 27,35%, enquanto em 1970 passam a reter 36,26%. Em contrapartida, et pour cause, os
40% inferiores da população participavam em 11,20% da renda total, enquanto em 1970 sua participação decai para 9,05%.”
87
Segundo Oliveira (2003: 111-113), apenas dois fatores podem se opor ao movimento de concentração de renda e riqueza: a
escassez de trabalho e a organização da classe trabalhadora. Conforme analisa o autor , no período em questão, nenhum dos
dois fatores estão presentes no Brasil.

ccliii
Nesse contexto, é reafirmada a opção da burguesia brasileira de se aliar ao capital

internacional, mantendo, mesmo que de forma subordinada, as oligarquias agrárias no poder,

em detrimento de uma aliança progressista com a classe trabalhadora voltada para um projeto

nacional-democrático. Portanto, a emergência desse novo quadro sociopolítico não eliminou a

existência da tradição arcaica e partrimonialista das instituições, da cultura política e dos

procedimentos que sempre inviabilizaram a possibilidade de a sociedade brasileira romper e

superar o seu passado escravagista e oligárquico.

Entretanto, esse cenário desenhado após os anos de 1970 abre um campo de potencialidades

significativas para a redefinição da correlação de forças no Brasil. Somou-se à insatisfação

econômica a indignação política com o sistema ditatorial instaurado no País. Começavam a

aumentar as pressões da sociedade sobre o governo militar.

Esse contexto social de insatisfação e indignação crescente e a ascensão de um militar

contrário aos adeptos da “linha dura” possibilitou o estabelecimento, pelo governo, de um

Projeto de Abertura. No entanto, longe de se pretender o fim da ditadura militar num curto

espaço de tempo, esse projeto pretendia uma abertura "lenta, gradual e segura". Ou seja, uma

forma de tentar garantir o controle social, durante o processo de abertura, para manter o status

quo dominante voltado para a consolidação da fase monopólica do capitalismo brasileiro.

Para expressar o quadro de insatisfação da sociedade, as eleições parlamentares de novembro

de 1974 vão se configurar como uma manifestação plebiscitária contra o regime.

Grande parte do eleitorado brasileiro, restrito ao bipartidarismo, transformou


estas eleições num plebiscito contra o governo, num enorme protesto social,
votando maciçamente no MDB. Este ganhou em 16 estados, principalmente
nos das regiões sul e sudeste e na maioria dos grandes centros urbanos. sua
representação no congresso subiu de 94 para 185 cadeiras - mais de um terço
do total -enquanto a da Arena caiu de 282 para 245 cadeiras (Habert, 1992:
47).

ccliv
Além desse momento, as eleições de 1978 também se transformaram numa grande

manifestação de apoio ao MDB e rejeição ao regime militar.

Inserido nesse panorama social, político e econômico, vamos encontrar o ressurgimento dos

movimentos sociais no Brasil. Esses atores entram em cena na luta pela redemocratização do

País, nas suas mais diversas dimensões (econômica, social, política, cultural...), a partir da

metade da década de 1970. Como sintetiza Habert:

"Para a classe trabalhadora, a crise significou o aprofundamento do arrocho


salarial, do desemprego, da miséria; enfim o agravamento das suas condições
de vida e de trabalho. Esta situação, combinada às mudanças da conjuntura
política de abertura da segunda metade da década e das importantes
transformações ocorridas na classe trabalhadora pós-64, foi o ponto de
partida para o ressurgimento dos movimentos populares (a partir de 1975) e
do movimento operário ( a partir de 1977)" (Habert, 1992: 46).

O final da década de 1970 e os anos 1980 formam o palco do desenvolvimento desses

“novos” movimentos no Brasil. Grupos organizados reivindicando melhores condições de

educação, saúde, moradia, urbanização - além de buscarem fortalecer suas próprias

identidades (mulher, índio, negro...) e lutarem a favor dos direitos humanos e de preservação

do meio ambiente -, combinados com o surgimento de um movimento sindical autônomo e

combativo e de partidos políticos com base social, expressam, sem dúvida alguma, o

fortalecimento da sociedade civil brasileira.

O final dos anos 1970 (1978 e 1979) é marcado pelas greves do ABC, mobilizadas por

lideranças autônomas, vinculadas à construção do novo sindicalismo.

Em 1979, Geisel faz seu sucessor. O General João Batista de Figueiredo assume a Presidência

da República, com o compromisso de levar adiante o projeto de abertura política.

Numa tentativa de dividir a esquerda para garantir o controle do processo de transição, o

governo militar enviou ao Congresso, em 1979, o projeto de lei que reformulava o sistema

cclv
partidário, terminando com o bipartidarismo. No entanto, apesar do sistema pluripartidário, a

oposição, mais uma vez, saiu vitoriosa das urnas em 1982.

Ainda em 1979, o Governo enviou ao Congresso o projeto de lei referente à anistia, que foi

aprovado, possibilitando a volta ao Brasil de diversas lideranças políticas.

Desse modo, o projeto de abertura do governo, iniciado em 1974, transformou-se, como

bem destacou Coutinho, num processo de abertura, com ampla mobilização social, no qual

as eleições se constituíram como momentos de pressão para acelerar a transição democrática e

todo o processo de luta acabou se configurando como uma forma de provocar a ampliação da

abertura proposta pelos militares (Coutinho, 1993).

Entretanto, esse período (pós-1974 até início dos anos 1980) não foi somente de vitórias das

forças democráticas; muito pelo contrário, ele foi entrecortado por diversos momentos de

retrocesso. O “Pacote de Abril”, o assassinato de Herzog e Fiel Filho, as bombas nas sedes da

OAB e ABI, o caso do Riocentro são alguns exemplos que mostram que o processo de

democratização não foi linear.

No final dos anos 1970, a crise internacional que se esboçara em 1973 aflora abruptamente. A

política de desvalorização do dólar não garantiu o equilíbrio da economia dos EUA, na

medida em que a indústria americana continuou perdendo competitividade em relação ao

Japão e à Alemanha, devido à reestruturação produtiva operada por esses países. Por outro

lado, a desvalorização estava levando a um enfraquecimento da moeda americana, fazendo

com que ela fosse perdendo sua função de reserva de valor. Nesse contexto, houve nova

elevação dos preços do petróleo e uma elevação das taxas de juros americanas, visando atrair

o fluxo de recursos para os EUA. Simultaneamente, os EUA promoveram uma valorização do

dólar na ordem de 50%, baseada na sua política de juros altos e controle dos agregados

cclvi
monetários (aumento das reservas compulsórias exigidas dos bancos; imposição de reservas

sobre a captação de empréstimos em eurodólar por parte dos bancos; bloqueio dos ativos

iranianos, devido à invasão da embaixada americana no Irã e controle creditícios). Esse

processo de retomada do controle monetário pelos EUA durou quatro meses em que o FED e

as grandes corporações efetivaram uma verdadeira queda-de-braço (Teixeira, 2000: 7-8).

Tais medidas tiveram algumas conseqüências, quais sejam: a revalorização

do dólar; a implosão do Euromercado - juros altos americanos provocam fuga de

recursos da Europa para os EUA -; a perda da “aura de inatingibilidade” do

euromercado em relação às crises políticas, devido ao bloqueio dos ativos iranianos;

a reconcentração da riqueza nos EUA; a crise da dívida externa na periferia - com a

fuga dos recursos para os EUA, ocorre uma crise bancária na Europa, forçando a

cobrança dos devedores e a elevação das taxas de juros (que eram flutuantes),

produzindo, dessa forma, a crise da dívida.

Nesse quadro a economia americana e mundial entram em recessão -

controle de créditos, flutuação cambial e juros altos (a Europa tem que elevar seus

juros para atrair competitivamente o capital). Nesse sentido, conforme sinaliza

Tavares (1993a: 22-23):

... o desajuste global do balanço de pagamentos dos EUA foi


acompanhado de um desenvolvimento descontrolado do sistema
financeiro privado internacional, que agravou a instabilidade do
sistema global, tornou independente as políticas macroeconômicas de
ajuste, e teve impactos geradores de crises financeiras em vários
Estados Nacionais, tanto no centro como na periferia.

A crise da dívida externa será a expressão da crise mundial nos países periféricos. O padrão

de renegociação se altera radicalmente em relação a 1930, com prejuízo para os países

devedores88.

88
Em 1930 o problema da crise da dívida também já havia ocorrido, porém foi “resolvido pela interrupção do pagamento da
dívida, negociações de governo a governo, e posterior desvalorização ou liquidação dos títulos dos países devedores. Desta
vez, ao contrário, produziu-se uma revalorização do estoque total da dívida (...) Cabe notar ainda que, desta vez, a

cclvii
Os anos de 1980, no plano internacional, configuraram-se como o período de “retomada da

hegemonia norte-americana” (Tavares, 1998) realizada através da diplomacia do dólar forte e

da “adoção de programas armamentistas de alto conteúdo tecnológico, visando dobrar a União

Soviética e exaurir sua capacidade financeira” (Teixeira, 2000: 3).

Nesse cenário se processa o que se convencionou chamar de “globalização” que, do ponto de

vista econômico, deve ser tratada em três dimensões: financeira, produtiva e comercial

(Gonçalves, 2003).

A financeirização da economia mundial

se intensificou a partir da implementação da

“política de juros altos e flutuações cambiais

patrocinadas pelos EUA na década de 80”,

levando “à progressiva internacionalização dos

bancos privados dos demais países da OCDE”

(Tavares, 1993a: 56). Por outro lado, a “política

de ajuste de balanço de pagamento dos EUA,

bem como suas tentativas de manter a

hegemonia do dólar, levaram os demais países

da OCDE, em particular o Japão e a Alemanha, a

formular respostas bem sucedidas de

reestruturação industrial, provocando

acentuadas mudanças na divisão internacional

do trabalho” (Tavares, 1993a: 21-22). Outra

estratégia desenvolvida para enfrentar a

situação de crise e propiciar uma nova inserção

internacional foi a “diversificação e expansão

renegociação da dívida se dá mediante relações de governo periféricos com o cartel dos bancos privados e com organismos
multilaterais, e não de governo a governo, o que enfraquece a posição dos países devedores” (Tavares, 1993a: 61).

cclviii
do comércio exterior” (Tavares, 1993a: 56).

Dessa feita, o processo de mundialização da

economia se efetiva a partir da intensificação da

internacionalização financeira, comercial e

produtiva.

Nesse contexto, instala-se uma crise financeira mundial (aumento das

despesas com serviços da dívida) que, aliada à recessão econômica, à crise da

previdência social (ligada à estrutura demográfica e de emprego e à base tributária

dos contribuintes centrada sobre a massa de salários) e às mudanças na

organização industrial (concentração de capital e descentralização da produção

promovendo a perda da base tributária, transferências patrimoniais e crescimento da

economia informal), provoca uma crise fiscal do Estado (os gastos públicos

aumentam em maior volume que a receita) (Tavares, 1993a: 64-66).

Sendo assim, o comportamento do gasto público entre 1980 e 1993 nos

países da OCDE mostra que houve uma diminuição de recursos para despesas

sociais e aumento no pagamento de juros, num quadro de ampliação do gasto

público total. Conforme destaca Fiori (1998: 167), “apesar de toda a retórica, neste

mesmo período cresceu em todo o ‘mundo desenvolvido’ o gasto público em relação

ao PIB. E o que ocorreu de fato foi uma queda dos gastos sociais compensada pelo

aumento exponencial dos gastos financeiros”.

Do ponto de vista político, para viabilizar a continuidade da acumulação via

intensificação da internacionalização financeira, produtiva e comercial era necessária

uma direção que valorizasse o mercado como elemento central da regulação da

sociedade, reestruturando o Estado para conduzir o processo nesses moldes. Para

os países periféricos, principalmente para a América Latina, o enfrentamento da

crise deveria passar por programas que possibilitassem a inserção internacional

cclix
(diga-se de passagem, subordinada) desses países, a partir da garantia do

pagamento de seus compromissos internacionais. Dessa forma, a hegemonia do

pensamento político e econômico pregava a diminuição dos gastos sociais,

privatização das empresas públicas, garantia de liberdade de comércio e de capitais

como o cerne das recomendações de ajustes, configurando a chamada orientação

neoliberal.

Nesse contexto de mundialização, processou-se uma violenta crítica ao

padrão sistêmico de integração social que conduziu o capitalismo à sua época de

ouro: crescimento ecnômico, pleno emprego e proteção social sob coordenação do

Estado.

Como ressalta Pochmann (2002: 15),

As medidas econômicas implementadas [à luz do ideário neoliberal]


buscaram contrair a emissão monetária, elevar os juros, diminuir os
impostos sob as rendas mais altas, desregulamentar o mercado de
trabalho, o comércio externo e mercado financeiro, alterar o papel do
Estado, privatizar o setor público, focalizar o gasto social, reduzir a
ação sindical, entre outras.

Essas medidas, cujo objetivo era a retomada do crescimento, a partir da

liberação dos lucros das empresas (redução dos gastos sociais, redução dos

impostos, desregulação do trabalho), não geraram novo ciclo de investimentos em

produção. A internacionalização financeira, as políticas de juros altos e de

valorização cambial empurraram os lucros para o sistema financeiro, onde a

rentabilidade passou a ser maior que a da produção. Por outro lado, a

reestruturação produtiva baseada nas inovações tecnológicas poupadoras de mão-

de-obra e na reorganização do processo de produção (substituição do “padrão

fordista” pelo “padrão flexível”), articulada ao processo de globalização produtiva,

produz um sistema de produção baseado numa pequena matriz na qual circulam

diversas pequenas empresas que são acionadas na medida em que se faz

cclx
necessário desenvolver a produção. Terceirização, trabalho temporário, subemprego

e desemprego estrutural conformam a situação da classe trabalhadora no período

(Antunes, 1995).

Para finalizar o quadro adverso, no intuito de arcar com as políticas de juros

altos (aumento dos gastos com serviços da dívida) e, simultaneamente, reduzir

impostos e apoiar o capital para sua reestruturação, o Estado passa a restringir os

gastos sociais89.

Sendo assim, a reestruturação que ocorre nas políticas sociais são

determinadas pelas exigências da nova ordem do capital. Portanto, a determinação

central da chamada crise das políticas sociais está situada na relação que se

estabelece entre a dinâmica do capitalismo contemporâneo, sua orientação

macroscópia de fortalecimento do mercado e hegemonia financeira, e a restrição

(subjetiva e objetiva) para a expansão de direitos sociais.

O projeto neoliberal, visando à redução (não eliminação) da intervenção do

Estado na área social - a partir da concepção global de que o bem-estar social

pertence à dimensão privada (família, comunidade e mercado) e que ao Estado

cabe apenas o atendimento residual para os indivíduos que não conseguem ter suas

necessidades atendidas no campo privado -, propõe estratégias para o

desenvolvimento de políticas sociais baseadas, principalmente, na privatização,

focalização e descentralização (Laurell, 1995; Soares, 2000; Draibe, 1990). Ou seja,

ações destinadas à redução do custo da intervenção do estado na área social,

através da organização de serviços sociais oferecidos pelo mercado (diretamente ou

indiretamente); redução do contingente a ser atendido pelas políticas sociais,

89
“Entre 1980 e 1993, enquanto o gasto público medido como percentual do PIB registrou crescimento entre 2 e 5 pontos nos
EEUU (+2,1%), Fança (+6,2%) e Inglaterra (+5,2%), a participação das despesas sociais no gasto público sofreu queda quase
simétrica (EEUU, - 6,1%; Almenha -4,3%; França, -5,1%) ao mesmo tempo em que creseu mais que propocionalmnte a
participação das despesas com juros no gasto público total (EEUU, +5,5%; França, +5,1%; Inglaterra, +0,8%; Alemanha,
+7,8%)” BIRD, 1995 in: Schwartz, G. - Como reformar o Estado não é consenso, Folha de São Paulo, 10/12/1995).

cclxi
concentrando as ações sociais na população em situação de pobreza absoluta90 e

desresponsabilização do governo central dos custos para manutenção de serviços

sociais. Nesse quadro o apelo à solidariedade da sociedade, via voluntariado e

parcerias com a sociedade civil, e programas de renda mínima se apresentam como

instrumentos adequados para a operacionalização das estratégias de intervenção

social91.

Desse modo, do ponto de vista político e ideológico, a matriz neoliberal se

contrapõe à perspectiva dos direitos sociais e do Estado de Bem-estar como

provedor desses direitos. “Rechaça-se o conceito dos direitos sociais e a obrigação

da sociedade de garanti-los através da ação estatal. Portanto, o neoliberalismo

opõe-se radicalmente à universalidade, igualdade e gratuidade dos serviços sociais”

(Laurell, 1995).

O Estado, portanto, ao restringir os gastos sociais, vulnerabiliza a proteção

social, num quadro de desemprego e subemprego. O produto social desse processo

constitui o acirramento da “questão social”92.

Em síntese: esse processo de ênfase nas políticas econômicas ortodoxas -

voltadas para o controle da inflação, via ajustes do balanço de pagamentos -,

através de controle cambial e políticas de juros (financeirização da economia);

articulado a uma reestruturação produtiva não destinada à expansão do consumo de

massa (ou seja, sem preocupação com o “pleno emprego”) e baseado numa

estrutura do Estado reduzida em termos de desenvolvimento de políticas de

90
A pobreza absoluta está relacionada à carência das necessidades biológicas exigidas para um indivíduo sobreviver.
“Pobreza absoluta constitui, portanto, uma categoria restrita, consagrada pela ideologia liberal ou neoliberal, a qual justifica e
prioriza ações focalizadas e emergenciais, que suprem paleativamente (quando suprem) sintomas de carências profundas”
(Pereira, 1996: 25).
91
É importante sinalizar, conforme ressalta Draibe (1990), que as estratégias de seletividade, descentralização e parcerias não
são exclusivas de propostas neoliberais. A exclusividade neoliberal se encontra no sentido dado às estratégias que, como
procuramos mostrar, está voltado para a redução da intervenção do Estado na área social, a partir do entendimento de que os
indivíduos devem buscar suas necessidades na esfera privada.
92
“O desemprego na Europa Ocidental subiu de uma média de 1,5% na década de 1960 para 4,2% na de 1970 (Vander Wee,
1987, p.77). No auge do boom, em fins da década de 1980, estava numa média de 9,2% na Comunidade Européia, em 1993,

cclxii
proteção social, produziu a expansão da chamada “exclusão social” com destaque

para o desemprego. Essa condução política foi possível devido à guinada à direita

dos governos da Inglaterra (1979), Estados Unidos (1980) e Alemanha (1982).

Nesse sentido, podemos afirmar com Netto (1995:81) que a “ofensiva neoliberal”

organiza um “Estado mínimo”, voltado para a erradicação de qualquer mecanismo

regulador democrático do movimento do capital, para “viabilizar o que foi bloqueado

pelo desenvolvimento da democracia política [e social] – o Estado máximo para o

capital”. Corroborando essa análise, Toledo (1995: 84) afirma:

O neoliberalismo realmente existente não é senão o Estado do


grande capital que, por meio da derrota da classe operária, impôs
rupturas ou limitações aos pactos corporativos do pós-guerra;
implantou uma nova disciplina fabril e uma austeridade salarial,
também nos gastos sociais; e descontou sobre os trabalhadores os
custos da crise. A derrota proletária foi econômica e política, mas
também ideológica, onde o keynesianismo e marxismo estão
desprestigiados, e a intervenção estatal virou sinônimo de
ineficiência, inflação e privilégios.

No Brasil, a crise da dívida nos anos de 1980 apenas explicita o problema de

maior envergadura da economia brasileira, qual seja: a fragilidade do padrão de

financiamento. Assim, conforme observa Fiori (1993), a convergência da crise

mundial com a crise do padrão de desenvolvimento brasileiro determina a crise

vivida nos anos da década de 1980. Segundo o autor:

Na prática, e cronologicamente, a soma do segundo choque dos


preços do petróleo e do aumento das taxas de juros internacionais
(ambas ocorridas ainda nos anos 70) com a desaceleração do
comércio internacional e a permanência dos preços das commodities
durante toda a primeira metade dos anos 80, passando pela
moratória mexicana de 1982, acabou explicitando e expondo as
fragilidades endógenas das economias latino-americanas.
Fragilidades concentradas, no caso brasileiro, no padrão de
financiamento de sua industrialização, articulado por um Estado
gigantesco, mas cronicamente debilitado do ponto de vista fiscal
(Fiori, 1993: 130).

Ainda de acordo com o autor (idem: 149), o período final da ditadura militar

(1982-1985) concentrou “a crise do autoritarismo, a desmontagem do ‘tripé’ [Estado,

11% “ (Hobsbawm, 1995: 396).

cclxiii
capital nacional e capital internacional] em que se sustentara a industrialização

desde os anos 50 e o esgotamento do modelo de desenvolvimento seguido pelo

país desde os anos 30.”

No entanto, diferentemente do que ocorria nos países centrais, no Brasil, os

anos da década de 1980 são de revigoramento das forças democráticas da

sociedade civil e da ampliação das lutas sociais. Do ponto de vista democrático, o

clímax ocorreu com o desenvolvimento do movimento pelas eleições diretas

(Movimento Diretas-Já). Considerado como uma das maiores mobilizações da

história do País, o movimento, coordenado suprapartidariamente, não logrou êxito e,

mais uma vez, o acordo entre as elites dirigentes - para evitar o aprofundamento da

participação popular, como forma de enfrentar as questões sociais e econômicas - e

o relativo refluxo da mobilização social, viabilizaram a repetição de uma “revolução

pelo alto”93 no País, mantendo, dessa forma, o pacto de dominação conservador.

Sendo assim, em 1985, o mineiro Tancredo Neves foi eleito, indiretamente, Presidente do

Brasil, através de uma aliança entre os setores burgueses da oposição e os setores dissidentes

do partido que apoiava o regime militar - Aliança Democrática, realizada pelo PMDB e pela

Frente Liberal.

A primeira fase da transição democrática brasileira foi extremamente longa

(1974-1985) e, apesar de ter sofrido influência das organizações da sociedade civil de

base popular, isso não foi suficiente para impedir que o processo de transição se

desse pela institucionalidade vigente e, portanto, não permitiu que ocorresse uma

ruptura significativa com as formas arcaicas e autoritárias que caracterizam, no

Brasil, a tradição política de exercício da autoridade e da relação do Estado com a

sociedade. No essencial, a estrutura de dominação do país se manteve.

93 Coutinho
(1993), em seu artigo “Crise e Redefinição do Estado Brasileiro”, percorre a história brasileira analisando, de forma contundente, que as transformações políticas no Brasil sempre
foram realizadas pel
o alto.

cclxiv
Pouco antes da posse, o candidato eleito à Presidência da República, Tancredo Neves, foi

hospitalizado, assumindo em seu lugar o Vice- Presidente José Sarney, recém filiado ao

PMDB (para viabilizar sua candidatura à vice-presidência), que até pouco tempo era o

presidente do partido que dava sustentação ao regime militar - PDS. Tancredo Neves morre

em 21/04/85 e José Sarney assume, definitivamente, a Presidência da República.

José Sarney, Presidente da República, primeiro governante civil desde o golpe de 64, que até

há pouco era o presidente do PDS, representa, claramente, os fortes elementos de

continuidade do antigo regime, que a transição democrática brasileira preservara.

O cientista político Guilhermo O’Donnell destaca o peso e a presença institucional das Forças

Armadas, a presença marcante no governo de políticos que sustentaram o regime autoritário e

o estilo de se fazer política e governar baseado em “conchavos”, clientelismo, troca de

favores, regionalismo (tradição política existente antes mesmo do regime militar) como

elementos que marcam o alto grau de continuidade do regime autoritário, após o final da

primeira fase da transição brasileira (O’Donnell, 1988).

Por outro lado, podemos destacar que não só de continuidade se deu a transição brasileira. O

indubitável fortalecimento das organizações autônomas da sociedade civil, o surgimento do

sindicalismo combativo desatrelado do Estado, a criação de um partido orgânico de base

popular, apesar de não terem sido suficientes para provocar uma ruptura no sistema político,

formaram um conjunto de elementos de contraponto não só ao regime autoritário, como

também à prática política tradicional brasileira fundada em fortes traços patrimonialistas.

Assim, o início da “Nova República” se dá num contexto de instabilidade e crise

econômicas advindas do esgotamento do próprio modelo de desenvolvimento brasileiro,

cclxv
aliado às sucessivas crises pela qual passava o sistema mundial capitalista, num contexto

de fortalecimento das forças democráticas.

Essa conjuntura propicia uma situação de resistência ao modelo neoliberal, tanto pelo lado

das forças democráticas quanto pelo lado das classes dominantes.

Pelo lado das forças democráticas a resistência se apresenta em defesa de um modelo de

desenvolvimento pautado na incorporação efetiva da classe trabalhadora no sistema social,

político e econômico, via distribuição de renda e riqueza, participação política das classes

subalternas no poder e pela expansão de direitos, principalmente sociais, através da

organização de uma estrutura estatal institucional-redistributivista implementadora de

políticas sociais universalistas.

Do ponto de vista das classes dominantes, a resistência à mudança está relacionada ao sucesso

do modelo desenvolvimentista, na medida em que ele possibilitou a articulação de um

conjunto heterogêneo de grupos econômicos e, sem submetê-los à coordenação estratégica de

longo prazo, propiciava o acesso privilegiado ao Estado para esses grupos garantirem seus

interesses particulares (Tavares, 1993b: 108).

Nesse contexto, em linhas gerais, a política macroeconômica brasileira na

década de 1980, para enfrentar a crise, foi baseada na geração elevada de

superávites comerciais para honrar os compromissos da dívida, tanto durante o

último governo militar quanto durante a “Nova República”.

A política econômica, apesar de conseguir manter uma taxa de crescimento

do PIB positiva e superávites comerciais, não obteve sucesso em relação à

estabilização monetária (Fiori, 1993: 152). Contudo, a implementação de uma

política de estímulo à exportação e de substituição de importações impediu a queda

acentuada na geração de postos de trabalho.

cclxvi
Não houve expansão do assalariamento, mas também não houve redução.

Os empregos assalariados cresceram na mesma proporção da PEA (2,8%).

Entretanto, a quantidade de empregos assalariados com registro caiu fortemente: de

cada cem empregos assalariados criados entre 1980 e 1991, cerca de 99 foram sem

registro (Pochmann, 2002: 72). Todavia, é importante destacar que a política

econômica em voga na década de 1980 não viabilizou a saída da crise:

Durante os anos 80, o Brasil conseguiu um superávit de 99,5 bilhões


de dólares na sua balança comercial. Mas acumulou um déficit de
US$ 141,9 bilhões na balança de serviços. Desse déficit, 97,3 bilhões
de dólares eram referentes a juros e 9,1 bilhões de dólares a remessa
de lucros e dividendos. Noutras palavras, o Brasil enviou para o
exterior, durante a década de 80 a quantia líquida de 42, 3 bilhões de
dólares. Tornara-se um “exportador” de capitais (Gonçalves e Pomar,
2000: 13).

Em relação à política social, a Nova República foi extremamente contraditória.

Embora tenha adotado uma retórica progressista, manteve a prática tradicional na

área social. Os discursos e documentos da Nova República destacavam a

necessidade de enfrentamento da imensa “dívida social” e de resgate da cidadania.

Os Programas de Prioridades de 1985 e 1986, o I Plano Nacional de

Desenvolvimento da Nova República, de 1985, e o I Plano de Metas, de 1986,

expressam a orientação de que para reverter o quadro social seria necessário adotar

uma política econômica que possibilitasse a expansão da política social.

Para Draibe (1989), as produções da Nova República apresentavam

diagnósticos precisos e críticos sobre a situação da política social no Brasil, fazendo

referência ao grau de pobreza de nossa sociedade, ao modelo organizacional

instituído para operacionalizar a política social (centralização, fragmentação,

superposição institucional, burocratização etc.) e a seu padrão de financiamento

(caráter regressivo, recursos baseados em fundos sociais etc.). Como estratégias de

enfrentamento do padrão diagnosticado foram criados e implementados dois

Programas de Prioridades que, embora modestos (recursos previstos da ordem de

cclxvii
1,6% do PIB), tinham como perspectiva o combate à miséria. Visando ao

reordenamento institucional, foram criadas comissões setoriais responsáveis pela

proposição de reformulações gerais na área social. No entanto, a prática política da

Nova República, devido à manutenção do pacto de dominação conservador,

reforçou o padrão assistencialista e clientelista das políticas sociais brasileiras e não

produziu as mudanças esboçadas nos documentos e defendidas em discursos.

A despeito de não se ter avançado no campo econômico e de as mudanças

pretendidas na área social terem ficado restritas à retórica, houve durante a Nova

República uma ampla demonstração de que se estava consolidando uma sociedade

civil organizada e forte, de que se estava firmando uma sociedade do tipo

“ocidental”94 no Brasil.

Dessa forma, o País não superou sua crise econômica e não avançou,

substantivamente, na ampliação das políticas sociais, chegando ao final do governo

da “Nova República” com um déficit social ainda maior que do início do governo.

Entretanto, do ponto de vista político, tivemos uma ampla demonstração de que

estava se consolidando no país uma sociedade civil organizada e com expressões

democráticas mais significativas, que apontava para a consolidação de uma

sociedade de tipo “ocidental” no Brasil. Essa demonstração se deu em decorrência

do processo constituinte.

Os movimentos sociais organizados foram protagonistas de uma ampla

mobilização popular, visando à participação no processo de elaboração da nova

Constituição Federal, através da emendas populares.

A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em relação aos direitos

sociais95, apontando, claramente, para a construção de um Estado de Bem-Estar

94
Expressão utilizada no sentido gramsciano (equilíbrio entre sociedade política e sociedade civil).
95
A CF-88 define a Seguridade Social como direito social, sob competência do Estado, constituído pela previdência

cclxviii
social provedor da universalização dos direitos sociais96. Conforme observa Netto

(1999: 77):

... o essencial da Constituição de 1988 apontava para a construção –


pela primeira vez assim posta na história brasileira – de uma espécie
de Estado de bem-estar social: não é por acaso que, no texto
constitucional, de forma inédita em nossa lei máxima, consagram-se
explicitamente, como tais e para além de direitos civis e políticos, os
direitos sociais (coroamento, como se sabe da cidadania moderna).
Com isto, colocava-se o arcabouço jurídico-político para implantar; na
sociedade brasileira uma política social compatível com as exigências
de justiça social, eqüidade e universalidade.

Além disso, a Constituição introduziu “mecanismos institucionais de

participação popular na atividade legislativa e na definição de políticas

governamentais” (plebiscito, referendo e iniciativa popular) (Benevides, 1991: 17) e

abriu possibilidade, através dos incisos VII do art. 194 e II do art. 204, de se criarem

mecanismos de democracia participativa. Entretanto, no que se refere à ordem

econômica e a alguns aspectos significativos da ordem política (como, por exemplo,

o maior peso dos votos do Norte e Nordeste, áreas de maior possibilidade de

manipulação dos eleitores, em relação ao do Sul e Sudeste), dimensões

fundamentais para viabilizar a efetivação de um Estado de Bem-Estar no Brasil, a

CF-88 foi extremamente conservadora.

Essa contradição da Constituição expressa a falta de hegemonia presente na

sociedade naquele momento. Como bem sinaliza Coutinho, existia no Brasil, grosso

modo, a disputa entre dois projetos de sociedade, aplicáveis e existentes nas

sociedades contemporâneas de tipo “ocidental”: o de “democracia de massa” ou

(contributiva), saúde (não contributiva) e assistência social (não contributiva), possuindo como objetivo: a universalidade do
atendimento e da cobertura; uniformidade dos benefícios; participação da comunidade na gestão; diversidade de
financiamento; e irredutibilidade dos valores dos benefícios. Dessa forma a seguridade social brasileira se aproxima a uma
perspectiva de Estado de Bem-Estar Social. No caso da assistência social, pela primeira vez, ela é enquadrada como política
pública, dever do Estado e direito de cidadania, compondo a seguridade social.
96
Utilizando a tipologia organizada por Fleury (1994: 110), a Constituição de 1988 expressa a tendência de se construir no país
um modelo de proteção social fundado na concepção de seguridade social e cidadania universal, apesar da existência de
contradições em sua formulação. Ou seja, um modelo baseado num “conjunto de políticas públicas que, através de uma ação
governamental, centralizada e unificada, procura garantir à totalidade dos cidadãos um mínimo vital em termos de renda, bens
e serviços, voltada para um ideal de justiça social. Correspondentemente, o Estrado é o responsável principal tanto pela
administração quanto pelo financiamento do sistema. Os benefícios são concedidos (...) como direitos. Reconhece-se (...) o
predomínio da relação de Cidadania Universal...”

cclxix
“modelo europeu” e o do “liberal-corporativismo” ou de “modelo americano”. O

projeto baseado no “liberal-corporativismo” ou “modelo americano” se caracterizaria

por possuir partidos frouxos, representantes de múltiplos interesses e sem

organicidade, aliado a uma forma de representação de interesses extremamente

pulverizada, atuando através de “lobbies” específicos. O projeto baseado na

“democracia de massa” ou “modelo europeu”, ao contrário, seria caracterizado por

possuir partidos orgânicos e programáticos de base homogênea, sindicalismo

classista, que busca representar a classe trabalhadora e não apenas a corporação,

em que a representação de interesses possui canais articulatórios para a formação

de unidade na pluralidade (Coutinho,1993 e 1992). Podemos dizer que Tavares

(1993b: 114-116), do ponto de vista do projeto de desenvolvimento, analisa essas

duas alternativas como propostas de substituição do “tripé” desenvolvimentista

(Estado, capital nacional e capital internacional): uma baseada na redução para

“dois pés” (desmontagem do Estado para reforçar o pé do capital nacional - modelo

americano de Coutinho) e outra fundada na “articulação a quatro pés” (inclusão do

trabalho – modelo social-democrata).

Certamente, os setores que possibilitaram os avanços na Constituição

possuíam, como norte, o projeto societal de “modelo europeu”, base da construção

do Estado de Bem-Estar social-democrata. Por outro lado, os setores que

mantiveram os aspectos conservadores da Constituição baseavam-se na

perspectiva do “modelo americano”, mesmo porque, como ressalta Coutinho:

“... o ‘modelo americano’ (...) é, sem dúvida, o mais adequado à


conservação do capitalismo, por causa das quase insuperáveis
dificuldades que apresenta para a constituição de uma proposta
hegemônica alternativa à dominante” (Coutinho, 1993: 91).

As lutas na área social, por diversas razões, foram aquelas em que os grupos

democráticos mais obtiveram vitórias (capítulo da seguridade, criança, educação

cclxx
etc.). Esses movimentos lutavam tanto pela democracia social quanto pela

ampliação da democracia política. Procuravam garantir, por um lado, as bases de

um sistema social institucional-universalista e, por outro, a criação de mecanismos

de participação, complementares à tradicional base representativa parlamentar, com

o objetivo de garantir institucionalmente a influência e o controle público das políticas

sociais.

Torna-se mister lembrar, como já

sinalizamos, que nos anos 980 as práticas e a

organização sociopolítica (autoritarismo,

clientelismo, patrimonialismo, insulamento

burocrático, corporativismo estatal bifronte)

brasileiras são criticadas e combatidas pelos

movimentos democrático-progressistas.

Nesse sentido, a Nova República, assim

como ocorrera na área das políticas sociais,

produziu um excelente diagnóstico, do ponto de

vista de uma perspectiva democrática, sobre as

principais questões da administração pública97,

apesar de suas ações nessa área terem sido

restritas98, ou como analisam Nogueira (1998;

108) e Martins (1997: 30), respectivamente: “as

generosas intenções reformadoras dos

primeiros anos do Governo Tancredo/Sarney

não saíram do papel” e “[o governo Sarney]

parecia ter marcado um tento ao designar uma

97
Para o detalhamento deste diagnóstico ver Nogueira (1998: 106-108).
98
Torres (2004) e Lima Júnior (1998) apontam como os principais aspectos implementado pela Nova República, em relação à
administração pública, a criação do Cadastro Nacional do Pessoal Civil e a extinção de 45 órgãos e comissões especiais que

cclxxi
comissão de alto nível para a reforma

administrativa – um esforço, entretanto, que

nunca produziu resultados”. Na prática, traços

patrimonialistas, vinculados à dimensão

tradicional da estrutura de dominação vigente à

época, ainda permaneceram fortes na estrutura

da administração pública.

No entanto, conforme ocorrera, também,

com as políticas sociais, são inseridas, na carta

constitucional, propostas democráticas para a

administração pública voltadas para o

fortalecimento de sua dimensão burocrática:

reforço dos procedimentos para garantir a

impessoalidade e o mérito na estruturação do

quadro de pessoal (contratação através de

concurso público), organização de princípios

para a estruturação de plano de carreiras e

salários, definição de ordenamento para

contratar obras, serviço e compras, garantia de

direitos trabalhistas, estabelecimento de

mecanismo de proteção ao cargo. Dessa

maneira, prioriza-se a administração direta e se

expandem essas regras para a administração

indireta. Por outro lado, como vimos, são

também criados mecanismos democratizadores

e de controle social e público para acompanhar

a formulação e a implementação de políticas:

não possuíam mais função e continuavam existindo.

cclxxii
participação da população e o fortalecimento do

ministério público.

Dessa forma, os preceitos aprovados na

Carta de 1988, em relação à administração

pública, buscavam garantir uma espinha dorsal

burocrática para o Estado brasileiro fundada na

impessoalidade, no mérito e na proteção ao

cargo, expandindo instrumentos de controle

democrático para estruturar uma ordem

administrativa permeável à sociedade em

relação à participação da definição de suas

intenções e ações. Mesmo considerando a

existência de certos privilégios para o

funcionalismo público e, talvez, um excesso de

rigidez, a lógica proposta possuía uma direção

referenciada na necessidade de estruturar no

Brasil uma ordem administrativa fundada na

impessoalidade, mérito e normas a serem

seguidas, porém com mecanismos de controle

democrático para evitar a “burocratização”

(excesso de normas, regras e rigidez

administrativa), a ação auto-referenciada da

burocracia e seu “insulamento”.

Sendo assim, diferentemente do que preconiza Bresser Pereira (1996 e

1998), a Constituição Federal de 1988 não foi um retrocesso aos anos 1930, em

relação à estruturação da administração pública, tampouco um retrocesso aos anos

1950, no que se refere ao plano político.

cclxxiii
Em relação aos anos 1930, a Constituição busca completar, como o próprio

autor reconhece99, a estruturação burocrática da administração pública, o que, para

o caso brasileiro, como foi exaustivamente demonstrado, colocava-se como um

requisito fundamental para o fortalecimento democrático, mesmo porque, os

preceitos constitucionais estavam orientados para robustecer a dimensão impessoal,

meritocrática e formal-legal da burocracia. Portanto, em que pesem certos exageros

e privilégios corporativos (que poderiam e deveriam ser ajustados), a concepção

presente no texto constitucional, ao invés de ser retrógrada, estava, na verdade,

apontando para a construção de uma espinha dorsal burocrática em sua totalidade

(envolvendo as dimensões de especialização, formalismo e impessoalidade),

combinada com mecanismos de controle, imprescindível para o avanço democrático.

Torres (2004: 164-166) apresenta uma análise detalhada dos preceitos

constitucionais e mostra como a avaliação do ex-ministro é equivocada. De acordo

com a análise do autor, as regras estabelecidas para serem cumpridas, também,

pela administração indireta, não prejudicaram a eficiência dessas agências. Em

relação à adoção de concurso público como ingresso do servidor, o autor afirma que

foi “propiciado a profissionalização e a moralização do setor estatal, atacando de

maneira contundente o clientelismo e o empreguismo que imperavam na

administração pública”. Dessa forma, conclui o analista: “os ganhos propiciados pela

obrigatoriedade do concurso público para o ingresso na administração indireta em

muito ultrapassam os custos e as limitações burocráticas impostas por este critério

de seleção e contratação”.

No que se refere às regras relativas às compras e contrato, o autor destaca

três aspectos que demostram que não houve comprometimento da agilidade e

99
O autor reconhece esse movimento, porém, analisando-o de forma negativa, pois segundo Bresser Pereira (1996: 274), dar
ênfase à estruturação burocrática significava ignorar “as novas orientações da administração pública”, revelando “uma incrível

cclxxiv
eficiência na administração indireta. O primeiro aspecto está relacionado ao fato de

que a constituição permite que essas agências possuam processo próprio de

licitação, adequando o perfil da agência aos preceitos constitucionais. O segundo

parte do pressuposto de que, explicitada na EC nº 19 de 4 de junho de 1998, a

possibilidade de leis específicas para as agências da administração indireta

regularem o processo licitatório e a, conseqüente, não regulamentação de tal

preceito sugere “que a administração indireta está prescindindo dessa lei para

funcionar a contento”. Por fim, Torres (2004: 165) mostra, a partir de dados do

Banco do Brasil e da Petrobras, que “o desempenho das empresas públicas e

sociedades de economia não tem sido comprometido pelos rigores do processo de

compras públicas”.

Em nosso entendimento, a questão efetivamente controversa, em relação aos

dispositivos constitucionais destinados à ordenação da administração pública, está

ligada aos direitos conquistados pelos servidores públicos: regime jurídico único,

estabilidade no emprego e, no âmbito da aposentadoria, tempo de serviço e

remuneração integral, num quadro de incorporação de aproximadamente 400 mil

servidores celetistas da administração indireta que possuíam mais de cinco anos de

serviço.

A despeito da discutibilidade de alguns desses direitos, que podem até ser

considerados como privilégios100, em relação ao cerne da questão tratada neste

trabalho (organização de uma espinha dorsal burocrática), os desvios que possam

ter ocorrido não comprometeram a lógica para a efetivação da construção de uma

estrutura burocrática em sua totalidade e, mais que isso, os preceitos constitucionais

falta de capacidade [dos constituintes e da sociedade] de ver o novo”.


100
Para a crítica a esses aspectos ver Martins (1997).

cclxxv
mostravam-se coerentes com uma perspectiva de aprofundamento e universalização

de direitos que setores da sociedade clamavam à época.

Portanto, longe de uma “visão equivocada por parte das forças democráticas”,

conforme considera Bresser Pereira (1996: 275), as forças democráticas,

conscientemente ou não, propuseram, coerentemente com a finalidade de

universalização e aprofundamento de direitos numa sociedade de classes, a

estruturação de uma ordem administrativa burocrática, a partir de suas

determinações de impessoalidade, mérito e estrutura formal-legal101.

Assim, não houve equívoco das forças democráticas. O que deve ficar

explicitado é que a concepção de ordem administrativa de Bresser Pereira é

contrária à expansão da racionalidade burocrática, pois o autor não vislumbra

o aprofundamento e a universalização de direitos como finalidade social a ser

alcançada. Isso já pode ser observado na medida em que o ex-ministro critica o

plano político da Constituição Federal de 1988, analisando-o como retrocesso aos

anos 1950.

Em outras palavras, o autor, apesar de não ser explícito, identifica a expansão

de direitos, presente na Carta Constitucional, com a “euforia democrático-populista”

como se fosse possível “voltar aos anos dourados da democracia e do

desenvolvimento brasileiro, que foram os anos 50” (Bresser Pereira, 1996: 274). Ou

seja, o ex-ministro, numa nítida manobra neoliberal, transmuta a idéia de direitos

(principalmente os direitos sociais) para as de paternalismo e populismo. Conforme

analisa Nogueira (2004: 66):

101
Tudo indica que a defesa de uma ordem burocrática pelas forças democráticas estava mais relacionada a uma estratégia
voltada para romper com os traços tradicionais da administração pública brasileira, portanto, uma perspectiva centrada numa
dimensão instrumental e endógena da burocracia. Ou seja, parece que não havia clareza entre as forças democráticas da
possibilidade da existência de uma relação finalística entre a ordem administrativa burocrática e a universalização e
aprofundamento de direitos. Em outras palavras, a burocracia foi interpretada como remédio contra a doença patrimonialista,
que se expressava no clientelismo e na corrupção.

cclxxvi
O próprio capitalismo, ao se reproduzir, força uma conversão das
políticas sociais em operações tópicas destinadas a aliviar os que são
por ele penalizados. Reduz direitos em favor de equilíbrios fiscais.
Reformula e dá novos significados à própria idéia de direitos: por um
lado, faz com que sejam associados a privilégios que oneram a
comunidade; por outro, transforma-os em benefícios merecidos por
aqueles que exibem melhor desempenho, têm maior poder de compra
ou mais “sorte”.

Dessa maneira, Bresser Pereira não reconhece que, para o aprofundamento

democrático, a formalização de direitos configura-se como o pilar fundamental para a

conquista de um outro patamar de sociabilidade.

Sendo assim, no final da década de 1980 estrutura-se no país um

paradigma legal-institucional, via Constituição Federal, que delineia os

fundamentos para a construção de um Estado de Bem-estar de cunho

universalista e institucional, com fortes elementos democratizadores,

viabilizador de direitos e estruturado a partir de uma ordem administrativa

burocrática, fundada na impessoalidade e no mérito.

O período da “Nova República” se configurou como o período da

(re)institucionalização democrática e da consolidação de uma sociedade de tipo

“ocidental” no País. O fortalecimento das forças democráticas, que vinham se articulando

desde o final dos anos 1970 - que possibilitou, do ponto de vista da classe trabalhadora, o

surgimento do “novo sindicalismo” e de um partido com base na classe trabalhadora, e que

viabilizou, também, a criação de movimentos sociais reivindicativos - propiciou, pela primeira

vez no Brasil, uma interferência mais substantiva das camadas populares na estrutura de

dominação do país, apesar de não ter tido influência para fragilizar a coalizão das classes

dominantes, de forma a reordenar o projeto de sociedade numa direção mais clara para a

universalização e o aprofundamento de direitos, “social-democrata” ou para um projeto de

desenvolvimento fundado em “quatro pés”. Assim, a coalizão de classes na estrutura de

dominação do país ainda preservava a aliança fundamental entre a burguesia nacional

associada e dependente e os velhos setores tradicionais, preservando, dessa forma, os

traços conservador, patrimonialista e autoritário de nossa história. Porém, essa coalizão

cclxxvii
dominante não pôde, nesse período, agir desconsiderando as demandas e as forças

democráticas da sociedade. As ambigüidades da “Nova República”, manifestadas no texto

constitucional, entre uma ordem econômica conservadora e uma ordem social e

administrativa democrática, nos diagnósticos precisos, do ponto de vista democrático, sobre

a estrutura das políticas sociais e da administração pública, e as ações pífias ou mesmo

conservadoras nessas áreas e a resistência à implementação do modelo neoliberal,

demonstram a crise de hegemonia existente no período e a influência que os setores

democrático-populares tiveram sobre a definição das diretrizes do novo projeto nacional que

se encontrava em construção.

Como vimos, a década de 1980 nos mostrou, então, a consolidação de um

outro tipo de articulação social no Brasil, à qual Gramsci, certamente, chamaria de

"Ocidental", pois dotada de uma sociedade civil organizada, atuante e autônoma em

relação ao Estado, mantendo equilíbrio, portanti, com a "sociedade política".

O jogo político tornou-se mais complexo, o espaço para exercer a dominação

baseada na coerção restringiu-se, a busca do consenso passou a ser uma

necessidade mais presente. Os atores políticos em cena são múltiplos (partidos,

sindicatos, governos, ONG's, movimentos populares, entre outros) e os interesses

diversos.

No entanto, é fundamental reafirmar que, no período da Nova República, a

situação da classe trabalhadora era extremamente adversa, uma vez que não se

conseguia diminuir o desemprego, os empregos criados eram sem registro, a inflação

corroía os salários (no final de 1989, a inflação chegou ao patamar de 80% ao mês), a

concentração de renda e riqueza permanecia e as políticas sociais não passavam de

projetos. Por outro lado, do ponto de vista das classes dominantes, a situação não

permitia a continuidade do processo de acumulação para enfrentar as mudanças

advindas da Terceira Revolução Industrial e da conjuntura econômica internacional.

Nesse quadro foi se forjando o consenso de que a crise não era conjuntural,

mas sim estrutural, estando relacionada, por um lado, às mudanças operadas na


cclxxviii
dinâmica do capitalismo, a partir de sua lógica mundializada financeiramente,

produtiva e comercialmente e, por outro, ao esgotamento do modelo de

desenvolvimento implementado no País responsável pela industrialização nas bases

da Segunda Revolução Industrial. Nesse sentido, havia uma convergência de todas

as forças sociais sobre a necessidade de processar mudanças na condução da

política econômica, na estrutura produtiva do país e, como elemento central,

implementar uma profunda reforma do Estado (Fiori, 1993: 152-153).

Entretanto, se havia consenso em relação à agenda das questões, não havia

em relação à direção que as propostas deveriam assumir. O País se encontrava

dividido entre uma direção “social-democrata” e outra “liberal-corporativa” (Coutinho,

1992 e 1993), ou, conforme analisa Tavares (1993b), entre um projeto baseado na

“articulação a quatro pés” e outro fundado na redução para “dois pés”.

No entanto, o contexto global do final dos anos 1980 e, principalmente dos

anos 1990, marcam a consolidação de mudanças significativas na sociedade

capitalista. O desenvolvimento tecnológico — robótica, microeletrônica, informática,

novos mecanismos de comunicação on line —, assim como as mudanças na

organização do processo produtivo, que passa de uma orientação fordista para uma

orientação flexível102, provocam transformações radicais no mundo do trabalho.

Simultaneamente, as crises econômicas que se manifestavam desde os anos

1970, a redução da taxa de crescimento mundial e o aumento da expectativa de vida

nos países desenvolvidos põem em xeque o padrão de regulação da sociedade

baseado no welfare state. A esses fatos aliam-se o desmoronamento das

experiências de socialismo de Estado e a ofensiva liberal-conservadora que,

102
De acordo com Antunes (1995), a produção fordista está baseada em grandes linhas de montagem, amplo corpo de
empregados, salários pactuados e sindicatos fortes. A produção de orientação flexível baseia-se em pequenos núcleos
estratégicos vinculados à empresa, no emprego da informática e da robótica em substituição ao “trabalho vivo”, na utilização de
novas tecnologias gerenciais e na fragmentação da classe trabalhadora.

cclxxix
representada pelos governos Thatcher, Reagan e Kohl, impõe ao mundo uma

hegemonia ideológica e de experiências concretas norteadas pela liberalização do

mercado. Portanto, o esvaziamento do Estado e de seu papel regulador da

sociedade entram na pauta de uma nova reestruturação estatal.

Todas essas mudanças ocorrem num mundo altamente interconectado, tanto

no aspecto econômico quanto nas esferas social, política e cultural. Parte mínima da

população do Terceiro Mundo apresenta padrões de consumo do Primeiro Mundo e

em uma parcela já significativa do Primeiro Mundo verificam-se padrões de miséria

do Terceiro Mundo. Nesse contexto, há, por um lado, uma certa uniformização de

valores; por outro lado, adeptos do fundamentalismo e do racismo (por exemplo) que

procuram resguardar, de forma autoritária e violenta, sua identidade. No aspecto

político há uma pressão dos organismos internacionais e dos países hegemônicos

para a adesão dos países em desenvolvimento ao chamado “Consenso de

Washington”103 o que constitui outro elemento a tornar mais complexo o contexto do

início da década de 1990.

Em 1989, durante a primeira eleição presidencial direta após decorridos 29

anos, ficou nítida a polarização entre os dois projetos de sociedade. Lula, candidato

do Partido dos Trabalhadores (PT), que representava o que Coutinho chamou de

“democracia de massa”, obteve 37,86% dos votos no segundo turno das eleições e

Fernando Collor de Mello, candidato do Partido da Renovação Nacional (PRN), que

representava o chamado “liberal-corporativismo”, obteve 42,75% dos votos. Tal

vitória não se caracterizou como hegemônica, apesar do clima ideológico e

103
Fiori (1997: 12) sintetiza o “Consenso de Washington”, como um “plano único de ajustamento das economias periféricas”,
sistematizado por John Williamson, organizado como um programa de “três fases: a primeira consagrada à estabilização
macroeconômica, tendo como prioridade absoluta um superávit fiscal primário, envolvendo invariavelmente a revisão das
relações fiscais intergovernamentais e a reestruturação dos sistemas de previdência pública; a segunda, (...) dedicada [às]
‘reformas estruturais’; liberalização financeira e comercial, desregulação dos mercados, e privatização das empresas estatais; e
a terceira etapa, definida como de retomada dos investimentos e do crescimento econômico”.

cclxxx
programático em defesa das teses neoliberais104, como analisa Fiori (1993: 153), já

se encontrar formado, a partir de um amplo consenso liberal presente em diferentes

setores sociais: político, intelectual, quase totalidade dos meios de comunicação e

dos chamados formadores de opinião.

O candidato vencedor, que construíra sua carreira política durante os anos da

ditadura, inclusive ocupando cargos por indicação indireta, realizou sua campanha

através da combinação dos mais modernos recursos de propaganda e marketing

com o estilo populista de comunicação direta com a povo, além de aplicar táticas de

agressão pessoal a seu adversário. Em linhas gerais, defendia as teses neoliberais

de privatização das estatais, diminuição do Estado, integração do país no mercado

internacional, entre outras.

A campanha refletiu o que seria o governo. Ou seja, um governo que seguia a

matriz neoliberal, impregnado da tradição política patrimonialista, que buscava o

apoio da população pobre, desorganizada e despolitizada. Conforme analisa

Teixeira da Silva (1996: 352), “Collor surgia, assim, em uma terrível convergência de

interesses ilusórios, dos segmentos mais pobres e mal informados da população,

com os interesses concretos, da elite nacional, em desmontar os mecanismos

distributivistas do Estado”.

Por outro lado, o Presidente Collor imprime como forma de governar um perfil

“delegativo”105, haja vista as 20 medidas provisórias assinadas - ato permitido pela

104
“...reforma administrativa, patrimonial e fiscal do Estado; renegociação da dívida externa; abertura comercial; liberação dos
preços; desregulamentação salarial; e, sobretudo, prioridade absoluta para o mercado como orientação e caminho para a nova
integração econômica internacional e modernidade institucional” (Fiori, 1993: 153).
105
De acordo com O’Donnell (1991) A “democracia delegativa” seria um tipo específico de democracia surgida durante as
décadas de 1970 e 1980, em contextos nacionais imersos numa profunda crise econômica e social, com uma tradição histórica
de grande atomização da sociedade e do Estado e de cultura patrimonialista como forma predominante de fazer política e
governar. Esse conjunto de fatores, aliado a um processo de transição democrática que não efetiva rupturas definitivas com o
regime autoritário precedente (como foi o caso do Brasil), potencializa, sobremaneira, a estruturação de uma democracia na
qual o governante se considera o principal fiador dos interesses nacionais, acha que pode governar de acordo com suas
conveniências, coloca-se acima de todos os partidos políticos e interesses organizados e considera a ação de prestar contas
às instituições e organizações da sociedade como sendo um impedimento ao exercício de sua plena autoridade conquistada
nas urnas. A despeito da polêmica sobre se a “democracia delegativa” é um tipo específico de democracia ou se é uma fase do
processo de democratização, consideramos que a caracterização da “democracia delegativa” descrita por O’Donnell é
extremamente pertinente para compreendermos e analisarmos o processo de transição democrática do Brasil.

cclxxxi
Constituição somente para ocasiões excepcionais - no dia de sua posse e de seu

vice (Itamar Franco), objetivando reordenar a economia e extinguir órgãos públicos

ligados à cultura e à educação.

O governo Collor, do ponto de vista econômico, tanto no primeiro momento,

com a equipe comandada pela ministra Zélia C. de Mello, quanto no segundo, com o

ministro Marcílio Marques, implementou medidas de liberalização comercial e

financeira e de redução da máquina pública, tal qual recomendação liberal.

Entretanto, em relação ao combate inflacionário, as ações não surtiram efeito

substantivo. No período compreendido entre 1990-1992, apesar da situação fiscal e

comercial superavitárias e o retorno de capitais, “o país enfrentou sua recessão

econômica mais séria desde os anos 30”, num quadro de manutenção da

concentração de renda, aumento de desemprego e “deterioração das condições de

infra-estrutura e dos serviços públicos, em geral, e sociais, em particular” (Fiori,

1993: 155-157).

Simultaneamente às ações de governo e à participação política referente a temas gerais

(eleição presidencial), os movimentos sociais organizados, que participaram ativamente do

processo constituinte, continuaram, após a aprovação da Constituição de 1988, a atuar

politicamente em questões específicas, visando interferir na elaboração das leis

complementares que viessem a consolidar, institucionalmente, os avanços conquistados em

suas áreas. Essa atuação representava, em termos mais amplos, uma ação política contrária à

dominante, voltada para a criação e o fortalecimento de estruturas propiciadoras de uma

construção institucional que viabilizasse os direitos sociais e estimulasse a participação

popular, com base no “modelo europeu” de Estado de Bem-estar.

cclxxxii
Essa ação ocorreu de forma emblemática nas áreas da saúde (elaboração e aprovação da Lei

Orgânica da Saúde — LOS), assistência social (elaboração e aprovação da Lei Orgânica da

Assistência Social — LOAS) e infância e adolescência (elaboração e aprovação do Estatuto

da Criança e do Adolescente — ECA), e tinha por finalidade consolidar os dispositivos

constitucionais referentes às respectivas áreas de atuação.

Todavia, esse momento não se passou sem conflitos. Se, por um lado, havia

apoio de determinados setores da sociedade para a consolidação dos dispositivos

constitucionais, por outro, havia grande resistência, principalmente por parte de

setores afinados com o ideário neoliberal que, naquele momento (1990),

aprofundava-se no país.

Paralelamente ao foco central da luta de elaboração/aprovação de leis

complementares (LOS, LOAS e ECA), ocorria o processo constituinte nos estados e

municípios. Isso sinalizou os limites/fragilidades e a falta de condições das

organizações da sociedade civil, de corte democrático, para uma ação de

intervenção no Legislativo que cobrisse a dimensão do país.

Em que pesem todas as dificuldades, a Lei Orgânica da Saúde, o Estatuto da

Criança e do Adolescente e a Lei Orgânica da Assistência Social foram aprovados

pelo Congresso e sancionados pelos presidentes da República que governaram

entre 1990 e 1993.

Dessa forma, temos leis extremamente avançadas num Estado, como vimos,

de forte perfil autoritário e patrimonialista, que incluíra parcialmente e seletivamente

a classe trabalhadora e, quando iniciou o processo de universalização dos serviços

sociais, fê-lo de forma excludente, de baixa qualidade, estruturando o que Maria

Lúcia Werneck Vianna chamou de “americanização perversa” da seguridade social.

cclxxxiii
No entanto, o realismo não impede de vislumbrar o significado político-

institucional dessas leis. Como afirmado anteriormente, as leis complementares,

enquanto orientação política e institucional, enquadram-se no paradigma de

construção de um Estado de Bem-estar provedor de direitos sociais. Nesse sentido,

elas se expressam como um verdadeiro instrumento político-cultural e institucional

de contribuição para transformar a configuração predominante do Estado brasileiro,

no que se refere às políticas sociais.

No aspecto conceitual, essas leis complementares representam um grande

avanço para a continuidade da luta pela construção de um Estado provedor da

universalização dos direitos sociais. Além disso, a existência dos conselhos

deliberativos propicia um processo de redefinição da relação entre o Estado e a

sociedade civil na dinâmica de gestão da sociedade.

O reflexo desse processo na assistência social é inequívoco. A Lei Orgânica

da Assistência Social apresenta a assistência social como política pública, direito de

cidadania e dever do Estado numa perspectiva de universalização dos direitos

sociais. Além dessa concepção, a legislação propõe a descentralização e a

participação como elementos democratizadores para a implementação dos serviços

sociais, projetando uma organicidade da política, através da articulação Estado –

sociedade civil, União-estado-município e entre os diferentes setores que compõem

a política pública.

Nesse quadro, conforme destaca Pereira (1996), a política de assistência

social se caracteriza por ser: a) genérica na atenção e específica em relação aos

destinatários - diferentemente das políticas setoriais; b) particularista - pois destinada

exclusivamente aos segmentos pior situados na escala de distribuição de riqueza; c)

desmercadorizável - pois não se vincula à lógica do mercado e d) universalizante -

cclxxxiv
pois, apesar de não ser universal, atua reforçando a universalização dos direitos

sociais (Pereira, 1996: 29, 53 e 54).

Nos primeiros momentos do Governo Collor, a oposição parecia perplexa (talvez não tenha

absorvido a quase vitória eleitoral) e pouca mobilização social de expressão pública ocorreu.

Entretanto, ao vir à tona o esquema de corrupção montado no aparelho do

Estado, que envolvia o Presidente e seus principais colaboradores, diversas

organizações da sociedade civil mostraram-se, mais uma vez, atentas às questões

políticas e se manifestaram a favor do "impeachment" do Presidente da República,

inclusive, setores vinculados aos grupos dominantes. Essa situação, mostra,

também, a falta de organicidade existente entre o presidente e os setores que o

apoiavam.

O processo de “impeachment”, assim como o trabalho da Comissão

Parlamentar de Inquérito, instaurada para apurar as denúncias de corrupção

existente na Comissão de Orçamento da Câmara, transcorreram sem afetar a

estabilidade institucional da recente democracia brasileira.

O Presidente Collor foi “impedido” de continuar o seu mandato e, em 1993,

assumiu a Presidência da República o Vice-Presidente Itamar Franco.

Essa conjuntura viabilizou o surgimento

do Movimento pela Ética na Política, que se

organizou por ocasião do "impeachment" e que

mostrou o crescimento, na sociedade, do

repúdio às práticas patrimonialistas

historicamente presentes no Estado brasileiro.

Esse movimento, posteriormente, contribuiu

com a constituição do Movimento da Ação da

Cidadania Contra a Fome e Pela Vida, o qual


cclxxxv
impulsionou setores da sociedade civil a se

organizarem em comitês de combate à fome,

colocando na agenda nacional o tema da fome.

No plano institucional ocorre uma tentativa de articulação de centro-esquerda para dar

sustentação política ao Presidente Itamar Franco.

Temos, nesse sentido, uma conjuntura política que, apesar de inserida num contexto marcado

por forte ideologia e propostas neoliberais, ainda possibilita a disputa dos dois projetos de

sociedades. Coutinho (1992: 62), analisando a conjuntura da época, a partir da reflexão sobre

os dois projetos de sociedade, sublinha: “penso que a luta entre esses dois projetos

alternativos ainda não está decidida no Brasil” (itálico no original).

No entanto, para enfrentar a crise econômica (principalmente a alta taxa

inflacionária) e superar uma questão de política interna, o sociólogo Fernando

Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), então

Ministro das Relações Exteriores, assume o Ministério da Fazenda. Neste momento,

rearticulam-se as forças de centro-direita no sentido de conduzir e consolidar o

projeto fundado na hegemonia neoliberal.

4.2. Consolidação do neoliberalismo no Brasil e a reforma administrativa

A reedição do pacto conservador de dominação e o projeto de

transnacionalização

Fernando Henrique e sua equipe formulam e implementam um plano de

estabilização econômica, fundado nos preceitos neoliberais.

cclxxxvi
A inflação é derrubada, Fernando Henrique se projeta a nível nacional, o

PSDB faz aliança com o PFL - partido, como vimos, que congrega políticos de perfil

tradicional, oligárquico e clientelista que apoiaram o regime militar - e lança

Fernando Henrique para Presidente. Ou seja, uma rearticulação orgânica entre

setores da burguesia industrial, principalmente paulista, e intelectuais com

passagem pela esquerda, mas que se encontravam afinados com as teses liberais,

aglutinados em torno do PSDB, e as forças oligárquicas e tradicionais,

principalmente do nordeste, vinculados ao PFL. Conforme análise de Fiori (2001b:

285): “uma aliança bem-sucedida entre o que se poderia chamar de ‘cosmopolitismo

de cócoras’ de uma parte da intelectualidade paulista e carioca atrelada às altas

finanças internacionais, e o localismo dos donos do sertão e da malandragem

urbana brasileira.”

Dessa forma, é reeditado, de forma orgânica, o pacto de dominação

conservadora que implementou o projeto desenvolvimentista, mas que, na

conjuntura da crise daquele modelo, organiza-se para orientar uma intervenção

social pautada nas teses neoliberais. Isso posto, observa Fiori (1998: 17):

...diante da hipótese de uma aliança de centro-esquerda que poderia


revolucionar o sistema político e social brasileiro, (...) FHC preferiu
(...) e decidiu-se por uma aliança de centro-direita com o PFL (...).
Uma aliança que obviamente não se explica por razões puramente
eleitorais (...). O que a nova aliança de FHC se propõe, na verdade, é
algo mais sério e definitivo: remontar à tradicional coalizão em que se
sustentou o poder conservador no Brasil. Este é o verdadeiro
significado direitista de sua decisão...

A campanha do PSDB/PFL é baseada no “sucesso” do plano real e no

convencimento do eleitorado de que a estabilidade econômica, para perdurar,

necessitava da continuidade do trabalho.

Para surpresa de muitos, que há três meses das eleições consideravam certa

a vitória do candidato da esquerda, Fernando Henrique se elege no primeiro turno

das eleições.

cclxxxvii
A política implementada pelo Governo Fernando Henrique para viabilizar o

desenvolvimento do país é marcada por forte orientação neoliberal: privatizações

indiscriminadas e com possibilidade de utilização de “moeda podre” para compra das

estatais; reforma da previdência baseada em ônus para os trabalhadores; diminuição

da máquina administrativa e enfraquecimento da intervenção social do Estado;

inserção subordinada do país no mercado internacional, entre outras. Assim,

reafirma-se um projeto de internacionalização subordinada ao capital internacional,

agora hegemonizado pela sua fração financeira, através de um processo facilitado

de transferência patrimonial do Estado para as empresas privadas e de redução da

intervenção distribitivista do Estado na sociedade.

Nesse sentido, delineava-se no país a vitória hegemônica do projeto de

sociedade “liberal-corporativista”, com forte presença do componente patrimonialista

como prática de fazer política e governar, aliado ao fortalecimento do perfil

“delegativo” de nossa democracia. Do ponto de vista econômico, efetivou-se a

implementação de um modelo de desenvolvimento que buscava desmontar o “pé”

estatal para reforçar a estrutura privada, nacional e internacional, colocando o

mercado no centro das estratégias econômicas e alijando a incorporação da classe

trabalhadora do processo de decisão e da participação dos frutos do

desenvolvimento. “FHC optou por sustentar a estratégia do Consenso de

Washington valendo-se da mesma coalizão de poder que construiu e destruiu o

Estado desenvolvimentista de forma igualmente excludente e autoritária” (Fiori,

1998: 18).

A economia do plano real, implementada no governo Itamar Franco e

prosseguida ao longo do governo FHC, baseou-se na estratégia ditada pelo sistema

financeiro internacional nos anos de 1990: renegociação das “dívidas velhas”, para

cclxxxviii
possibilitar empréstimos novos (Plano Brady); desregulamentação dos mercados

locais (eliminação de barreiras para entrada e saída dos investidores); intermediação

para o deslocamento de capital de curto prazo para os países, independente da

capacidade de absorção dos recursos pela base produtiva local.

Nesse quadro, a sobrevalorização do câmbio e abertura comercial

conformaram uma combinação explosiva: com a sobrevalorização cambial o país

fica com maior capacidade de importar; a abertura comercial facilita a importação,

pois restringe as barreiras; a entrada de produtos internacionais pressiona para

baixo os preços do produtos internos e força a competitividade (contenção da

inflação). Por outro lado, a exportação cai – os produtos brasileiros ficam caros, os

preços não são competitivos no mercado internacional; a balança comercial entra

em déficit crescente; perdem-se reservas cambiais. Para honrar os compromissos

internacionais, manter a moeda estabilizada e importar, o país gasta dólares. “O

déficit acumulado, entre 1995 e 1999, na balança de transações correntes alcançou

134,7 bilhões de dólares!” (Gonçalves e Pomar, 2000: 20).

Assim, para equilibrar o balanço de pagamento, num cenário de balança

comercial deficitária, o país necessita de reservas cambiais para honrar seus

compromissos. É necessário, então, permitir e fomentar a entrada do capital de curto

prazo, aumentando a taxa de juros. Nesse contexto, o Estado assume a

remuneração desse recurso, emitindo títulos e aumentando a dívida pública. O

resultado é o enorme crescimento da dívida pública interna (Gonçalves e Pomar,

2000: 24).

Além disso, com a privatização de empresas estatais, ocorreu um

crescimento do passivo externo brasileiro. “A remessa de lucros e dividendos para o

cclxxxix
exterior triplicou de 9 bilhões de dólares, no período 1981-90, para 27,3 bilhões de

dólares no período 1991-99” (Gonçalves e Pomar, 2000: 26).

Nessa conjuntura, como o Estado tem que arcar com a remuneração dos

investimentos especulativos de curto prazo, com os serviços da dívida externa já

existente e com a dívida interna, é necessário cortar gastos públicos para obter

superávites primários. Conforme analisam Gonçalves e Pomar (2000: 24-25),

A íntima ligação entre o crescimento da dívida interna e o crescimento


do passivo externo (aí incluída a dívida e outras obrigações do país
em moeda estrangeira) explica porque o recente acordo entre o
governo brasileiro e o FMI estipulou metas precisas de superávit
fiscal.
Trata-se de garantir ao investidor estrangeiro que a dívida interna
será honrada. Caso contrário, os portadores abandonarão os títulos
do governo, transformarão seus reais em dólares e sairão do país,
gerando uma crise cambial.

Por outro lado, as empresas num cenário de juros altos não conseguem

investir na produção. A opção do mercado financeiro passa a ser mais atrativa para

os investimentos (empresários brasileiros pegam empréstimos no exterior e aplicam

no Brasil, aproveitando o diferencial da taxa de juros). Nessa situação, não há

crescimento, aumenta o desemprego e o país permanece preso nas armadilhas

de juros, abertura comercial e sobrevalorização cambial.

Após a queda de Gustavo Franco do Banco Central, o grande defensor da

política de sobrevalorização cambial, o Governo FHC desvalorizou o Real. No

entanto, a política de juros para atrair o capital de curto prazo e a manutenção de

superávites primários, para honrar os compromissos externos e controlar a inflação,

em detrimento de uma política voltada para o crescimento econômico como forma de

melhorar a produção brasileira e equilibrar o balanço de pagamentos, continuou

sendo a tônica da política econômica até o final do mandato de FHC.

Nesse contexto, aumenta o processo de desestruturação do mercado de

trabalho. “Em cada dez ocupações geradas entre 1989 e 1995, apenas duas eram

ccxc
assalariadas ante oito não-assalariadas, sendo quase cinco por conta própria e três

sem remuneração” (Pochmann, 2002: 75). O desassalariamento também cresceu:

em 1989, 64% da PEA eram assalariados; em 1995, apenas 58,2% da PEA eram de

assalariados (Pochmann, 2002: 75). O desemprego cresceu, entre 1989 e 1995,

16% em média ao ano - acréscimo de 442 mil pessoas por ano (Pochmann, 2002:

75), chegando a junho de 2003 à taxa de 20,3% (maior taxa desse mês desde

1989).

Na área das políticas sociais, como ressaltado anteriormente, a Constituição

Federal de 1988 refletiu as contradições e disputas entre projetos políticos distintos

(“liberal-corporativista” e “democracia de massa” - Coutinho, 1993).

A institucionalidade legal da ordem

social, com a CF-88, projetou para o País os

marcos para estruturação de um Estado voltado

para universalização dos direitos sociais,

participação da sociedade na definição das

políticas sociais e descentralização político-

administrativa, ou seja, um modelo próximo ao

“welfare state social democrata”.

Sendo assim, o cenário brasileiro na conjuntura neoliberal, apresenta um eixo

central de contradição. Por um lado, o processo de democratização da sociedade,

dos anos 1980, leva-nos à construção de um padrão legal de política social baseado

na lógica do welfare state universalista, através de mecanismos que promovem

maior participação da sociedade na definição e implantação de políticas sociais,

redefinindo, assim, a noção de espaço público numa perspectiva de aprofundamento

da democracia. Por outro lado, as mudanças ocorridas em plano mundial e a

hegemonia liberal-conservadora conduzida pelo governo FHC impõem limites ao

ccxci
desenvolvimento imediato de tal padrão (Farah, 1997). Dessa forma, podemos

vislumbrar, do ponto de vista das políticas sociais no Brasil, um cenário com as

seguintes tendências: Padrão Democrático de Política Social; Padrão Neoliberal de

Política Social e Padrão Tradicional de Política Social.

O Padrão Democrático de Política Social se

pauta numa perspectiva de garantia universal de

direitos sociais, baseada na participação

popular e descentralização político-

administrativa, resguardando o papel do poder

central como elemento que propicia a unidade

da política social e o apoio técnico,

administrativo e financeiro para sua efetivação.

Nesse sentido, o Estado tem o dever de

formular e executar (direta ou indiretamente) as

políticas sociais, garantindo a realização dos

direitos sociais.

A Constituição Federal, as Leis

Orgânicas da Saúde e da Assistência Social

(LOS e LOAS), bem como o Estatuto da Criança

e do Adolescente (ECA) ratificam essa

proposição.

O Padrão Neoliberal de Política Social fundamenta-se na lógica do

receituário neoliberal proposto pelo Consenso de Washington - pautado na

estabilização monetária, abertura comercial e privatização - e nos preceitos de um

“social-liberalismo” que não se distingue concretamente das experiências neoliberais

de redução do Estado na área social. Configura-se contrário ao padrão democrático.

ccxcii
Essa orientação política tem tido adesão de grande parte da sociedade e de quase

todos os órgãos da mídia.

O exemplo emblemático dessa política é o Comunidade Solidária, que

desconhece a LOAS e a legitimidade do Conselho Nacional de Assistência Social e

desenvolve uma política de desresponsabilização do Estado no trato das expressões

da “questão social”, através de ações focalizadas, fragmentadas e privatizadas,

depositando a maior parte da responsabilidade, para o sucesso das ações, na

própria sociedade, apelando, assim, para solidariedade social (Sposati, 1995), no

que a mídia colabora fazendo um apelo à sociedade civil para o desenvolvimento de

medidas de caráter assistencialista, voluntário e filantrópico.

Outro aspecto a destacar refere-se à “descentralização destrutiva” (Soares,

2000) operada pelo desmonte de instituições nacionais (LBA e FCBIA), sem

planejamento prévio, combinada com a transferência das ações para os municípios,

sem o devido apoio técnico e financeiro para que os mesmos fossem capazes de

assumir as ações.

Por fim, os programas de renda mínima têm sido implementados sob uma

nítida concepção liberal de focalização e pobreza absoluta, o que contribui para a

redução de gastos sociais (Silva et alli, 2004).

Nesse quadro, as estratégias de focalização, via programas de combate à

pobreza, e descentralização, contribuem, como sinalizam Laurell (1995) e Soares

(2000) para a manutenção de mecanismos clientelistas na área social. Esse aspecto

parece bem razoável em se tratando de um governo fundado num pacto

conservador, que precisa de articular politicamente apoio para a direção estratégica

maior: a transnacionalização da economia.

ccxciii
Em termos gerais, a Política Social

desencadeada pelo governo FHC seguiu os

passos de reestruturações social-democratas,

num país que não constituiu um padrão de

intervenção do Estado na área social do porte

de tais experiências. Portanto, diminuiu o que

não existia e redefiniu o que não foi construído,

numa nítida adesão aos preceitos neoliberais.

Sendo assim, assistencialização e

mercantilização das políticas sociais formam a

tendência de tal proposição (Mota, 1995).

O Padrão Tradicional de Política Social possui como orientação a lógica

assistencialista, fisiológica, caritativa, enfim, um padrão típico da nossa República

Velha, combinado com o corporativismo do pós-1930 desenvolvido, principalmente,

na área da previdência social106.

A partir desses padrões - que se conformam como determinações existentes

na realidade brasileira em relação às políticas sociais -, podemos desenvolver uma

análise de conjuntura mais precisa sobre o estado das políticas sociais sob

responsabilidade dos municípios brasileiros. Vejamos.

Após a CF-88, aos municípios foram destinados mais recursos e maior

autonomia para a implementação de políticas sociais.

Na prática, a diretriz constitucional da descentralização promoveu, por um

lado, a desresponsabilização das esferas estaduais e federal no processo de

106
A previdência social foi desenvolvida de forma segmentada. Cada categoria profissional regulamentada pelo Estado tinha
acesso a determinado conjunto de políticas sociais; a população que estava fora do mercado formal de trabalho - e seus
respectivos filhos - não tinham acesso ao sistema de previdência pública operado pelos IAP`s (Institutos de Aposentadoria e
Pensões). Essa população era atendida pelos serviços de assistência social desenvolvidos, principalmente, pelas organizações
da sociedade civil. Nessa lógica, a atuação dos sindicatos se pautava numa orientação particularista voltada apenas para o
atendimento imediato da corporação, não visando a uma luta pela universalização das políticas sociais públicas (Santos,
1987).

ccxciv
implementação das políticas sociais, dando abertura para que a prática

patrimonialista imperasse nos municípios de baixa organização da sociedade civil e

possibilitou o estabelecimento de relações utilitárias entre Estado e instituições da

sociedade civil, visando, por um lado, à privatização (no sentido da

desresponsabilização estatal) da política social e , por outro lado, ao atendimento de

interesses particularistas de organizações da sociedade civil que, “vendendo” seus

serviços, resolviam seus problemas financeiros – desenvolvendo, portanto, políticas

sociais de caráter neloliberal e tradicional.

Contraditoriamente, a descentralização também possibilitou aos municípios

de maior mobilização e organização da sociedade civil construir, mesmo que

tímidas, políticas participativas identificadas com o padrão democrático, com

conteúdos mais adequados às demandas sociais - aproveitando experiências bem

sucedidas da sociedade civil -, implementadas sob novas formas de gerenciamento,

através de relações com organizações da sociedade civil, garantindo maior eficácia,

eficiência e efetividade das ações.

Sendo assim, experiências de determinadas prefeituras mostram-se como um

campo em que se pode observar a ampliação da ação do poder público intervindo

na situação social e provocando melhorias na área social, enfrentando a chamada

“exclusão social” e redefinindo as relações entre o Estado (em sua expressão

municipal) e a sociedade civil, através da implementação de políticas sociais de

corte democrático107.

Cabe aqui destacar a funcionalidade do

padrão tradicional ao modelo neoliberal. Em

outras palavras, o padrão tradicional da política

social contribui para o desenvolvimento da

ccxcv
lógica de mercado, da lógica neoliberal. Nesse

sentido, o padrão tradicional e o padrão

neoliberal podem estar extremamente

articulados e o padrão tradicional pode ser

utilizado funcionalmente para a potencialização

do padrão neoliberal.

A partir do quadro exposto, tendo em vista a relação entre a política

econômica e a política social e considerando a orientação neoliberal de ambas,

podemos afirmar que o cenário global no campo das políticas sociais no Brasil, ao

longo do governo FHC, apesar da co-existência de diferentes padrões e referências

para a estruturação das políticas sociais em nosso país, é constituído,

indubitavelmente, pelo padrão neoliberal.

Assim, a tendência hegemônica de política social, a despeito da existência

dos marcos constitucionais de uma política social institucional e redistributivista e

dos esforços de estruturação de políticas municipais que se aproximem mais do

padrão democrático que daquele padrão, é pautada pela lógica da privatização,

focalização e desconcentração financeira e executiva (Montaño, 2002).

Contrastando com essa conjuntura, o crescimento e fortalecimento de

organizações autônomas e democráticas na sociedade civil, apresentava um

contraponto ao projeto dominante. Do ponto de vista político, essas organizações

combatiam o caráter “delegativo” de nossa democracia, procurando contribuir na

estruturação de uma lógica estatal racional e direcionada para prover a

universalização dos direitos sociais previstos constitucionalmente (tais como: a LOS,

a LOAS e o ECA). Além disso, existia toda uma concentração de esforços para a

implementação de conselhos deliberativos e fiscalizadores (como, por exemplo, os

107
Para um balanço das experiência de prefeituras em políticas sociais, ver Lesbaupin (2000) e Jacobi (2000).

ccxcvi
conselhos de saúde, da assistência social e dos direitos da criança e do

adolescente), mecanismos de democracia participativa para gestão de políticas

públicas. Entretanto, nesse contexto, as forças que defendiam essa perspectiva,

além de não se apresentarem como hegemônicas, tiveram muitas dificuldades para

exercer uma oposição efetiva ao projeto de FHC.

Nesse sentido, a efetivação da política social no Brasil sofre os

constrangimentos e determinações de uma política econômica e social de corte

liberal e regressiva, reduzindo as possibilidades de efetivação de políticas sociais de

cunho universalista e de espaços públicos democráticos nesse campo.

No entanto, é fundamental enfatizar que essa assertiva não desconhece a

existência de propostas de contra-tendência no cenário nacional sendo efetivadas,

principalmente, pelos governos sub-nacionais, contando com instituições da

sociedade civil que compartilham um projeto público, democrático e universalista

para as políticas sociais.

Portanto, no contexto da reestruturação capitalista, no qual se desencadeia

uma verdadeira “contra-revolução liberal-conservadora”, como denomina Cardoso de

Mello (1998), a condução neoliberal da política macroeconômica do governo Cardoso,

implementa, como demonstra Behring (2003), uma “contra-reforma conservadora e

regressiva” do Estado brasileiro108.

Nessa perspectiva, na década de 1990, essa “contra-reforma” “tem a

envergadura das mudanças da década do pós-1930 e do pós-1964 e guarda nexos

com o passado” (Behring, 2003: 115), porém em sentido contrário. Ou seja,

naqueles períodos, o projeto desenvolvimentista apontava para um processo de

industrialização, que necessitava do Estado como um dos “pés” do desenvolvimento.

108
Nesta tese utilizaremos a definição proposta por Behring (2003), na medida em que particularizaremos a questão no Brasil e
concordamos com a autora que o ocorrido no país foi um movimento contrário às reformas realizadas ao longo do projeto
desenvolvimentista e, principalmente, frente às propostas presentes na década de 1980.

ccxcvii
Nesse sentido, mesmo nas condições brasileiras de reduzida permeabilidade aos

interesses das classes trabalhadoras, o protagonismo estatal e sua expansão

viabilizou a ampliação do atendimento dos interesses dos trabalhadores - via

expansão do mercado interno e das políticas sociais e da estruturação do mercado

de trabalho - ainda que de forma parcial, seletiva e com pouca qualidade; num

movimento crescente de concentração de renda, riqueza e poder das classes

dominantes, a partir da intensificação da exploração da força de trabalho. No

entanto, do ponto de vista da classe trabalhadora, com a redução do Estado a

situação se agravaria, ou sem ele, o quadro poderia ser muito pior.

Desse modo, do ponto de vista teórico, como ressalta a autora, devemos

rejeitar a utilização do termo “reforma” pelos neoliberais, mostrando que eles fazem

uma “apropriação indébita” da concepção reformista, na medida em que eles a

utilizam para identificar qualquer proposta de mudança ocorrida, independente do

sentido, da orientação sociopolítica e da finalidade de sua implementação. Dessa

forma, retira-se da concepção de reforma todo o arsenal histórico e teórico que

sempre a relacionou com a orientação da intervenção dos movimentos progressistas

e de esquerda na sociedade. Conforme assinala Nogueira (1998: 17), “devemos

reafirmar a cosangüinidade entre reformismo e esquerda.”

Apesar de longa, convém apresentar a síntese de Behring (2003: 282) sobre

esse movimento de contra-reforma:

...o que estamos analisando, embora mantenha elementos em


comum com períodos históricos anteriores, a exemplo do
conservadorismo político na condução dos processos decisórios e do
patrimonialismo, é muito diferente daqueles “saltos para adiante”,
modernizações conservadoras ou processos de revolução passiva e
“pelo alto” que engendraram a industrialização e a urbanização
brasileiras, acompanhados da formação de um mercado interno
significativo, embora sempre estreito diante das potencialidades.
Diferença que reside no fato de que se tratou de um salto para trás,
sem o sentido da ampliação das possibilidades de autonomia ou de
inclusão de segmentos no circuito “moderno”, diferente das
transformações estruturais anteriores, apesar dos limites também

ccxcviii
destas últimas. Este retrocesso é o que configura uma contra-
reforma, por meio da qual houve quebra de condições historicamente
construídas de efetivas reformas, dentro de um processo mais amplo
de profundas transformações.

Portanto, é fundamental frisar: as

mudanças de 1930 e 1964 foram mudanças

dentro do projeto desenvolvimentista,

conduzido por um pacto conservador, e a dos

anos 1990 é um “projeto radical de

transnacionalização da economia brasileira”

(Fiori, 2001a), conduzido de forma liberal e

subordinada (Fiori, 1998), implementado no

contexto de reestruturação capitalista, guiado

pelo mesmo pacto conservador. De acordo com

a análise de Fiori (1998: 187), para manter os

mesmos interesses a estratégia tinha que

mudar:

a economia é aberta, o Estado se retira do setor produtivo, e as


empresas nacionais ou quebram ou são internacionalizadas. Do tripé
para um modelo de um só pé, onde passamos a ser ainda mais
dependentes do que antes dos humores da economia internacional, e
apostam todas nossas fichas nas virtudes dos mercados
desregulados, segundo eles, de fazerem uma correta, eficiente e
equilibrada alocação dos recursos provenientes dos investidores
privados, sobretudo os internacionais.

Assim, conforme analisa o autor (2001: 283), o projeto neoliberal no Brasil foi

operacionalizado, através da manutenção das “mesmas regras e estruturas básicas

do velho e permanente ‘pacto conservador’”. Segundo o analista (idem: 283-286),

essas estruturas se mantiveram nas relações estabelecidas entre o Estado e o

capital privado, na regulamentação do mundo do trabalho, na organização das

instituições políticas e na construção de uma nova soberania nacional.

Na relação entre o Estado e o capital privado, o discurso neoliberal pregava o

fim do “Estado cartorialista” e do “populismo econômico”, através da abertura e

ccxcix
desregulamentação dos mercados, em nome da “competitividade global” e do fim do

protecionismo. No entanto, a privatização do Estado, via transferência do patrimônio

público a grupos privados, “escolhidos a dedo”, e a feudalização das novas agências

e das velhas instituições e empresas públicas, continuou como forma de acomodar

os interesses heterogêneos da “coalizão de forças conservadoras e das várias

facções oligárquicas ou regionais da base parlamentar do governo” (Fiori, 2001b:

283).

Em relação à regulamentação do trabalho, a proposta neoliberal defendia o

fim do corporativismo que interferisse negativamente na definição, pelo mercado, do

“preço justo” da força de trabalho e que enfraquecesse o capital e prejudicasse a

“competitividade global”. Assim, os governos neoliberais desregulamentaram o

mercado de trabalho, restringindo direitos trabalhistas, congelando salários do setor

público e reduzindo a participação salarial na renda nacional, de 45% para 36%,

além de não expandir a produção de bens públicos e básicos de consumo popular

(idem: 284).

As regras e instituições políticas, outro aspecto da agenda, no essencial,

ficaram inalteradas. Manteve-se, dessa forma, a estrutura de poder compatível com

uma coalizão que incorporava, também, os segmentos mais tradicionais e

“atrasados” da política regional ou oligárquica brasileira. Sendo assim, como

ocorrera no período desenvolvimentista, também na atual conjuntura “as oligarquias

que controlam parte significativa do poder regional agrário e urbano, seguiram

obtendo posições e favores junto ao Estado central, em troca de sua capacidade de

mobilização eleitoral e parlamentar, indispensável à reprodução da ordem política

conservadora” (Fiori, 2001b: 284-285).

ccc
O último aspecto abordado por Fiori diz respeito à promessa neoliberal de

construção de uma nova soberania nacional, eliminando o “nacionalismo

anacrônico” do período desenvolvimentista. No entanto, a “transnacionalização

radical da estrutura produtiva e dos centros de decisão da economia brasileira”,

operada pelos neoliberais, produziu a fragilização do Estado e da economia

nacional, “que ficaram dependentes do capital privado internacional e do apoio do

governo norte-americano, nas situações de crise” (idem: 285).

Dentro desse panorama, a partir da reedição do pacto conservador, será

implementado o projeto liberal-conservador de transnacionalização radical da

economia brasileira, consolidando o neoliberalismo em nosso País.

Diniz (2000) apresenta dados significativos sobre a transnacionalização

radical de nossa economia, a partir do intenso processo de fusões, aquisições ou

associações de empresas nacionais com grupos estrangeiros (374 fusões e

aquisições entre 1992 e o primeiro semestre de 1997). Segundo a autora, “entre

1991 e 1997, foram adquiridas por empresas estrangeiras 96% das empresas

brasileiras do setor eletroeletrônico, 82% das empresas do setor de alimentos e 74%

das indústrias de autopeças” (idem: 92). Corroborando com Fiori, afirma

conclusivamente Diniz (id: 94): “do ponto de vista ideológico, tais mudanças apontam

para a progressão de uma perspectiva internacionalista, em contraposição à visão

nacionalista do passado”.

Nesses termos, será processada a contra-reforma do Estado, que

estabelecerá as determinações fundamentais da contra-reforma da administração

pública: o projeto de transnacionalização radical e a estrutura de dominação fundada

no pacto conservador que comandará a implementação de tal projeto.

ccci
A primeira determinação (o projeto em tela) organiza o fundamento

economicista e gerencial da proposta de contra-reforma da administração pública, e

a segunda (estrutura de coalizão de classe) articula esse fundamento com a

particularidade brasileira de manutenção dos traços tradicionais do pacto

conservador de dominação estabelecido.

O fundamento economicista e gerencial da proposta de contra-

reforma da administração pública: centralidade do mercado e burocratização

monocrática

A principal determinação do

gerencialismo é a identificação da

administração pública com administração

privada.

O gerencialismo não considera a distinção existente entre a administração

destinada a fins públicos – administração pública – e aquela destinada a fins

lucrativos – administração empresarial. No entanto, Kliksberg (1997: 87) adverte:

Gerenciar organizações públicas, nos tempos atuais, é bem diferente


de gerenciar organizações privadas, seja quanto aos dilemas que a
gerência pública tem de enfrentar, seja quanto às suas opções, aos
problemas compatibilização de objetivos, aos problemas de restrições
e de proibições seja quanto à eleição de meios. Todas estas questões
que exigem, da gerência pública, respostas técnicas específicas.

Apesar da concepção explícita de Kliksberg (1997) e outros autores – Grau

(1998), Paula (2005), Nogueira (1998 e 2004) e Abrúcio (1997), apenas para citar

alguns – que distinguem a administração pública da empresarial, nos Estados

Unidos, por exemplo, centro de influência do ensino da administração pública no

Brasil, a administração pública e a empresarial, apesar de comporem comunidades


cccii
acadêmicas separadas, são fortemente relacionadas entre si, tendo como espinha

dorsal a chamada administração científica, que é inerente à administração

empresarial (Gaetani, 1999). Portanto, mais que uma articulação ou relação estreita,

o que ocorre efetivamente é o desenvolvimento da administração pública sobre as

bases da administração empresarial, ou seja, sobre um conjunto de componentes

ético-políticos que não expressam as finalidades vinculadas a uma dimensão pública

de universalização de direitos.

O debate sobre administração pública, revigorado a partir da década de 1980 no

contexto da chamada Reforma do Estado, reatualizou a discussão acerca da existência ou

não da distinção entre administração pública e a empresarial.

Essa reatualização se fez a partir do que se convencionou denominar de

“Nova Administração Pública”, ou seja, propostas nem sempre homogêneas que

orientaram as reformas administrativas, a partir dos anos 1980, numa perspectiva de

substituição ou superação do modelo burocrático de administração (Ferlie et al.,

1996; Gaetani, 1999; Grau, 1998; Fedele, 1999).

De maneira implícita, uma determinada vertente da “Nova Administração

Pública” considera haver identificação entre as duas administrações, num

posicionamento semelhante ao desenvolvido nos EUA na década de 1960, conforme

analisam Ferlie et alli (1996), Gaetani (1999), Grau (1998) e Fedele (1999).

Por outro lado, esse mesmo contexto propiciou o fortalecimento da corrente

vinculada à “Nova Administração Pública” que se posiciona claramente a favor de

uma distinção entre a administração pública e a empresarial, tendo como

fundamento as diferentes motivações, valores, objetivos e estratégias que

conformam uma e outra administração. Tal corrente busca reforçar o caráter

democrático da administração pública, a preocupação com a cidadania, mas

também defende modificações na ordem burocrrática, a partir da utilização de

ccciii
mecanismos e ferramentas gerenciais que permitam maior agilidade e eficiência

administrativa, sem perder a preocupação com a efetividade, voltada para a

democratização. Essa concepção tem sido defendida, entre outros, por Nogueira

(1998 e 2004), Abrúcio (1997), Kliksberg, (1997), Grau (1998) e pelo Centro

Latinoamericano de Administración para el Desarrollo (CLAD, 1998).

Assim, cabe ressaltar, mais uma vez, que essas duas vertentes da “Nova

Administração Pública”, diferentemente uma da outra, partem da crítica ao modelo

tradicional burocrático de gestão.

Paula (2005), no entanto, analisa que as concepções que partem do

gerencialismo não são concepções de cunho democrático, apenas adaptam o

gerencialismo a alguns elementos de democratização. No entanto, consideramos

que, em que pesem as distinções existentes entre as concepções dos diferentes

autores que incorporam mecanismos e ferramentas gerenciais, essas propostas

buscam, em linhas gerais, submeter tais mecanismos e ferramentas à finalidade

democrática, sendo que algumas de forma mais radical, voltadas para a

universalização de direitos no caminho da transformação social, enquanto outras se

colocam mais próximas do campo gerencial. O que orienta nossa análise é o

entendimento, como desenvolvido no capítulo 1, que existe uma autonomia relativa

entre meios e a finalidade da ordem administrativa.

Nesse sentido, Paro (2000; 151), ao defender uma administração escolar

orientada para a transformação social, portanto antagônica à administração

empresarial, afirma:

Isto não quer dizer, obviamente, que se deva desprezar pura e


simplesmente todo o progresso técnico havido na teoria e na prática
administrativa empresarial. Significa apenas que, em termos políticos,
o que possa haver de próprio, de específico, numa Administração
Escolar [ou, em nosso caso, na Administração Pública em geral]
voltada para a transformação social, tem de ser necessariamente
antagônico ao modo de administrar a empresa, visto que tal modo de
administrar serve a propósitos contrários à transformação social.

ccciv
Continuando, o autor explicita a centralidade da finalidade da administração

na determinação de sua orientação fundamental. Nas palavras de Paro (2000: 151):

“a possibilidade de uma administração democrática no sentido de sua articulação, na

forma e no conteúdo, com os interesses da sociedade como um todo, tem a ver com

os fins e a natureza da coisa administrada”.

Portanto, o fato de propor mecanismos e ferramentas gerenciais para a

administração não determina, em si, sua finalidade. Assim, consideramos aquelas

propostas como situadas no campo democrático, porém, não necessariamente, de

uma forma mais radical e socialmente referenciada, como desenvolvida por Paula

(2005), ou explicitamente revolucionária, conforme defendida por Paro (2000) e

Nogueira (1998 e 2004), com as quais concordamos e defendemos nesta tese.

Apesar de compreendermos que existem duas perspectivas no campo da

“Nova Administração Pública” - uma voltada para o projeto hegemônico neoliberal, a

qual identificaremos como proposta gerencial e a outra voltada para a perspectiva

democrática, que pode estar ou não vinculada a um projeto de superação da ordem

capitalista – nesta seção, apenas analisaremos a concepção gerencialista, deixando

para a conclusão do trabalho considerações acerca da perspectiva democrática.

Sendo assim, o primeiro aspecto que deve ser destacado está relacionado à

finalidade da ordem administrativa que se pretende estruturar.

A proposta hegemônica de reforma administrativa, no contexto dos anos de

1980 e 1990, como uma das dimensões da reforma do Estado, estava diretamente

vinculada ao projeto neoliberal.

Essa vinculação se apresenta explícita pela afinidade teórica existente entre

as propostas filosóficas, políticas e econômicas das escolas neoliberais austríaca e

de Chicago e a escola de Virgínia, que será a base fundamental das propostas

cccv
neoliberais para o campo da administração pública, a partir da teoria da “escolha

pública” - desenvolvida, por volta de 1968, por J. M. Buchanan e incorporada aos

estudos administrativos realizados por Niskanem, em 1971 -, a qual utiliza os

princípios da economia, numa perspectiva utilitarista, nas escolhas individuais

(Toledo, 1995; Paula, 2005, Fedele, 1999 e Grau, 1998). Conforme assinala Grau,

Os fundamentos desse enfoque são o individualismo metodológico, o


homo-economicus e a política como intercâmbio, tomando a liberdade como valor
supremo em clara conexão com as chamadas teses neoliberais da Escola de
Chicago e com o neoconservadorismo imperante (Grau, 1998: 223).

Borges (2001: 161) também nos oferece um resumo preciso da lógica da

teoria da escolha pública:

Para a TEP [teoria da escolha pública] (...) é da maior relevância a


noção de comportamento maximizador dos agentes individuais (homo
economicus). O egoísmo e a busca incessante do lucro, na visão da
economia clássica, constituem a força motriz dos mercados, cujos
resultados, num ambiente de concorrência perfeita, seriam o
equilíbrio e a eficiência geral. A teoria da escolha pública entende que
o comportamento dos homens de governo é ditado pelos mesmos
princípios utilitários e não pelo altruísmo ou interesse público.

Do ponto de vista político, a relação entre neoliberalismo e a dimensão

administrativa da reforma do Estado é apresentada por Montaño (2002). Segundo o

autor, o “projeto/processo neoliberal”, como estratégia hegemônica de

reestruturação do capital, desdobra-se em três dimensões articuladas: ofensiva ao

trabalho, reestruturação produtiva e a reforma do Estado. A reforma do Estado,

então, “está articulada com o projeto de liberar, desimpedir e desregulamentar a

acumulação de capital, retirando a legitimação sistêmica e o controle social da

‘lógica democrática’ e passando para a lógica da concorrência do mercado”

(Montaño, 2002: 29). O autor, assim, desvela a conexão existente entre a dimensão

econômica (interesses de classe/ofensiva contra o trabalho e reestruturação

produtiva) e a dimensão política e técnica da reforma do Estado. Nesse caminho,

poderíamos afirmar que, da mesma maneira que ideologicamente os neoliberais

cccvi
buscam cindir a dimensão econômica da dimensão política e técnica das mudanças

em curso, isolando as mudanças da ordem econômica das mudanças da ordem

política/técnica, no campo da chamada reforma do Estado ocorre uma outra cisão: a

da dimensão política com a dimensão técnica das propostas. Desse modo, a reforma

administrativa se apresenta como uma dimensão autônoma e independente da

política (reforma do Estado em seu conjunto) e da economia (mudanças nas

relações de produção – ofensiva contra o trabalho e reestruturação produtiva).

No entanto, a orientação da reforma do Estado está subordinada ao projeto

político que a define. Dessa forma, as dimensões que compõem a reforma do

Estado (reforma econômica, reforma fiscal, reforma previdenciária, reforma

administrativa...) também estão subordinadas ao projeto político hegemônico. Nessa

medida, a reforma administrativa não possuiu autonomia absoluta frente ao projeto

político que orienta as propostas de reforma do Estado.

Grau (1998: 221) sintetiza a vinculação teórica e política entre a proposta

hegemônica de reforma administrativa e o projeto neoliberal de forma precisa:

A matriz dominante do projeto modernizador, contudo, é uma


combinação de um projeto ideológico de redução do tamanho do
Estado , liderado pela cúpula do governo e pelo partido que lhe dá
sustentação política – casos de Inglaterra e da Nova Zelândia – e de
uma forte influência da corrente da “public choice” na interpretação do
comportamento do aparelho do Estado.

Paula (2005: 33) apresenta de maneira direta a relação entre a orientação

política neoliberal e a formulação teórica da escolha pública que fundamentará a

proposta de contra-reforma administrativa: “enquanto os neoliberais reforçavam suas

visões sobre a eficiência do mercado em relação ao Estado, os teóricos da escolha

pública elaboravam análises que sustentariam a crítica da burocracia do Estado”.

cccvii
Assim, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista político, não

há dúvidas sobre a relação entre a concepção neoliberal e a proposta hegemônica

de mudanças da administração pública.

Nesses termos a proposta de reforma administrativa de cunho neoliberal se

apresenta como uma contra-reforma, pois possui como finalidade uma ordem

centrada no mercado e na crítica às estruturas e políticas de universalização de

direitos. Portanto, a finalidade das mudanças propostas para a administração

pública, na medida de sua vinculação téorica e política com o neoliberalismo, não

pode estar voltada para a universalização e aprofundamento de direitos. Assim, a

proposta hegemônica de mudanças da administração pública aponta para a

valorização do mercado como regulador societal e de redução do Estado para área

social.

A crítica fundamental da teoria da escolha pública ao Estado, no geral, e à

burocracia, particularmente, está relacionada ao seu caráter de rent-seeking

(orientação para renda). Ou seja, de acordo com os teóricos dessa escola, os

governos e a burocracia agem buscando maximizar seus interesses individuais e/ou

organizacionais das agências estatais, prejudicando, dessa forma, a eficiência

econômica e social (Grau, 1998).

Conforme analisa Borges (2001), a respeito da concepção presente na teoria

da escolha pública, a expansão do Estado e, conseqüentemente, o aumento dos

orçamentos públicos criam as condições para políticos “orientados para renda”

ampliarem os gastos públicos, visando a vantagens individuais, levando, dessa

forma, a um processo de crescimento dos déficits públicos. Por outro lado, os

burocratas procuram canalizar esses novos recursos para suas agências,

interpretando regras de acordo com seus interesses, na perspectiva, também, de

cccviii
obtenção de rendas. Assim, de acordo com os teóricos da escolha pública,

“governos grandes e orçamento inchados significam menor liberdade para o cidadão

comum” (Idem: 169).

Portanto, conforme assinalam Andrews e Kouzmin (1998: 122):

a teoria neoclássica da Escolha Pública adquiriu um desgosto


bethamiano pelo setor público (Betham [1789] 1970), que é
constantemente posto sob suspeita de ser ineficiente, desperdiçador
(...), porque a ausência de qualquer mecanismo disciplinador permite
o comportamento predador (rent-seeking) de burocratas, de seus
clientes e dos políticos que o governam”.

De forma enfática os autores sublinham que esse raciocínio leva à crença de

que, tendencialmente, os burocratas públicos são inerentemente manipuladores, ou

até mesmo corruptos, pois distorcem informações destinadas aos superiores e

promovem políticas voltadas a seus próprios interesses, maximizando o tamanho de

suas agências em termos de pessoal e orçamento (Andrews e Kouzmin, 1998).

Nessa perspectiva, ganha fundamento teórico a proposta neoliberal de

redução da intervenção do Estado, a partir de mecanismos voltados para a

privatização de empresas públicas, desregulamentação econômica, redução de

gastos socias - via focalização, descentralização e privatização - e a conseqüente

redução do funcionalismo público.

Portanto, se a finalidade é o mercado e a redução do Estado para a área

social, num quadro de ineficiência econômica e social derivado do comportamento

rent-seeking dos políticos e da burocracia, os instrumentos administrativos devem

ser adequados a essa finalidade, buscando superar os comportamentos

inadequados.

Conforme analisa Borges (2001), James

Buchanan, principal expoente da teoria da

escolha pública, ao entender que a anarquia,

num mundo de indivíduos racionais egoístas,

cccix
seria inviável, uma vez que ninguém obedeceria

a regras que não fossem de seu interesse,

defende a necessidade de um agente externo

para garantir a implementação e o cumprimento

das regras, evitando o estabelecimento de uma

guerra hobbesiana de todos contra todos.

Assim, coloca-se a necessidade do Estado.

Entretanto, no quadro da situação das

democracias modernas, Buchanan analisa que

os cidadãos se sentem alheios às decisões do

governo e que os gastos realizados “refletem

mais as preferências de políticos e burocratas

auto-interessados do que as suas próprias. Por

outro lado, (...) a regra majoritária de votação

traria o risco da ‘tirania da minoria (...),

[apresentando] ‘custos externos’ ao indivíduo”.

Por isso, na perspectiva da escolha pública, a

“troca no mercado é quase sempre um

mecanismo decisório mais eficiente” (Borges,

2001: 168 e 169).

Dessa forma, na medida da inviabilidade

da anarquia, da deficiência do processo

democrático e da eficiência das trocas no

mercado, a preferência da organização

sociopolítica deve ser por governos pequenos e

mercados livres. Nesse sentido, Buchanan

sugere, do ponto de vista institucional, “a

criação de regras legais rígidas, capazes de

cccx
limitar o escopo da deliberação democrática”,

visando impedir a expansão do Estado, através

do isolamento de questões como estabilidade

monetária e controle orçamentário (Borges,

2001).

Sendo assim, como perspectiva institucional, para fortalecer o mercado,

reduzir o escopo democrático, evitar o comportamento rent-seeking dos

políticos e dos burocratas e a conseqüente expansão do Estado, a teoria da

escolha pública propõe a centralização da estrutura burocrática, sob comando

político centralizado109 e, dialeticamente, aponta para sua flexibilização, via

mecanismos gerenciais, através da descentralização, da transferência de

atividades estatais para o mercado e da incorporação de mecanismos de

concorrência na administração pública, na medida em que não se pretende

expandir o Estado para a área social (Grau, 1998; Borges, 2001; Fedele, 1999 e

Paula, 2005).

Então, o cerne da proposta administrativa vinculada à concepção neoliberal

supõe a separação entre política e administração (Fedele, 1999), formulação e

execução (Paula, 2005) e contratação e prestação de serviços110 (Ferlie et alli,

1999), por intermédio de uma estrutura que combina uma centralização de poder

para a formulação e deliberação política e controle da alocação dos recursos e

descentralização da autoridade operacional (Grau, 1998).

109
Conforme analisa Borges (2001: 174), apoiado em Gray: “Subjacente a estas medidas estava a idéia de centralizar todas as
decisões governamentais nas mãos de poucos tecnocratas fiéis ao ideário neoconservador, indicados pelo partido. Como não
poderia deixar de ser, o processo de implementação de das reformas pró-mercado em países tão distintos como a Nova
Zelândia, a Inglaterra, o México e a Rússia se caracterizou pelo estilo tecnocrático e avesso à negociação com grupos sociais e
políticos opositores.”
110
Conforme apontam Ferlie et alli (1999: 170): “Há crescentes tentativas de se criar ‘paramercados’ no setor público, onde
organizações antes verticais são separadas em dois setores – o de compra e o de prestação de serviços -, sendo a relação
entre elas governadas por contrato e não por hierarquia.”

cccxi
Desse modo, convém destacar que, do ponto de vista social, a burocracia

continua sendo a forma predominante da administração pública e privada devido,

principalmente, ao seu caráter de especialização.

“Precisão rapidez, univocidade, conhecimento da documentação,


continuidade, discrição, uniformidade, subordinação rigorosa,
diminuição de atritos e custos materiais e pessoais alcançam o ótimo
numa administração rigorosamente burocrática (especialmente
monocrática)” (Weber, 1999b: 212).

As mudanças que hoje se têm operado na administração capitalista, de uma

forma geral, vêm ao encontro de melhorar esses preceitos. A diminuição de

instâncias hierárquicas não é a quebra da hierarquia para garantir agilidade nas

tomadas de decisões. As “reengenharias” estão voltadas para alcançar as

necessidades descritas acima.

A redução dos mecanismos processuais da administração não indicam o

desaparecimento da burocracia, mas sua adequação à sociedade capitalista atual. A

agilidade exigida pelo capitalismo para a tomada de decisão foi atendida pela

organização burocrática. Hoje, como a velocidade das informações e processos

aumentou, necessita-se de outros procedimentos (descentralização em

determinados níveis, por exemplo) como forma de garantir a agilidade das respostas

administrativas. Porém, isso não altera o caráter burocrático da organização.

Em outras palavras, as características determinantes da burocracia se

mantêm intactas, até hoje, como proposta predominante para organização e

direção dos centros de decisão do capitalismo em sua fase atual (financeira e

flexível), nas sociedades com relações capitalistas estabelecidas, ou se apresentam

como modelo a ser perseguido para a estruturação de uma racionalidade adequada

ao desenvolvimento das referidas relações, nas sociedades onde o capitalismo

ainda se encontra em processo de expansão e enraizamento na cultura local.

cccxii
Por outro lado, na periferia dos centros de decisão das empresas e dos

Estados as propostas são de enfraquecimento da administração burocrática:

seja por conta dos processos de terceirização e flexibilização dos contratos de

trabalho que ocorrem nas empresas privadas, seja por conta do processo de

diminuição da estrutura estatal – proposto pela chamada reforma administrativa -,

realizada através da combinação público-privado (privatização, terceirização ou

“publicização”) para a efetivação das ações estatais e da estruturação do quadro

administrativo por vias não burocráticas (terceirização e cargos

comissionados/cargos de confiança).

Podemos considerar que esse formato de

enfraquecimento/flexibilização da burocracia,

principalmente através da estruturação do

quadro administrativo por vias não

burocráticas, pode assumir uma feição que se

assemelha ao que Weber define como

“burocracia patrimonial”. De acordo com o

autor:

Quando trabalham funcionários não-livres (...) dentro de estruturas


hierárquicas, com competências objetivas, portanto de modo
burocrático formal, falamos de ‘burocracia patrimonial’ (Weber, 1999a:
145).

Na medida em que parte do quadro administrativo passa a ser composto de

funcionários que não passam por uma seleção de competência impessoal, via

concurso público, mas através de uma relação direta com o dirigente/senhor, forja-se

uma situação típica de dominação tradicional, pois, conforme ressalta Weber, em

relação à dominação tradicional:

...seu quadro administrativo não se compõe primariamente de


‘funcionários’ mas de ‘servidores pessoais’ (...) Não são os deveres
objetivos do cargo que determinam as relações entre o quadro

cccxiii
administrativo e o senhor: decisiva é a fidelidade pessoal do servidor”
(Weber, 1999a: 148).

Em outras palavras, podemos afirmar que

parte do quadro administrativo, atualmente,

pode se aproximar da situação de recrutamento

na dominação tradicional definida por Weber

como recrutamento extrapatrimonial. Ou seja,

um recrutamento em virtude de um pacto de

fidelidade com o senhor ou então devido à

relação de piedade para com o senhor que os

funcionários livres estabelecem (Weber, 1999a:

149).

Portanto, hoje ocorre, do ponto de vista administrativo, um processo de

burocratização combinado com elementos gerenciais de flexibilização - que

podem tender à patrimonialização111 -, ou seja, um modelo que em hipótese

alguma pode ser considerado pós-burocrático. Vejamos esse aspecto um pouco

mais detalhadamente.

A intensificação da centralização burocrática configura uma burocracia

monocrática. Segundo Weber, a característica monocrática da burocracia se

expressa pela concentração do poder necessária para alcançar “tecnicamente o

máximo de rendimento em virtude de precisão, continuidade, rigor e confiabilidade –

isto é, calculabilidade tanto para o senhor quanto para os demais interessados -,

intensidade e extensibilidade dos serviços e aplicabilidade formalmente universal a

todas as espécies de tarefas” (Weber, 1999a: 145).

111
Diniz (2000: 56), apesar de não aprofundar esse aspecto teoricamente, levanta esta possibilidade: “A implantação de um
padrão gerencial, com base em mudanças de técnicas e procedimentos, não elimina a possibilidade de persistência ou mesmo
do reforço do intercâmbio clientelista no relacionamento do Executivo com a estrutura parlamentar-partidária.”

cccxiv
Sendo assim, a estruturação de uma burocracia monocrática garante a

direção do capital num cenário de baixa contra-hegemonia. Nesse contexto, a

concentração de poder viabiliza a organização da sociedade, em termos legais

(abertura comercial, financeirização, redução do papel regulador do Estado...), no

sentido de propiciar a expansão capitalista em sua formatação atual, dispensando a

necessidade de uma estrutura burocrática para além dos núcleos de poder. O

processo de burocratização monocrática, na atual conjuntura, refere-se à dominação

monopólica que está ocorrendo e sua implicação na transformação desse poder

econômico em dominação autoritária, visto que, como ressalta Weber, a dominação

em virtude de uma posição monopólica pode transformar-se numa dominação

autoritária.

“... a dominação puramente condicionada pela situação de mercado


ou por situações de interesse pode ser sentida, precisamente por sua
falta de regulamentos, como algo muito mais opressivo do que uma
autoridade expressamente regulamentada na forma de determinados
deveres de obediência” (Weber, 1999b: 191).

Historicamente, a intervenção burocrática na sociedade se apresentou como

uma condição necessária para constituição das sociedades de mercado, como muito

bem sinalizou Marx, em relação ao processo de acumulação primitiva, Weber, ao

pensar a relação capitalismo e burocracia112 e Polanyi ao mostrar como isso se

processou ao longo do século XX. Portanto, o fortalecimento da burocracia no

quadro atual é uma necessidade para o desenvolvimento do capitalismo flexível.

Conforme analisa Borges (2001: 177):

No processo de construção e manutenção do livre-mercado os


governos sempre enfrentam pressões contrárias poderosas, seja de
grupos organizados como sindicatos e associações empresariais,
seja de políticos de oposição ou de elementos da própria burocracia
estatal. Ao defender regras legais rígidas capazes de reduzir o
escopo da deliberação democrática, a construção de burocracias
fortemente insuladas e a centralização política dos governos a TEP

112
Conforme Oliveira registra, há um reducionismo quando o conceito de burocracia é identificado com serviço público, pois,
como lembra o autor, para Weber o “conceito de burocracia tem capacidade heurística para entender o que é capitalismo, e
não apenas a administração do Estado” (Oliveira, 2001: 142).

cccxv
[teoria da escolha pública] apenas trata de reconhecer o fato já
apontado por historiadores econômicos como Polanyi e outros de que
a construção de mercados livres tem como contrapartida a ação de
um Estado forte e centralizado.

Por outro lado, a expressão desse poder econômico monopólico cria as

condições para a cadeia administrativa ser estabelecida através do processo de

burocratização monocrático combinado com elementos de flexibilização gerencial,

que tende a ter um corpo de servidores com base na lealdade para com o senhor,

propiciando a submissão de parte considerável do quadro administrativo ao grupo

dominante.

Em outras palavras, a burocratização é limitada aos nichos de decisão

central. A cadeia administrativa pode e deve ser processada por uma estrutura

gerencial flexível, podendo assumir um caráter patrimonial, que garanta lealdade

máxima à condução determinada pelo pólo dirigente e pela alta burocracia, visando

impedir/diminuir as possibilidades de intervenções administrativas contestatórias. A

estrutura burocrática, pelo caráter de liberdade, especialização, conhecimento e

seleção por competência do servidor, pode colocar em risco a direção hegemônica

proposta, na medida em que abre possibilidades dos níveis intermediários e

operacionais da administração burocrática constituírem movimentos de resistência

ao projeto dominante.

A possibilidade de estruturação do

caráter patrimonial da administração atual se

apresenta, principalmente, no recrutamento e

seleção dos servidores “periféricos” e de níveis

intermediários e operacionais, tanto nas

empresas quanto no Estado, que combinam um

certo nível de competência com “pacto de

fidelidade” com o senhor. Dessa forma,

cccxvi
articulam-se as regras formalmente definidas

com uma estrutura patrimonial para garanti-las

e não colocá-las em questão. Com isso

fragilizam-se ainda mais as possibilidades de

construção contra-hegemônica na sociedade,

na medida em que se combina servidor livre

cooptado, por suas condições especiais de

trabalho, para contribuir com a condução

hegemônica posta, e servidores não livres que

dependem do senhor para manter seu emprego

e por isso devotam lealdade máxima para com o

projeto hegemônico.

No contexto traçado acima, será possível falar da organização estatal ou de

uma empresa privada sem mencionar princípios de competência definidos

formalmente, hierarquia, documentação e administração baseada em regras? Ou

ainda: existe alguma organização (estatal ou empresarial) cujo núcleo estratégico do

quadro administrativo não seja livre, nomeado por uma hierarquia, com

competências definidas, contratados formalmente (segundo qualificação

reconhecida), remunerados com salários em dinheiro, que exercem o cargo como

profissão única ou principal, com perspectiva de carreira, trabalhando em separação

com os meios administrativos e submetidos a um sistema de disciplina e controle?

Nesse sentido, o que estamos enfatizando é que a burocracia -

weberianamente falando, e nos termos determinados aqui - não é um modelo de

gestão como o taylorismo, fordismo ou toyotismo, pois todos são modelos de gestão

burocrática com a presença de mais ou menos determinações do chamado tipo

cccxvii
puro. Porém, sem sombra de dúvidas, os traços essenciais da burocracia

permanecem nesses modelos.

Do ponto de vista teórico, conforme desenvolvido no primeiro capítulo e

sublinhado por Paula (2005) e Diniz (2000), a burocracia não é apenas uma

estrutura administrativa; ela é, acima de tudo, uma relação de dominação, sendo seu

estatuto teórico, portanto, distinto do estatuto de um estilo específico de gestão. Por

outro lado, “é importante evitar a utilização do tipo ideal como referência para

identificar a burocracia, pois isso vem ajudando a legitimar a idéia de que as

organizações burocráticas estão se convertendo em organizações pós-burocráticas”

(Paula, 2005: 95). Adiante a autora (idem: 140) analisa a questão de forma sintética

e precisa: “é importante lembrar que a transição para a organização pós-burocrática

é um mito, pois temos uma flexibilização da burocracia e uma manutenção da

dominação”.

A empresa privada, portanto, não deixou de ser burocrática em seus traços e

determinações essenciais. O máximo que acontece é que ela mudou determinados

procedimentos e organização do trabalho, incorporando estruturas não burocráticas

(pensemos em atividades terceirizadas fundamentais para a lógica atual do

capitalismo e a situação dos trabalhadores e gerentes dessas empresas periféricas),

porém sem alterar, e até mesmo fortalecendo, a estrutura burocrática do centro

estratégico.

A carreira e a proteção na burocracia empresarial são compensadas pelos

altos salários, o que leva o funcionário a ter uma relação maior de subordinação com

seu senhor. E, do ponto de vista do empresário, a possibilidade de rotatividade de

pessoal, mesmo em escalões estratégicos, devido à existência de oferta de mão-de-

obra qualificada, possibilita a entrada e saída de gerentes sem que ocorram

cccxviii
mudanças abruptas de continuidade na burocracia empresarial. Ou seja, o

funcionário empresarial está pressionado pelos dois lados: falta de proteção

trabalhista e oferta de mão-de-obra qualificada.

No caso da empresa, talvez o elemento que possibilita uma certa

garantia/segurança para o funcionário é o “segredo burocrático” conquistado pela

prática profissional.

Assim, o taylorismo, fordismo e toyotismo, enquanto modelos de

administração, nada mais são do que formas diferentes de organizar a estrutura

burocrática da empresa e seu processo de produção.

Portanto, não existe modelo de gestão que não seja burocrático desenvolvido

pelas empresas, pois a incorporação de elementos de flexibilização gerencial – que

podem tender a ser elementos “patrimoniais” -, requer uma forte burocratização.

Nesse sentido, se formos rigorosos com os conceitos e reflexões apresentados até

aqui, diferentemente do que o modismo neoliberal apregoa, mudar a gestão do

Estado numa perspectiva gerencial não significa implantar um modelo pós-

burocrático oriundo e desenvolvido na empresa privada, pois ele não existe. O que

existe são possibilidades de modelos de gestão dentro da ordem burocrática,

através do desenvolvimento de algumas características e redução da importância de

outras, reforçando os elementos de flexibilização gerencial, que podem até se

constituir como determinações de uma administração patrimonialista113.

Ao criticar a arrogância da tese do

esgotamento da burocracia e da formulação de

uma nova modalidade de administração pública,

Nogueira (2004: 42) destaca:

113
Nesse sentido, a tese expressa vai ao encontro da hipótese sugerida por Paula (2005: 95): “a organização pós-moderna é
uma nova expressão da burocracia, pois trata-se de uma adaptação do antigo modelo organizacional ao novo contexto
histórico. Por outro lado, sua aparente aproximação do modelo pós-burocrático está relacionada com a confusão entre a

cccxix
Na verdade, nenhuma reforma do aparelho do Estado feita sob o
capitalismo tem como se objetivar contra a burocracia, em nome da
superação de algum “defeito estrutural” que esse modelo conteria. Se
for pensada com critérios políticos e pragmáticos consistentes, e não
como agitação, ela só pode ter como meta reconstruir a burocracia
(...). Não havia nos anos 1900, e nem há hoje, qualquer motivo
justificável para que a reforma do aparelho do Estado seja “orientada
pelo mercado” em vez de se concentrar na recuperação e na
atualização das capacidades burocráticas. Eventuais sugestões
derivadas dos procedimentos de mercado deveriam ser recebidas
como um elemento reformador adicional, não como eixo principal.

Por outro lado, retirar do setor privado sua relação com a burocracia significa

projetar a lógica administrativa empresarial como referência de administração

(Oliveira, 2001), viabilizando a incorporação dessa lógica na administração pública.

Conseqüentemente, esse mecanismo faz com que a finalidade economicista passe a

ser o elemento central da administração estatal. Nesse sentido, a burocracia estatal,

além de servir mediatamente para a manutenção da ordem do capital, é pressionada

para atuar diretamente com esse objetivo

Em outras palavras, num quadro de profunda concentração do poder

econômico nas mãos de poucas empresas e numa situação de hegemonia

significativa da burguesia, todas as instituições da sociedade passam a ser forçadas

a operar mais diretamente dentro da lógica do capital. Esta se configura como a

orientação da ideologia e da ação política dominante. E a estrutura do Estado não

foge a essa regra. Conforme salienta Diniz (2000: 21), a globalização é conduzida,

também, e, sobretudo, por uma lógica política:

Esta por sua vez, tem a ver com a nova configuração das relações de
poder entre as potências mundiais, com a formação de blocos e
instâncias supranacionais de poder, ou ainda com as redes
transnacionais de conexões, através das quais se articulam alianças
estratégicas, envolvendo atores externos e internos, como as grandes
corporações multinacionais e as organizações financeiras
internacionais, ou ainda tecnocratas em posição-chave, burocratas de
alto nível e outros segmentos das eleites estratégicas. Tais redes
permitem não só a difusão de argumentos técnicos, mas também o
delineamento de novos parâmetros e valores, dando origem a uma
ideologia da globalização com alto poder de contágio e capaz de

burocracia e o tipo ideal.”

cccxx
promover um verdadeiro choque semântico, que subverte conceitos e
significados.

Fiori (1998:26) reforça essa análise ao mostrar que a globalização “é também

o resultado de decisões políticas e econômicas tomadas de forma cada vez mais

concentrada por alguns oligopólios e bancos globais e alguns poucos governos

nacionais”, não se tratando, portanto, de um processo derivado, exclusivamente “do

progresso técnico ou da evolução competitiva dos mercados.”

De acordo com Diniz (2000), esse processo de centralização burocrática é

potencializado, em termos globais, pelas chamadas “comunidades epistêmicas”,

constituídas a partir da difusão internacional de determinado conhecimento

especializado na área das políticas públicas, que passa a ser consensual entre

especialistas que acabam formando uma rede de tecnocratas (nacionais e

estrangeiros), cujo prestígio e reconhecimento internacional funcionam como uma

nova fonte de poder para socializar determinados paradigmas de análise. Conforme

salienta a autora,

...a comunidade-chave de teor transnacional é constituída de


economistas treinados nas universidades americanas ou européias,
que tendem a adquirir grande influência como mentores das reformas
e programas de estabilização. Muitos desses economistas integram
durante algum tempo o staff de agências multilaterais, como o FMI e
o Banco Mundial, levando para seus países de origem orientações
afinadas com o pensamento canônico nos círculos internacionais.
Ademais, o recrutamento para postos de direção, nas agências
estatais estratégicas, como o Ministério da Fazenda e o Banco
Central, tende a subordinar-se a essa rede de conexões, já que um
trânsito fácil nos círculos financeiros internacionais torna-se requisito
importante para ascender a tais funções (Diniz, 2000: 22).

Enfim, podemos dizer que a exigência de maior racionalidade do ponto de

vista do capital, ou seja uma administração contínua, rigorosa, intensa, calculável,

visando ao máximo de rendimento, requer a centralização de comando cada vez

mais intensa. As decisões da empresa capitalista não podem ficar à mercê de regras

e normas controladoras estabelecidas pelo Estado. A reforma do Estado e, em seu

interior, a reforma administrativa visam reestruturar a burocratização da sociedade

cccxxi
enquanto mecanismo de administração/dominação da sociedade de massas,

buscando “monocratizar” cada vez mais a burocracia nas mãos do grande capital

financeiro e inserir elementos de flexibilização gerencial no restante da cadeia

administrativa, visando à agilidade e à redução de custos – o que abre

possibilidades para o desenvolvimento de traços patrimonialistas na administração.

Nesse sentido, não estamos frente a um modelo pós-burocrático, mas

exatamente o contrário, vivemos um processo de aprofundamento da burocratização

da sociedade capitalista.

Sendo assim, a reforma da administração pública - chamada gerencial -

nada mais é, em sua essência, que uma proposta vinculada ao neoliberalismo

baseada na sugestão de procedimentos gerenciais flexíveis, num quadro de

centralização burocrática, para adequar a ordem administrativa a uma nova

forma de comando, mais direta e mais explícita, efetivada pelas classes

dominantes.

Por outro lado, o fortalecimento do Estado realizado, também, através da

estruturação burocrática de suas ações, pode ser um empecilho para os interesses

do capital transnacional, na medida em que amplia as possibilidades de diferentes

projetos políticos no interior do funcionalismo. Assim, para poder tomar decisões e

expandir, o capital transnacional necessita de determinadas regras que devem ser

adotadas pelo Estado. Por isso, através de seu poder e de seus interlocutores ou

representantes políticos (FMI, BIRD, BID), provocam as mudanças necessárias para

melhor administrar sua ação e exercer sua dominação.

Nesse quadro, o recurso à flexibilização gerencial ou a uma “burocracia

patrimonial” ou a elementos “patrimonialistas”, combinado com a burocratização do

núcleo central das decisões políticas e econômicas - expresso através da ação e das

cccxxii
propostas de sua burocracia empresarial e política -, contribui com o processo de

fortalecimento “monocrático” do grande capital. Essa configuração cria obstáculos

para a construção de possibilidades de estabelecimento de um contraponto aos

interesses do capital, na medida em que enfraquece a organização burocrática

estatal em sua amplitude.

Nesses termos, os neoliberais não são contrários nem ao Estado nem à

burocracia. Eles são contrários aos aspectos do Estado e da burocracia que podem

fortalecer a construção da universalidade, a realização da liberdade, ou seja, de sua

racionalidade, no sentido hegeliano. Em outras palavras, eles são contrários a

determinados aspectos do Estado e da burocracia. Esses aspectos, como

procuramos demonstrar no capítulo 1, podem fortalecer na sociedade a luta por

transformações estruturais que levariam, aí sim, a mudanças do próprio Estado e de

sua organização administrativa.

O que o neoliberalismo faz não é destruir a burocracia, enquanto ordem

administrativa racional, “núcleo de toda administração de massa” (Weber, 1999a:

146), mas definir uma organização burocrática mais adequada à configuração do

capitalismo contemporâneo. Conforme destaca Paula (2005: 97):

Partindo do pensamento de Weber, constatamos que a


burocracia flexível continua se baseando nas relações
associativas racionais, que o autor considera a base da
dominação burocrática. No entanto, uma vez que a rigidez não é
mais o melhor caminho para responder às contingências e obter
a obediência dos funcionários, várias transformações
organizacionais estão em curso.

Efetivamente, a proposta neoliberal implica desmobilizar o Estado, enquanto

possibilidade de universalidade (ampliação do atendimento aos interesses das

camadas dominadas da sociedade), buscando, conseqüentemente, inviabilizar

estruturalmente uma burocracia, também, com essa orientação.

cccxxiii
Sendo assim, os elementos de

flexibilização gerencial nada mais são do que

estratégias para estruturar uma burocracia

flexível que combina monocratização e

descentralização, separando a política da

técnica e a formulação da execução.

Nesses termos, o gerencialismo, além de

não se constituir como um novo paradigma de

administração, possui vinculação orgânica com

a teoria da escolha pública, apesar de seus

defensores evitarem se identificar com tal

corrente do pensamento neoclássico, buscando

se apresentar como uma solução “pós-

moderna”, sem ideologia, para os problemas

administrativos do governo (Andrews e

Kouzmin, 1998: 98). Paula (2005: 53) corrobora

essa análise afirmando que “o gerencialismo

contribuiu para esvaziar as práticas

neoconservadoras de sua substância política

original, pois atribuiu às medidas de reforma um

verniz de eficiência e significados

aparentemente progressistas como excelência,

renovação, modernização e

empreendedorismo.”

Conforme destaca Andrews e Kouzmin

(1998: 118), a essência da administração

gerencial “tem sido a de reorientar o ‘negócio’

do setor público de forma que não mais sirva ao

cccxxiv
Estado de Bem Estar Social, mas sim a um

Estado que clama como seu principal objetivo

dar apoio a uma economia competitiva global”,

através da transposição da lógica do mercado

para a administração pública (Andrews e

Kouzmin, 1998 e Fedele, 1999).

Em síntese, o gerencialismo não passa

de tecnologias de flexibilização e valorização do

mercado que compõem a proposta de

monocratização burocrática necessária para a

implementação do projeto de

transnacionalização radical.

Assim, o projeto gerencialista ataca a finalidade de universalização de direitos e sua

dimensão racional/impessoal da ordem administrativa burocrática que potencializaria aquela

finalidade. Ratifica-se uma finalidade fundada no atendimento de necessidades mínimas da

população, coerente com a proposição neoliberal de reforço do mercado, e na mudança da

estrutura burocrática para flexibilizá-la, na medida em que não se propõe a universalização

de direitos.

A particularidade brasileira da proposta de contra-reforma da administração

pública: o tratamento paradoxal da burocracia e o patrimonialismo em

transformismo114

Para a análise da particularidade brasileira da proposta de contra-reforma da

administração pública, devemos trabalhar com as duas determinações fundamentais

antes assinaladas: o projeto social, econômico e político hegemônico e a coalizão de

classe que dirige a implementação desse projeto.

114
Desenvolvo, quanto à noção de transformismo aplicada à crítica do “neopatrimonialismo”, as breves sugestões que a Profª
Drª Ana Elizabete Mota ofereceu durante a defesa da Tese de doutoramento de Ana Maria Amoroso Costa, na Escola de

cccxxv
Na medida em que Bresser Pereira foi o ideólogo da proposta de contra-

reforma administrativa do governo FHC, utilizaremos seus textos (1996, 1998a e

1998b) e o Plano Diretor da Reforma Administrativa, como base da análise que

desenvolveremos.

O caminho analítico que seguiremos parte da crítica às tentativas (Bresser,

1996, 1998a e 1998b e Grau, 1998) de negar a articulação da proposta de alteração da

administração pública do governo FHC com as orientações do gerencialismo

neoliberal.

Nesse sentido, buscaremos mostrar a vinculação orgânica existente entre o

Plano Diretor e a perspectiva neoliberal, a partir de três dimensões distintas, mas

articuladas dialeticamente, quais sejam: política, teórica e institucional.

Do ponto de vista político, podemos destacar diferentes aspectos que mostram

nitidamente a vinculação entre o gerencialismo neoliberal e a proposta de mudanças

administrativas do governo FHC.

Em primeiro lugar, como demonstrado anteriormente, o projeto implementado

pelo governo FHC é um projeto orientado para a transnacionalização radical da

economia brasileira, numa perspectiva liberal conservadora. Dessa forma, a finalidade

que orienta a reforma do Estado e, no seu interior, a reforma administrativa brasileira

é uma orientação claramente neoliberal, portanto, uma orientação política que

determina uma verdadeira “contra-reforma” na administração pública.

Outro aspecto a destacar refere-se à valorização do mercado explicitada pelo

ideólogo da contra-reforma. Segundo o autor:

o novo conservadorismo realizou uma crítica útil dos problemas


enfrentados pelo mundo, particularmente para as distorções que
vitimaram o Estado, mas que (...) apresentou soluções parciais
senão equivocadas para esses problemas. O mercado é
certamente um mecanismo maravilhoso. Não tenho restrições à
idéia de que todas as reformas econômicas devem ser
orientadas ao mercado. Eu diria até que elas deveriam ser market
biased – ter um viés a favor do mercado. O que eu quero dizer
com isso é que devemos sempre partir do pressuposto de que o

Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em janeiro de 2006.

cccxxvi
mercado terá um papel positivo na coordenação da economia
(Bresser Pereira, 1976: 17).

Esse aspecto mostra como Bresser Pereira se fundamenta na concepção

neoliberal, ainda que negue logo em seguida.

A negação da vinculação ao ideário neoliberal é argumentada dizendo apenas

que sua posição não mitifica o mercado, como fazem os neoliberais, e que a

economia orientada para o mercado não se confunde com a idéia de uma economia

coordenada pelo mercado. Segundo o autor, a orientação deve ser o objetivo de

qualquer economia que pretenda ser competitiva. A coordenação centrada no

mercado é um equívoco, uma vez que a coordenação de uma economia deve ser

realizada a partir da combinação da competitividade, desenvolvida pelo mercado, e da

cooperação, articulada pelo Estado.

Substantivamente, esses aspectos não são antagônicos aos preceitos do

neoliberalismo, visto que é possível não mitificar o mercado, mas privilegiá-lo como o

melhor regulador societal e, por outro lado, a combinação mercado-Estado para

coordenar a economia é algo defendido e implementado pelos neoliberais - por isso,

argutamente, Netto (1995), como vimos, qualifica a proposta neoliberal como a defesa

do Estado máximo para o capital.

O terceiro aspecto que podemos destacar é a forma como o ideólogo da

contra-reforma administrativa do governo FHC interpreta a crise dos anos 1970 e

1980.

Segundo Bresser Pereira (1996 e 1998b) , a crise econômica dos anos 1980 se

configura como uma crise do Estado: crise fiscal, crise do modo de intervenção do

Estado (keynesiano na economia e welfareano no social) e crise do modelo

burocrático de administração do Estado. Portanto, segundo o autor e ideólogo, a crise

contemporânea não se configurou como uma crise econômica do capitalismo, mas

sim como uma crise do Estado.

cccxxvii
Entretanto, como vimos anteriormente, as crises econômicas que se

manifestam desde os anos 1970 e sua conseqüente redução da taxa de crescimento

mundial contribuem para colocar em questão o padrão welfare state de regulação da

sociedade, sob o argumento de uma suposta crise fiscal. No entanto, conforme

análise de Teixeira (2000), Tavares (1993a, 1998), Cardoso de Mello (1998), Fiori (1993,

1995 e 1998), o que ocorre de fato nesse período é uma crise financeira profunda que

provocará uma crise fiscal, devido ao aumento do gasto público com juros e serviços

da dívida, e não uma crise fiscal decorrente do aumento do gasto público em

investimentos, custeios e programas sociais não acompanhados pelo aumento de

receita. Simultaneamente, o desenvolvimento tecnológico pautado na robótica, micro-

eletrônica, informática, novos mecanismos de comunicação on line, assim como as

mudanças na organização do processo produtivo que se translada de uma orientação

fordista para uma orientação flexível provocam mudanças radicais no mundo do

trabalho (Antunes, 1995). A esses fatos aliam-se o desmoronamento das experiências

de socialismo de Estado e a ofensiva liberal-conservadora.

Tal ofensiva, através dos governos Tatcher, Reagan e Kohl, impôs ao mundo

uma hegemonia ideológica e de experiências concretas pautadas na liberalização do

mercado como elemento central para atingir melhor regulação social. Dessa forma,

estabeleceu-se uma ideologia com projeção mundial pautada na proposta de

esvaziamento do Estado e de seu papel regulador da sociedade, produzindo uma

agenda política centrada na reestruturação estatal.

De fato, a análise de Bresser Pereira sobre a crise do Estado é tipicamente

neoliberal. Em decorrência da análise realizada acerca da crise, o autor define a

estratégia social-liberal como aquela que tem como prioridade a orientação para o

mercado, afirmando que: “a interpretação da crise e a correspondente estratégia

social-liberal tomam emprestado do paradigma neoliberal a sua orientação ao

mercado e a crença de que as funções do Estado foram severamente distorcidas“

(Bresser Pereira, 1996: 20). Assim, completa o autor, é necessário reformar o Estado

cccxxviii
tendo como primazia “reformas econômicas orientadas ao mercado, privatização,

desregulamentação, liberalização comercial, assim como disciplina fiscal e as

políticas monetárias restritivas” (idem: 22). Ou seja, Bresser Pereira defende um

receituário tipicamente neoliberal, uma cópia do Consenso de Washington. Como

ressalta Andrews e Kousmin (1998: 99): “a reforma administrativa brasileira tem sido

guiada pela mesma filosofia impulsionadora do programa de privatizações”.

Ratificando essas análises, Paula (2005: 117) sintetiza a direção política da proposta

de contra-reforma administrativa do governo FHC de forma precisa:

A crise do nacional-desenvolvimentismo e as críticas ao


patrimonialismo e autoritarismo do Estado brasileiro
estimularam a emergência de um consenso político de caráter
liberal que se baseia na articulação entre a estratégia de
desenvolvimento dependente e associado, as estratégias
neoliberais de estabilização econômica e as estratégias
administrativas dominantes no cenário das reformas orientadas
para o mercado.
Esta articulação sustentou a formação da aliança política que
levou o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) ao poder,
viabilizando a reforma dos anos 1990 e a implementação da nova
administração pública no Brasil.

No entanto, para se distanciar do neoliberalismo, o ex-ministro rotula a

estratégia defendida por ele e pelo governo FHC de social-liberal. Uma tentativa de se

apresentar como uma esquerda moderna, alternativa, vinculada ao movimento da

“terceira via”.

Paula (20045: 70-77), então, mostra as conexões e continuidades entre esses

movimentos e a concepção neoliberal. A autora conclui que, apesar de dirigir críticas

ao neoconservadorismo, esse movimento mantém o eixo liberal e o adapta à

globalização; por outro lado, não despreza determinadas reformas neoconservadoras,

pois têm fundamento liberal. Dessa maneira, o traço de continuidade entre a terceira

via e o neoconservadorismo se estabelece pela via liberal.

Portanto, do ponto de vista político, a “reforma” de FHC não se distinguiu do

neoliberalismo, como resalta Nogueira (2004: 53), “a reforma estacionou nos limites

da propalada desconstrução neoliberal do Estado, dedicando-se a desenhar uma

cccxxix
imagem negativa do fenômeno estatal e a conceber a reforma como uma operação

para comprimir o Estado, não para melhorá-lo”.

Do ponto de vista teórico, a primeira questão a destacar refere-se à concepção

de Bresser Pereira que identifica administração pública com administração privada.

A partir da segunda metade dos anos 1960 ,o debate, iniciado nos Estados Unidos,

sobre a integração necessária entre a administração pública e a empresarial - sob o

argumento de que no mundo moderno não há distinção nítida entre as duas administrações

-, apesar de não ter prosperado naquele país, encontrou no Brasil um campo fértil para o

seu desenvolvimento: Constituição de 1967, Decreto-Lei 200, o “milagre econômico” e a

radicalização do regime autoritário (Gaetani, 1999).

No caso brasileiro, portanto, essa relação tornou-se uma efetiva “absorção da

administração pública pela administração empresarial”, nas palavras de Gaetani:

Embora esse debate [sobre a integração necessária entre a


administração pública e a empresarial] não tenha prosperado nos
EUA, no Brasil o desenrolar dos acontecimentos revela que se
encaminhou para uma fusão ou integração, que na prática resultou na
absorção da administração pública pela área de administração de
empresas, em termos gerais. O resultado foi a adoção de currículos
integrados nos cursos de Administração, sem adjetivações. (...) Ao
longo do tempo, administração tornou-se sinônimo de administração
de empresas (Gaetani, 1999: 103).

Bresser Pereira (1998b), ao fazer uma crítica a Pollitt e a Abrúcio,

desconsidera a distinção entre administração pública e administração empresarial.

Depois de afirmar que a identificação do gerencialismo com idéias neoliberais se faz

devido ao fato de as primeiras reformas terem sido implementadas por governos

conservadores (Thatcher e Reagan) e introduzidas simultaneamente aos programas

de ajuste estrutural para enfrentamento da crise fiscal do Estado, desenvolve o

seguinte argumento para tentar mostrar que uma possível perspectiva democrática

ou centrada no cidadão, que distingue administração pública de administração

privada, seria, apenas, uma tentativa de reatualização do modelo burocrático

tradicional:

cccxxx
“ As reações políticas à idéia da administração pública gerencial têm
uma origem ideológica óbvia. O livro Managerialism and the public
service, de Pollitt (1990), é bom exemplo desse fato. O
managerialism é visto como um conjunto de idéias e crenças que
tomam como valores máximos a própria gerência, o objetivo de
aumento constante da produtividade, e a orientação para o
consumidor. Abrúcio (1997), em panorama da administração pública
gerencial, compara esse ‘gerencialismo puro’, pelo qual designa a
‘nova administração pública’, com a abordagem adotada por Pollitt,
‘orientada para o serviço público’ e que visa ser uma alternativa
gerencial ao modelo britânico. Na verdade esse modo de ver as
coisas é apenas uma tentativa de dar atualidade ao velho modelo
burocrático, não é uma alternativa gerencial. A idéia de opor a
orientação para o consumidor (gerencialismo puro) à orientação para
o cidadão (gerencialismo reformado) não faz sentido algum (Bresser
pereira, 1998b: 32-33).

O segundo aspecto a ser considerado é a crítica ao modelo


burocrático realizado pelo ideólogo da contra-reforma
administrativa do governo FHC.
De acordo com Bresser Pereira, a “Administração Pública Gerencial”

expressa o processo de mudança do modelo burocrático de administração para o

modelo gerencial (Bresser Pereira, 1998a, 1998b, 1996).

O autor considera que o advento do modelo burocrático de administração foi

necessário para que se estabelecesse a distinção entre o público e o privado,

elemento fundamental de construção do Estado moderno. Portanto, superar o

modelo patrimonialista de administração pré-capitalista, em que os bens privados do

príncipe se confundiam com os bens públicos e as relações pessoais estruturavam a

condução das coisas do Estado, era uma tarefa central para o desenvolvimento

capitalista.

No entanto, segundo Bresser Pereira, a crise econômica dos anos 1980, ao

se configurar como uma crise do Estado, no geral, e, particularmente, numa crise do

modelo burocrático de administração do Estado, requer uma reforma do Estado que

passa, necessariamente, pela reforma do modelo de administração do Estado.

De acordo com o autor, o padrão burocrático de administração pública entra

em xeque devido, principalmente, à rigidez e à ineficiência do serviço público

cccxxxi
(Bresser Pereira, 1996: 20) e seu caráter antidemocrático (Bresser Pereira, 1996:

272). Essas características do serviço público burocrático teriam como causas os

seguintes aspectos: apropriação privada do aparelho público, através de processos

de corrupção de seus agentes; exagerada ênfase nos procedimentos – fato que não

propiciava uma atenção adequada aos resultados da administração e gerava

processos extremamente dispendiosos e lentos; atuação auto-referenciada da

burocracia - a partir da formação de uma classe tecnoburocrata -, não privilegiando,

dessa forma, a centralidade do cidadão como referência para o serviço público; falta

de accountability.

Nesse quadro de crise do modo burocrático de administração do Estado,

inserido numa crise do Estado - causa da crise econômica dos anos 1980 -, é que se

encontra, segundo o ex-ministro do governo FHC, a administração pública gerencial

como alternativa ao modelo administrativo existente.

A crítica de Bresser Pereira à burocracia deve ser problematizada por dois

ângulos. O equívoco teórico do autor no trato da burocracia e a fragilidade empírica

de seus argumentos.

Em relação ao aspecto teórico sobre a burocracia, o autor incorre na mesma

concepção equivocada, criticada na seção anterior, que trata a burocracia num

mesmo nível teórico que o gerencialismo, buscando apresentá-lo como uma

alternativa de ordem administrativa à burocracia e ao patrimonialismo, quando, na

verdade, o gerencialismo se estrutura como uma proposta que combina um

processo de monocratização e flexibilização da burocracia, podendo incorporar

traços do patrimonialismo.

Oliveira (2001: 142), de forma incisiva e irônica, aponta para o reducionismo

operado por Bresser Pereira quando trata o conceito de burocracia identificado com

cccxxxii
serviço público, enquanto para Weber o “conceito de burocracia tem capacidade

heurística para entender o que é capitalismo, e não apenas a administração do

Estado”.

Oliveira (id, ibid) sinaliza, também, que o ex-ministro “retira do setor privado,

de sua administração, qualquer relação com a burocracia”, possibilitando, dessa

forma, concentrar o ônus desse modelo de administração nas mãos do Estado,

liberando o setor privado para se projetar como espaço privilegiado e exclusivo de

modelos eficientes de administração. Essa engrenagem é utilizada para reforçar a

idéia da necessidade de incorporação pelo Estado de modelos de gestão

desenvolvidos pelas empresas privadas, reforçando o modelo economicista

funcional à lógica do capital no contexto neoliberal.

Outro aspecto a ser destacado da crítica de Bresser Pereira diz respeito à

forma como ele a articula com democracia.

Como ressalta Sônia Fleury (1997), além de a burocracia ter sido fundamental

na construção do Estado democrático moderno, as questões relativas à

centralização/descentralização, responsabilização da gestão pública e controle

social não são inerentes à administração burocrática, mas, antes, trata-se da

questão política de assegurar a utilização do Estado para a promoção do interesse

público (Fleury, 1997). Portanto, não podemos debitar o caráter antidemocrático do

modelo de administração burocrática apenas às forças intrínsecas ao

desenvolvimento da burocracia.

Na mesma linha de raciocínio, Oliveira (2001) reage ao fato de que Bresser

Pereira considera a crise do Estado como produto da expansão democrática e, em

nenhum momento, levanta a possibilidade de identificar essa crise como expressão

(e não causa) de uma crise democrática ou, pelo menos, considerar que essa crise

cccxxxiii
pode colocar em risco a democracia. Nesse sentido, Oliveira inverte radicalmente os

argumentos de Bresser Pereira, abrindo um leque de alternativas analíticas bem

mais profundas e complexas para situarmos a crise do modelo burocrático de

administração.

Para concluir a crítica a Bresser Pereira, no que tange ao tratamento dado pelo

autor à questão burocrática, cabe ressaltar a fragilidade de seus argumentos, do

ponto de vista empírico.

Nesse caso, o estudo de Peter Evans (1993) é conclusivo. De acordo com o

autor, o problema dos Estados do Terceiro Mundo não é a sua natureza burocrática,

mas a falta de burocracia. No caso particular do Brasil, conforme destaca Evans, os

problemas são: a) excesso de recrutamento não meritocrático – cargos de confiança;

b) bolsões de eficiência; c) incrementalismo ou reforma por acréscimo, dificultando a

coordenação política e estimulando o recurso a soluções personalistas; d) relação do

Estado com as elites agrárias tradicionais; e) falta de estrutura burocrática estável

prejudicando o estabelecimento de laços do tipo “orientação administrativa”, jogando

a relação público-privado para canais individualizados – “anéis burocráticos” (Evans,

1993: 140-143).

Para finalizar a análise, do ponto de vista teórico, da vinculação da proposta de

mudança administrativa elaborada e conduzida pelo governo FHC ao ideário

neoliberal, apresentaremos a afinidade existente entre a concepção gerencialista de

Bresser Pereira com a teoria da escolha pública.

Nesse sentido, Paula (2005) e Andrews e Kouzmin (1998), através de análises

rigorosas, desmontam qualquer possibilidade de separação entre os fundamentos da

proposta de contra-reforma administrativa de FHC e a perspectiva da teoria da

escolha pública.

O trabalho de Paula (2005) analisa, num primeiro momento, a construção e

consolidação teórico-prática das propostas neoliberais para a administração pública.

cccxxxiv
A autora, dessa forma, mostra as conexões existentes entre o neoliberalismo, a teoria

da escolha pública, o movimento “reinventando o governo”115 e a terceira via,

afirmando que, apesar de algumas diferenças entre as perspectivas, todas possuem

como núcleo teórico-prático o neoliberalismo e a teoria da escolha pública.

Paula (idem) inicia o trabalho explicitando a fundamentação neoliberal e da

teoria da escolha pública da chamada “Nova Administração Pública” (gerencialismo).

Em seguida, mostra a relação do movimento “reinventando o governo” com o

movimento gerencialista americano e compara os princípios daquele movimento com

preceitos do neoliberalismo e da teoria da escolha pública, concluindo que o

movimento “reinventando o governo” possui a mesma concepção teórico-prática

daqueles preceitos, porém adequando-a à linguagem gerencialista116. Em relação à

terceira via, a autora, a partir da análise crítica do pensamento de Anthony Giddens,

mostra o paradoxo dessa corrente, na medida em que ela, do ponto de vista do

discurso, critica o neoconservadorismo, mas, do ponto de vista teórico-prático

preserva os elementos econômicos e morais do neoliberalismo para defender sua

proposta de modelo de gestão.

A partir desse trabalho teórico, Paula (2005), ao identificar o Plano Diretor da

Reforma do Aparelho do Estado com a vertente gerencial, relaciona explicitamente a

fundamentação da proposta com os preceitos de neoliberalismo e, implicitamente,

com a teoria da escolha pública.

A relação entre a fundamentação do Plano Diretor e a teoria da escolha pública

é realizada de forma explícita e rigorosa por Andrews e Kouzmin (1998), Conforme

sintetizam os autores117:

115
Movimento de “reforma” administrativa originado nos Estados Unidos, no contexto do governo Clinton, baseado nas
indicações sobre a necessidade da descentralização administrativa e incorporação de mecanismos gerenciais na
administração pública, sugerido pelos consultores David Osborne e Ted Gaebler, através do livro “Reinventando o Gogerno”.
116
Grau (1998: 222-223) também mostrará a relação entre trabalho de Osborne e Gaebler e o enfoque mercadológico da
administração pública.
117
A análise dos autores é realizada com base no trabalho de Bresser Pereira “A Reforma do Estado dos anos 90: lógica e
mecanismos de controle”, apresentado pelo autor, em 1997, por ocasião da segunda reunião do círculo de Montevideo, em
Barcelona.

cccxxxv
“Reconstrutir o Estado“, de acordo com o Ministro Bresser
Pereira (...) significa diminuir o tamanho do Estado, desregular a
economia, aumento a governança e a governabilidade. O
primeiro objetivo seria alcançado por meio das privatizações, da
terceirização e da transferência de serviços públicos para
organizações não governamentais (publicização). Uma menor
intervenção do Estado na economia seria alcançada com a
adoção de mecanismos de mercado. Para aumentar a
governança (...) seria necessário realizar o ajuste fiscal ,
implantar a administração gerencial e separar a formulação da
implementação de políticas públicas. O aumento da
governabilidade (...) seria realizada pela melhoria da democracia
representativa e pela introdução do controle social. Todos estes
objetivos, com exceção da governabilidade, estão baseados nos
pressupostos teóricos da Escolha Pública (Andrews e Kouzmin,
1998: 100).

Partindo desta síntese, os autores, detalhadamente, demostram as relações

entre cada um desses aspectos e a teoria da escolha pública. Para o objetivo desta

seção, parece-nos suficiente sublinharmos alguns elementos analíticos

desenvolvidos pelos autores, já que não é o caso de proceder a um resumo de seu

brilhante trabalho.

A primeira relação identificada pelos autores entre a concepção de Bresser

Pereira e a teoria da escolha pública refere-se à concepção do ex-ministro sobre o

“pressuposto de que o crescimento do Estado é inerente ao próprio Estado, uma vez

que os teóricos da Escolha Pública acreditam que os servidores públicos agem

apenas na busca de seus interesses pessoais (rent-seeking)” (Idem: 103).

Os autores destacam de forma enfática a relação entre a idéia de redução do

Estado, defendida por Bresser Pereira, e a teoria da escolha pública, na medida em

que tal teoria defende essa concepção “tanto pelo pressuposto de que os políticos

agem para maximizar os votos ou de que burocratas agem para maximizar o

orçamento de seus bureaux” (idem: 106).

Outro aspecto que os autores destacam é sobre a identificação entre a

proposta presente no Plano Diretor de constituir “quase-mercados” para o

desenvolvimento dos serviços sociais e a defesa da “expansão da analogia de

mercado para a esfera política e, portanto, para os serviços públicos e sociais” (idem:

108) feita pela teoria da escolha pública.

cccxxxvi
Por fim, gostaríamos de ressaltar que o ex-ministro, ao considerar o mercado

como o melhor mecanismo de controle para a administração pública, em detrimento

do controle social e do controle da administração gerencial, ao proclamar “a

superioridade hierárquica do mercado sobre o controle social (...), endossa as

propostas da Nova Administração Pública e da teoria da Escolha Pública“ (idem: 110).

Sendo assim, nada mais afinado com o ideário neoliberal e da escolha pública

que a concepção teórica que fundamenta o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do

Estado.

Vejamos, então, para concluir a análise da particularidade brasileira da contra-

reforma administrativa, o Plano Diretor sob o ponto de vista institucional.

A estratégia do Plano Diretor era viabilizar o ajuste fiscal118 e a mudança

institucional da administração pública, através de dois mecanismos.

O primeiro mecanismo estava voltado, por um lado, para a redução do aparelho

do Estado (o que provocaria um impacto imediato nas contas públicas), via

privatização, terceirização, extinção de órgãos e focalização dos gastos sociais e, por

outro lado, para a centralização e fortalecimento dos núcleos de decisão e

controladores das políticas (núcleos estratégicos).

Do ponto de vista da ordem administrativa, esse mecanismo que combina

redução dos gastos com fortalecimento dos centros de decisão, estrutura uma

ambigüidade no tratamento da burocracia.

Por um lado, a centralização das decisões é realizada através do processo de

“monocratização” da burocracia. Essa concentração de poder se efetiva nos

chamados núcleos estratégicos do Estado. No caso da organização administrativa do

governo FHC, esse procedimento é inconteste. Diniz (2000: 90) analisa de forma

contundente:

O padrão tecnocrático de gestão persistiu durante o governo de


Fernando Henrique Cardoso, que reforçou o processo de

118
Conforme sinaliza Diniz (2000: 52-53), “a orientação básica do governo esteve voltada para as questões relativas à crise
fiscal e à necessidade de alcançar a austeridade orçamentária”.

cccxxxvii
insulamento burocrático, atribuindo papel primordial ao
Ministério da Fazenda, ao Banco Central e ao Tesouro Nacional,
que formariam, ao lado do BNDES, o núcleo responsável pelas
decisões, sobretudo no que se refere à política econômico-
financeira, controlando as informações estratégicas,
principalmente aquelas que circulam nos meios internacionais, e
dispondo de canais privilegiados de acesso às decisões
externas. Aos demais ministérios caberia uma posição
relativamente periférica, em geral tendo conhecimento das
decisões depois de estas terem sido tomadas. Ou seja, o círculo
de poder decisório tonou-se extremamente restrito, operando
sob condições de confinamento burocrático, sem transparência
e freqüentemente de forma sigilosa. O estilo tecnocrático foi
fortalecido pelo amplo uso, por parte do Executivo, do
instrumento das medidas provisórias, editadas e reeditadas
numa proporção significativamente superior a que se verificara
nos governos anteriores.

Essa estruturação segue tipicamente a cartilha neoliberal e da teoria da

escolha pública. Ou seja, desideologiza-se a política e despolitiza-se a gestão visando

garantir a direção social neoliberal a ser implementada pelos governos (Fiori, 2001a:

135 e 142).

Corroborando essa análise, Borges (2001) destaca que a proposta de

autonomia do Banco Central e a Lei de Responsabilidade Fiscal configuram-se como

estratégias para consolidar essa ordem administrativa fundada na centralização

burocrática. “É melhor confiar em burocracias altamente insuladas e adeptas ao

pensamento econômico liberal ou em regras legais rígidas definidas

constitucionalmente do que na pureza ideológica dos representantes eleitos” (idem:

175).

Pelo lado da estratégia de redução dos gastos públicos, encontraremos a

diminuição da estrutura burocrática da administração pública. A Emenda

Constitucional nº 19 e o processo de terceirização, a que voltaremos adiante, são

expressões emblemáticas dessa estratégia.

A EC nº 19 formalizou, no plano institucional, uma série de possibilidades para

restringir a estruturação do quadro burocrático da administração pública. De acordo

com Diniz (2000: 51-52):

...o cerne das propostas do Executivo estaria constituído pela


flexibilização do serviço público, notadamente em relação à
estabilidade (admitida apenas para o núcleo estratégico e as

cccxxxviii
atividades exclusivas), ao regime jurídico único, à isonomia, à
isonomia e à forma de ingresso via concurso público, mudanças
que em seu conjunto, afetariam as bases do sistema em vigor.

Pessoa (2000) ratifica a análise de que a EC nº 19 expressa a incorporação do

gerencialismo neoliberal na medida em que, em conjunto com outras ações do

governo, implementa

a adoção em larga escala do regime celetista em substituição ao


estatutário, com possibilidade de dispensa nos moldes privados;
quebra da estabilidade; freqüentes cortes orçamentários e
aviltamento da situação dos servidores públicos; ênfase nos
"resultados", nas "metas", e menosprezo aos "procedimentos",
com a conseqüente "flexibilização" (entenda-se descaso) do
princípio da legalidade em matérias vitais, tais como licitações,
contratações de bens e serviços, nomeação / contratação /
dispensa de servidores públicos (Pessoa, 2000: 3).

Nessa perspectiva, consolida-se o tratamento paradoxal da burocracia. Por um

lado um movimento de monocratização burocrática, via núcleos estratégicos e, por

outro, o esfacelamento do quadro burocrático, via medidas de flexibilização, voltadas

para a redução do gasto público.

O trabalho de Rezende (2004) é essencial para identificarmos a ligação

umbilical entre a redução do quadro burocrático e a finalidade do ajuste fiscal. O autor

mostra que houve grande cooperação dos ministérios econômicos com o Ministério

da Administração e Reforma do Estado (MARE) para reduzir os custos de pessoal da

administração pública, devido a sua importância para a obtenção do ajuste fiscal. De

acordo com Rezende, o MARE foi extremamente eficiente, pois, de 1995 a 1999, a

despesa com pessoal passou de 56,2% da receita corrente líquida para 39,7% e o

número de funcionários públicos civis do poder executivo caiu de 630.763, em 1995,

para 536.321, em 2000119.

O segundo mecanismo reorganizava a relação entre formulação e

implementação de políticas, redefinindo a relação de controle, através da

descentralização e estabelecimento de critério de performance, que seriam

119
Rezende (2004) não apenas menciona eficiência, como também qualifica como “sucesso” as ações empreendidas para
redução de custos e de pessoal do quadro burocrático. A avaliação de sucesso e a eficiência estão relacionados apenas ao
critério econômico do ajuste fiscal; o autor em nenhum momento explicita o que está considerando como finalidade social a ser
alcançada pelo Estado e sua relação com o tamanho do quadro burocrático e os níveis salariais atingidos. Além disso, como
apontam Diniz (2000) e Martins (1997), o Brasil não possui excesso de quadro burocrático.

cccxxxix
acompanhados via contratos de gestão, a partir da transformação de determinados

órgãos administrativos em organizações sociais ou em agências executivas. Por

outro lado, essa mudança institucional também levaria a uma maior interação entre o

poder público e o terceiro setor (programa de publicização – criação do status de

organização da sociedade civil de interesse público/OSCIP e criação do Termo de

Parceria como instrumento legal para facilitar a relação formal entre Estado e OSCIP,

viabilizando a transferência de recursos).

Nesse sentido, na lógica do Plano Diretor, a mudança institucional visava

manter a situação de ajuste fiscal (objetivo primário) e melhorar a eficácia e eficiência

das agências administrativas, através da proposta clássica gerencialista de combinar

centralização burocrática (núcleo estratégico, formado pelo presidente, ministros e

cúpula dos ministérios) com flexibilização gerencial (Agências Executivas, órgãos

estatais voltados para a implementação das atividades exclusivas do Estado: polícia,

forças armadas, órgãos de fiscalização, regulamentação e de transferências de

recursos; Agências Reguladoras, órgãos estatais voltados para a regulação e

regulamentação do serviços públicos prestados pelo mercado: Agência Nacional do

Petróleo, Agência Nacional de Telecomunicações, Agência Nacional de Energia

Elétrica, Banco Central e Conselho Administrativo de Defesa Econômica; e

Organizações Sociais/OS e Organizações da Sociedade Civil de Interesse

Público/OSCIP, órgãos públicos-não estatais, voltados para serviços não exclusivos,

ou seja, serviços vinculados aos direitos sociais).

A análise de Rezende (2004) sobre a implementação da reforma administrativa

no Brasil mostra como o objetivo do ajuste fiscal foi alcançado, contudo sem a

efetivação da mudança institucional em termos da descentralização. De acordo com o

autor, as resistências vinham de duas frentes: dos órgãos controladores e

responsáveis econômicos pelo ajuste fiscal (principalmente Ministério da Fazenda) e

das próprias agências que deveriam mudar de status institucional.

cccxl
A resistência dos primeiros estava centrada na desconfiança de que a

estrutura descentralizada pudesse efetivamente garantir a manutenção do ajuste

fiscal, melhorar a performance do Estado e não pressionar o aumento do gasto

público, através da corrupção e descontrole das ações do Estado, assim como

ocorrera com a descentralização radical implementada durante a ditadura militar.

Nesse sentido, fica nítido que, para o ideário neoliberal, o aumento do gasto

público - seja para a expansão das ações do Estado, seja para alimentar a corrupção

ou o clientelismo necessários para a efetivação do projeto - deve ser contido. O limite

é o ajuste fiscal. Se é necessário utilizar mecanismos clientelistas para sua

viabilização, esses mecanismos não podem ficar sem controle do centro de decisão

político e burocrático, sob pena de comprometer a finalidade precípua do ajuste fiscal

que garante o superávit primário. Dessa forma, os mecanismos clientelistas devem

obedecer, de maneira direta, à racionalidade econômica neoliberal. Essa preocupação

do centro de decisão político-burocrático reafirma a possibilidade teórica, aventada

na seção anterior, da utilização prático-política das ferramentas gerencias para

estruturar elementos patrimonialistas na ordem administrativa.

As razões da resistência das agências administrativas se colocavam em outro

patamar: receio de que a descentralização levasse à redução orçamentária e

desresponsabilização do governo federal sobre a sobrevivência das agências; análise

de que a reforma priorizava as atividades exclusivas do Estado e, assim, essas

agências, ao mudarem seu status institucional se afastaria, mais ainda, da proteção

do governo federal, além do fato de que a criação desses órgãos fosse vista como

forma de desresponsabilizar o Estado de suas ações na área social.

Essa descrição das resistências à reforma administrativa apontam para quatro

questões que merecem atenção.

Primeiramente, cabe destacar que, do ponto de vista estratégico, não havia

discordância no governo sobre a posição do ajuste fiscal como finalidade central da

reforma e que as medidas institucionais deveriam estar subordinadas a tal preceito.

cccxli
Portanto, privatização, focalização de gastos sociais, redução de pessoal eram pontos

incontestes.

Em segundo lugar, podemos observar que, administrativamente, também não

havia divergências em promover a centralização burocrática e definir uma hierarquia

de comando “monocrático” na administração pública e desenvolver programas

sociais através de articulação com organizações da sociedade civil.

A terceira questão refere-se à clivagem tática no comando do governo sobre a

eficiência e eficácia da descentralização das agências administrativas em relação à

capacidade de controle da burocracia centralizada em relação a essas novas

instituições, para garantir a manutenção do ajuste fiscal120. Nesse caso, os ministérios

econômicos se comportam defendendo a posição de que a centralização é

fundamental para a eficiência macroeconômica imposta pelo neoliberalismo.

Nesses termos, diferentemente da análise de Rezende (2004), não

consideramos que ocorreu uma “falha seqüencial” na implementação da reforma

administrativa, na medida em que o objetivo de “mudança institucional” estava

subordinado ao objetivo maior do “ajuste fiscal”. Ou seja, na avaliação dos

responsáveis pela reforma, a “mudança institucional” proposta inviabilizaria atingir a

meta do “ajuste fiscal”. Portanto, abandonar as propostas de redefinição da relação

entre formulação e implementação, via descentralização, e reforçar a estrutura de

centralização burocrática para garantir o “ajuste fiscal” não significou uma “falha

seqüencial”, mas sim uma reorientação de rumos voltada para a efetivação do

objetivo precípuo da reforma. Nesse sentido, a tese da “falha seqüencial”

desenvolvida por Rezende é meramente formal, ou seja, a falha ocorreu porque a

mudança institucional prevista no Plano Diretor não foi realizada.

120
É interessante perceber, através da pesquisa realizada por Rezende (2004), como o MARE procurou convencer os
ministérios controladores de que a descentralização proposta no Plano Diretor era mais eficaz para o ajuste fiscal do que
manter as agências na estrutura burocrática tradicional. Ou seja, não havia qualquer divergência estratégica entre as posições.
Conforme analisa o autor: “Enquanto o MARE entendia que a mudança institucional era fator decisivo para o ajuste fiscal, para
as demais agências essa mudança imporia perdas, descontrole e, fundamentalmente, redução da performance” (idem: 115).

cccxlii
O último aspecto a destacar está relacionado à resistência democrática

presente no interior da estrutura burocrática, que se posicionava de forma reativa

contra o desmonte do Estado que estava se processando, mesmo que no interior

dessa resistência ocorressem motivações de tipo corporativo-particularista.

Nesse sentido, a radicalização da contra-reforma administrativa, via

mecanismos e ferramentas gerenciais, principalmente a criação de agências

executivas e organizações sociais, não se efetivou por completo devido a avaliações

realizadas no centro do comando político e burocrático, que questionavam se essas

estratégias seriam efetivamente funcionais ao ajuste fiscal, e devido à resistência

democrática de setores da burocracia e da sociedade civil.

Dessa maneira, esses elementos gerenciais pautados na descentralização e

flexibilização institucional, via organizações sociais e agências executivas, não foram

possíveis de servir à lógica tradicional, mantida pelo pacto de dominação

conservador do governo FHC, pelo simples fato de sua não implementação efetiva.

No entanto, o pacto de dominação conservador exige alternativas para a

incorporação dos setores tradicionais na estrutura de poder e dominação. Assim,

para viabilizar a influência dos setores tradicionais na ordem administrativa, através

dos mecanismos gerenciais de descentralização, foram mantidos os excessivos

cargos de confiança, intensificou-se a terceirização de serviços (estratégia de

contratação de servidores periféricos e de níveis intermediários e operacionais), foi

ampliada a ação pulverizada de programas sociais realizados em parceria com

organizações da sociedade civil e refuncionalizou-se a liberação das emendas

parlamentares121. Os recursos disponíveis para a efetivação desses mecanismos

ficaram sob o controle do centro de decisão política e burocrática.

Dessa forma, a estrutura patrimonialista se altera. A determinação da lealdade

entre o senhor e o servidor se mantém, todavia a base de seu fundamento deixa de

121
Conforme sublinha Diniz (2000: 56), “a implantação de um padrão gerencial, com base em mudanças de técnicas e
procedimentos, não elimina a possibilidade da persistência ou mesmo do reforço do intercâmbio clientelista no relacionamento
do Executivo com a estrutura parlamentar-partidária. Neste sentido, mais uma vez teríamos a sobrevivência de um sistema

cccxliii
ser a tradição para ser a racionalidade economicista e o poder coercitivo e

discricionário da burocracia monocratizada. Vejamos melhor essa assertiva.

Uma das particularidades da ordem administrativa brasileira sob o gerencialismo é

que ela realiza a lealdade entre senhor-servidor não mais de forma típica, ou seja, baseada

na tradição. A lealdade senhor-servidor, na ordem administrativa gerencial brasileira, é

obtida através da centralização burocrática e difusão ideológica do pensamento único (só

existe uma forma de conduzir a política a economia e a sociedade), portanto racional-legal,

combinada com os estratégias de flexibilização gerencial que possibilitam, num quadro de

monocratização burocrática, agir coercitivamente, através de mecanismos legais (liberação

de recursos para programas sociais, emendas parlamentares, terceirização, cargos de

confiança), para obter apoio político dos setores tradicionais para o projeto de

transnacionalização, viabilizando, dessa forma, a incorporação desses segmentos na

estrutura de poder.

A título de exemplo sobre o funcionamento desses mecanismos, como

recursos voltados para organizar a participação política de setores tradicionais na

estrutura de dominação, as estratégias baseadas na refuncionalização das emendas

parlamentares e na intensificação da terceirização são emblemáticas.

A liberação de emendas parlamentares para a base do governo tem sido um

instrumento utilizado para garantir a lealdade política, a partir de um mecanismo

formal-legal. A compra do apoio do político se dá através de um mecanismo legal: as

emendas parlamentares. Assim, para viabilizar a racionalidade neoliberal da reforma

da previdência, por exemplo, utiliza-se a forma legal das emendas parlamentares,

visando garantir o apoio dos setores político-tradicionais. A liberação legal das

emendas orçamentárias dos parlamentares, para efetivar a racionalidade neoliberal da

reforma da previdência, é uma forma “racional-legal”, portanto, tipicamente

burocrática, de realizar a lealdade senhor-servidor, através de uma relação de

submissão, tipicamente patrimonialista.

híbrido, desafiando a meta de uma transformação drástica do legado histórico”.

cccxliv
A estrutura de obtenção da lealdade via coerção se intensifica e se manifesta,

através da terceirização dos servidores, em diferentes níveis da administração

pública. Os servidores terceirizados, por serem contratados sem obedecer a um

processo de seleção pública, ainda que sejam qualificados para o exercício

profisional, são mais suscetíveis à coerção e à discricionaridade dos gestores, na

medida em que não possuem autonomia por não possuírem, principalmente, o

“direito ao cargo” e a estrutura de “impessoalidade” da burocracia. Dessa maneira, a

racionalidade neoliberal da terceirização cumpre duas funções; reduz a despesa

pública com pessoal, flexibilizando a administração de recursos humanos, e limita o

poder do quadro burocrático permanente (Borges, 2001).

Os mecanismos gerenciais que viabilizaram a flexibilização da administração pública

foram o que, no caso brasileiro, possibilitaram articular a ordem administrativa neoliberal

centralizada burocraticamente, baseada na finalidade precípua de redução do Estado e

ajuste fiscal, com a lógica tradicional patrimonialista necessária para contemplar uma

dominação fundada na continuidade do pacto conservador.

De outra forma, Diniz (2000: 102) ratifica essa análise ao afirmar que:

...tanto a alta tecnocracia insulada na burocracia, quanto a


ampla e heterogênea coalizão parlamentar de sustentação do
governo foram cruciais para a implementação do programa
governamental. Este dependia da aprovação das reformas
constitucionais para alcançar seus objetivos. Para tanto, o
presidente disporia não só de uma ampla base de apoio, como
também de uma distribuição interna de poder que favorecia os
líderes dos partidos e as presidências da Câmara e do Senado,
cabendo ainda mencionar o recurso ao intercâmbio clientelista
para distribuição de cargos na administração pública, como
forma de assegurar a coesão da base governista.

Cabe destacar que, por um lado, ao restringir a descentralização, o núcleo

estratégico burocrático buscou garantir seu controle sobre a possibilidade de

expansão dos gastos públicos, garantindo a hegemonia do ajuste fiscal necessária ao

projeto de transnacionalização. Por outro lado, para viabilizar o apoio político para o

projeto, era necessário incorporar na estrutura de poder a participação dos setores

tradicionais.

cccxlv
A incorporação desses setores na estrutura de dominação exigia uma ordem

administrativa que contemplasse traços de patrimonialismo. Ou seja, o novo

ordenamento administrativo, além de garantir o projeto de transnacionalização, via

uma ordem monocrática da burocracia, deveria também manter, através da

estruturação de uma ordem administrativa com elementos de patrimonialismo, a

participação dos setores tradicionais no poder, para viabilizar o pacto de dominação

conservador articulado pelo governo FHC.

Nesse sentido, podemos dizer que ocorre um transformismo na ordem

patrimonialista brasileira, em que os setores tradicionais, para se manterem no poder,

aderem à finalidade neoliberal de transnacionalização radical da economia nacional e

se adéquam aos novos instrumentos administrativos para viabilizar a manutenção da

dominação tradicional.

Diferentemente do transformismo italiano que implicou um movimento de

adesão de setores democráticos a propostas moderadas e conservadoras (Gramsci:

2002: 286), o transformismo operado na ordem administrativa patrimonialista refere-se

ao movimento de adesão dos setores políticos tradicionais à lógica neoliberal,

portanto, um transformismo realizado no próprio campo conservador. Em outras

palavras, a ordem administrativa patrimonialista, fundada na dominação tradicional,

alterou-se parcialmente, para se adequar à lógica de dominação racional-legal

neoliberal122.

O gerencialismo do governo FHC, portanto, estrutura-se possibilitando a

manutenção da dominação tradicional. Não suprime nem supera o patrimonialismo.

Na verdade, como vimos, a contra-reforma administrativa, através da dimensão

flexível/gerencial, repõe o patrimonialismo sobre bases racional-legais.

122
De forma análoga, Pinho (1998: 8), apesar de não aprofundar a questão, sugere que analisemos a manutenção do
patrimonialismo na ordem administrativa brasileira como sendo um movimento “camaleônico” “que consegue não só sobreviver
como, ao que parece, se reforçar mesmo sofrendo a ordem econômica mudanças modernizantes apreciáveis”.

cccxlvi
A possibilidade, exposta na seção anterior, de o mecanismo gerencial se

estruturar a partir de orientação patrimonialista, realiza-se no caso brasileiro, via,

principalmente, as emendas parlamentares e a terceirização.

No entanto, cabe frisar mais uma vez que o gerencialismo, através da

refuncionalização das emendas parlamentares e da terceirização, não reproduz de

forma direta o caráter típico do patrimonialismo, fundado na relação tradicional de

lealdade entre o senhor e o servidor.

Portanto, a ordem administrativa brasileira se reestrutura mantendo a

imbricação da burocracia com o patrimonialismo, porém num contexto de

monocratização burocrática e patrimonialismo em transformismo123, mediado

pelos mecanismos de flexibilização gerencial. Em relação à burocracia, ocorre

um tratamento ambíguo, pois ao mesmo tempo em que reforça as decisões

burocráticas centrais em determinadas áreas, esvazia a burocracia em nome

de uma descentralização que na verdade se materializa através da

desresponsabilização e privatização das ações que deveriam ser estatais e da

constituição de quadro profissional extrapatrimonial.

Nesse sentido, divergimos da análise que

identifica a existência de uma trifrontalidade,

baseada na presença simultânea da burocracia,

patrimonialismo e gerencialismo na

administração pública brasileira dos anos 1990

(Pinho, 1998 e Nogueira, 2004). Primeiramente,

como vimos na seção anterior, o gerencialismo

não pode ser considerado um paradigma de

123
Paula (2005) analisa o processo de combinação de “monocratização” da burocracia com elementos do patrimonialismo, no
quadro da programática gerencialista, recorrendo ao conceito de “neopatrimonialismo” de Schwartzman (1982). Porém, como
vimos anteriormente, consideramos inadequada a formulação de Schwartzman para analisar a estrutura da ordem
administrativa. Conseqüentemente, também discordamos de sua utilização para interpretar o caso do gerencialismo.
Entendemos que a categoria “burocracia monocrática” e “patrimonialismo em transformismo” possui muito mais capacidade
heurística para a interpretação crítica da proposta gerencial.

cccxlvii
ordem administrativa do mesmo estatuto teórico

do patrimonialismo e da burocracia. Além disso,

os recursos gerenciais de flexibilização da

ordem administrativa não possuem finalidade

em si, eles são funcionais para a manutenção da

relação de dominação racional-legal e

tradicional que se mantêm necessárias e

imbricadas para implementar o projeto de

transnacionalização radical da economia

nacional, sob condução do pacto de dominação

conservador.

Sendo assim, esse quadro de contra-

reforma do Estado e de contra-reforma

administrativa produz o estreitamento de

condições para a ampliação e universalização

de direitos e a redução das possibilidades de

construção e fortalecimento da espinha dorsal

burocrática necessária para conduzir políticas

públicas universalistas.

cccxlviii
V - À GUISA DE CONCLUSÃO:

REFERÊNCIAS PARA A RESISTÊNCIA AO

GERENCIALISMO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

5.1. As razões históricas da imbricação do patrimonialismo com a


burocracia na administração pública brasileira: breve síntese

Como vimos, o Estado patrimonialista não possui vínculo genético com a

oligarquia agrária cafeeira, ele é produto do processo de colonização portuguesa

que traz para o Brasil sua estrutura estatal e administrativa e organiza a sociedade

colonial a partir do padrão patrimonialista vigente.

Essa estrutura protege e controla os senhores rurais, pois eles são os

elementos fundamentais para a exploração dos recursos existentes em benefício da

coroa. Embora os senhores rurais desejem a proteção e o status garantidos por sua

vinculação à coroa, não querem o controle da coroa sobre seus negócios. O Estado,

então, afigura-se como a possibilidade de status para os proprietários rurais e, ao

mesmo tempo, com a expressão da opressão a que se submetem. O Estado,

durante o período colonial, será a expressão do poder da nobreza, da burguesia

comercial (que só se interessa na exploração colonial) e do poder senhorial. A

dimensão patrimonialista da administração brasileira advém, de um lado, do poder

do Rei de Portugal que controla o reino, baseado numa organização centralizada e,

de outro lado, da tradição descentralizada da estrutura “patriarcal” dos proprietários

rurais. A dimensão burocrática, apesar de praticamente ausente, existe devido à

necessidade de se organizar os empreendimentos da coroa (comércio, navegação).

A partir do Império e, mais fortemente, durante a República Velha, abre-se

espaço para a presença/influência política de setores não diretamente identificados

e relacionados com a dominação tradicional; possibilita-se a identificação de setores

cccxlix
do estamento senhorial com a ideologia e utopia liberais, tanto do ponto de vista

político quanto econômico e gera tensões entre as lógicas distintas presentes na

ordem administrativa estatal.

Nesse quadro, não há uma relação entre “atraso” e “moderno”, a dominação

senhorial/coronelista, para se objetivar, num contexto marcado por um projeto de

integração nacional e expansão da economia exportadora capitalista, necessitará

combinar estilos de dominação tradicional - pois a estrutura social (primeiramente

mercantil-escravista, posteriormente capitalista-exportadora) nasce e se desenvolve

a partir da escravidão e de setores livres que vivem e sobrevivem da relação de

favor que estabelece com o proprietário rural (seja em sua versão senhorial, seja em

sua versão coronel) - com elementos de racionalidade e formalismo de tipo

burocrático necessários para integração nacional e expansão capitalista na sua

dimensão de comercialização, já que a produção é realizada à base da escravidão,

num primeiro momento, e por uma extensa exploração da força de trabalho, no

momento pós-abolição.

Nesse período (Império e República Velha), o elemento patrimonial se

sobrepõe ao elemento burocrático da administração pública, na medida em que

temos a oligarquia agrária como classe dominante de uma economia mercantil

escravista e da economia exportadora capitalista, ambas exportadoras de produtos

agrícolas. A exigência da racionalidade burocrática se limita a determinadas ações

relativas à política econômica de proteção à exportação, segurança e integração

nacional. A ausência de direitos civis, políticos e sociais reduz a necessidade de

estruturas burocráticas do Estado.

Nesse sentido, o Estado deve expressar essa dominação cuja base é uma

elite tradicional que deve organizar a economia exportadora capitalista. Mais uma

cccl
vez a manutenção da dimensão racional-legal se faz necessária devido ao fato de o

projeto econômico em tela ser nitidamente capitalista. Por outro lado, a questão de

tal projeto ser dirigido por uma elite tradicional exige a manutenção de mecanismos

patrimonialistas na organização da dominação.

Portanto, a ordem administrativa brasileira se realiza através do

imbricação do patrimonialismo com a burocracia, na medida em que está

vinculada (genética, estrutural e funcionalmente) à dominação constituída por

frações senhoriais/oligáquicas e burguesas para conduzir o processo da

expansão capitalista, que tem início no Império e se consolida na República

Velha. Nesse sentido não há dualismo. O novo se imbrica com o velho, o velho

é funcional ao novo.

Resumindo, o fato relevante que ocorre na primeira república, que implica a

ordem administrativa do Estado brasileiro, diz respeito à consolidação do processo

originado durante o Império que combina patrimonialismo e burocracia com

especialização, um certo nível de racionalidade capitalista e ausência de

impessoalidade. Contudo, diferentemente da centralização presente no segundo

reinado imperial, a ordem administrativa passa a expressar a dominação

hegemonizada pela oligarquia cafeeira, através de uma estrutura descentralizada do

poder.

Assim, a dialética patrimonialismo-burocracia, sob hegemonia do

primeiro termo, consolida-se como marca genética da estruturação da

administração pública brasileira, durante a primeira república.

O patrimonialismo, a partir da origem ibérica e centralizadora, combina-se

com a estrutura “patriarcal” colonial, fortalecendo essa lógica de dominação tanto a

partir da superestrutura estatal, quanto da organização do poder local. A neófita

cccli
burocracia brasileira será desenvolvida a partir da necessidade de especialização e

racionalidade instrumental capitalista, porém evitando a impessoalidade como

critério para a composição de seus quadros, reforçando, dessa feita, a lógica

patrimonialista de recrutamento baseada na lealdade pessoal (fundada na tradição,

relação de confiança, pacto de fidelidade ou relação de piedade).

Esse amálgama é consolidado na República Velha, através da organização

política descentralizada e da ausência de participação das classes subalternas na

estrutura de poder, para viabilizar o projeto nacional da economia agro-exportadora

capitalista, conduzido pelas oligarquias agrárias, sob hegemonia da oligarquia

cafeeira paulista.

Esse é o cenário que se inicia na

Independência, consolida-se com a

Proclamação da República e encontra seu

esgotamento no final da República Velha,

quando entra em crise a economia exportadora

capitalista e a hegemonia da oligarquia cafeeira,

o que projeta um novo objetivo político: a

industrialização e urbanização do País.

Assim sendo, no contexto do projeto desenvolvimentista de expansão capitalista,

Fiori (1995: 27) apresenta uma síntese consistente sobre o ordenamento estatal e sua

ordem administrativa:

O Estado, mormente o seu setor produtivo e financeiro,


estabelece uma relação corporativa com o empresariado
nacional, protegendo seu lucro relativo, aumentando o potencial
de acumulação e absorvendo o custo desta expansão. A
administração pública, através de suas agências previdenciárias
e múltiplas instâncias administrativas, dispensa serviços sociais
e cria vínculos empregatícios absorvendo, na dinâmica estatal,
parcelas cada vez maiores da população economicamente ativa.
Como a negociação salarial dos pólos mais dinâmicos da
indústria processava-se de forma individualizada em acordos de
empresas, os conflitos salariais e redistributivos perdiam seu
potencial político; ou melhor: tinham limitado potencial de

ccclii
difusão, o que por sua vez, permitia que as atividades de bem-
estar do Estado se processassem clientelisticamente, embora
sem o vigor das negociações corporativas.

Para completar esse quadro, lembremos que o projeto de expansão

capitalista, de sua fase restringida até a consolidação monopólica, orientou-se sob o

signo da “dupla articulação” e da incorporação seletiva e parcial das camadas

populares.

Tal situação implicou uma manifestação particular na esfera política e na

máquina estatal brasileiras, a partir do comportamento presente na esfera

econômica. Mesmo porque esse processo de expansão capitalista foi conduzido

pelas forças sociais fundamentais presentes nesse movimento. Portanto, a relação

arcaico-moderno aparece também na configuração do Estado brasileiro e da sua

direção política, assim como na estruturação de sua máquina estatal. Obviamente,

longe de ser apenas o “reflexo” do econômico na política, essa situação se entrelaça

dialeticamente com os rumos da expansão capitalista, influenciando as decisões

econômicas no sentido de garantir, ao máximo, a perpetuação do poder das elites

agrárias tradicionais combinadas com a emergente burguesia. Isso significa dizer

que não há uma evolução natural - ou mecanicamente amarrada nas condições

objetivas - do processo de expansão capitalista no Brasil, devido a sua situação

periférica (desenvolvida a partir da sua economia exportadora capitalista no

momento de dominação em escala mundial do capitalismo monopolista – Cardoso

de Mello, 1998); mas sim que a correlação de forças da época propicia tomadas de

decisão econômica dentro desse quadro objetivo que reforça a concentração de

renda, propriedade e poder.

Sendo assim, a configuração do Estado e de sua máquina pública vão

expressar essa hegemonia. Do ponto de vista do Estado, as classes dominantes

cccliii
(agrário e industrial) garantirão a reprodução da ordem, incorporando setores

populares de acordo com a pressão existente e importância para a acumulação.

Para implementar as ações do Estado combinam-se, dessa forma, elementos

“novos” (burocráticos) e “arcaicos” (patrimonialistas) como forma de garantir a

estrutura de dominação existente. Portanto, a ordem administrativa é composta de

um imbricação entre a dimensão patrimonialista e a burocrática que, dialeticamente,

são funcionais, do ponto de vista estrutural, para a operação de dominação

presente.

Por um lado, é necessário planejar a industrialização desde sua fase

restringida até a consolidação monopólica. Para isso, necessita-se de um quadro

administrativo especializado e profissional, assim como certas regras e normas bem

definidas, ou seja, necessita-se de burocracia.

No entanto, esse planejamento deve garantir a manutenção da concentração

de renda, propriedade e poder das elites dominantes, por isso essa burocracia deve

criar canais de comunicação com as elites empresariais. Tal planejamento, portanto,

não deve incorporar, substantivamente, os interesses das classes trabalhadoras.

A máquina estatal deve possuir, então, estruturas para atender a

determinados interesses das classes trabalhadoras, mas que sejam estruturas que

não estejam estratégica e diretamente ligadas aos projetos de expansão capitalista,

nem que possam interferir significativamente em sua condução (aqui a articulação

dialética entre a economia e o social é nítida). Nesse sentido, a matriz burocrática

vai ser necessária nessa dimensão, porém criando canais de comunicação com a

representação da classe operária e, também, dos empresários, como forma de

regular o atendimento dos interesses do trabalho.

cccliv
Simultaneamente a esses mecanismos, ainda que a elite tradicional se

mantenha como fiadora do projeto de desenvolvimento - deixa de ser a fração

dominante hegemônica -, na medida em que oferece apoio político ao projeto de

expansão tipicamente capitalista (industrial). Sendo assim, a máquina estatal

também abrigará um espaço para a continuidade de sua influência nas diferentes

questões a serem debatidas e na garantia da reprodução de sua fatia de domínio

político. Dessa maneira, a lógica patrimonialista se apresenta como necessária –

todavia deixando de ser hegemônica - para a manutenção da estrutura de

dominação da sociedade brasileira.

Desse modo, o patrimonialismo não se apresenta como um elemento de

atraso que deve ser superado para o desenvolvimento do País. Ele é uma

determinação central do nosso modelo de desenvolvimento capitalista, não

sendo um obstáculo para tal.

A lógica dialética de Oliveira (2003) e Cardoso de Mello (1998) ajudam a

desvelar a não dualidade da ordem administrativa. Patrimonialismo e burocracia se

imbricam como estruturas de poder e estilos de dominação necessários para a

particularidade do desenvolvimento capitalista brasileiro.

A manutenção do processo de relações de produção não-capitalista (na

agricultura e no setor terciário) se desenvolve sob uma estrutura de poder tradicional

que exige uma ordem administrativa tradicional não-capitalista, ou seja,

patrimonialista. No entanto, como a manutenção dessas relações de produção são

necessárias para a acumulação capitalista brasileira, a estrutura global de poder

deve incorporar as classes dominantes tradicionais. O Estado, então, ao expressar

essa coalizão de classes para conduzir a expansão e consolidação capitalista,

precisa contemplar os diferentes tipos de dominação e as diferentes lógicas

ccclv
administrativas (dominação racional e burocracia e dominação tradicional e

patrimonialismo) que compõem essa estrutura de poder.

Dessa forma, como vimos no capítulo 3, a ordem administrativa brasileira

vai ser uma imbricação de patrimonialismo e burocracia, não por uma

dualidade entre o “arcaico” e o “novo”, mas sim pela necessidade de ter uma

ordem administrativa adequada à lógica de dominação e à estrutura de poder

forjada por nossa “revolução burguesa”.

As implicações desse entendimento nos

remetem a pensar o patrimonialismo na ordem

administrativa no Brasil não como uma

dimensão que precisa ser modernizada para a

superação do “velho” (tradicional) - elemento

inercial que teima em persistir e que precisa ser

expurgado, pois é um óbice para a eficiência da

administração pública. Antes precisa ser

entendido como constituinte da particularidade

de nossa administração pública, advinda da

particularidade de nossa estrutura de poder

responsável pela expansão do capitalismo no

Brasil.

Nesses termos, a configuração estatal e a burocracia criadas e desenvolvidas

no Brasil foram precárias para proporcionar a universalização de direitos, devido à

coalizão conservadora das classes que conduziu a modernização capitalista – a qual

constituiu um Estado forte, porém não permeável aos interesses populares/das

classes subalternas - e à parcialidade da racionalidade burocrática desenvolvida, na

medida em que sua realização plena foi evitada ou interferida, através de sua

ccclvi
articulação com patrimonialismo/clientelismo, objetivando garantir a manutenção de

privilégios e, simultaneamente, visando viabilizar os interesses imediatos da

burguesia industrial nascente, via expansão do “insulamento burocrático” e

estruturação dos “anéis burocráticos”. Portanto, o Estado e a burocracia no Brasil

não produziram ampliação significativa de direitos124. No entanto, o Estado e a

burocracia, mesmo nas condições brasileiras de pouca permeabilidade para as

classes trabalhadoras e produto de uma coalizão conservadora de classes,

atenderam a determinados interesses dos dominados. A redução do Estado e da

burocracia, certamente, poderia criar uma situação muito mais grave ou causar uma

deterioração de grandes proporções no quadro vigente.

No contexto da redemocratização brasileira, abre-se pela primeira vez no

cenário nacional a possibilidade de maior incorporação dos interesses da classe

trabalhadora na estrutura de poder. Os anos de 1980 e início dos anos 1990 se

apresentam como um período de forte disputa hegemônica entre dois projetos:

liberal-corporativismo e social-democrata (Coutinho, 1993).

Mesmo sofrendo as influências internacionais tanto do ponto de vista

econômico: a crise, suas derivações (financeirização, reestruturação produtiva e

mundialização) e o conseqüente rebatimento na questão da dívida externa; quanto

do ponto de vista político: o contexto hegemonizado pelo pensamento neoliberal

direcionado para a programática de apoio à internacionalização da economia e para

a crítica à intervenção do Estado na área social (crítica ao Estado de Bem-estar

capitalista e às experiências socialistas); a década de 1980, no Brasil, expressou a

resistência ao alinhamento imediato a esses ideários.

124
Fernandes (1981: 254), ao analisar as transições para o capitalismo adverte: “Na periferia, essa transição torna-se muito
mais selvagem que nas nações hegemônicas e centrais, impedindo qualquer conciliação concreta, aparentemente a curto e a
longo prazo, entre democracia, capitalismo e autodeterminação.”

ccclvii
Essa resistência contou efetivamente não apenas com o fortalecimento dos

setores democráticos da sociedade civil, mas também com um certo receio das

classes dominantes em abrir mão do apoio do aparato público estatal para a

manutenção de seus privilégios, que poderia advir de uma política pautada na

refuncionalização do Estado, e sua conseqüente redução, para efetivar um projeto

radical de transnacionalização econômica.

A Constituição Federal de 1988 é o exemplo material emblemático de

resistência nacional aos preceitos neoliberais in toten. A área social e a questão da

administração pública foram os aspectos centrais que expressaram a influência das

forças democráticas e populares no destino do país.

A universalização e o aprofundamento de direitos de cidadania como dever do Estado e a

estruturação de uma ordem classicamente burocrática, no sentido do fortalecimento das

dimensões de formalidade, mérito e impessoalidade da administração pública, previstos na

carta magna de 1988, mostram um caminho democrático a ser seguido do ponto de vista

político e institucional, portanto, antagônico à hegemonia internacional da época e à história

de desenvolvimento do Estado brasileiro e de sua ordem administrativa. Essa possibilidade

aberta se apresentava factível pelo fortalecimento dos setores democráticos que propunham

um projeto de desenvolvimento que incorporasse substantivamente os interesses populares

e que, politicamente, exigiam uma ruptura da burguesia com os setores tradicionais.

Dessa forma, buscava-se articular um projeto para o país baseado na incorporação

substantiva da classe trabalhadora no desenvolvimento econômico e social, a ser conduzido

por uma coalizão de classes que excluísse os setores tradicionais. Por isso, a necessidade de

um Estado forte na área social e o conseqüente fortalecimento da estrutura da burocracia,

nas dimensões de impessoalidade e formalidade. Nessa configuração, abre-se a

ccclviii
possibilidade teórica e política para romper com a imbricação da burocracia com o

patrimonialismo que marcou a origem e o desenvolvimento da ordem administrativa

brasileira.

No entanto, essa possibilidade teórica e política não se efetivou. A situação econômica do

país não melhora e, a partir do início dos anos 1990, um novo consenso entre as forças

conservadoras foi se constituindo em torno da idéia da inexorabilidade de, mais uma vez, o

Brasil inserir-se de forma subordinada ao capital internacional, porém, agora, no contexto

capitalista hegemonizado pelo mundo das finanças. As forças tradicionais foram

rearticuladas e convencidas de que, nas novas condições da economia internacional, era

necessário, para manter o pacto de dominação conservador, que houvesse uma mudança de

estratégia em relação ao papel do Estado na sociedade. A negação do papel do Estado como

agente produtivo direto e como provedor de políticas sociais seria o cerne das mudanças

que se faziam necessárias para a manutenção do pacto conservador de dominação (Fiori,

1998).

Em outras palavras, em meados da década de 1990, sob liderança de Fernando Henrique

Cardoso, o projeto de transnacionalização radical da economia nacional foi incorporado

como o objetivo a ser perseguido, através de uma coalizão conservadora de classe, que

reatualizou o pacto de dominação conservador, via aliança política estabelecida entre o

PSDB e o PFL.

Dessa forma, o ideário neoliberal e suas conseqüências políticas, econômicas e sociais

foram introduzidos no Brasil, a partir da manutenção de nosso tradicional pacto

conservador. Assim, implementa-se uma verdadeira “contra-reforma” do Estado brasileiro

(Behring, 2003).

ccclix
Do ponto de vista do projeto desenvolvido, a partir do receituário neoliberal aplicado no

país, ocorre um processo intensivo de internacionalização da economia, através das

privatizações, abertura comercial e desregulamentação econômica, e de reestruturação da

intervenção do Estado na área social, onde o processo de universalização de direitos sociais

foi estancado para garantir o ajuste fiscal necessário para honrar os compromissos

internacionais com o capital financeiro. Nesse sentido, a dimensão social do Estado é

enfraquecida e se organiza um Estado máximo para o capital (Netto, 1995).

A conseqüência administrativa do projeto de transnacionalização radical, que implica uma

forte coordenação das ações e a redução da intervenção do Estado na sociedade, tanto como

setor produtivo quanto como provedor de políticas sociais, é, por um lado, a concentração de

poder burocrático e, por outro, a diminuição da burocracia estatal. Entretanto, a dimensão

administrativa sofre também as conseqüências do pacto de dominação estabelecido, que

incorpora os setores tradicionais da sociedade e que, por isso, exige a manutenção de

mecanismos patrimonialistas na ordem administrativa.

Para realizar essas mudanças administrativas, será efetivada a contra-reforma

administrativa, fundamentada teoricamente nos pressupostos da teoria da escolha pública

(Andrews e Kouzmin, 1998).

Nesse sentido, a proposta da “Administração Pública Gerencial”, conforme denomina

Bresser Pereira (1996, 1998b), pauta-se na centralização burocrática, via núcleos

estratégicos do governo, combinada com a descentralização e flexibilização burocrática, via

agências executivas/reguladoras, organizações sociais e o processo de terceirização de

serviços e parcerias.

ccclx
Através da centralização burocrática, que se configura como a estruturação de uma

burocracia monocrática, viabiliza-se a coordenação das ações necessárias para o projeto de

transnacionalização. Por intermédio da flexibilização da burocracia, alcançam-se três

objetivos: diminuição de gastos públicos para contribuir com o ajuste fiscal, redução do

poder da burocracia permanente e manutenção de traços patrimonialistas na administração

pública para propiciar a participação dos setores tradicionais da estrutura de dominação.

Nessa perspectiva, a flexibilização da burocracia se apresenta como a mediação necessária

para a manutenção do patrimonialismo na ordem administrativa brasileira, que precisa se

efetivar para viabilizar a participação dos setores tradicionais na estrutura de dominação.

Tal mediação provocará mudanças na fundamentação do patrimonialismo brasileiro que

passará, da utilização dos elementos tradicionais de garantia de lealdade entre o senhor e o

servidor, para a estruturação de determinações racional-legais voltadas para viabilizar a

lealdade, baseadas na difusão ideológica do pensamento único da racionalidade

economicista e no poder coercitivo e discricionário da burocracia monocratizada, que

definirá padrões formais para repasse de recursos públicos. Portanto, a contra-reforma

administrativa efetiva um transformismo do patrimonialismo brasileiro.

Nesses termos, além de reduzir a intervenção do Estado no sentido democrático e social, o

projeto neoliberal promove a reorganização da burocracia pública, buscando centralizar as

decisões e o controle burocrático, enfraquecer os quadros permanentes e permitir a

manutenção da sua imbricação com o patrimonialismo, através de uma proposta que

combina monocratização com flexibilização da burocracia.

Nesse sentido, o projeto de transnacionalização radical da economia nacional, conduzido

pelo pacto conservador de dominação, promove uma contra-reforma do Estado - que o

ccclxi
enfraquece em sua dimensão social e democrática - e uma contra-reforma administrativa -

que inviabiliza o fortalecimento da dimensão formal, meritocrática e impessoal da

burocracia. A contra-reforma operada destrói as condições necessárias para o Brasil

trilhar no caminho da universalização e aprofundamento de direitos.

Consideramos que a tese, então, pôde demonstrar, nos limites de nossa

capacidade e das condições de sua operacionalização, que a origem e o

desenvolvimento da adminstração pública brasileira se efetivou através da imbricação da

burocracia com o patrimonialismo, determinada por dois elementos fundamentais.

O primeiro elemento refere-se ao projeto de implantação e expansão das relações

capitalistas no país, do início da industrialização até a atual fase de transnacionalização

radical da economia nacional. A gênese e a consolidação desse processo se realizou

através do protagonismo e ampliação da intervenção estatal, combinando uma “dupla

articulação” (relação do capital nacional com o capital internacional e com os setores

“pré-capitalistas”) com uma inclusão parcial e fragmentada da classe trabalhadora.

Na conjuntura atual, o projeto capitalista neoliberal intensifica a internacionalização

da economia nacional, esvaziando a intervenção do Estado no setor produtivo, tanto

como agente direto quanto como indutor de uma política industrial de

desenvolvimento estratégico da economia nacional, e nas ações voltadas para a

incorporação da classe trabalhadora, via políticas sociais de caráter institucional e

universalista.

O segundo elemento determinante do processo de imbricação da burocracia com o

patrimonialismo diz respeito à estrutura de dominação constituída para desenvolver os

projetos de expansão capitalista, que sempre fora baseada num pacto conservador que

congregava a burguesia nacional e os setores tradicionais da sociedade. A opção de

dominação conservadora de nossa burguesia determinou, ao longo de nossa história,

a inclusão parcial e fragmentada da classe trabalhadora na participação do usufruto

ccclxii
das riquezas produzidas e a manutenção dos setores tradicionais na estrutura de

poder e dominação da sociedade.

Essas duas determinações produziram um Estado frágil para atender aos interesses

da classe trabalhadora e uma administração pública que não se realizou efetivamente como

uma estrutura racional-legal, imbricando-se, desde as origens, a mecanismos voltados para

a manutenção da lógica patrimonial, em sua forma tradicional ou em sua expressão

transformista.

Nesse sentido não há dualidade estrutural na ordem administrativa brasileira.

Há uma totalidade que compreende o projeto socioeconômico e o pacto de

dominação que necessita de lógicas administrativas contraditórias. Essa situação

gera tensões e conflitos intra-administrativos que só se resolvem efetivamente com a

alteração do projeto e da estrutura de dominação (Fernandes, 1981:44). Enquanto

houver no Brasil um pacto de dominação que combine uma ordem racional-legal com

uma ordem tradicional, não iremos superar os estrangulamentos da administração

pública enquanto campo de clientelismo e patrimonialismo.

Assim sendo, o projeto de expansão do capitalismo brasileiro e o pacto conservador

de dominação que o conduziu não propiciaram a construção das duas condições

necessárias para desenvolver uma proposta de universalização e aprofundamento de

direitos: um Estado forte do ponto de vista social e uma ordem administrativa fundada numa

estrutura burocrática racional-legal, que garantisse o mérito, a impessoalidade e o

desenvolvimento de regras e normas formais para a intervenção estatal.

Complexificando a situação, diferentemente do que ocorrera durante as fases de

início e de consolidação da industrialização, quando o Estado, ao assumir o protagonismo

do processo, abria espaços para a incorporação das demandas da classe trabalhadora

(mesmo que parcial e fragmentada), pois necessitava expandir a dimensão burocrática da

administração, na conjuntura atual apresenta, no quadro da contra-reforma do Estado e

administração pública, um movimento político-institucional de bloqueio e regressão desses

espaços.

ccclxiii
5.2. Referências para a constituição de uma administração pública
democrática

A orientação político-institucional das propostas: a construção contra-hegemônica ao

neoliberalismo

Como vimos, ao longo desta tese, para desenvolver uma “gestão social”

voltada para efetivar a universalização e o aprofundamento de direitos sociais,

necessita-se de um Estado interventor expressivo para o social e uma estrutura

administrativa racional-legal, ou seja, burocrática.

Hoje, no Brasil, não temos condições estruturais para esse desenvolvimento,

ou seja, não possuímos um Estado expressivo para a área social nem tampouco

uma estrutura administrativa racional.

O que fazer, então, na medida em que o assistente social, dentre outros

profissionais, assume a gestão de Políticas e Programas Sociais?

No quadro geral de uma perspectiva de

longo prazo, nosso interesse, para concluir esta

tese, é clarear quais as possibilidades do “aqui

e agora” que nos permitam agir no campo da

prática profissional, no caso de gestores

sociais, sem a sedução pelas atitudes

irresponsáveis e nem tampouco cair na

armadilha das “leis objetivas” que impedem a

intervenção. Cumpre apresentar/explicitar,

àqueles que atuam na área de gestão social,

estratégias e orientações para a intervenção que,

como Mészáros (2003: 122) aponta, são ações

ccclxiv
modestas, “mas com plena consciência das

limitações existentes e das dificuldades para

sustentar a jornada em seu horizonte temporal mais

distante”.

Assim sendo, quais as pistas, do ponto de vista do emprego de

mecanismos/estratégias gerenciais, para a intervenção de profissionais

comprometidos com uma perspectiva de universalização e aprofundamento de

direitos que assumem a responsabilidade de gerenciar políticas e programas sociais

no contexto atual? Essa é a questão com que concluiremos esta tese.

Para fazer frente ao quadro exposto, no sentido de uma construção contra-

hegemônica, a administração pública numa perspectiva democrática não pode se

confundir com o “tecnicismo” nem com o chamado “gerencialismo”.

A perspectiva proposta pelo presente trabalho encontra-se referenciada numa

matriz voltada para a ampliação da cidadania e democracia que reconhece as

especificidades e dilemas da gestão social pública (Kliksberg, 1997; Nogueira, 1998;

Grau, 1998; Paula, 2005), enquanto responsabilidade do Estado, contextualizada no

cenário das mudanças societárias contemporâneas e que evoca direitos sociais

universais, transparência, accountability, participação política, eqüidade e justiça

como elementos essenciais para a gerência de programas sociais. Tal perspectiva

está referenciada numa concepção que denominamos de “administração pública

democrática”.

Nessa ótica, é fundamental situarmos, inicialmente, a questão central da

administração pública, qual seja: a finalidade voltada para eqüidade, justiça social,

accountability e democracia, numa orientação de universalização e

aprofundamento dos direitos.

ccclxv
Como vimos, a sociedade capitalista nunca permitirá a emancipação humana,

no entanto, defendemos que a construção de uma sociedade emancipada deve se

pautar em melhoras imediatas para a população. Dessa forma, a estruturação da

administração pública pode ser efetivada num duplo sentido: acumular mudanças

para uma radical transformação societária e possibilitar melhoras imediatas na

condição de vida das classes subalternas, através de uma perspeciva reformista-

revolucionária.

Nesse sentido, a administração pública deve ser realizada à luz dessa concepção. Ou seja,

deve-se gerir baseando-se na finalidade de universalização e aprofundamento dos direitos

sociais.

Como temos sinalizado de forma reiterada, não podemos prescindir de Estado forte na área

social e burocracia estruturada, principalmente na dimensão de sua racionalidade, para

conduzir a universalização e aprofundamento de direitos numa sociedade de classes.

Apesar de não serem suficientes, são estas as condições necessárias.

No entanto, a estruturação de um Estado com fim voltado para a universalização de

direitos e, em conseqüência, uma ordem administrativa burocrática que efetive essa

finalidade, depende da existência na sociedade de uma hegemonia nessa direção. Assim,

como já enunciamos em outros momentos, a tarefa central para a construção de uma

ordem administrativa democrática e universalista é construir essa hegemonia no Brasil

(um projeto de democracia de massa ou social democrata ou modelo europeu, segundo

reflexão de Coutinho). Dessa forma, o modelo de desenvolvimento econômico deve estar

orientado nessa direção.

ccclxvi
Portanto, a questão essencial para a efetivação de uma administração pública democrática

é eminentemente política (Diniz, 2000). Ou seja, depende da capacidade de as forças

democráticas conquistarem hegemonia em torno de uma finalidade ético-política voltada

para a universalização e para o aprofundamento de direitos, que venha a ser conduzida

pelo Estado. Conforme sinaliza Nogueira (1998: 179), ao refletir sobre as possibilidades de

uma reforma democrática do Estado:

As condições de avanço e êxito dependem, como nunca, de um grande


esforço para articular as várias dimensões da questão do Estado, que é,
como se sabe, uma questão intrinsecamente política, pertinente, antes de
mais nada, ao campo do relacionamento entre o Estado e a sociedade. Que
depende por isso mesmo, da construção de consensos, pactos políticos e
projetos e requer o alcance de um equilíbrio dinâmico entre vontade
política e razão crítica.

Fiori (1998: 139) ratifica essa análise apresentando mais uma mediação
para o êxito de uma reforma democrática. Segundo o autor, é
necessária uma outra direção política que permita implementar outra
política econômica que se adéqüe à finalidade de universalização e
aprofundamento de direitos.
Em outras palavras, para implementar uma reforma administrativa
democrática, exige-se uma ação política voltada para a construção de
hegemonia pautada na finalidade de universalização e aprofundamento
de direitos que, ao se efetivar como direção social através do Estado,
possa aplicar uma política econômica coerente com essa orientação
finalística.
Sendo assim, em última instância, as determinações para uma efetiva reforma

democrática da administração estão localizadas no tipo de formação social do

capitalismo brasileiro e em nossa estrutura de dominação, portanto, não serão

medidas técnicas que irão transformar a ordem administrativa brasileira. Por outro

lado, mesmo ocorrendo mudanças em nossa formação social e na estrutura de

poder, essas mudanças se efetivarão sobre nossas particularidades, o que significa

dizer que o produto dessas transformações certamente terão a marca de nossa

história, não reproduzindo estruturas dos países centrais. Dessa forma, não há

ccclxvii
como nos tornarmos burocráticos no sentido clássico do termo e das

experiências históricas dos países centrais.

No entanto, reforçar, do ponto de vista administrativo, a estruturação da burocracia é

uma tarefa central na luta por uma gestão social pautada na universalização e

aprofundamento de direitos, apesar de tudo indicar que o horizonte não será o surgimento

de uma burocracia welfareana em nosso país. Mas o reforço da lógica burocrática,

principalmente o fortalecimento da dimensão formal e impessoal de sua estrutura, assim

como a construção de mecanismos democratizadores (como afirmado no início do capítulo

2), no contexto em que nos encontramos, é a possibilidade administrativa de ampliarmos a

capacidade de intervenção do Estado no atendimento aos interesses das classes

trabalhadoras.

Na atual conjuntura brasileira, hegemonizada por um projeto de

transnacionalização radical da economia brasileira, conduzido por um pacto de

dominação conservador, não há como operar uma proposta de reforma administrativa

de cunho democrático, os limites são estreitos para mudanças nesse sentido. A

alteração da ordem administrativa passa pelas mudanças de projeto e de pacto de

dominação.

Na medida em que consideramos que a reforma administrativa de cunho

democrático deve estar vinculada à finalidade de universalização e aprofundamento

de direitos, o quadro atual é extremamente adverso. Fiori (1998 e 2001a) e Soares

(2001) mostram que a orientação da política econômica neoliberal inviabiliza qualquer

perspectiva de políticas sociais públicas de caráter universalista125.

125
Soares (2001: 13) apresenta a conclusão de seu estudo da seguinte forma: “A tese central é a de que as possibilidades de
uma mudança no perfil das Políticas Sociais, no sentido da sua maior universalização e progressividade, são incompatíveis
com as atuais políticas de ajuste neoliberal. Por outro lado, caso essa mudança não se efetive, dados os próprios limites
impostos pelas políticas de ajuste, pouco ou nada se pode esperar das tais soluções de tipo ‘alternativas’ propostas por tais
políticas neoliberais. Seu caráter pontual e passageiro, que apela para a ‘solidariedade da comunidade’, não poderá dar conta
dos problemas sociais latinoamericanos, sobretudo dos brasileiros, cuja magnitude e complexidade são enormes” (Soares,
2001: 13). Fiori (2001a: 133) analisa a situação da seguinte forma: “Orientados agora apenas pela bússola dos ‘equilíbrios
macroeconômicos’, esses Estados abandonaram qualquer tipo de política social universalizante, num momento em que a
estagnação ou o escasso crescimento econômico não consegue gerar a quantidade de emprego necessária para absorver a
mão-de-obra-disponível”. Em artigo anterior, o autor já havia concluído: “Tenho hoje uma visão extremamente pessimista sobre
o futuro da nossa política pública e, sobretudo, o futuro das nossas políticas sociais [...]. No meu entender, é que, por um longo
tempo, neste nosso Brasil, as políticas públicas se transformem numa espécie vizinha de um novo tipo de pastoral social”
(Fiori, 1998: 223).

ccclxviii
A luta, a partir do processo de redemocratização recente, foi
estruturar burocraticamente o Estado e democratizá-lo, abrir
espaço para a influência das classes subalternas e suas
organizações (década de 1980). No entanto, a partir da
reestruturação do capital e suas implicações na periferia como
um todo, e particularmente no Brasil, as condições
econômicas/objetivas se reduzem significativamente para
avançar com um projeto democrático.
Além disso, com o advento do neoliberalismo (crítica ao estado e sua forma

burocrática de administração) e sua implementação no Brasil, a tarefa passou a ser,

por um lado, garantir/preservar a estrutura de um Estado forte e presente (traço

construído nos anos 1930 e mantido pela ditadura militar, porém criticado pela

esquerda por ser autoritário, não viabilizar serviços de qualidade, não combater a

desigualdade e fortemente atacado pela hegemonia neoliberal) e, por outro, continuar

a luta pela estruturação de uma ordem administrativa de corte racional-legal,

permeada por instrumento de democratização e transparência das ações do governo

e da administração pública. Ou seja, a tarefa dos setores democráticos se

complexificou.

O contexto atual não apresenta uma conjuntura favorável à democratização do

Estado para a intervenção voltada para o atendimento dos interesses do trabalho,

pois as classes dominantes obtiveram uma hegemonia ampla em torno da concepção

da centralidade do mercado e, dessa forma, não têm precisado agir explicitamente de

forma coercitiva e repressiva para manter seu projeto e privilégios. Sendo assim, se

antes, num contexto mais favorável à democratização (pós- Segunda Guerra), a

burguesia brasileira possuía um horizonte estreito e conservador, na atual conjuntura

a probabilidade de ela possuir uma perspectiva democrática é muito mais reduzida.

Se aliarmos a esse quadro as dificuldades objetivas e subjetivas da classe

trabalhadora, hoje, produzir uma contra-hegemonia, no contexto do capitalismo

flexível e financeiro, torna a situação ainda mais desfavorável.

ccclxix
Assim, mesmo com todos esses fatores adversos e por causa deles, as

propostas de administração democrática, no quadro atual, devem buscar fortalecer os

movimentos de mudança de projeto e de pacto de dominação. Esta deve ser a direção

das propostas a serem implementadas no contexto atual, uma vez que, fortalecer o

Estado e a Burocracia contribui, no plano imediato, para melhorar a gestão e

implementação de ações voltadas para o atendimento das necessidades das camadas

populares, e, no mediato, reforça um movimento contra-hegemônico para reversão do

projeto e do pacto vigentes.

Conforme ressalta Fiori (1995:174-175):

...não haverá progresso enquanto o Estado não recuperar a sua


capacidade política, administrativa e financeira para exercer o
controle eficaz da gestão macroeconômica, prestar os seus
serviços básicos de maneira eficiente e coordenar uma
estratégia sistêmica de recuperação da competitividade
industrial e de produção, armazenagem e transporte de
alimentos de consumo maciço. Ou seja não haverá projeto
progressista viável sem um Estado forte...

Nesse contexto, o que estamos defendendo é uma estratégia de resgate da

função “universalizadora” do Estado e da burocracia como determinação

fundamental para a construção de uma administração pública democrática, tendo

clareza que o Estado e a burocracia não têm condições de realizar efetivamente a

universalidade, enquanto liberdade e emancipação humana. Contudo, num mundo

sob a égide do capital, o Estado e a burocracia são essenciais para contrabalançar

as dimensões anárquicas e desiguais produzidas pelo mercado.

Em outras palavras, o Estado e a burocracia são fundamentais para viabilizar o

desenvolvimento capitalista, portanto para manter a estrutura de desigualdade da

sociedade baseada na produção de mercadorias. Essa é a finalidade primária do

Estado e da burocracia. A universalidade, ou melhor, a ampliação das condições de

vida das classes populares é uma dimensão funcional e contraditória para a

realização dessa finalidade primária.

ccclxx
Sendo assim, para pensarmos em alternativas de gestão pública voltadas para

a universalização e o aprofundamento de direitos, temos de ter clareza que o objetivo

central é a construção do Estado nessa perspectiva. Portanto, é fundamental a

construção de uma hegemonia na sociedade nessa mesma direção.

Na medida em que não foi gestada uma saída democrática para a crise dos

anos 1980, a reforma administrativa sofre os constrangimentos da opção política

econômica e ideológica adotada, a partir da década de 1990. Assim, a possibilidade

para atuar, com mudanças administrativas de cunho democrático, restringe-se.

Portanto, o que se propõe como possibilidade de iniciativas na administração para

reforçar, num quadro adverso, uma perspectiva democrática para a administração

pública, não se configura num projeto radicalmente democrático, pois para esse

empreendimento necessitaria, para ser viável, de uma outra conjuntura. Nesse

sentido, não está presente um projeto socialista para a gestão da coisa pública. Mais

modestas, as propostas aqui elencadas se enquadram, a partir da concepção de

autonomia relativa do Estado e, no seu interior, a autonomia relativa da administração

pública, na identificação de propostas factíveis para simultaneamente avançar de

forma imediata na democratização da administração pública e contribuir,

mediatamente, no fortalecimento de um projeto político orientado para a ruptura com

a “dupla articulação” e com a exclusão das classes subalternas, numa perspectiva

que possa avançar na busca do fortalecimento de um projeto de sociedade que

supere os marcos do capitalismo. Portanto, estamos falando em propostas factíveis

de serem implementadas de forma imediata, que se limitam a contribuir com o avanço

democrático/acúmulo de forças para reverter a hegemonia neoliberal, apesar de possuir

como finalidade ético-política a superação da ordem do capital.

O gestor público que pretenda atuar nessa perspectiva pode e deve cumprir o papel

de ator importante na luta pela hegemonia em torno de uma ordem democrática. Conforme

observa Nogueira (2004: 243):

ccclxxi
O maior desafio dos dirigentes democráticos e dos recursos humanos
“inteligentes”, dentro e fora das organizações – ou seja, também no
Estado e na sociedade -, é dar curso a uma dinâmica de reforma
intelectual e moral que tenha potência para criar novas hegemonias.
A força, as razões administrativas e a exigência de produtividade não
são, de modo algum, o melhor caminho para se chegar a formas
solidárias e democráticas de sociabilidade ou a novos pactos de
convivência. Dirigir ficou muito mais importante que dominar.

Desta forma, concordamos inteiramente com Nogueira (1998) quando afirma que, no

atual contexto, do ponto de vista da gestão e de seus operadores, o essencial numa

proposta de construção contra-hegemônica ao neoliberalismo não está na apreensão de

tecnologias gerenciais, mas sim na qualificação das pessoas para atuar na fronteira entre a

técnica e a política.

Nesse sentido, mais uma vez concordando com a análise de Nogueira (1998: 190-

191), os gestores públicos, em especial os gestores sociais, devem se converter em

lideranças capazes de atuar na administração pública de forma a ampliar as adesões em

torno de um projeto democrático de sociedade e de gestão. Para isso, o gestor público deve

ter competência teórico-metodológica, ético-política e técnico-operacional tanto para analisar

os movimentos da economia, da política, da sociedade e de seus grupos e indivíduos,

quanto para “pesquisar, negociar, aproximar pessoas e interesses, planejar, executar e

avaliar”.

Assim, para finalizar esta tese, levantaremos sugestões que contribuam com

mudanças institucionais adequadas ao perfil de um gestor identificado com a finalidade de

universalização e aprofundamento de direitos, que reforcem a construção de uma

administração pública orientada para o aprofundamento e ampliação de direitos,

principalmente na área social.

Sugestões para fortalecer as resistências ao gerencialismo na administração pública

brasileira

As sugestões aqui apresentadas partem da distinção entre administração

empresarial e administração pública.

ccclxxii
A finalidade de uma perspectiva democrática de administração pública seria a de

constituir uma política pública pautada na conjugação entre accountability, eqüidade e

justiça (Abrúcio, 1997: 31). Nesse sentido, essa perspectiva exige uma institucionalidade

pública que evite a apropriação privada do aparelho público, a atuação auto-referenciada e a

falta de responsabilidade pública (Grau, 1998: 207).

No entanto, cabe frisar que essa política pública, necessariamente, deve estar

orientada na perspectiva da universalização e aprofundamento de direitos. Em nosso

entendimento, é esse aspecto que distingue radicalmente uma proposição democrática de

administração pública de uma abordagem centrada no mercado ou meramente tecnicista.

A universalização e aprofundamento de direitos nos campos civil, político e social é a

finalidade central de uma administração pública democrática. Sendo assim, a “utilização

racional dos recursos” fica subordinada a uma orientação ético-política efetivamente

democrática.

Consideramos, nesse sentido, que a proposta de administração pública democrática

pode ser concebida e conduzida numa orientação de superação do paradigma burocrático,

ou seja, um processo de negação com conservação. Negação de seus aspectos

antidemocráticos: burocratizador, reiterativo e ideológico e conservação da sua dimensão

racional-legal, num movimento de superação desses aspectos para construção de uma

sociedade fundada num patamar mais elevado de sociabilidade, ancorado numa perspectiva

de emancipação humana.

Do ponto de vista técnico-operacional, a gestão pública democrática deve

comungar com a idéia de distinção entre a administração pública e a administração

empresarial, superando o modelo burocrático a partir da introdução de elementos de

democratização, visando alcançar maior agilidade de intervenção e otimização de

recursos para melhor atingir sua finalidade.

Entretanto, concordamos inteiramente com a proposição do Centro

Latinoamericano de Administración para el Desarrollo – CLAD, quando afirma que no

ccclxxiii
caso da América Latina o desafio para a construção de uma nova gestão pública deve

contemplar a tarefa do modelo weberiano de fortalecer um núcleo estratégico

ocupado por uma burocracia profissional (CLAD, 1998). Ou seja, a dimensão

burocrática do Estado deve ser consolidada como pressuposto para viabilização da

democratização da administração, uma vez que só dessa forma se pode almejar a

combinação de inserção e autonomia (“autonomia inserida” – Evans, 1993) do Estado,

elemento necessário para a garantia de uma intervenção democrática.

Todavia, cabe ressaltar que a valorização da administração burocrática não significa

anular a crítica à ordem administrativa burocrática (ver, principalmente Capítulo 1), mas sim

tem o objetivo de destacar o esquematismo do trato da burocracia (Oliveira, 2001), as

limitações da crítica neoliberal bresseriana, destacando a necessidade da dimensão

burocrática para o avanço, no capitalismo, da universalização de direitos. Nesses termos,

torna-se fundamental reafirmar que a organização burocrática, por sua característica

processualista e reiterativa (Paro, 2000) e pela sua função ideológica, que se manifesta

através de sua passagem de mediação à dominação (Tragtenberg, 1992), não pode e não

deve servir de referência para uma perspectiva de gestão que se pretenda radicalmente

democrática. Por fim, convém também sublinhar que a crítica à burocracia, na perspectiva

deste trabalho, não se confunde, em hipótese alguma, com a crítica neoliberal à perspectiva

welfareana de bem-estar e direitos universais.

Esse aspecto é essencial, pois evita a armadilha de cairmos numa posição

conservadora de defesa do paradigma burocrático apenas como forma de reação às

proposições gerencialistas apresentadas pelos vetores políticos neoliberais e pela

intelectualidade vinculada à teoria da escolha pública, os quais insistem na identificação

entre administração empresarial e administração pública. Por outro lado, distingue a

finalidade pautada no aprofundamento e universalização dos direitos do modelo

organizacional burocrático.

Portanto, elaborar uma perspectiva democrática de gestão pública requer

superar, por um lado, o padrão burocrático de administração e, por outro, romper

ccclxxiv
radicalmente com a perspectiva da identidade entre a administração empresarial e

administração pública.

Como analisam alguns autores (Ferlie et al., 1996; Gaetani, 1999; Grau, 1998;

Fedele, 1999; Abrúcio, 1997; Paula, 2005), no contexto da hegemonia neoliberal de

propostas para a administração pública, surgiram também propostas, nem sempre

homogêneas, orientadas para uma finalidade democrática, apesar de partir da crítica à

administração clássica burocrática. Para esses autores, no campo das propostas de

mudança da administração pública, há vertentes democráticas, portanto, propostas

que não se afinam aos preceitos da teoria da escolha pública.

Existe um consenso em identificar como elemento central das vertentes

democráticas uma concepção claramente a favor de uma distinção entre a

administração pública e a empresarial, tendo como fundamento as diferentes

motivações, valores e objetivos que conformam uma e outra administração (Abrúcio,

1997; Kliksberg, 1997; Grau, 1998; CLAD, 1998; Paula, 2005). Portanto, nega-se o

enfoque de mercado presente nas propostas gerencialistas e se reafirma a finalidade

democrática e cidadã da administração pública.

Embora as sugestões possíveis de serem implementadas na gestão pública de

forma imediata sejam encontradas no campo das vertentes democráticas, o que se

percebe é que as propostas tendem a enfatizar os instrumentos de democratização e

de controle da administração pública que precisam ser desenvolvidos; com algumas

exceções126, pouco, ou quase nunca, destacam a importância do fortalecimento da

dimensão racional da estrutura burocrática.

Em nossa concepção os instrumentos de democratização que precisam ser

fortalecidos e ampliados devem ser pensados, no campo da administração pública

brasileira, a partir da estruturação de uma espinha dorsal burocrática.

126
Como destaques dessas exceções podemos registrar os trabalhos de Evans (1993 e 2003) e Nogueira (1998).

ccclxxv
O caráter racional de especialização e conhecimento, além de,

principalmente, o fato de o servidor ser livre, apresentam possibilidades para que a

administração burocrática, na conjuntura atual, contribua para o fortalecimento de

projetos de sociedade contrários à lógica da financeirização e acumulação flexível

do capitalismo contemporâneo, através, por exemplo, da construção e efetivação de

uma perspectiva de administração voltada para o aprofundamento e ampliação de

direitos.

A organização político-institucional (a esfera política, expressão institucional

das lutas de classe) determina as possibilidades de uma direção social mais voltada

aos interesses das classes subalternas a ser implementada pela burocracia pública.

Por outro lado, a existência de uma burocracia pública com a perspectiva de

racionalidade (ver capítulo 1) possibilita maior presença dos “interesses universais”

na esfera do Estado.

Dessa forma, como exposto no capítulo

2, a estruturação de uma burocracia com

sentido “universalista”, além de depender da

existência de um Estado “universalista”, precisa

ser estruturada de forma a potencializar

aspectos de sua racionalidade, como por

exemplo: a) garantia de um certo nível de

“mecanização”; b) o “direito ao cargo”; c)

existência dos princípios das competência fixas,

mediante regras, leis ou regulamentos

administrativos; d) realização da administração

dos funcionários de acordo com regras gerais,

mais ou menos fixas e mais ou menos

ccclxxvi
abrangentes, que podem ser aprendidas; e)

existência de regras impessoais como estrutura

central do poder de mando e obediência, que

envolva tanto o senhor legal típico quanto o

corpo burocrático.

Esses elementos burocráticos

constituem a base sobre a qual pode se

estruturar uma ordem administrativa que

possua como perspectiva a antes mencionada

“autonomia inserida” e que seja permeada por

elementos democratizadores de controle social

e público.

A “autonomia inserida”, conforme

ressalta Evans (1993), articula isolamento

burocrático e inserção na estrutura social

circundante. O “isolamento” se viabiliza pelos

elementos de racionalidade detalhados acima,

que constituem os traços típicos da burocracia.

A “inserção” se apresenta como complemento

do isolamento e possibilita o aumento de

capacidade burocrática para a intervenção na

sociedade. Nas palavras do autor:

A inserção é necessária porque as políticas devem responder


aos problemas detectados nos atores privados e dependem no
final destes atores para a sua implementação. Uma rede concreta
de laços externos permite ao Estado avaliar, monitorar e modelar
respostas privadas a iniciativas políticas, de modo prospectivo e
após o fato. Ela amplia a inteligência do Estado e aumenta a
expectativa de que as políticas serão implementadas. Admitir a
importância da inserção coloca de pernas para o ar os
argumentos em favor da insulação. As conexões com a
sociedade civil se tornam parte da solução em vez de parte do
problema (Evans, 1993: 153).

ccclxxvii
A questão da estruturação de elementos

democratizadores para permear a ordem

administrativa burocrática requer, como vimos,

compreender que se propõe incluir uma

dimensão contraditória à própria lógica

burocrática, visando a um processo de

superação de seus fundamentos. Ou seja, a

proposta se organiza na tensão entre burocracia

e democracia, gerando um espaço de conflitos

no cerne da ordem administrativa. Nesse

sentido, os conflitos administrativos devem ser

vistos como essenciais para a superação da

rigidez e da resistência burocrática a um modelo

mais adequado de gestão pública voltada para a

universalização e o aprofundamento de direitos.

Para não pairar dúvidas acerca da nossa

concepção, concordamos com Behring (2003:

210) sobre a necessidade de não superestimar a

burocracia. Quando defendemos a importância

da burocracia, não é porque ela é “universal” no

sentido hegeliano, nem por ser “racional” sem

referência a valores, no sentido weberiano, mas

por ela apresentar determinações

(conhecimento especializado, seleção pública,

proteção de carreira e condições de trabalho –

carreira, salário e meios de administração) que

reforçam uma possível intervenção do Estado

voltada para os interesses das classes

ccclxxviii
dominadas e exploradas, na medida em que

essas determinações permitem, num quadro de

uma sociedade de relativa socialização do

saber, a composição de uma burocracia

diversificada do ponto de vista teórico e

político, portanto ideológico, tensionando,

dessa forma, a formulação e execução das

políticas públicas, independente da direção

governamental implementada. Ou seja, a

burocracia, além de não ser um mecanismo

operativo perfeito, também não é neutra, ainda

que esteja balizada por regras e normas e deva

obediência à direção governamental.

O que se deve evitar é a postura da

burocracia de se considerar acima das classes

ou, por ser especialista, desconsiderar a relação

com a sociedade (ou pelo menos com

determinados grupos sociais), criando

possíveis anéis burocráticos.

Por isso, como sinalizamos, é

fundamental, simultaneamente, propor o

aprofundamento de mecanismos de

democratização da burocracia para viabilizar

maior controle social e público, como forma de

propiciar transparência e possibilitar maior

participação das classes subalternas na

definição e acompanhamento das políticas

públicas.

ccclxxix
Dessa forma as tecnologias de gestão pública empregadas devem favorecer

essas construções.

Portanto, cabe ressaltar, mais uma vez, que essa abordagem não despreza

as tecnologias gerenciais. Ao contrário disso, ela prima por um profundo

conhecimento dessas tecnologias e de suas potencialidades e limites na

operacionalização das ações sociais, desmistificando o discurso sobre o poder das

técnicas como elemento estratégico de enfrentamento da “questão social”,

recolocando-as em bases realistas como instrumentos potencializadores de melhor

gerência dos serviços sociais.

As tecnologias gerenciais aplicadas na área social devem perseguir tais

objetivos, já que elas não têm poder em si mesmas para reverter a atual situação da

chamada questão social. Todavia, elas podem oferecer estratégias administrativas

que consolidem a relação Estado – sociedade numa perspectiva democrática e que

melhorem a implementação das ações sociais em termos de eficiência, eficácia e

efetividade.

Nesse sentido, consideramos que as determinações da chamada

“administração pública democrática” abrem caminhos para desenvolvermos, com

maior precisão, uma formulação para a gestão pública, principalmente da área

social, implicando uma nova organização institucional.

No entanto, antes de apresentarmos alguns componentes que devem constar

num processo de organização intitucional da gestão social, cabe sintetizar,

brevemente, o diagnóstico que Kliksberg desenvolve da situação na América Latina.

Segundo Kliksberg, o setor social na América Latina é um setor fraco, com

pouca influência sobre as grandes decisões relativas à política pública, tendo que

atuar sobre os dados e as decisões já tomadas em outros níveis da administração

pública. Outro aspecto que o autor destaca é a estrutura organizacional atrasada da


ccclxxx
área social em termos de estabilidade, remunerações adequadas e utilização de

tecnologias avançadas, realidade completamente diferente das estruturas modernas

existentes em outros setores das políticas públicas. A terceira característica que

convém destacar diz respeito ao fato de a política social ser um campo de intensa

luta por poder, suscetível a pressões econômicas e ao clientelismo. O quarto ponto

refere-se ao perfil centralizador, piramidal e formalista das organizações

responsáveis pela área social, o que inviabiliza processos mais intensos de

descentralização e participação. Por último é importante sublinhar que, em que

pesem os esforços realizados, a avaliação das ações sociais ainda são pouco ou

mal realizadas, o que dificulta a aferição dos acertos e desvios da política social

(Kliksberg, 1997: 122 e 123).

Com base nesse quadro, destacaremos quatro aspectos que consideramos

centrais para orientar a organização da administração pública, no intuito de viabilizar

uma gestão democrática, principalmente da área social.

O primeiro refere-se à imprescindível sintonia de orientação que deve ter a

política econômica e a política social de um governo. Ou seja, uma gestão social

democrática necessita do suporte de uma política econômica que privilegie as

demandas pela universalização e aprofundamento de direitos - só assim uma política

social poderá obter êxitos nesse campo. De outra forma, a política social enfrentará

entraves estruturais vinculados à política econômica, não viabilizando a expansão de

direitos, restringindo-se a uma ação meramente compensatória.

Um segundo componente a registrar é o binômio descentralização-

participação. A descentralização não é um valor em si; ela somente se traduz de

forma democrática se expressar um processo de participação e viabilização do

controle das ações públicas e se for operacionalizada pelo governo central,

ccclxxxi
garantindo aos níveis sub-nacionais recursos financeiros, apoio técnico e diretrizes

gerais. Só dessa forma se constrói a possibilidade do desenvolvimento efetivo de

políticas sociais descentralizadas e democráticas, com articulação e organicidade

nacional, que venham a garantir um processo de universalização de direitos sociais.

Portanto, a descentralização não se traduz diretamente em democratização,

nem tampouco em liberalização. A orientação política e as condições institucionais

mediarão a efetivação de um processo de descentralização, ponderando suas

possibilidades para fortalecer ou não o processo democrático.

O desenvolvimento de políticas sociais de forma descentralizada e

participativa nos leva a apresentar o terceiro componente institucional necessário: a

articulação do poder público com as organizações da sociedade civil. Essa

necessidade se apresenta em dois campos. O primeiro refere-se ao processo

democrático e de controle das ações públicas no nível da formulação e fiscalização

da política pública, que só pode ser efetivado através da intervenção de

organizações da sociedade civil nos espaços públicos formais ou informais

constituídos para tal fim. Nesse caso, a autonomia das organizações da sociedade

civil mostra-se essencial. O segundo diz respeito ao campo de execução de serviços

sociais, ou seja, as unidades de serviços sociais devem possuir espaços para a

manifestação dos usuários em relação ao serviço executado. Por outro lado, é

possível também pensarmos em execução de serviços realizados em co-gestão

entre estado e organizações da sociedade civil, na medida da existência na

sociedade de inúmeras instituições não estatais que atuam prestando serviços

sociais127. No entanto, cabe frisar que esse processo de articulação do poder público

com as organizações da sociedade civil não pode retirar do Estado o papel central

127
Sobre esse tema, ver Souza Filho (2003).

ccclxxxii
de responsabilidade sobre o desenvolvimento das políticas sociais, pois ele é o

único capaz de implementar ações que propiciem a universalização e o

aprofundamento de direitos. Em síntese, as organizações da sociedade civil, por um

lado, no campo da execução de serviço, atuam, no máximo, de forma a

complementar a ação do Estado, integrando a rede de unidades públicas de

atendimento. Por outro lado, no campo da formulação, são organismos fundamentais

para o processo de democratização das políticas públicas.

Por fim, a questão do poder presente nos processos de formulação e

execução das políticas sociais é central para compreendermos a complexidade e a

importância dessa ação. Os trabalhadores da política social tendem a não

reconhecer o processo de luta por poder existente no campo das políticas sociais. O

fato de a tradição histórica colocar a ação social no campo da benemerência, da

caridade e da filantropia fez com que um grande número de profissionais da área

social a considere como uma arena constituída de sujeitos sem divergência de

projetos políticos, visto que todos estão envolvidos com a causa social a partir do

seu “compromisso com o pobre”, “com a ajuda”. No máximo, criticam-se os

aproveitadores, os políticos etc. Essa visão ingênua da arena política da política

social dificulta a construção de projetos sólidos e consistentes para a área. Portanto,

considerar a luta pelo poder no campo da política social, mostra-se como

fundamental para a construção de uma projeto político pautado na universalização e

aprofundamento de direitos.

A partir das considerações levantadas neste trabalho, tornam-se nítidas a

necessidade e a possibilidade de pensarmos e agirmos no campo da administração pública

numa perspectiva articulada a movimentos de superação da ordem capitalista. Portanto,

devemos disputar, tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático-político, o

debate e a estruturação da ordem administrativa brasileira, visando contribuir com a

ccclxxxiii
efetivação de perspectiva comprometida com a universalização e aprofundamento de

direitos.

Entretanto, a questão que se coloca é se a possibilidade teórica de articulação entre

administração pública e democratização, que acredito ter sido demonstrada no presente

trabalho, pode ser transmutada em efetividade histórica no caso brasileiro. Articular as

categorias apresentadas neste estudo com o processo histórico de formação,

desenvolvimento e configuração atual do capitalismo, das políticas sociais e da

administração pública no Brasil, certamente propiciará uma análise concreta das

possibilidades e dos limites da transmutação referida acima.

Nesse sentido, e entendendo que o

modelo social democrata de Estado de Bem-

Estar é a referência histórica no capitalismo de

um processo de expansão da universalização

de direitos sociais articulada com certo nível de

liberdade, parece-nos que o processo que

defendemos passa pelas conquistas realizadas

pelos trabalhadores através do chamado welfare

state, porém numa perspectiva de sua

superação, visto que tal processo se

desenvolveu nos limites do capitalismo.

ccclxxxiv
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