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São Carlos
2018
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Universidade Federal de São Carlos
Centro de Educação e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
São Carlos
2018
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3
AGRADECIMENTOS
“Tempo, tempo, tempo / Ouça bem o que eu digo” (Caetano Veloso): foram tantos os
momentos de solidão, introspecção e procrastinação que tiveram como propósito principal a
realização dessa tese. Tudo parecia tão interminável. É preciso tempo para escrever. É preciso
tempo para pensar as escolhas da vida. É preciso tempo para que todo meu percurso
acadêmico se torne legível para mim e para todos que me rodeiam. É preciso tempo. Como
também, é preciso saber o momento de agradecer os privilégios encontrados pelo caminho,
como por exemplo, a oportunidade de desenvolver uma tese em uma instituição pública em
um país de desigualdades sociais consideráveis.
4
Eu gostaria de agradecer também todos os sujeitos de pesquisa da tese, pois sem vocês
seria impossível gerar tantos dados. Eu agradeço, sobretudo, a paciência e confiança em expor
assuntos muitas vezes sensíveis durante longas entrevistas.
5
RESUMO
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ABSTRACT
The main objective of this study was to understand the contemporary regime of subjectivity in
the favelas of Rio de Janeiro, based on the analysis of the processes that involve the
pacification of these territories and the emergence of new forms of the market, having as
empirical cut, the "tourist favela" and the "Self-management". The pacification project
represented a possibility of political and economic management of certain territories chosen
according to the strategic objectives defined by the power apparatus. Control, militarized
surveillance and the consequent domestication of bodies can not be considered the only forms
by which power invested, since pacification also sought to structure a field of action in which
the favelado itself was an active subject of its own transformation by the way of
entrepreneurship. In this sense, the study sought to understand the process of subjectivation of
slum dwellers as something situated in the midst of a complex of apparatuses, practices,
machinations and compositions within which they were constituted and which presupposes
the implication of particular relations with themselves, the research analyzed how the
intersections between a set of devices that propitiated a strategic articulation of the ways of
conduct of others with the forms of self-government. In order to elaborate the study, the
following areas of UPP were taken as object of analysis: Favela Santa Marta, Favela Pavão-
Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras / Morro dos Cabritos and Complexo do Alemão. The
methodology used for the purposes of the thesis could be fulfilled consisted in the elaboration
of a study based on the qualitative analysis, obtaining data through direct observations and
semi-structured interviews. As a result, it was possible to observe that the expansion of
neoliberal logic in the pacified favelas, on the one hand, configured entrepreneurship as a
possibility for the favelados to find their "place in the sun" and on the other intensified
processes related to the individualization of destiny and poor subject, as well as the emptying
of the public sphere and collective projects.
KEYWORDS: Pacification; Tourist Favela; Governmentality; Subjectivity;
Entrepreneurship.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 21– Estátua do cantor Michael Jackson na Favela Santa Marta ................................ 234
9
LISTA DE ABREVIATURAS
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 13
METODOLOGIA ................................................................................................................................ 26
ANEXOS.............................................................................................................................................. 301
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INTRODUÇÃO
No início da década de 1990, uma grande região situada na Zona Norte do Rio que,
posteriormente, viria a ser reconhecida como Complexo do Alemão, deu alguns sinais de que
poderia tornar-se violenta. Na época em questão, quem detinha o domínio do tráfico de drogas
na localidade era o Orlando da Conceição Filho, popularmente conhecido como “Orlando
Jogador”. Alguns moradores retratam ele como o “último romântico” dos bandidos.
Carismático e querido pela população, ele era tido como um bandido atento às questões
sociais da favela. Ainda na década de 1990, o estimado traficante arrendou diversos pontos de
droga em toda a região da Zona Leopoldina1. A escolha por expandir o tráfico de drogas na
região acarretou na necessidade de armamentos mais pesados e de um “exército de jovens”
maior e mais preparado para garantir a proteção pessoal do ex-jogador, como também, dos
seus negócios. Grande parte dos antigos moradores desse território afirma que o “Complexo”
era um antes do traficante e outro depois da sua morte, pois além de perderam alguém que se
preocupava com os problemas sociais do lugar, o seu assassinato ocasionou uma
reconfiguração no comércio de drogas do Rio. A grande visibilidade da região resultou em um
esforço no que tange a produção de um saber técnico necessário para a realização de inúmeras
intervenções dos aparelhos estatais. Tal esforço em relação a produção de saberes ajudou a
delinear a emergência de uma concepção espacial unitária que poderia ser aplicada a um
conjunto de 13 favelas diferentes e contiguas entre si, surge então, o “Complexo do Alemão”2.
Durante a década de 2000, o território situado próximo a vias importantes da cidade ganhou
grande visibilidade nacional pelos constantes conflitos armados e foi erigido pelo governo do
Estado como um grande entrave para a segurança do Rio, assim, “algo precisava ser feito”
(MATTIOLI, 2015, VIEIRA, 2014).
1
A Zona da Leopoldina é uma área histórica da Zona Norte do Rio de Janeiro e compreende os bairros de Bom
Sucesso, Manguinhos, Olaria, Penha, Penha Circular, Vila da Penha, Parada de Lucas, Brás de Pina e Ramos.
Esses bairros abrangiam o caminho da estrada de ferro Leopoldina Railway.
2
O Complexo do Alemão corresponde a um conjunto de favelas situado na Região Norte do Rio de Janeiro. Ele
é composto pelos seguintes territórios: Morro da Baiana, Morro do Alemão, Favela da Alvorada, Favela Nova
Brasília, Favela Pedra do Sapo, Favela das Palmeiras, Favela Fazendinha, Favela da Grota, Favela da Matinha,
Morro dos Mineiros, Favela do Reservatório de Ramos, Favela das Casinhas, Morro do Adeus, Favela Areal,
Morro do Coqueiro. (MATTIOLI, 2015).
13
No dia 25 de novembro de 2010 – na semana anterior a tomada do Complexo do
Alemão pelas forças policiais – o monopólio Globo transmitiu ao vivo a imagem de
traficantes fugindo da Vila Cruzeiro3 para a Favela da Grota4, por meio de uma pedreira que
funcionava no alto da Serra da Misericórdia5. Após a fuga dos bandidos, a Vila Cruzeiro foi a
primeira favela da região Norte do Rio a ser tomada pelas polícias e Forças Armadas. Dias
depois, os agrupamentos policiais adentraram na maior favela da região, o Complexo do
Alemão, e hastearam uma bandeira do Brasil no alto do teleférico – como símbolo da
ocupação do conjunto de favelas. Em seguida, o então comandante-geral da Polícia Militar,
coronel Mário Sérgio Duarte, informou que todo o Complexo do Alemão já estava tomado
pelas polícias militar, civil e federal, além de homens das Forças Armadas – Lula, nos últimos
dias de seu segundo mandato (2007-2011), emprestou ao governo do Rio blindados da
marinha – assim, cerca de 2.600 agentes públicos participaram da invasão ao conjunto de
favelas (GRANJA, 2015, O GLOBO, 2010).
3
A Vila Cruzeiro se refere a uma favela situada no bairro da Penha, Rio de Janeiro.
4
A Favela da Grota é umas das localidades que compõem o Complexo do Alemão (Zona Norte do Rio).
5
O maciço da Serra da Misericórdia localiza-se entre as baixadas de Inhaúma e Irajá, sendo o quarto maior
maciço do Rio de Janeiro. Esse maciço se estende por 26 bairros, são eles: Abolição, Bonsucesso, Cavalcante,
Cascadura, Complexo do Alemão, Engenho da Rainha, Higienópolis, Inhaúma, Irajá, Madureira, Olaria, Penha,
Penha Circular, Piedade, Pilares, Encantado, Ramos, Rocha Miranda, Colégio, Tomas Coelho, Turiaçu,
Engenheiro Leal, Vaz Lobo, Vicente de Carvalho, Vila Kosmos e Quintino Bocaiúva (INSTITUTO TEAR,
2017).
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O termo pacificação, que nunca antes fora utilizado no planejamento urbano em ações
de segurança, acabou sendo naturalizado pouco a pouco em virtude do seu uso recorrente
pelas mídias, aparelhos estatais e moradores. Contudo, o ideal contido no processo de
pacificação não se refere a uma dinâmica inovadora no Brasil, pois se trata de um processo
que atravessou cinco séculos no país – do Brasil colonial ao republicano. Assim, no período
colonial, a pacificação teve como foco os povos indígenas e foi planejada inicialmente como
uma atividade bélica, mas posteriormente, ingressou em uma fase pedagógica e protetora. Na
fase em questão, os religiosos se encarregaram com exclusividade de seu controle, ensino e
catequização. Esses grupos sociais desconheciam o cristianismo, praticavam a poligamia, a
feitiçaria e a antropofagia, em suma, “ofendiam frontalmente” os padrões morais dos
europeus. Em razão disso, eram declarados como inimigos que deveriam ser combatidos e
expropriados violentamente de seus territórios, para em seguida, serem pacificados como
escravos temporários e/ou colocados em aldeamentos. “Embora o padrão de colonização
utilizado não preconizasse o genocídio, este foi em inúmeros casos o resultado concreto desse
modo de gestão de territórios e populações” (PACHECO DE OLIVEIRA, 2014, p. 132).
Destaca-se também, que enquanto bem mercantil, as favelas do Rio de Janeiro fazem
parte do mercado turístico da cidade desde a década de 1990 – quando se passou a levar
turistas à Rocinha durante a ECO 926 – em uma metrópole onde quase todos os espaços estão
disponíveis ao consumo (FREIRE-MEDEIROS, 2009). Contudo, o desenvolvimento dessa
modalidade de turismo ganhou novos contornos a partir da implantação das UPPs nas favelas
cariocas, pois o policiamento permanente trouxe uma “sensação de segurança” a esses
territórios, o que correspondeu a produção de uma espécie de nova embalagem, isto é, a
6
A ECO 92 se refere a Conferencia das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada
no Rio de Janeiro em junho de 1992.
16
“favela-turística-pacificada” (FREIRE-MEDEIROS, VILAROUCA, MENEZES, 2016). A
partir de então, diversas foram as localidades reconfigurados sob a perspectiva turística,
sobretudo, as favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro.
Os espaços marcados pela pobreza, desemprego, exclusão, são alvos tradicionais dos
dispositivos gestionários (TELLES, 2010). Nesse sentido, o regime do governo da pobreza
busca, antes de tudo, esquadrinhar a população, para em seguida, essencializar os recortes
produzidos. A partir dessa classificação é produzida uma valoração seletiva e desigual em
relação aos recortes populacionais elaborados. As características desses recortes têm relação
com a representação da “violência urbana” feita pelos aparelhos governamentais, que
retiraram o centro irradiador da “questão social” contemporânea dos “trabalhadores”,
deslocando-a aos “marginais” e as políticas que pensam a proteção social como pano de fundo
da prevenção à violência; tornando-se plausível, então, a representação moral de um
continuum entre os pobres, que tem em um “polo, o bandido a encarcerar e, no outro, o
consumidor ou o empreendedor a inserir via mercado” (FELTRAN, 2014, p. 498). Assim, um
conjunto de técnicas de estruturação do campo de ação tende a variar “conforme a situação
em que se encontra o indivíduo” (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 216), e no caso do presente
estudo, tais estruturações se traduziram em “modos de pensar e gerir a pobreza e seus
territórios, na perspectiva da inserção, inclusão, autoestima” (RIZEK, 2013, p. 33), ou seja,
em políticas de incentivo ao empreendedorismo.
17
O “empresariamento de si” foi apresentado aos favelados como alternativa de
sobrevivência as limitações e vulnerabilidades próprias do “mundo da pobreza”. Essas
vulnerabilidades podem ser contextualizadas com as novas lógicas da produção flexível, o
declínio do fordismo e a consequente produção de rearticulações dos territórios e espaços por
onde circulam bens, capitais, serviços e também populações, que passaram a situar-se nas
novas realidades do trabalho (e do não trabalho), da informalidade, desemprego prolongado
ou mesmo da exclusão do mercado do trabalho (BARBOSA, 2011, MACHADO DA SILVA,
2002, SANTOS, 2011, TELLES, 2010).
Se, por um lado, o morador de Copacabana deseja ter um favelado para “chamar de
seu”, por outro, os interlocutores da favela apresentaram perspectivas que caminham em
direção oposta, pois desejam constituírem-se enquanto “sujeitos livres”. Isabela, moradora da
Favela Santa Marta, relatou ao pesquisador durante a pesquisa de campo as agruras que
passou ao submeter-se as vontades dos patrões durante os trabalhos desenvolvidos ao longo
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de sua vida e que tornar-se empreendedora representou encontrar sua sonhada liberdade. “O
empreendedorismo é uma possibilidade de você quebrar um pouco todo o trabalho formal. É
um pouco sua carta de alforria [...]não ter ninguém chicoteando você” 7. Ela encontrou no
empreendedorismo uma possibilidade de provocar um tensionamento nas relações de poder,
mas isso necessariamente não pode ser considerado um paradigma de liberdade e autonomia.
Nessa perspectiva, mal sabe Isabela que pensar-se livre e conformar-se enquanto
“senhora do seu destino”, relaciona-se a uma subjetividade que não é fruto de uma
“interioridade intacta”, já que é delineada nos pontos de convergência entre as tecnologias de
dominação e as técnicas de si, ou seja, um jogo de relações norteado por dispositivos de poder
e a produção de governos de si.
7
Entrevista com Isabela. Pesquisa de campo, 2017.
19
A CONSTRUÇÃO DO OBJETO: o governo si mesmo como ponto de aplicação do
governo dos outros
Quem foram os sujeitos da pesquisa? Para responder essa questão, antes de tudo, cabe
aqui ressaltar que o regime de subjetividade pelo qual o estudo se debruçou não abrangeu
todos os sujeitos da favela, mas sim, apenas aqueles considerados “normalizáveis” pelos
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aparelhos governamentais, o que excluiria os favelados considerados violentos – que
notadamente, são controlados por métodos mais severos por serem qualificados enquanto
“inimigos” pelos dispositivos de segurança. “Nem todos os sujeitos políticos são incluídos do
novo regime de subjetividade” (ROSE, 2011, p.231).
(A pacificação) teve um impacto na realização dos eventos, vamos dizer assim, meio
que uma proibição das UPPs em fazer os eventos. As pessoas tiveram que se
transformar, evoluir. Vou dar um exemplo bem claro, a senhora que fazia uma
quentinha e vendia para tráfico de drogas, não podia mais vender aquela quentinha
para o tráfico de drogas, ela teve que fazer o quê? Dar um jeito de fazer com que a
quentinha chegasse ao pessoal da Zona Sul do Rio de Janeiro, porque o traficante
ficou enfraquecido, têm menos pessoas trabalhando com o tráfico, como é que ela
vai vender as quentinhas dela? Quem é que vai comprar? Então ela teve que se
reinventar, fazer o possível para as quentinhas chegarem ao pessoal das Furnas – eu
digo Furnas de energia – ela teve que fazer a marmita chegar lá e ela consegue
entregar lá, então para isso ela precisou fazer o que? Se reinventar, esse é um
exemplo clássico e claro. Todo mundo teve que se reinventar de alguma forma. Por
exemplo, o turismo não existia, foi outra coisa, me reinventei e fui trabalhar como
guia de turismo, entendeu? O cara que não fazia caipirinha nenhuma, só vendia
cachaça, vou fazer o que? Vou fazer caipirinha de morango, de abacaxi, maracujá e
de melancia, que o gringo se amarra. Aí o público dele muda, começa a cobrar um
valor mais alto, consegue arrumar mais dinheiro, consegue ter um rendimento maior.
O que ele fez? Se reinventou. Então é uma reinvenção do seu negócio (Entrevista
com Carambola. Pesquisa de campo, 2017).
Além da vendedora de quentinhas que tinha como clientes os traficantes, e que com a
implantação da UPP teve que procurar clientes fora da favela, muitos foram os processos de
“invenções de si” a partir do advento da pacificação. O próprio Carambola exemplifica esse
panorama, de ex-assaltante e presidiário, tornou-se um “empreendedor de sucesso” a partir do
momento em que participou de programas governamentais de incentivos ao turismo que
surgiram com o projeto de pacificação. A tese também relata outras histórias, como: a dona
do Bar que após a polícia proibir a realização de bailes funks teve que mudar de ramo e abrir
uma loja de souvenir para turistas; o “empreendedor meia-boca” que passou a ser um
“empreendedor turbinado”, pessoas que trabalhavam com carteira assinada e se “inventaram”
enquanto empresários ao abraçarem o discurso da “janela de oportunidades” que a presumida
paz trouxera a favela; a ex-benificiária do Bolsa família que hoje afirma: “Agora eu sou
21
empresa”, entre outros. Em suma, com a pacificação diversos sujeitos de favela tiveram que
(re)inventar-se.
A motivação inicial desse estudo residiu no fato do pesquisador ter sido professor
substituto no Curso de Turismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em 2012 e
concomitante a esse trabalho, ter exercido a função de tutor a distância do Curso Tecnológico
de Turismo coordenado pelo consórcio CEDERJ e que tem como sede o CEFET-Maracanã.
Nesse local, o pesquisador encontrou uma figura relevante na escolha do objeto de estudo.
Carambola – nome fictício, guia e morador da Favela Santa Marta – foi à sede do curso a
distância “oferecer” seus serviços de guiamento juntamente com o seu então sócio, com
objetivo de revelar aos alunos uma nova perspectiva da cidade, isto é, a “favela turística”.
A intervenção ativa dos aparatos de gestão no meio social teve como propósito a
“condução de condutas” sob o prisma da governamentalidade. Michel Foucault (1993)
evidencia que o ponto de contato do modo como os indivíduos são manipulados e conhecidos
por outros se encontra vinculado ao modo como se conduzem e se conhecem a si próprios.
Pode-se nomear isso de governo. Governar as pessoas no sentido restrito do termo, tal como
se afirmava na França no século XVI, em relação ao governo das crianças, governo das
famílias ou governo das almas, não representava uma maneira de forçar as pessoas a fazer o
que o governador quer. É sempre um difícil e versátil equilíbrio de complementaridade e
conflito entre técnicas que asseguram a coerção e processos por meio dos quais o “eu” é
construído e modificado por si próprio.
23
No texto intitulado “Sobre o começo da hermenêutica do sujeito”, Michel Foucault
avalia que quem quiser analisar a genealogia do sujeito na civilização ocidental, “tem que
levar em conta não só as técnicas de dominação, mas também técnicas de si. Digamos: ele
tem que levar em conta a interação entre esses dois tipos de técnicas”: técnicas de dominação
e técnicas de si (FOUCAULT, 1993, p.204). Toda essa dinâmica de técnicas foi possível ser
evidenciada com o advento de uma racionalidade neoliberal, isto é, a emergência de algo que
estrutura e organiza não só a ação dos governantes, como também, a conduta dos governados
(FOUCAULT, 2008b).
O que está em jogo [...] é a construção de uma nova subjetividade, o que chamamos
de “subjetivação contábil e financeira”, que nada mais é do que a forma mais bem-
acabada da subjetivação capitalista. Trata-se, na verdade, de produzir uma relação
do sujeito com ele mesmo como um “capital humano” que deve crescer
indefinidamente, isto é, um valor que deve valorizar-se cada vez mais (DARDOT,
LAVAL, 2016, p.31).
24
Em suma, o projeto de pacificação representou uma possibilidade de gestão política e
econômica de certos territórios escolhidos conforme os objetivos estratégicos definidos pelos
aparelhos de gestão. O controle, a vigilância militarizada e a consequente domesticação de
corpos não podem ser considerados as únicas formas pelas quais o poder investiu, já que
pacificação também buscou estruturar um campo de ação em que o próprio favelado fosse um
sujeito ativo de sua própria transformação pela via do empreendedorismo.
25
METODOLOGIA
A pesquisa foi desenvolvida nas seguintes áreas com UPP: Favela Santa Marta,
Complexo do Alemão, Favela Pavão-Pavãozinho/Cantagalo e Morro dos Cabritos/Ladeira dos
Tabajaras. A Favela Santa Marta (ver Figura 01) se encontra situada na Zona Sul, no bairro de
Botafogo. Refere-se a uma favela de fácil acesso, com diversas formas de transporte a
circundando. Para entrar na favela é preciso percorrer a Rua São Clemente ou andar por uma
estrada asfaltada que desemboca no topo da favela. Com a instalação do plano inclinado –
também chamado de “bondinho” pelos moradores – a locomoção pelo território se tornou
mais simples, sendo de grande utilidade, sobretudo, no transporte de materiais de construção e
compras de supermercado, que normalmente são alocadas em um compartimento específico.
Barbosa (2015) destaca que a construção do bondinho acarretou em algumas remoções de
moradores que residiam no trajeto de seus trilhos. Esses moradores foram removidos para
casas construídas pelo governo fluminense em um local muito longe de onde moravam
anteriormente, assim, esse processo de remoção teve certa resistência à época. Conforme
Censo do IBGE (2010), a favela possui aproximadamente cinco mil habitantes.
26
Sabrina Ost e Sônia Fleury (2013) avaliam que pelo fato de a Favela Santa Marta ser
considerado uma favela de pequeno porte, como também, por estar situada em área nobre e ter
sido o primeiro território a receber uma UPP, tornou-se uma localidade privilegiada no
tocante a atuação e intervenção de diversos atores, inclusive de pesquisadores. Conforme as
autoras, a Favela Santa Marta foi considerada por estudiosos e até pelos moradores como
favela vitrine/modelo do ordenamento pacificador. Essa favela se constituiu no núcleo central
da pesquisa, sendo que foi a primeira localidade que o pesquisador teve contato por meio de
Carambola (morador e guia de turismo). O significativo número de empreendedores que
surgiram no território após a pacificação sinalizou ao pesquisador que o Santa Marta seria o
local ideal para a realização da pesquisa.
27
o apelido de Alemão, embora fosse polonês. Daí surgiu o nome da localidade (O GLOBO,
2014).
O Complexo do Alemão (ver Figura 02) foi escolhido para participar da pesquisa por
tratar-se de uma favela que simbolizava o processo de “reconquista de territórios”8 por parte
do governo fluminense, sendo que após a pacificação e, por conseguinte, a instalação de um
teleférico, a localidade passou a receber muitos visitantes. O teleférico se trata de uma das
principais vias de acesso, já que se encontra interligado à rede de trens e metro. Quando a
pesquisa de campo foi iniciada no Complexo do Alemão, em 2015, o turismo se encontrava
em fase descendente, sendo que muitos guias de turismo se recusaram a agendar passeios,
pois os confrontos armados entre policiais e traficantes passaram a acontecer de modo cada
vez mais frequente.
8
O controle territorial por grupos armados e a alta incidência de homicídios estiveram entre as justificativas do
governo fluminense para a pacificação do Alemão.
28
Figura 02 - O Complexo do Alemão
Na imagem à esquerda é possível avistar o teleférico do Alemão (que atualmente se encontra paralisado). À
direita, destaca-se uma imagem dos morros que circundam o território.
Fonte: Arquivo Pessoal e Rádio Piratininga.
Esse conjunto de favelas fez parte do estudo em virtude do seu potencial turístico e
sobretudo, por ser um território em que inserção do campo poderia ser feita facilmente por
meio da hospedagem em um hostel situado na entrada da Favela Pavão-Pavãozinho. A
hospedagem possui fácil acesso aos bairros de Ipanema e Copacabana, sendo possível
deslocar-se a partir desses bairros a outros locais de pesquisa. O referido hostel possui uma
grande estrutura, sendo que é muito apreciado por viajantes do mundo inteiro, por isso,
tornou-se o principal ponto de captação de entrevistas com turistas estrangeiros.
29
. Em relação à Favela Morro dos Cabritos/ Ladeira dos Tabajaras, para adentrar nesse
território é preciso acessar a Rua Siqueira Campos – que fica situada na área central do bairro
de Copacabana – e percorrer até o final da mesma, para em seguida, andar sob uma pista
muito íngreme. Ela possui subidas difíceis de percorrer, em virtude disso, o serviço de kombi
e moto-taxi é muito requisitado. O nome Morro dos Cabritos faz referência a uma formação
rochosa que compreende o Parque Natural Municipal da Catacumba e logo a baixo dele se
encontra situado um grupo de habitações que recebeu a alcunha de Ladeira dos Tabajaras,
sendo que possui aproximadamente 1.000 habitantes, conforme dados do IBGE (2010).
A Favela Morro dos Cabritos/Ladeira Tabajaras foi escolhida pelo pesquisador após a
realização de uma consulta feita no guia turístico de favelas do SEBRAE e pelo fato de estar
situada no bairro de Copacabana (o torna o acesso a ela mais fácil). Contudo, a escolha dessa
favela não foi bem-sucedida pois ela possui poucos empreendedores turísticos/guias. Uma
cooperativa de turismo que fora constituída para “surfar na onda da pacificação” praticamente
não realiza passeios turísticos e muitas pessoas ligadas a ela, hoje, exercem atividades
correlatas para o prover o sustento. Além disso, a ocorrência de tiroteios – de acordo com
relatos dos moradores – no período da pesquisa de campo impossibilitou o prosseguimento da
pesquisa.
A imagem à esquerda apresenta uma imagem da Favela Pavão-Pavãozinho e à direita, situa-se o Morro do
Cabritos/Ladeira dos Tabajaras.
Fonte: Panoramio (2012).
30
Em suma, a realização da pesquisa nos territórios do Complexo do Alemão, Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo, Morro dos Cabritos/Ladeira dos Tabajaras não tiveram os frutos que o
pesquisador desejou pelo enfraquecimento do “turismo de favela” nessas localidades, que teve
como fator principal a “volta dos tiroteios” de modo mais frequente. Nesse sentido, foi muito
difícil achar empreendedores que trabalhassem com turismo, sendo que grande parte deles
apenas exerciam alguma atividade na área na condição de “bico”. Pensou-se também em
realizar a pesquisa na Rocinha, em virtude da sua potencialidade turística, entretanto, os
frequentes tiroteios no local combinados com ocupação das forças armadas tornaram inviáveis
a realização de um estudo mais aprofundado no local, contudo, ao menos foi possível realizar
uma visita exploratória na favela e experenciar o jeep tour.
31
PERSPECTIVAS TEÓRICAS E A PESQUISA EMPÍRICA
“A sociologia é uma ciência empírica. Nenhuma dúvida com relação a isso. Não existe
conhecimento novo e original possível sem acesso às condições de vida das pessoas comuns
como todos nós. No entanto, sem reflexão teórica que possa, antes de tudo,” informar e dirigir
a pesquisa empírica e depois reconstruí-la dentro de um contexto que refaça o mundo social
de modo novo e surpreendente, é impossível ter conhecimento novo e crítico sobre a realidade
que todos os grupos sociais compartilham em diferentes graus de opacidade (SOUSA, 2009,
p.385).
Foucault (2003) considera que o método deva ser escolhido caso a caso, a partir da
construção do problema ou objeto da pesquisa. Este último, deve conduzir o pesquisador na
seleção das estratégias, instrumentos e arranjos. Em virtude disso, o método deve ser
compreendido como caminho para se chegar a um resultado, não é um a priori da pesquisa.
Pelo contrário, o método é algo que pode ser revisto, retificado ou alterado durante o processo
da pesquisa (FERREIRA, 2015). O autor não utiliza um método único em sua obra, pois varia
os instrumentos utilizados conforme os objetos da pesquisa,
32
bons e maus, fabricados por mim. Eles são falsos, se meus instrumentos são falsos...
Procuro corrigir meus instrumentos através dos objetos que penso descobrir e, neste
momento, o instrumento corrigido faz aparecer que o objeto definido por mim não
era exatamente aquele. É assim que eu hesito ou titubeio, de livro em livro.
(FOUCAULT, 2003, p. 229).
De 1970 até sua morte em 1984, Michel Foucault ocupou a cadeira relacionada à
“História dos Sistemas do Pensamento” no Collège de France. Em suas palestras públicas
expostas todas as quartas-feiras, do início de janeiro até o final de março / início de abril, ele
relatou seus objetivos de pesquisa apresentando material inédito e novas ferramentas
conceituais e teóricas de pesquisa. Grande parte das ideias desenvolvidas lá foram
posteriormente tomadas em seus vários projetos de livros. A morte precoce e inesperada de
Foucault fez com que duas das principais séries de palestras permanecessem praticamente
inéditas até publicação posterior, que são: as palestras realizadas em 1978, “Segurança,
Território e População” e em 1979, “O nascimento da Biopolítica”. Essas palestras
evidenciaram a genealogia do Estado moderno. O filósofo francês desenvolveu o conceito de
governo ou governamentalidade como uma diretriz de suas análises feitas por meio de
reconstruções históricas que abrangeram um período que possui como ponto de partida a
Grécia Antiga e que se estendeu até a racionalidade neoliberal (LENKE, 2001, FOUCAULT,
2008b).
33
referentes ao objeto empírico, o estudo privilegiou estudos de autores que dialogam com a
perspectiva foucaultiana, como por exemplo, Nicolas Rose, Cristian Laval e Pierre Dardot.
“Decifrar uma camada de realidade de maneira tal que dela surjam as linhas de força e
de fragilidade, os pontos de resistência e os pontos de ataque possíveis, as vias traçadas e os
atalhos. É uma realidade de lutas possíveis que tento fazer aparecer” (FOUCAULT, 2003,
p.278). Assim, a pesquisa buscou evidenciar as diversas relações de poder existentes nas
favelas pacificadas, destacando assim, os objetivos estratégicos de um conjunto de
dispositivos e, por conseguinte, as relações de forças de pequenos enfrentamentos, micro lutas
e resistências.
34
AS SINGULARIDADES DO PROCESSO DE GERAÇÃO DE DADOS NA FAVELA-
TURÍSTICA-PACIFICADA
A entrada no campo sempre ocorreu por meio de duas formas: contato com os guias de
turismo ou hospedagens em hostels9. A Favela Pavão-Pavãozinho acabou se transformando
no local em que o pesquisador mais se hospedou, pois sua localização em Copacabana pode
ser considerada privilegiada, com fácil acesso por meio de metrô e ônibus a outras favelas do
Rio. Na favela em questão, a hospedagem sempre foi realizada em um hostel que fica situado
na Rua Saint Roman, via de acesso principal do morro. Também foram feitas hospedagens em
um hostel situado no Morro dos Cabritos/Ladeira dos Tabajaras. Nas outras favelas, os
contatos foram feitos por meio de visitas que tiveram o intuito de investigar as semelhanças,
especificidades e consequências do turismo nessas localidades.
Zaluar (2014) destaca que não se pode tratar a favela como uma entidade que
representa a coletividade homogênea, consensual e una. De fato, há ao contrário, uma grande
diversidade, pois a população está segmentada por gênero, raça, idade, religião, renda,
escolaridade, profissões, posição ocupacional e até mesmo estado de origem.
9
Hostel: sinônimo de albergue. O estabelecimento costuma disponibilizar quartos compartilhados ou
individuais.
35
perspectiva distanciada, possui uma relação de correspondência com a perspectiva
antropológica, pois:
Nessa perspectiva, o que fica marcante é um eterno flerte com o risco. Mas quando é
possível perceber que se está próximo a uma favela? Percepções subjetivas indicam a
existência da favela logo na rua de acesso (no caso, a que pertence ao asfalto). Não se trata de
uma questão meramente geográfica e sim a subjetivação de um novo ordenamento social que
se avizinha, e que não se limita a favela. O que está próximo à favela incorpora-se a sua
dinâmica social. Nas visitas à Favela Santa Marta, foi possível “perceber a favela” na medida
em que os pés do pesquisador foram colocados na Rua São Clemente, o logradouro que dá
acesso ao território. A favela costuma “derramar-se” em direção as ruas do entorno. Assim,
quando se entra na Favela Pavão-Pavãozinho, por exemplo, a favela é revelada logo na Rua
Sá-Ferreira – via de acesso situada em Copacabana – por meio de brechós, bares, barracas
com frutas, sirene da polícia, entre outros.
36
Quando se adentra à favela, um distinto ordenamento social é destacado. É possível
perceber um “choque social” quando se sai dos bairros nobres e repentinamente, adentra-se
em uma favela. Assim, os policiais portando fuzis, as construções precárias, o lixo espalhado
pelas vielas, o cheiro de dejetos caninos e a dificuldade em andar pelas ladeiras íngremes,
mostram a todo instante que o pesquisador está em “espaços outros” para “pessoas outras”,
isto é, o que Foucault (2003) conceitua como heterotopia. As favelas pacificadas enquanto
“heterotopia urbana” possui as suas próprias regras, normas que circunscrevem a favela, mas
também, as ruas de acesso.
Sinto que minha vida fica muito frágil quando entro na favela. Não porque tenho
medo das pessoas, que as considere “perigosas”. Mas a favela é um notório espaço
de fragilização de vidas. Como eu sinto quando saio? É sempre um alívio, que tudo
correu bem. Não há garantias de que ao entrar na favela não serei alvo de um
iminente tiroteio. Aliás, na favela não há garantia de nada. A entrada no Complexo
do Alemão foi a mais difícil de todas, pois os próprios moradores não me
aconselhavam andar pelas ruelas. Apenas me foi recomendado circular nas
proximidades do teleférico (Diário de Campo. Pesquisa de Campo, maio, 2016).
37
sobretudo, a presença de policiais que circulam pela favela com fuzis. Mas quando o
pesquisador adentrava esses territórios com um grupo de turistas – embora ainda esteja
fazendo observações do campo – o estado anímico mudava completamente, a tensão dava
espaço para desconcentração, pois se iniciava uma interação com turistas e moradores,
desfrutando assim, das coisas interessantes que é possível encontrar-se no referido espaço
social.
O olhar para as coisas negativas modificava-se para dar atenção aos aspectos
positivos, como a maravilhosa vista para o mar no Pavão-Pavãozinho/Cantagalo ou uma
simples ida ao Santa Marta Burguer 10. Muitos turistas também se transformaram em amigos
do pesquisador. Enfim, as ambivalências dispostas na confluência entre a tensão e o lúdico,
perfizeram as sensações do pesquisador que teve uma favela pacificada – porém,
reconfigurada como ambiente turístico – como campo de pesquisa.
10
Refere-se a uma hamburgueria que imita de forma quase fidedigna os lanches do Mc Donalds.
38
Quadro 1 – Entrevistados / Sujeitos de pesquisa
39
Rodolfo Empreendedor guia Ladeira dos Tabajaras
2015 PACIFICAÇÃO E SUAS TENSÕES (sem tiroteios no Santa Marta e tiroteios ocasionais na
Ladeira do Tabajaras)
40
2016 PACIFICAÇÃO E SUA INSTABILIDADE (tiroteios ocasionais na Favela Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo e tiroteios frequentes no Alemão)
Loreto, Rogério, Silvana, Jane, Juca, Romildo, Pierre, Müller, Ibarra, Laura, Genaro, Jamel, Cissy,
Chrittofer, Carlitos, Alessandra
Loreto e Carambola
41
Nas entrevistas realizadas com moradores que não desempenhavam nenhum tipo de
atividade empreendedora foi possível perceber uma grande hesitação nas respostas em relação
ao que acontecia na favela. Era possível perceber no olhar dos mesmos a apreensão de se falar
“algo comprometedor” – relacionado ao tráfico e as polícias – e então, como praxe, muitas
vezes eles forneciam respostas evasivas.
Toda essa preocupação em dar entrevistas pode ser verificada na passagem transcrita
abaixo. Ela expõe uma conversa que o pesquisador teve com dois moradores da Favela Santa
Marta que são guias de turismo. Nesse diálogo, eles revelam o temor que possuem em
conceder entrevistas. A guia Sandra (nome fictício) inclusive destacou a reprimenda que
sofreu de pessoas “envolvidas” com o tráfico de drogas por ter concedido uma entrevista
considerada inadequada na visão dos traficantes.
Por fim, destaca-se também, que a racionalidade neoliberal tem efeitos nos sujeitos de
pesquisa, como no pesquisador, pois como o mercado foi constituído em agente disciplinante
para todas as relações sociais e domínios humanos, como a academia, o pesquisador,
sobretudo ao final do estudo, passa a “submeter-se ao princípio de accountability, isto é, à
necessidade de “prestar contas” e ser avaliado em função dos resultados obtidos” (DARDOT,
LAVAL, 2016, p. 201).
43
ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS
Por fim, o quarto e último capítulo, “A invenção das novas subjetividades nas
favelas cariocas: os empreendedores da “favela turística”, enfatizou que o dispositivo da
pacificação – tanto em sua dimensão militar quando em sua dimensão mercadológica – atuou
na estruturação do campo de ação dos favelados e funcionou como um catalizador da
racionalidade neoliberal ao operar na otimização dos processos de subjetivação da forma-
empresa nos “territórios da pobreza”. Posteriormente, o capítulo destacou que concomitante a
emergência do “ethos empreendedor” os projetos coletivos que visavam a transformação
social foram paulatinamente esvaziados em detrimentos de projetos individuais baseados no
“empresariamento de si”. Ao se transforarem em empreendedores, os moradores de favela
passaram a enfrentar as mais variadas dimensões do risco, desde os riscos vinculados à
abertura e desenvolvimento de negócios, até os riscos que atingem a integridade física. O
último capítulo ainda descreveu o papel dos empresários locais na produção da favela turística
e como os mesmos utilizam o “saber especializado” que possuem em relação ao conflito
social para conformar a favela em um sempre renovado produto turístico.
45
CAPÍTULO 1
46
mais jovens fossem tratados como “inimigos” a serem combatidos, intensificando assim, o
processo de acumulação social da violência.
Em seguida, o estudo destacou que para que a imagem de uma cidade violenta e
empobrecida fosse desconstruída foi moldado a partir da década de 1990, um projeto de
cidade que visava enquadrar o Rio de Janeiro como “Cidade empreendedora” – apta para
receber grandes eventos, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos – mas para que esse
plano tivesse êxito seria necessário a implantação de políticas de segurança que visassem a
pacificação dos “territórios da violência”. Tais políticas resultaram em um redirecionamento
das práticas dos aparelhos estatais em relação ao “problema favela”.
47
1.1 As favelas cariocas: um século de ordenamento e controle.
Na presente seção, buscou-se evidenciar que as favelas cariocas foram formatadas por
um quadro extremamente complexo que é decorrente de condicionantes históricos,
socioeconômicos, discursos e inúmeras ações dos aparelhos governamentais. Assim, foi
possível evidenciar que a favela, portanto, não é a consequência do abandono dos aparelhos
estatais “porque ela emerge na geografia da cidade como objeto de governo, como produto
histórico de uma construção epistemológica, subjetiva, técnica, jurídica e institucional”
(ALMEIDA, 2016, p. 471). Compreender a singularidade da constituição histórica das favelas
é de fundamental importância para entender as ações que dão integibilidade ao projeto de
pacificação e seus efeitos enquanto mecanismo de gestão da vida e readequação de sujeitos.
Michel Foucault (1995) considera que o sentido histórico deve ter apenas a acuidade de um
olhar que dissocia, dispersa, deixa operar separações e margens. Desse modo, não se pretende
apresentar referências minuciosas da constituição das favelas cariocas, mas remontar a teia de
relações que deu visibilidade a esse território, na qual a favela se inseriu como um objeto e
foi constituída enquanto um espaço que necessitava ser governado.
Durante o período que abrange a segunda metade do século XIX e primeiras décadas
do século XX, o Brasil passou por modificações de ordem econômica, política, social, cultural
e espacial. Como consequência dessas transformações estruturais começou a surgir uma
cidade industrial com aspectos de moderna metrópole capitalista. Pode-se destacar que as
mudanças foram em decorrência da substituição do trabalho escravo pelo assalariado, da
formação de mercados, da decadência da cafeicultura fluminense, do desenvolvimento dos
setores secundário e terciário da economia, e por fim, da definição de novas categorias sociais
48
e da substituição de elites no poder, com a queda do império e a proclamação da República
(VAZ, 1994).
Essa habitação urbana era considerada o lócus da pobreza no século, espaço onde
residiam uma parte dos trabalhadores da cidade e se aglutinavam em grande número, vadios e
malandros, a chamada “classe perigosa”. Caracterizado como verdadeiro “inferno social”, o
cortiço era tido como antro não apenas da vagabundagem e do crime, mas também, das
epidemias, constituindo uma ameaça às ordens moral e social. Percebido como espaço – “por
excelência” – do contágio das doenças e do vício, acabou sendo alvo de denúncia e
condenação pelo discurso médico higienista (VALLADARES, 2005).
Apesar de existir esparsas informações sobre a fase inicial das favelas, pois elas
estavam ausentes das estatísticas e dos mapas do município – não sendo, portanto,
49
individualizada pelos recenseamentos, assim, para os poderes públicos, as favelas
simplesmente não existiam – considera-se que o processo de constituição das favelas cariocas
teria sido originado pelo combate aos cortiços da cidade, como também, estaria relacionado à
vinda de um grande contingente de soldados que lutaram na Guerra de Canudos (1896-1897)
e que construíram seus casebres no Morro da Providência, atrás do antigo Ministério da
Guerra (VAZ, 1994, FEDERICK, 2005, ABREU, 1994).
O termo “favela” faria referência a Canudos, pois naquela região do sertão do estado
da Bahia existia um morro denominado Favella, talvez porque o mesmo fosse revestido por
uma espécie de planta cuja designação seria justamente “favella” (Jathropa phyllanconcha)
uma euforfiácea muito comum nas regiões do Nordeste e Sudeste do Brasil. Assim, o local
onde se instalaram os soldados passou a ser conhecido como Morro da Favella. A partir da
segunda década do século XX, essa expressão passou a nomear todas as habitações precárias
do mesmo tipo distribuídas nos diferentes morros da cidade (GONÇALVES, 2013,
VALLADARES, 2005).
Com a demolição do famoso cortiço Cabeça de Porco (ver Figura 05) em 1890, em
nome da higiene Pública, somada as reformas do prefeito Pereira Passos, o déficit
habitacional para as camadas pobres, que já era grande, aumentou de maneira considerável na
antiga capital federal. Com o “bota abaixo”, em um curto período de dez anos, surgiram
diversas favelas na paisagem carioca. “Em comum, elas apresentavam não apenas a
localização nas encostas dos morros do Rio de janeiro, mas também, a proximidade de
importantes locais de emprego, tanto no centro como nos bairros residenciais” (FENERICK,
2005, p. 104. Os problemas anteriormente atribuídos aos cortiços, como insalubridade e
péssimos hábitos de higiene, foram redirecionados para as favelas, muito em função da
analogia atribuída pela sua composição social (SOUZA e BARBOSA, 2014).
50
Figura 05 – Imagem do cortiço Cabeça de Porco e casas no Morro da Providência
À esquerda, foto do cortiço denominado Cabeça de Porco que chegou abrigar mais de quatro mil pessoas. Na
foto ao lado, tem-se a imagem das primeiras construções feitas no Morro da Previdência em 1905.
Fonte: O Globo
A partir do momento em que esse favelado é visto como parte de um corpo social, de
um a população, a racionalidade governamental passou a observar os fenômenos mais gerais
como as condições sanitárias da cidade e o fluxo das infecções e contaminações
(FOUCAULT, 2008b). No início século XX, intervenções estatais foram feitas nos
“territórios da pobreza” com o intuito de se produzir “sujeitos higienizados”. Essas
intervenções começaram com a campanha de saneamento realizada na capital fluminense –
iniciada no dia 04 de novembro de 1904 – após a aprovação no Congresso Nacional da Lei de
Vacinação Obrigatória. Com amparo legal, Oswaldo Cruz elaborou um regulamento que
objetivou combater a febre amarela, peste e varíola. Desse modo, a população deveria ser
submetida por uma vacinação maciça por um período de seis meses. O não cumprimento do
regulamento resultaria no pagamento de multas e restrições ao acesso a emprego público,
direito a voto, permissão para casamento, entre outros. Entretanto, a população se rebelou
contra a vacinação obrigatória, evidenciando assim, o seu desagrado quanto às medidas
repressivas. Destaca-se então, que o plano de vacinação transbordava a questão concernente
ao controle de doenças, pois ele visava inaugurar uma nova racionalidade urbana – ao destruir
cortiços e casebres em nome da higiene pública – buscava-se o reordenamento espacial do
Rio por meio da expulsão dos pobres das áreas centrais da cidade (ABRÃO, 1998).
51
A figura abaixo – ver Figura 06 – representa de maneira emblemática os atos
institucionais do período em questão. No grande pente que Oswaldo Cruz carrega, está escrito
o termo “Delegacia da Higiene”, denotando assim, o papel policialesco que a medicina
enquadra as camadas populares quando quer tratar as enfermidades desse grupo social. O
médico é retratado com um leve sorriso ao “higienizar” o homem negro, enquanto este último
é apresentado com uma expressão resignada, com os olhos cansados, sendo que em sua
enorme boca é encontrada expressão Favella, em referência ao antigo Morro da Favella
(atual Morro da Previdência).
Foucault (1974) salienta que a medicina moderna – que nasceu no século XVIII –
representa uma medicina social e não uma medicina individual que trata apenas das relações
de mercado estabelecidas entre médico e paciente. Assim, a medicina moderna seria uma
tecnologia do corpo social. Ele apoia a hipótese de que o capitalismo não significou a
52
transmutação da medicina coletiva para a particular, mas exatamente o contrário. O
capitalismo desenvolvido entre o final do século XVII e começo do século XIX
primeiramente socializou um objeto, que era o corpo, em função da força produtiva. O
controle da sociedade não pode ser feito apenas pelo domínio da consciência ou ideologia,
mas por meio do corpo. “Para a sociedade capitalista o que era importante era o biológico,
somático, o corpóreo antes de qualquer outra coisa. O corpo é uma realidade biopolítica. A
medicina é uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT, 1974, p. 05, tradução do autor).
53
formalização da força de trabalho era condição primordial para o acesso ao benefício da
moradia popular (COSTA, 2015). Abreu (1994) salienta que embora os favelados tivessem
tido benefícios na gestão de Getúlio Vargas, as favelas continuaram a serem consideradas
como habitat urbano temporário, razão pela qual se mantiveram ausentes das estatísticas e dos
documentos oficiais da cidade.
Por outro lado, vale a pena destacar da mesma forma como no restante da cidade, os
moradores das favelas, historicamente, manifestavam-se como sujeitos urbanos. Expressam-se
com voz (e voto, em determinados períodos) e ativaram a sua ação a partir de manifestações
culturais, artísticas e políticas – como a resistência aos despejos, e posteriormente à remoção.
Isso ficou visível em especial nos anos iniciais da década de 1930, quando organizaram
comitês para reivindicar junto ao prefeito Pedro Ernesto (1931 - 1936) melhorias urbanísticas
e sociais (PEREIRA DA SILVA, 2009).
A “descoberta” do problema favela pelo poder público não surgiu de uma postulação
de seus moradores, mas sim, do “incômodo” que causava à urbanidade da cidade, o que
explica o sentido do programa de construção dos parques proletários, que tinham por
finalidade, acima de tudo, resolver o problema das condições insalubres das franjas do centro
da cidade, além de permitir a conquista de novas áreas para expansão urbana. No primeiro
parque proletário (Gávea 1) foram construídas casas de madeira enfileiradas em terreno
cercado e isolado (ver Figura 07). Entre 1941 e 1942, além do parque Gávea, foram criados os
parques do Caju e Leblon. A seleção dos moradores de favela que seriam transferidos
obedecia a alguns critérios considerados importantes, sendo dois deles a posse de um atestado
de bons antecedentes e comprovação de realização de algum tipo de trabalho na Zona Sul da
54
cidade. Assim, austeras normas de controle social eram adotadas no interior dos parques,
cujos moradores eram identificados por carteirinhas e obrigados a agir segundo padrões de
comportamento moral designados pelos administradores. O horário de entrada e saída era
controlado, sendo que às 22 horas os portões eram fechados. A construção dos parques
proletários pode ser compreendida como primeiro grande momento de identificação,
demarcação e classificação das populações faveladas. Em suma, a implantação desses parques
está vinculada a técnicas de gestão da vida que tiveram como objetivo reorientar as condutas
dos pobres. A proposta dos parques proletários terminou por gerar resistências entre os
moradores de favela (BURGOS, 2004, CASTRO, 2004, PANDOLFI, GRYNSZPAN, 2002).
Na imagem à esquerda, tem-se as Casas Experimentais do Parque Proletário da Gávea. Na foto ao lado, nota-se a
vista geral do parque com sua estrutura completa.
Fonte: Acervo da casa de Oswaldo Cruz, Departamento de Arquivo e Documentação.
De acordo com Castro (2004), nesse período, a preocupação das autoridades com
relação aos favelados não se restringia ao controle do espaço territorial, pois abrangiam
também a necessidade de estabelecer o controle político da massa proletária urbana que
representava uma parcela expressiva de votos, sendo alvo de atuação de diferentes partidos
políticos constituídos a partir do fim do Estado Novo.
Uma das ações encontradas para estabelecer um contato próximo com os moradores
de favela se reporta a criação da Fundação Leão XIII em 1946. Essa entidade religiosa tinha
55
como objetivo iniciar um processo de “recatolização” junto às camadas populares, como
também, a moralização do modo de vida dos favelados e o “combate aos comunistas”. A
construção e propagação desse discurso religioso seguia toda uma lógica de coerção e
ordenamento, já que “a doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe,
consequentemente, todos os outros” (FOUCAULT, 1996, p. 43). A cruzada social dessa
entidade nas favelas ansiava pela readaptação do ideal de modernidade e progresso que se
propagava com muita força na época, adquirindo assim, uma conotação explicitamente moral
e política quando assumia a intenção de expandir a cidadania dos favelados. O
anticomunismo11 era uma das forças criadoras da Fundação Leão XIII, o plano era subir os
morros antes dos “vermelhos” (COSTA, 2015).
11
Em documentos enviados pelo Palácio do Catete a Dom Jaime – figura que exercia grande poder na Fundação
Leão XIII – ficava claro que a missão a ser executada pela entidade religiosa estava relacionada em barrar os
“vermelhos” a qualquer custo, dado o expressivo sentimento de incerteza perante o crescimento de influência
dos comunistas diante do contexto de democratização, aberto a partir de 1945 (COSTA, 2015).
56
valorização do solo e sua repercussão sobre os custos habitacionais não encontravam
contrapartida na evolução dos salários da maior parte dos trabalhadores urbanos,
57
favelas removidas, a maioria delas na Zona Sul; c) O Golpe de 1964 criou condições
favoráveis para a intensificação da aventura “remocionista” e para minar a resistência dos
favelados. O Estado passou a colocar soldados armados nas favelas, como no traumático caso
da favela do Pasmado. Diante do que estava por vir, pode-se dizer que a escala das remoções
efetuadas até 1965 foi moderada, apesar de ter atingido em torno de 30 mil pessoas
(BURGOS, 2004, CASTRO, 2004, MAGALHÃES, 2013, TEXEIRA DA SILVA et al,
2015).
A história dessas remoções ocorridas, sobretudo, entre 1968 e 1975, representa um
dos capítulos mais violentos da longa história de repressão e exclusão do Estado brasileiro. As
ações perversas dos aparatos institucionais resultaram na organização de movimentos de
resistência representados pela FAVEG – Associação de Favelas da Guanabara – que a essa
altura já congregava cerca de cem associações de moradores, os habitantes das favelas
lutariam de forma desesperada para não serem removidos, entrincheirados na identidade
politicamente construída de favelado (BRUM, 2013).
As reivindicações dos favelados foram importantes para a proposição de políticas
públicas direcionadas a habitação (embora tivessem alcance limitado): a) o Projeto Rio
representou uma tentativa do governo federal de reaproximar-se das massas populares urbanas
e interromper a política de remoção. Esse projeto se resumiu ao desenvolvimento de um
grande plano de urbanização dos núcleos que compreendiam a Favela da Maré, no qual previu
a erradicação das palafitas. Tal projeto integrava o PROMORAR – Programa de Erradicação
de Sub-habitação – um dos programas implantados pelo Banco Nacional de Habitação na
segunda metade da década de 1970, já no contexto de abandono da política de remoção; b)
Cada Família, um lote: O Governo Brizola (1983-1986), de forte ligação com o trabalhismo,
buscou aumentar o seu lastro junto às camadas populares, especialmente com os favelados.
Brizola instituiu o programa Cada Família, Um Lote. Esse projeto tinha como meta distribuir
um milhão de títulos de propriedade. Entretanto, fracassou enormemente ao ter conseguido
entregar apenas 32.817 títulos em todo o Estado.; c) o projeto Favela-Bairro foi iniciado em
1994 e teve o objetivo de propiciar melhorias gerais em infraestrutura, serviços sociais,
regulamentação imobiliária e a implantação de uma creche em cada favela urbanizada. O
programa teve como princípio intervir o mínimo possível nos domicílios, com a concentração
de recursos sendo destinadas na recuperação das áreas e equipamentos públicos (BURGOS,
2004, COMPANS, 2003, MAGALHÃES, 2013).
58
Em suma, o dispositivo urbanismo não operou enquanto mecanismo democrático que
visasse uma solução para o problema da habitação urbana, mas como mecanismo que seguiu a
uma determinada razão governamental, ou seja, uma governamentalidade (FOUCAULT,
1987, LIMA, 2017). O objetivo estratégico do dispositivo estava vinculado ao controle e a
ordenação dos corpos nos “territórios da pobreza”. Contudo, o caráter relacional do poder
possibilitou um processo de resistência histórica por parte dos favelados.
59
1.2. As favelas e a questão da violência urbana
Por que foram criados os “esquadrões da morte”? Como é que se criou o “esquadrão
da morte”? O que foi o “esquadrão da morte”? Até meados dos anos 1950, os crimes
mais comuns, aqueles que enchiam as delegacias de polícia, aqueles que produziam
maior volume de inquéritos policiais, aqueles que produziam maior volume de
condenações, eram as contravenções penais e os crimes de menor gravidade: brigas
com ferimentos leves, pequenos furtos, estelionato, todos crimes que não envolviam,
necessariamente, violência como também, por exemplo, a sedução, o adultério, o
lenocínio. Crimes que dependiam da astúcia do criminoso, crimes que dependiam da
habilidade pessoal do criminoso, crimes que envolviam muitas vezes a ingenuidade
da vítima, como era o caso do estelionato ou da sedução. Esses eram os crimes que
abundavam no Brasil nos anos 1950. Os crimes violentos, como o homicídio, eram
principalmente os crimes de paixão, algumas vezes acompanhados do suicídio do
assassino (MISSE, 2008, p. 375).
O fato de ações criminosas terem se espalhado pela capital fluminente não denota
que o Rio de Janeiro fosse o único lugar irradiador desse processo, ainda que seja relevante
evidenciar que o Rio sediava grande parte da mídia que atingia o país como um todo,
principalmente a mídia televisiva. A mídia relatava tudo o que acontecia na cidade para todo
o Brasil, mas os fatores principais da acumulação social da violência no Rio de Janeiro já
estavam presentes em todas as cidades brasileiras (MISSE, 2008).
60
Janeiro e São Paulo, ficando no ar a seguinte indagação: Existe alguma correlação entre
democracia e violência no Brasil?
Conforme Ramos (2011), o Rio de Janeiro havia então se tornado um caso singular,
com poucos paralelos no mundo, em que áreas desenvolvidas, abastadas e reguladas por
normas democráticas, conviviam lado a lado com áreas sob controle de grupos armados, onde
predominavam – e ainda predominam em muitos locais – o controle dos territórios por
traficantes ou milicianos, que por sua vez, impuseram regras na “base do fuzil”, onde
liberdade de expressão e o direito de ir e vir não estão assegurados. As diferentes políticas de
segurança implementadas durante esse período contribuíram para aprofundar essa situação
anômala e foram em parte responsáveis pelo quadro que se consolidou a partir da década de
1980, já que em via de regra, eram ancoradas em confrontos policiais com grupos criminosos
e produziram milhares de mortes.
62
1.3 A favela como entrave para o desenvolvimento da “Cidade empreendedora”
Para reorientar a tortuosa trajetória que o Rio de Janeiro havia tomado, o governo
municipal avaliou que seria preciso construir um “Novo Rio”, uma “cidade empreendedora”
que transitasse na órbita do mercado global e fosse catalisadora de diversos negócios que
modificassem de uma vez por todas a imagem da capital fluminense. Tal empreitada teve
início com a chegada de Cesar Maia à prefeitura do Rio. Eleito em 1992, ele se tornou uma
figura que dominou a política municipal durante longa data (1993-1996 / 2001-2004 / 2005-
2008).
O primeiro plano era intitulado “Rio sempre Rio”. Ele que era dividido em duas linhas
de atuação, a do programa “Rio Cidade” e o “Projeto Favela-Bairro”. Quanto ao primeiro
63
programa, ele nasceu sob o seguinte lema: “o urbanismo de volta às ruas”, o projeto Rio
Cidade integrou uma intervenção urbana desenvolvida no município do Rio de Janeiro entre
os anos de 1995 a 2000, inspirada no empreendedorismo urbano, com forte influência das
políticas aplicadas às cidades dos Estados Unidos e da Europa. Esse programa se caracterizou
por uma série de intervenções em áreas de uso predominantemente comercial em
eixos/corredores e/ou centros de bairros. O intuito do programa era resgatar a integração do
cidadão com o espaço da sua cidade, restabelecendo os padrões de conforto, segurança, além
de soluções para os problemas de drenagem das águas pluviais e conversão, quando for o
caso, das redes aéreas da Light e da TELERJ – Empresa de Telecomunicações do Estado do
Rio de Janeiro – em subterrâneas. A primeira parte do programa – Rio Cidade I – contemplou
15 bairros: Ilha do Governador, Copacabana, Catete, Vila Isabel, Penha, Campo Grande,
Ipanema, Botafogo, Tijuca, Centro, Méier, Leblon, Bonsucesso, Madureira e Pavuna
(OLIVEIRA, 2008).
O objetivo escancarado pelos gestores públicos seria formular uma cidade voltada para
as tendências globais e com um plano estratégico de visão empreendedora. Barcelona, cidade
catalã que havia superado uma série de crises com a realização dos Jogos Olímpicos em 1992,
tornou-se o grande exemplo de renovação. Estava aberta a temporada de realização de
grandes eventos esportivos na cidade do Rio de Janeiro. Os Jogos Pan-Americanos do Rio
(2007) – muito criticado pela falta de legados urbanos para cidade – trouxeram grande
resultado prático: uma contribuição decisiva para a vitória do município na disputa para sediar
os Jogos Olímpicos de 2016 (BARREIRA, 2013, GOES, 2011).
64
Assim, com auxílio dos principais órgãos de imprensa do Rio de Janeiro, o projeto
olímpico foi apresentado como um “sonho coletivo”, que em seguida, disseminou-se na
sociedade a ponto de produzir uma imagem positiva unificadora, um verdadeiro consenso em
relação a sua pretensa necessidade. A partir de então, vendeu-se a ideia de que é mais racional
priorizar o orçamento público para grandes obras, ao invés de investir em serviços públicos
básicos, tão carentes, sobretudo, para as camadas mais populares,
No entanto, restou um problema que era capaz de atrapalhar esse “sonho coletivo”
artificialmente induzido, e que ultrapassava as questões de logística e infraestrutura: a
violência urbana. Nenhuma exposição comercial dos eventos ou da imagem da cidade seria
possível sem garantias do governo local quanto a manutenção da ordem. No caso do Rio, a
segurança apareceu como o principal problema assinalado pelo COI – Comitê Olímpico
Internacional – este por sua vez, exigiu dos governos uma solução imediata para que a
realização dos jogos ocorresse sem maiores “prejuízos”. Nesse prisma, somente a pacificação
da cidade tornaria possível a realização dos megaeventos tão desejados pelas autoridades.
Contudo, o projeto de pacificação é resultado de um processo histórico que envolveu uma
série de programas de segurança baseados na ocupação de territórios, os detalhes desse
percurso histórico serão evidenciados a seguir.
65
1.4. Os antecedentes históricos da ocupação armada das favelas cariocas
O idioma político das sociedades modernas vislumbrou no ideal de “ordem sob a lei”
um meio de resolução do problema representado pela utilização instrumental da violência nas
interações sociais. Com a concentração do monopólio do uso legítimo da violência nas mãos
do Estado e suas instituições de controle social, a ordem jurídica “expropria” dos “indivíduos
o recurso à violência como meio de atingir fins e realizar o elemento central da noção de
cidadania: a proteção pública e estatal dos cidadãos contra os custos externos correspondentes
à ameaça criminosa” (PAIXÃO e BEATO, 1997, p. 235).
O Estado moderno, por sua vez, pode ser configurado como uma comunidade humana
que, nos limites de um dado território, reivindica para si o monopólio da força física, cujo
exercício se dá por meio de uma força pública denominada polícia. Ou seja, a polícia é a
“instituição estatal que estaria autorizada a utilizar a força de modo legítimo para obrigar o
indivíduo a comportar-se de acordo com determinadas regras, ainda que contra a vontade
dele” (RIBEIRO, 2014, p. 277).
Não cabe aqui fazer uma historiografia da “instituição polícia”, mas sim, designar o
seu significado histórico. Desde o seu surgimento, a expressão “polícia” se generalizou nos
países ocidentais de uma forma difusa, pois sob o mesmo nome podem ser destacadas
instituições com formas e atribuições muito diversas. Assim, a polícia nas linhas gerais que se
aglutinam com a “ideia moderna de polícia”, originou-se a partir das instituições vinculadas
ao Estado francês do século XVII. Tais instituições foram disseminadas pelas monarquias
absolutistas similares a francesa, como Portugal. Pelas rédeas do país ibérico, a polícia
acabou sendo constituída no Brasil (BRETAS, 1997).
66
O sistema policial brasileiro foi formulado e direcionado, desde a sua origem, para
questões de manutenção da ordem, controle de populações e repressão criminal, sempre tendo
como foco principal a “segurança nacional”. A missão da polícia era apoiar as Forças
Armadas no que se refere à garantia das instituições, a soberania do Estado e, em última
instância, a manutenção do status quo das elites políticas e econômicas. A partir do marco que
representou a criação da Constituição de 1988, a introdução do conceito de “segurança
pública” aproximou o foco da ação policial das garantias individuais e coletivas dos cidadãos.
Contudo, a própria formulação do conceito de “segurança pública” representou algo em
disputa, um termo que falta respaldo pelo ordenamento jurídico, o que abriu espaço para
introdução de todo tipo de intervenção autoritária. Assim, apesar da restauração das
instituições democráticas no país, o Brasil ficou mais violento. Uma das razões que levaram a
isso reporta-se ao fato de ter ocorrido um aumento da violência policial letal ou não letal –
baseado em agressões e torturas – na rotina das operações dos agentes do Estado
(ALBERNAZ, CARUSO e PATRÌCIO, 2007, COSTA e SÉRGIO DE LIMA, 2014,
PERALVA, 2001).
67
nesse momento que o coronel entra em contato com os modelos de policiamento comunitário
desenvolvidos no Japão (modelo Koban), no Canadá (polícia de Ontário), nos Estados Unidos
(polícia de Nova Iorque) e a sua grande preocupação foi trazer para o Brasil documentos que
explicassem como viabilizar a constituição desses modelos e, por conseguinte, garantir a sua
exequibilidade em distintos cenários (RIBEIRO, 2014).
68
GPAEs foi precedida de eventos conturbados na vida comunitária local. “Em maio de 2000,
em razão da morte de cinco jovens da comunidade, acusados pela polícia de participação no
tráfico, cerca de 100 moradores do Pavão-Pavãozinho/Cantagalo desceram a favela para
protestar” nas ruas de Copacabana. Carros e ônibus foram depredados (ALBERNAZ,
CARUSO, PATRÌCIO, 2007, p. 40).
69
desenvolvimento da política de pacificação, os detalhes que envolvem esse programa de
segurança serão evidenciados na próxima seção.
70
1.5. As UPPs e as novas formas de controle dos “territórios da pobreza”
71
I - INTERVENÇÃO TÁTICA - Primeira etapa, em que são deflagradas ações
táticas, preferencialmente pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE),
pelo Batalhão de Polícia de Choque (BPChoque) e por efetivos deslocados dos CPA,
com o objetivo de recuperarem o controle estatal sobre áreas ilegalmente subjugadas
por grupos criminosos ostensivamente armados;
II - ESTABILIZAÇÃO - Momento em que são intercaladas ações de intervenção
tática e ações de cerco da área delimitada, antecedendo o momento de
implementação da futura UPP;
III - IMPLANTAÇÃO DA UPP - Ocorre quando policiais militares especialmente
capacitados para o exercício da polícia de proximidade chegam definitivamente à
comunidade contemplada pelo programa de pacificação, preparando-a para a
chegada de outros serviços públicos e privados que possibilitem sua reintegração à
sociedade democrática. Para tanto, a UPP contará com efetivo e condições de
trabalho necessários ao adequado cumprimento de sua missão;
IV - AVALIAÇÃO E MONITORAMENTO - Nesse momento, tanto as ações de
polícia pacificadora, quanto às de outros atores prestadores de serviços públicos e
privados nas comunidades contempladas com UPP passam a ser avaliados
sistematicamente com foco nos objetivos, sempre no intuito do aprimoramento do
programa (DIÁRIO OFICIAL, 2011).
A experiência-piloto das UPPs foi desenvolvida na Favela Santa Marta, em 2008. Nos
anos seguintes houve uma significativa expansão dessa política de segurança: em 2009 –
Cidade de Deus, Jardim Batan, Babilônia, Chapéu Mangueira, Pavão-Pavãozinho e
Cantagalo; 2010 – Ladeira dos Tabajaras/Cabritos, Providência, Borel, Formiga, Andaraí,
Salgueiro, Turano, Macacos; 2011 – São João, Quieto e Matriz, Coroa, Fallet e Fogueteiro,
Escondidinho e Prazeres, Complexo de São Carlos, Mangueira; 2012 –Vidigal, Fazendinha, Nova
Brasília, Adeus/Baiana, Alemão, Chatuba, Fé/Sereno, Parque Proletário, Vila Cruzeiro, Rocinha;
2013 - Manguinhos, Jacarezinho, Caju, Barreira/Tuiuti, Cerro-Corá, Arará/Mandela, Lins,
Camarista Méier, e 2014 - Mangueirinha e Vila Kennedy. 12
Para José Mariano Beltrame (2013), então Secretário de Segurança do Rio de Janeiro,
as UPPs fizeram parte de um programa que colocaria o “fim” no controle armado do tráfico
de drogas, instituindo dessa forma, a diminuição das “balas perdidas”, o que seria motivo de
comemoração para moradores da favela, como também, do “asfalto”,
Ou é UPP ou é a velha lógica do fuzil na favela. Todos sabemos quais são os efeitos
das UPPs no curto prazo. O morador do morro fica aliviado e o do “asfalto”, muito
feliz com o fim dos tiros. Mas isso é apenas uma anestesia para a cirurgia maior. A
12
Dados correspondentes à instalação das unidades até 2016. UPP Rio – Disponível em: <http://www.upprj.
com/index.php/o_que_e_upp>. Acesso em: 13/09/2016 às 19:40.
72
grande questão que ainda está mal resolvida é o que o Rio quer fazer das UPPs no
longo prazo. Daqui a 20 anos o que será da favela? A reconquista do território é uma
janela de oportunidade para a transformação daquele espaço público (BELTRAME,
2013, p.01).
Cabe aqui destacar que desde a década de 1980, as políticas de segurança estavam
pautadas na metáfora da guerra – representação de uma cidade que vive em um estado
excepcional de guerra, e que demanda também medidas excepcionais e estranhas à
normalidade democrática, em que o argumento da eficiência se sobrepõe a tudo, absolvendo
assim, “políticas e forças de segurança pública dos “acidentes de percurso” inevitáveis em um
confronto de tal envergadura (LEITE, 2000, p.74). Desse modo, a “solução final” para guerra
estaria contida na eliminação do inimigo.
Mas que impacto a implantação das UPPs teve na incidência criminal dos “territórios
da pobreza”? No estudo “Os donos do morro: uma avaliação exploratória do impacto das
Unidades de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro”, Inágcio Cano (2012) analisou o impacto
direto no crime manifestado dentro das favelas atendidas, comparando a incidência criminal
antes e depois do programa nas 13 primeiras UPPs instaladas, entre os anos de 2008 e 2010.13
O trabalho foi efetuado a partir da análise do banco de dados de todos os Registros de
Ocorrência da Polícia Civil na cidade do Rio de Janeiro para determinados crimes, obtidos
junto ao Instituto de Segurança Pública (ISP). Os crimes contemplados foram os de mortes
violenta, que incluem os seguintes tipos de ocorrência, conforme os códigos dos Registros de
Ocorrência da Polícia Civil do Rio: (a) homicídio doloso; (b) homicídio por auto de
resistência, ou seja, produto da intervenção policial; (c) lesão corporal seguida de morte; (d)
13
As primeiras 13 UPPs contempladas nesta análise são as seguintes: Andaraí, Batam, Borel, Chapéu-
Mangueira/Babilônia, Cidade de Deus, Santa Marta, Formiga, Macacos, Pavão/Pavãozinho/Cantagalo,
Providência, Salgueiro, Tabajaras e Turano (CANO, 2012).
73
roubo seguido de morte; (e) estupro ou atentado violento ao pudor seguido de morte; (f)
encontro de cadáver; (g) encontro de ossada.
“Olha, as UPPs nos três primeiros anos deram muitos resultados” disse Loreto (nome
fictício. Pesquisa de campo, 2016), morador do Complexo do Alemão. Ele acredita que a
implantação da base da polícia pacificadora no Alemão aumentou a “sensação de segurança”
no território, mas tal estado sensitivo durou pouco tempo. Em relação à avaliação dos efeitos
práticos das UPPs, Machado da Silva (2015) avalia que as percepções relativas a esse
programa de segurança poderiam ser divididas entre grupos sociais distintos: a) os críticos,
que consideram que enquanto a gramática da violência urbana não fosse pautada pela
linguagem dos direitos, não se poderia acreditar em um mudança na atuação policial; b) os
defensores, que mesmo tendo críticas ao projeto, avaliavam de forma positiva a redução das
mortes e a manutenção progressiva da ordem pública.
Soares (2017) afirma que as experiências do programa de pacificação foram por “água
abaixo” a partir de 2013 e o grande símbolo dessa virada foi o assassinato do Amarildo, pois
esse caso mostrou que a polícia estava agindo como sempre agiu. Como bem evidencia
Foucault (2008a), o surgimento de novos mecanismos de segurança, não faz com que os seus
predecessores simplesmente desapareçam.
14
A juíza da 35ª Vara Criminal da Capital, condenou 12 dos 25 policiais militares denunciados pelo desaparecimento
e morte do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, crime ocorrido em julho de 2013, na Favela da Rocinha, Zona Sul
74
Favela da Rocinha, localidade essa que possuía até então uma base da UPP. Na noite do dia
14 de julho de 2013, Amarildo foi preso após regressar da Barra da Tijuca. Tal prisão foi feita
por policiais militares da UPP da Rocinha, sem mandado judicial, em uma operação chamada
“Paz Armada”. Conforme a polícia, à época, os policiais militares teriam confundido
Amarildo com um traficante de drogas. Em entrevista concedida a Rocha (2016), Elizabete
Gomes da Silva, esposa de Amarildo, narrou com precisão o momento do desaparecimento do
seu marido:
Ele (Amarildo) estava em casa, tinha acabado de chegar da pescaria. Meu marido...
ele chegou... foi o seguinte: dia 14 do mês sete, o Amarildo como sempre, pedreiro,
saia de manhã e chegava de noite, de segunda a sexta, pra trabalhar na obra que ele
era pedreiro. Ele tinha o vício de pescar todo final de semana. O vício que ele tinha
era de pescar. O que acontece, quando chegou no dia 14, que foi num domingo, ele
foi pescar, então, quando ele chegou da pescaria, ele chegou da pescaria numa base
de 7h40, por aí, não tinha polícia nenhuma, assim... onde eu moro não tinha polícia
nenhuma. Aí, ele chegou botou a mochila dentro de casa e falou assim pra mim:
Bete, pega uma panela aí pra mim limpar os peixes. Limpou os peixes assim como
você, sentada na escada, do lado da casa da minha cunhada, do meu cunhado. Nem
limpou o peixe em casa, limpou na porta de casa, da casa do irmão dele. Aí limpou
os peixes todos e entrou pra dentro de casa pra botar os peixes na geladeira. Quando
ele saiu da cozinha até a sala, porque a minha casa era dois cômodos, quando ele
veio da cozinha até a sala, apareceram dois policiais na minha porta, olhou pra mim,
olhou pra ele, normal, porque a gente vê polícia toda hora passando na nossa porta,
só que ele parou na minha porta e olhou pra mim e Amarildo e não falou nada, nada.
Amarildo falou assim pra mim na hora que eles olharam, ele falou assim pra mim:
Bete tô indo buscar um limão... tô indo comprar um limão e um alho pra temperar...
(...) Ficaram só na porta, mas também não falou nada, como eu tô te falando.
Normal, a gente vê toda hora polícia passar... aqui é que eu não vejo, mas lá
embaixo a gente vê todo dia eles passar. Aí o Amarildo falou que ia comprar o alho
e limão pra temperar o peixe e passou perto deles pra ir comprar e eles também não
falaram nada com o Amarildo. Só foram atrás, desceram atrás. Quando chegou lá no
bar, tinha mais policiais esperando ele. Porque eu só tinha visto aqueles dois, mas aí
a minha vizinha correu e falou assim pra mim: Bete, corre que os policiais estão
levando o Amarildo. Entendeu? Só que eu corri, só que quando eu corri, não vi mais
eles. Eles já tinham ido pra sede da UPP já, com ele (Entrevista 17/07/2015,
ROCHA, 2016, p.14-15).
Contudo, para tristeza de Elizabete, após o seu marido ser levado para sede da UPP,
ele foi vítima de uma sessão de tortura, que contou com choques elétricos, afogamentos e
asfixia. Após a sessão de tortura levar o pedreiro à morte, o então major Edson Raimundo dos
Santos (hoje condenado e preso), instruiu os policias da corporação a envolverem o corpo em
do Rio. Os PMs foram condenados pelos crimes de tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual.
G1.Caso Amarildo. Juíza condena 12 dos 25 policiais militares. Disponível em: < http://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/2016/02/caso-amarildo-juiza-condena-13-dos-25-policiais-militares-acusados.html> Acesso em
13/09/2016 às 21:35.
75
uma capa de motocicleta da PM e o levarem para um “local não apurado” (REVISTA PIAUÍ,
2017)
A imagem mostra Elizabete Gomes da Silva, a viúva do Amarildo, segurando uma imagem com o rosto do
pedreiro vitimado pelos policiais da UPP Rocinha.
Fonte: Agência Brasil/ Revista Piauí (2017)
76
A forma que os familiares do Amarildo encontraram para que a morte do pedreiro
fosse passível de ser lamentada, foi exibir o rosto do vitimado nos meios de comunicação de
massa (ver Figura 08). Por meio dos estudos de Emmanuel Levinas em relação à “noção do
rosto”, Judith Butler (2011) afirma que o rosto daquilo que é chamado de “Outro” se impõe
como uma questão ética, “mesmo sem sabermos ao certo o teor dessa demanda” (BUTLER,
2011, p. 16). O rosto representaria a vocalização sem palavras do sofrimento do Outro.
Portanto, responder e entender o significado do rosto quer dizer despertar para aquilo que é
precário em outra vida ou, antes, aquilo que é precário à vida em si mesma.
77
1.6. Biopolítica da pacificação e seus efeitos de subjetividade
Cabe aqui destacar que as ações do Bope são revestidas com grande brutalidade e
violência. Como salienta Batista (2011), os policiais desse agrupamento costumam invadir
casas, carros, matar traficantes e moradores que consideram suspeitos, deixando assim, um
imenso rastro de sangue por onde passam. A brutalidade representa a marca principal do
BOPE e a reiteração das práticas sanguinolentas, uma rotina nas favelas cariocas. No dia 07
de outubro de 2017, por exemplo, dois jovens foram mortos por policiais e outras seis pessoas
78
foram baleadas durante ação do BOPE na Cidade de Deus, na zona Oeste do Rio, sendo que
os moradores reclamaram que eles invadiram as casas sem mandado judicial. Tudo começou
quando os policiais invadiram o baile funk que acontecia na favela por volta das 4h15. “Os
policiais do Bope entraram aqui [...] Um menino aqui, que estava correndo só porque ele não
parou, meteram um tiro nas costas dele. E ainda comemoraram: aí, tombou, tombou” relatou
uma moradora da Cidade de Deus (PONTE, 2017).
Como bem explica Foucault (2005), apesar do Estado moderno ser enquadrado dentro
da perspectiva do biopoder, em que serão executadas técnicas que promovam a vitalidade da
sua população, o biopoder parece também comportar ações do antigo poder soberano que
visavam produzir mortes. O que torna possível tal operação paradoxal – produzir mortes ao
invés de vidas – é o racismo de Estado, que por sua vez, possui duas funções. A primeira
representa a negatividade, com a realização de uma separação daqueles que devem morrer,
daqueles que devem viver. Já a segunda função, apresenta uma função positiva: para que uma
raça sobreviva é preciso que a outra morra. Desse modo, o BOPE realiza a “triagem das
raças” por meio do uso do poder soberano de produzir morte. O agrupamento militar mata
aqueles considerados sujeitos descartáveis em nome da sobrevivência da população carioca,
para que assim, “a paz reine na cidade”.
Antes de tudo, torna-se relevante destacar que o histórico de cada favela e o estilo de
gestão das UPPs locais são centrais para entender os conflitos e as interações entre moradores
e policiais. As favelas não têm as mesmas histórias e formações, e que não há homogeneidade
entre as lógicas de ação de oficiais e praças das UPPs, sendo assim, não é possível generalizar
a avaliação dessa política de segurança. As ações policiais das UPPs costumavam variar de
acordo com o comandante, a favela ocupada e a cooperação obtida pela polícia junto aos
moradores (ZALUAR, 2014). Neste sentido, considerou-se que as relações entre policiais,
moradores e traficantes são flutuantes. Se anteriormente estavam bastante marcados os papéis
15
As visitas e hospedagens foram feitas entre 2015 e 2017.
79
de cada um, se antes os lados dos bons e maus “eram bem delineados, a entrada das UPPs
parece modificar algumas destas relações por meio de novos dimensionamentos políticos,
geográficos e estratégicos. Aquilo que estava legitimado e naturalizado” passou a estar em
suspensão (MELICIO et al. 2012, p. 609).
Assim, a primeira percepção que se pode destacar, é que os moradores de uma maneira
geral não gostam de falar sobre a UPP. Eles sempre responderam de maneira difusa, não
revelando muitos detalhes do que se passa na favela. Não foi incomum o pesquisador ouvir a
seguinte frase ao abordar um morador: “Sobre a pacificação eu não falo”. O silêncio dos
moradores denotou uma ação de autodefesa, buscaram assim, não ter nenhum tipo de
comprometimento em relação aos policiais e traficantes.
Na Favela Santa Marta, apesar do “silêncio”, foi possível evidenciar que desde a
instalação da UPP em dezembro de 2008, a favela ficou muito tempo sem conviver com
tiroteios. Muitos moradores relataram que havia um clima de tranquilidade com a pacificação.
Entretanto, em março de 2016 aconteceu o primeiro homicídio no território após a
implantação do referido programa de segurança. Os policiais da UPP mataram uma pessoa
que na visão dos mesmos estava em situação suspeita dentro da mata (G1, 2016).
16
Morador da Favela Santa Marta, negro, 32 anos. Pesquisa de campo, 2015).
80
Em 2017, uma idosa de que mora na favela disse ao pesquisador que a “paz acabou” e
que os tiroteios estavam acontecendo a todo momento e recomendou que “ninguém visite a
favela”,
Agora os traficantes estão trocando tiro com a polícia. De manhã e de tarde. Não dá
nem para trabalhar. Passou até na televisão. Você não escutou não? Você não vê RJ
não? A gente tava no céu e não sabia. Agora só tem a polícia matando ai, os nego ...
(a polícia) matou dois. Os traficantes voltaram a vigiar a favela de fuzil. Voltou
tudo. A gente ficou sete anos sem tiro, sem nada. Passou sete anos virou o diabo, o
inferno. A gente nem dorme direito. Os confrontos acontecem a toda hora, é só eles
“darem de cara” com os “homens” (polícia). Um policial jurou de morte dois garotos
da comunidade... ele disse: “Antes de chorar a minha mãe, quem vai chorar é a mãe
deles”. (P., negra, 69 anos. Pesquisa de campo, 2017).
Em um dos dias que o pesquisador estava transitando por essa favela, foi possível
presenciar uma operação da polícia militar. Os agentes públicos estavam percorrendo a mata
em busca dos traficantes. Essas ações da polícia geram um clima de grande apreensão na
favela. Uma moradora que estava descendo o morro de kombi junto de sua filha disse: “É
sempre assim, eles fazem essas buscas bem na hora em que a gente está saindo para o
18
trabalho, isso é revoltante, vai que sobra bala pra gente!” . Ao mesmo tempo em que
reclamava, a mãe tentava acalmar a filha de colo, que se mostrava apavorada, em virtude do
barulho do helicóptero da polícia.
17
Morador do Morro dos Cabritos, negro, 36 anos. Pesquisa de campo, 2015.
18
Moradora do Morro dos Cabritos, negra, 32 anos. Pesquisa de campo, 2015.
81
ouvir tiros partindo de lá. Os moradores acreditam que o fato de a favela estar situada próxima
a um bairro nobre propicia duas vantagens: a primeira seria uma frequência menor de
homicídios e a segunda, seria a impossibilidade de ocorrer invasões por parte de traficantes de
outros morros,
(Sobre a invasão de traficantes) Aqui é uma vez ou outra, porque tem o Forte de
Copacabana, tem muito milico. Lá no Alemão tem muita invasão de outros morros e
outras quadrilhas, aqui não pode ter isso. Aqui mora muita gente, muito bacana, de
classe média pra alta. Então não tem como ter nego toda hora querendo invadir aqui,
não tem. A última que teve foi lá no Tabajaras e foi mais de cinco anos. Da Rocinha
vieram para Siqueira Campos, vejam só como é que é (Morador do Pavão-
Pavãozinho, negro, 55 anos, Pesquisa de Campo 2016).
No dia 10/10/2016 uma intensa troca de tiros na Favela Pavão-Pavãozinho causou pânico
e fechou o comércio da favela e em ruas dos bairros de Ipanema e Copacabana. No confronto
ocorrido entre policiais do Batalhão de Choque e traficantes, o resultado foi trágico: três PMs
feridos e três traficantes mortos. Os moradores do local compartilharam nas redes sociais um
vídeo que evidenciava o momento exato em que um dos traficantes foi alvejado por tiros lançados
a partir do helicóptero da PM. Como resultado, o traficante despencou do alto da encosta do
Cantagalo. Essa imagem teve grande repercussão nacional. A consequência dessa operação em
Copacabana foi tão impactante, que o então Secretário de Segurança Pública do Estado – José
Beltrame – pediu exoneração do cargo que ocupava há mais de nove anos. Beltrame alegou que
19
Prevaricação: crime praticado por funcionário público.
82
estava cansado e que já não possuía mais condições de garantir a segurança dos polícias e por
isso, não acharia justo pedir para os mesmos que realizassem operações nas favelas (G1, 2016).
O faxineiro relatou que em uma oportunidade a PM21 subiu até a quinta estação do
plano inclinado (espécie de bonde), desceu até a terceira plataforma e “já saiu atirando” nos
traficantes. Ele considera essa situação um absurdo porque os policiais poderiam atirar em
inocentes, isto é, moradores que não possuem vínculo com o tráfico. Notou-se então, que a
morte de traficantes não causa grande comoção nas favelas, seria como se eles tivessem que
assumir o risco da conduta que executam.
Se nas favelas da Zona Sul carioca a situação não é nada favorável, no Complexo do
Alemão o cenário é ainda mais alarmante. Os moradores convivem com frequentes tiroteios e
ainda têm que lidar com atitudes hostis por parte dos policiais. Em fevereiro de 2017, policiais
da UPP passaram a invadir as casas dos moradores com o intuito de utilizá-las como base de
observação no combate aos traficantes da localidade. Integrantes da Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB) e da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do
Rio de Janeiro visitaram a favela para averiguar essa situação vivida pelos residentes do local.
Contudo, o grupo teve uma recepção violenta por parte dos policiais da UPP, que passaram a
atirar para o alto, como forma de intimidar os mesmos. Em um dos vídeos feitos pela
Defensoria Pública do Rio e que foi veiculado em plataformas digitais, evidenciou-se uma
moradora do Alemão subindo as escadas do terraço de sua casa, e no alto, um policial militar
aparecia com um fuzil na mão ao mesmo tempo em que segura o celular na outra. “Eles
20
Morador do Pavão-Pavãozinho, negro, 49 anos. Pesquisa de campo, 2016.
21
O morador não especificou o agrupamento militar do qual o policial pertencia.
83
falaram que podíamos espernear, gritar, fazer o que quiséssemos, que eles não iam sair, que
iam ficar até ver o que iriam fazer”, relatou a moradora no vídeo em questão (EBC, 2017).
22
Nome fictício, 46 anos, negro, morador do Alemão. Pesquisa de campo, 2016.
84
treinamento dado aos policiais militares. Ele disse que “hoje você tem menores com uma arma
pesada na mão e do nada eles cismam que tem que atirar. Fazer o que? Quem tá no meio,
quem está circulando morre”.
85
Loreto ainda destacou: “Eles não têm a educação de sair para se proteger”. Como os tiros se
referem a um acontecimento corriqueiro, ele afirma que os moradores dizem: “Ah isso não vai
pegar em mim não”.
Ainda conforme Loreto, a polícia fica “maluca” com essa situação, porque os
moradores caminham tranquilamente em meio aos tiros cruzados e dispara duras críticas aos
mesmos: “Uma boa parte é por causa do treinamento deles sim e uma boa parte é culpa do
morador que não liga pra isso aí. Então em qualquer comunidade, a bala come e você já
encosta do lado de cá, não fica ninguém no meio da rua, aqui não.” Quando eu pergunto se
tem alguma diferença de tratamento entre o policial da UPP e para os outros policiais, ele
responde de maneira enfática: “Nenhuma! Eles deveriam ter uma relação melhor com os
moradores, começando por um “bom dia, tudo bem? O policial é como se fosse uma sombra,
um poste, o nego passa e nem olha na cara dele. É como se fosse uma figura inexpressiva”.
A fala de Loreto aponta que existia uma expectativa no Complexo do Alemão de que a
UPP representasse um modelo inovador de polícia, mas que isso não aconteceu, porque os
policiais “não foram treinados de maneira adequada”. Assim, foi possível evidenciar também
que existem dois discursos rivalizando na fala do Loreto que sintetizariam uma disputa entre o
“ethos civilidade” e o “ethos guerreiro”: a) a UPP deveria ser uma polícia de proximidade,
que diz “bom dia, como vai senhor”; b) o policial da UPP está em guerra e deve estar sempre
alerta e não “vendo zap”. Assim, ao mesmo tempo que critica, o morador assume a “lógica da
guerra” e utiliza tal perspectiva para julgar o policial.
Pedro 23
– morador da Favela Santa Marta – também relatou (em 2015) que os
moradores reclamam da vigilância sistemática dos policiais da UPP Santa Marta. “Às vezes os
policiais revistam três vezes. Mas tem alguma coisa com o cara? Por que essa insistência?
Por que tem a revista em uns e outros não”. O fuzil é algo que causava incômodo também,
23
Nome fictício, negro, 40 anos, Morador da Favela Santa Marta. Pesquisa de campo, 2015.
86
Pedro disse que antigamente a arma ficava na mão do bandido, mas agora está com a polícia.
“Só mudou, né!”, disse ele.
Eles cismam com “n” coisas. Vê um negro já acha que é bandido. Vê se você tá
arrumado ou se tá sujo. Se está sujo, eles discriminam pela pobreza. Acham que
roubou. Mas não, eu trabalho, tenho nota fiscal, viajo, trato com muita educação.
Aprendi sempre assim, nunca bate de frente. Sempre “quebro” eles na educação, traz
ele pra você (Pedro, morador da Favela Santa Marta. Pesquisa de Campo, 2015).
A vigilância sistemática não é feita somente com o olhar e a revista do policial, mas
sim, com outros recursos tecnológicos. Segundo Fleury (2012), a política de segurança de
ocupação militarizada se referiu a uma imposição de uma ordem ostensivamente armada, com
vistas a intimidar qualquer possibilidade de retorno à desordem anterior, na vigência do
domínio dos traficantes. Para atender esse objetivo foram instaladas câmeras de vigilância em
vários pontos da Favela Santa Marta, o que contou com forte resistência inicial dos moradores
devido a invasão de privacidade. Os moradores de favela, por sua vez, “retrucaram” e
passaram também a filmar as ações policiais.
87
Na imagem à esquerda da Figura 10, há a presença de aparelhos fotográficos, em que
o policial fotografa a cena do crime e ao mesmo tempo é fotografado pelos moradores que
acompanham atentamente a conduta do policial. Ao lado, na arte gráfica feita pelo cartunista
Latuff, aparece um policial branco apontando a arma para um menino negro ajoelhado com as
mãos nas costas. O policial se encontra paralisado observando a ação das oito câmeras de
celular. Um detalhe interessante está no fato de uma das mãos da figura estar apontada para as
pessoas que observam a abordagem policial. As duas imagens denotam acepção de Foucault
(1987b) sobre a vigilância hierarquizada, pois a mesma se encontra em um feixe de relações
em que os fiscais podem ser continuadamente fiscalizados,
A vigilância hierarquizada, contínua e funcional não é, sem dúvida, uma das grandes
“invenções” técnicas do século XVIII, mas sua insidiosa extensão deve sua
importância às novas mecânicas de poder, que trás consigo. O poder disciplinar,
graças a ela, torna-se um sistema “integrado”, ligado do interior à economia e aos
fins do dispositivo onde é exercido. Organiza-se assim, como um poder múltiplo,
automático e anônimo; pois, se é verdade que a vigilância repousa sobre os
indivíduos, seu funcionamento é de uma rede de relações de alto a baixo, mas
também até certo ponto de baixo para cima e lateralmente; essa rede “sustenta” o
conjunto, e o perpassa de efeitos de poder que se apoiam uns sobre os outros: fiscais
perpetuamente fiscalizados. (FOUCAULT, 1987b, p. 148).
As críticas com relação aos mecanismos de vigilância da UPP eram levadas por Pedro,
morador da Favela Santa Marta, quando ele participava de reuniões periódicas com os
policiais da UPP. Ele disse que os moradores falavam com ele, e posteriormente o mesmo
relatava as reclamações ao comandante, “a gente tem a função de levar”, avalia ele, que
praticamente exerce a função de um líder comunitário. Ele declara ser um “ativista”, fotografa
episódios de violência policial, como também, participa de reuniões que congregam várias
favelas do Rio e manifestações de rua. Por exemplo, logo após a morte do garoto Eduardo24
24
A morte do garoto Eduardo Ferreira, de apenas 10 anos, pelos policiais da UPP causou grande comoção na
favela e teve repercussão nacional. O policial que atirou no garoto não foi se quer indiciado. G 1 Rio. Tiro que
88
pelos policiais da UPP do Complexo do Alemão em 2015, ele foi até lá participar de um
protesto junto aos moradores da favela da Zona Norte. Abaixo, Pedro descreve com exatidão
o seu comportamento pró-ativo,
A gente participa das reuniões deles (dos policiais). É... eles também chamam a
gente para participar da reunião deles. A gente chama eles para vim nas nossas. Eles
têm que ouvir os problemas. E se tiver algum perrengue eu vou direto no comando
lá dentro. Ligo para o comandante, tenho o telefone de todo mundo aqui. Do
Robson, do comando central, da major Priscila, tenho telefone de geral. Se me der
problema que tenho que resolver, eu ligo para central, que vai ter que resolver. A
gente também não vai ficar aderindo os problemas dos outros. A gente sabe quem
gosta de ficar sacaneando o policial, às vezes xingam o cara. Meu irmão, tô ali para
ajudar morador, a gente vê a luta diária, a resistência, e tá sofrendo o abuso, abuso
de poder, enfim, daí a gente vai lá defender. Reclama, qual é comandante? Pô. O
cara ali, toda hora é revistado, ou senão, chega em um lugar e apenas revista um. Por
que? Vai todo mundo então. Um dia um policial se excedeu demais e agora ele tá
fora. Só pode ficar na UPP (sede) ou lá embaixo. Em uma reunião podemos por os
policiais lá no meio pra ouvir a favela inteira, meu irmão, caraca! (Pedro. Morador
da Favela Santa Marta. Pesquisa de campo, 2015)
Ele também relatou que na Favela Santa Marta houve uma ocasião que um garoto
recebeu um tiro na perna. Esse disparo teria sido feito com uma arma que é munida com
“balas de efeito moral”, isto é, não causa o mesmo dano que as convencionais, mas provoca
uma ferida imensa na pele. A favela se revoltou com o fato e expulsou o policial da favela a
“base de tijoladas e pontapés”. Com a UPP, os moradores conseguiram minimente tensionar
as relações de poder de modo que a pacificação lhes fossem favorável, pois uma vez que um
mesmo policial trabalhava em uma determinada localidade todos os dias, o morador
conseguia identificá-lo e exercer certo tipo de “controle” sobre o ele. “Não há relação de
poder sem resistência, sem escapatória ou fuga, sem inversão eventual, toda relação de poder
implica, então pelo menos de modo virtual, uma estratégia de luta” (FOUCAULT, 2009, p.
248). Nesse sentido, quando os moradores de favela passaram a confrontar as arbitrariedades
feitas pelos policiais, eles podem passar a ser denominados aquilo que Foucault (2008a)
chama de “povo”,
matou Eduardo é de PM, mas ninguém foi indiciado. Reportagem, 2016. Disponível em:
<http://g1.globo.com /rio-de-janeiro/noticia/2015/11/tiro-que-matou-eduardo-no-alemao-partiu-de-pm-mas-
nenhum-e-indiciado.html>. Acesso em: 11/09/2016 às 14:57.
89
população, como se pusesse fora dela, e, por conseguinte, é ele que, como povo que
se recusa a ser população, vai desajustar o sistema. Na divisória população/povo,
este último aparece como grupo “que resiste a regulação da população, que tenta
escapar desse dispositivo pelo qual a população existe (FOUCAULT, 2008a, p. 56).
Além dos momentos reivindicação por parte dos moradores, outra questão relevante
para se destacar na fala de Pedro é que o mesmo declarou exercer o papel de “mediador de
conflitos”. Assim, quando observava um morador brigando com outro, ele buscava logo fazer
uma intervenção. Pedro disse que chegou a ir à delegacia para defender um morador da
favela, mas para isso ocorrer tem uma condição: “ele não pode ser bandido”.
90
1.7. Os policiais e traficantes nas favelas pacificadas
Nesse prisma, a nova política de segurança pública instaurada formulou uma nova
gramática relativa às funções do policial – como a do “pacificador”, categoria que não foi
muito bem “digerida” pelos policiais que atuavam nas favelas. Cano (2012) destaca que
muitos policiais que trabalhavam nas UPPs estavam insatisfeitos. A principal razão da
lamentação é que muitos deles continuavam identificados com um ideal de polícia
representado pela repressão aos criminosos, inclusive pelo “dinamismo e aventura” que o
confronto armado proporciona. Fascinados pelo velho modelo de polícia – que continua
atraindo interessados – o “policiamento comunitário” era considerado como de segunda
classe, um tipo de atividade que não poderia ser considerada policiamento verdadeiro. O
policial da UPP precisaria deixar de ser policial, em alguma medida, para desempenhar esse
novo papel de “mediador de conflitos”. Em algumas entrevistas feitas por Cano (2002) com
vários soldados, eles próprios encenaram o debate entre a visão tradicional, considerada
dominante, e o modelo pacificador:
91
— Porque o batalhão é mais trabalho de polícia, né. Tem um sistema melhor, uma
liberdade pra se trabalhar. As pessoas te respeitam mais, na verdade. Aqui é muita
política. Aqui, você não é tratado como polícia, aqui você é tratado como UPP. Eles
nem te chamam de polícia, eles te chamam de “UPP”. Nós somos os UPPS. No
batalhão, você tem um respeito maior, as pessoas te respeitam (Soldado 3) [...].
— Eles falam que é UPP, não chamam a gente de policial, é UPP, então você já vê
que eles enxergam essa diferença.
[Entrevistador: Isso é bom ou é ruim?]
— Ruim, em partes, não totalmente, porque eles não respeitam, o respeito que eles
têm por policiais de batalhões é bem diferente, eles acham que nós estamos aqui
para ficar de guarda, como um soldado na guarita tomando conta de quem entra e de
quem sai, só. E os da rua não, eles veem os policiais dos batalhões como policiais
que combatem o crime, todos os tipos de delitos, e nós não, eles nos chamam aqui
de enfeite.
[Entrevistador: É assim que as pessoas lhes veem?]
— Vi isso, mas, em compensação nós temos a proximidade, eles conseguem se
aproximar mais da gente do que dos policiais do batalhão... (Soldado 4) (CANO,
2012, p.139-140).
Percebe-se então que o tipo de policiamento desempenhado nas UPPs provocou uma
mudança nos sentidos sobre o que é ser um policial, gerou assim, uma espécie de “crise de
identidade”. Um ponto importante a ressaltar-se é que o tipo de mediação de conflito feita nas
favelas com UPP está imbricado com a questão de gênero. Conforme relato de Pedro, na
Favela Santa Marta teve a existência de policiamento feminino feito à paisana. Uma policial
percorria todos os becos e vielas da favela, ficando sempre à espreita. Ela tinha a função de
resolver os conflitos, antes de sua possível expansão, sobretudo, as desavenças familiares. O
morador afirmou que o trabalho desempenhado por essas policiais foi muito útil porque
“conflito é toda hora na favela. Tem muito. Mãe que bate em criança... Teve um caso em que
o pai deu uma surra de sandália e o pai foi preso. Ele teve que ir lá depor e voltou no final do
dia, pra você ver: são os tempos modernos” (Pedro).
De acordo com Denari (2015), existe uma cisão na função exercida pelo policiamento
masculino e feminino que é histórica nos agrupamentos militares. O trabalho de vigilância
ostensiva, marcado pela atuação nas ruas, com patrulhas, flagrantes e denúncias, como
também, o “policiamento comunitário” são desenvolvidos por homens, enquanto as atividades
administrativas, de inteligência e comunicação social são delegadas para as policiais
femininas.
A página oficial da UPP exalta o fato dessa política de segurança ter tido comandantes
mulheres. A primeira comandante da Favela Santa Marta foi a major Priscila Azevedo. Ela
assumiu a missão de controlar a UPP Santa Marta em 2008. Em 2015, Tatiana Lima foi
segunda mulher a comandar uma equipe de policiais militares. Na página da UPP, observou-
se o destaque dado a fala de uma moradora da Favela Santa Marta, que ressaltou a importância
da presença feminina na UPP: “Os outros comandantes também nos ajudaram muito. A presença
de uma mulher na UPP facilita a comunicação entre a gente”, disse a moradora (UPP-RJ, 2015).
Na realidade eu prefiro o traficante do que isso aí (polícia da UPP), porque eles são
meio que covardes, porque quando vem um grupo assim descendo eles já querem
fazer covardia. Eu sou nascido e criado na comunidade, nunca aconteceu isso,
sempre respeitaram, podia deixar a porta aberta. Eu saia e voltava e deixava a porta
aberta, agora com eles não, tem que fechar. É ao contrário, antes era melhor.
(Morador da Favela Santa Marta, negro, 34 anos/ Pesquisa de campo, 2016).
Conforme Ganem Misse (2014), ao mesmo tempo em que a UPP – juntamente com
outras políticas – produziram um decréscimo na taxa de homicídios em várias favelas do
25
Nome fictício, branco, 25 anos. Pesquisa de campo, 2015),
93
município, a maior presença policial também fez com que ações como o “esculacho”
(violência policial) se tornassem mais assíduas. “Em virtude de boa parte desses incidentes
ocorrerem à noite e os policiais agressores retirarem seus nomes (identificação) das fardas,
muitos capitães de UPPs” alegavam não conseguirem apurar de fato as denúncias por falta de
informações (GANEM MISSE, 2014, p. 695).
Para Loreto, morador do Complexo do Alemão, essa conduta policial tem a ver com a
falta de treinamento adequado dos policias que vão trabalhar nas UPPs, porém, enfatiza que a
má condição de trabalho não serve de desculpa para o “esculacho” e muito menos para
corrupção policial,
(Sobre os policiais da UPP) O que? Eles fazem número. Ah fala sério. Eu sou
suspeito pra falar essas coisas porque não existe isso. De repente acho que
colocaram para inglês ver. Porque não foi dado treinamento, se tivesse dado
treinamento não teriam problemas maiores, infelizmente. E como Beltrame diz,
estamos enxugando o gelo. É exatamente. Eu não vou dizer que em São Paulo é
diferente não. Todo Brasil é assim. O policial é mal servido, mal informado, mal
treinado e mal municiado... pagam o suficiente e não é desculpa pra se corromper e
se isso acontece é porque de cima para baixo não fiscalizam. Quanto tu ganha? Mil,
como é que tu tem um carro de 100 mil? Não pode, tem alguma coisa errada. Eu
ganho mil. Pensa, não tem como. Mas como você já tem os poderes de cima pra
baixo uma bagunça generalizada, como você vai chegar lá em baixo no Zé povinho
querer que as coisas funcionem. Ah você é o Che Guevara, o revolucionário? Acho
que sim cara, porque com o sistema que está ai. Tá bravo. (Loreto, morador do
Complexo do Alemão, Pesquisa de Campo 2016).
Na realidade, o que esses alunos pretendem é buscar uma inserção no que Misse
(2002) chama de “economia da corrupção” para fazerem uso das “mercadorias políticas”, isto
é, recursos políticos expropriados do Estado e que são privatizados pelos agentes que as
ofertam,
26
A entrevista com esse professor foi realizada em 2015.
94
monetário. O preço das mercadorias (bens ou serviços) desse mercado, ganha a
autonomia de uma negociação política, algo como um mercado de regateio que
passa a depender não apenas das leis de todo mercado, mas de avaliações estratégias
de poder, de recurso potencial à violência e de equilíbrio de forças, isto é, de
avaliações estritamente políticas. Para distinguir a oferta e demanda desses bens e
serviços daqueles cujo preço depende fundamentalmente do princípio de mercado,
proponho chamá-los de “mercadorias políticas” (MISSE, 2002, p.05).
Alguns policiais aceitam dinheiro dos traficantes para fazer “vista grossa” e outros
querem simplesmente matar. Essa é a visão de um morador do Pavão-Pavãozinho: “Não é que
eles negociam, não é todo “plantão”27 que aceita dinheiro, tem “plantão” que quer dar tiro.
28
Então, tem uns que gostam de dar tiro mesmo”. Para Machado da Silva (2015), a possível
“identificação de uma retomada da tradicional corrupção policial – popularmente explicada
como decorrente do costumeiro ajustamento das orientações tradicionais dos agentes às regras
formais de atuação” – desqualificou, em certa medida, as intenções de reforma do
policiamento, da qual as UPPs seriam um tipo de ponta de lança na visão de seus
formuladores e defensores (MACHADO DA SILVA, 2015, p.16).
Em outra perspectiva, Cano (2012) afirma que o projeto de pacificação conviveu com
baixos níveis de legitimidade interna na polícia. Apesar dos comandantes locais estarem todos
afinados com a nova visão doutrinária, pois muitos deles avaliaram a iniciativa como uma
grande oportunidade de mudança estratégica para a PM, as praças se mostraram muito
reticentes. A maioria dos policiais preferia trabalhar em batalhões convencionais. As razões
eram muitas, entre elas, pode-se destacar: “a dureza do trabalho de patrulhamento constante a
pé em locais íngremes, o deslocamento adicional desde (o local de origem) até o batalhão da
área no início e no fim da jornada, as deficiências na infraestrutura em muitas das sedes, local
de trabalho longe da sua moradia” e problemas relativos à gratificação de baixo valor (CANO,
2012, p. 182).
Soares (2011) salienta que os policiais trabalhavam muitas vezes em condições sub-
humanas em virtude da falta de estrutura adequada de muitas UPPs. Ao menos 24 das 38
UPPs possuíam estruturas de contêiner. O espaço não costumava ser destinado apenas a sedes
administrativas, mas também, serviam como alojamento, um espaço de descanso dos agentes
que trabalhavam em plantões de 24 horas. Além do contêiner provocar um calor ainda maior
27
Plantão é a gíria referente ao policial da UPP.
28
Morador do Pavão-Pavãozinho, negro, 62 anos, Pesquisa de campo, 2016.
95
do que as bases com alvenaria, existiram problemas com aparelhos de ar condicionados
quebrados.29
Mesmo com todos os desafios que enfrentavam, os policiais da UPP tiveram a missão
de combater o tráfico de drogas nas favelas em que atuavam. Contudo, antes de evidenciar as
ações dos traficantes nos territórios pacificados é importante destacar brevemente o processo
histórico referente à formação do chamado “crime organizado”. Misse (2011) afirma que as
principais organizações criminosas do tráfico a varejo no Rio de Janeiro surgiram dentro do
sistema penitenciário durante a ditadura militar. Assim, a partir de 1968, organizações de
esquerda que lutaram contra ditadura, aderiram a práticas mais contundentes – como, por
exemplo, confrontos armados – e o assalto a bancos passou a ser uma das formas de
arrecadação de recursos para lutar contra o governo vigente. Em 1969, o regime militar
sancionou a Lei de Segurança Nacional, considerando comuns os crimes cometidos pelos
militantes de esquerda. “Desse modo, militantes políticos e assaltantes de bancos comuns
conviveram, sob a mesma lei, até a sua revogação mais de dez anos depois” (MISSE, 2011, p.
18).
29
Na UPP do Vidigal – situada na zona Sul do Rio – por exemplo, duas das quatro bases ainda são formadas por
contêiner e lá eles trabalham com aparelhos de ar condicionado que não funcionam há meses. “Há mais de um
ano não consertam os aparelhos quebrados. O pior é quanto tiramos serviço por 24 horas e temos direito a seis
horas de descanso. Como descansar dentro de um contêiner quente e onde só cabem dois colchões? As condições
de alojamento são péssimas”, disse um policial (UOL, 2015).
96
Desse modo, a partir do momento em que ocorreu a queda do preço da cocaína no
mercado latino-americano – em virtude da entrada da Colômbia na produção desse produto –
os antigos pontos de venda de cannabis nas favelas do Rio foram tomados por membros do
Comando Vermelho (CV) e fortalecidos para a venda de cocaína. Assim, entre 1982 e 1985
consolidou-se um modelo de organização interligando em rede as quadrilhas atuantes no
varejo, com base na proteção oferecida pelo CV dentro do sistema penitenciário. Desde então,
criou-se um modelo desenvolvido de uma organização dentro do sistema penitenciário que é
dividido em dois setores, um “intramuros” e outro “extramuros” (MISSE, 2011).
Dentro desse sistema, os vários “donos” (presos ou não) comandam o varejo em uma
ou mais favelas no Rio, com relativa autonomia em relação aos dirigentes do CV, sendo que
os mesmos não possuem qualquer vínculo organizacional com os fornecedores da droga no
atacado. Em suma, no Rio de Janeiro, há três redes de quadrilhas, chamadas “comandos” ou
facções, que disputam entre si o controle de territórios nas favelas e conjuntos habitacionais
da cidade: “o “Comando Vermelho”, o mais antigo; o “Terceiro Comando” e os “Amigos dos
Amigos”. Essas redes de quadrilhas operam a partir do sistema penitenciário, em que mantém,
cada uma, a oferta de proteção aos presos que ali chegam” (MISSE, 2011, p. 20).
Entretanto, todo esse comércio varejista de drogas ilícitas não foi dissipado com a
pacificação, porém, reconfigurado (isso foi possível de ser notado, sobretudo, no início dessa
política de segurança). A exigência de discrição influenciou o comércio feito com a proteção
de armas pesadas (como fuzis AR-15 e 7.62), que diminuiu a demanda por esse tipo de
armamento, acarretou assim, uma maior capilarização do comércio de drogas para o “asfalto”.
“É indubitável que do ponto de vista dos moradores, esse fato gera certa tranquilidade ou,
pelo menos, diminui a tal sensação de insegurança provocada pela convivência diária com
adolescentes armados de fuzis” (BRITO, 2013, p.108). Zaluar (2012) salienta que as UPPs
não foram projetadas para acabar com o tráfico de drogas, mas para acabar com as práticas
violentas que rondavam o comércio de drogas.
97
o “arrego” (pagamento) com os policiais, eles passaram a mapear os caminhos por onde os
policiais da UPP percorriam e traçaram estratégias para venda de drogas de modo que não
fossem pegos.
Assim, a força “sedentarizante” do fuzil deu lugar à observação atenta dos olheiros e
à comunicação “flexibilizante” dos celulares e radinhos usados para monitorar os
fluxos de circulação pelo território. E, desse modo, os mecanismos de
monitoramento passaram a ganhar centralidade na atuação cotidiana dos traficantes
nas favelas “pacificadas” (...) Sugiro que a lógica do “tá tudo dominado” que guiava
a atuação dos traficantes no período pré-UPP deu lugar à lógica do “tá tudo
monitorado” do contexto pós-“pacificação”. Isso porque após a inauguração das
UPPs os traficantes entenderam que não podiam mais ter – e, em certo sentido, não
precisavam – o domínio do território para continuar a venda de suas mercadorias.
Contudo, eles tiveram, para isso, que transformar suas condições de existência para
continuar subsistindo no novo ambiente pós-UPPs (MENEZES, 2015, p. 14).
Porém, essa lógica de não embate letal na Favela Santa Marta, não foi seguida pelos
traficantes do Complexo do Alemão, local em que os confrontos entre policias e traficantes
quase sempre foram frequentes. Loreto (2016) classifica os embates como algo que beira a
“irracionalidade. Porque todos os países têm drogas, em todos os lugares têm drogas, o
usuário de droga sabe que precisa daquilo ali e ele só não quer encontrar arma na cara dele.
Só que a cabeça do pessoal aqui é diferente”.
Eles (traficantes) não conseguem entender que aquilo ali é um comércio ilegal. E
que é um comércio porra! Se ele entender que é um comércio... Mas há não vou
vender droga pra você porque torce para o Flamengo. Porra, você não tá querendo
vender, não? Não existe isso, ah eu sou CCP, PCC, não existe isso, você tem que
vender o seu negócio, no dia que eu souber administrar isso, vai bem e em todos os
países desenvolvidos é assim, administraram isso. Você não quer comprar? Então eu
vou vender. Só isso e nada mais. No dia que conseguirem fazer isso toda essa
comunidade será um mar de rosas. Não há necessidade de se ostentar nada, eu quero
fazer a minha venda. Aí você pega um poder maior, que toma e vai coagindo ali na
frente. É uma bagunça (Loreto, morador do Complexo do Alemão. Pesquisa de
campo, junho, 2016).
98
É possível perceber que nos “territórios pacificados” os traficantes operaram em duas
lógicas de ação, a primeira seria: a) o “campo minado”, nessa perspectiva os traficantes
passaram a mapear os trajetos feitos pelos policiais e passaram a calcular e antecipar os riscos
de um possível confronto, sendo que os moradores passaram a ter a sensação de sempre
estarem “pisando em ovos”, em que um passo mal dado podia ser fatal. Com isso, moradores
não quiseram ter contato com os policiais da UPP, nem ofereciam água, pois tinham medo de
serem vistos como delatores pelos traficantes, como também, não conversavam com os
traficantes com medo de serem vistos como bandidos pelos policiais. 30
; b) “fogo cruzado”,
nessa lógica a favela virava um campo de guerra em que tiros eram disparados tanto por
traficantes quanto por policiais e a população ficava exposta a uma situação desesperadora
(MENEZES, 2015, ZALUAR, 2014).
Outra questão latente que envolveu o embate entre policiais e traficantes se refere à
disputa que ocorreu no campo simbólico. Conforme Carvalho (2013), durante a sua pesquisa
etnográfica na Favela do Borel, ela avistou algumas inscrições da sigla UPP pintadas na cor
azul nos muros da localidade. As pinturas nas paredes das favelas cariocas são utilizadas, em
grande medida, por diferentes facções criminosas para deixar “recados” aos inimigos de
outros grupos, como também, apenas para determinar o perímetro de dominação de
determinada região. Já quando a mesma estratégia é utilizada em referência à polícia, tendo
em vista a inscrição UPP da mesma cor da corporação, a interpretação que se pode fazer é a
seguinte: que UPP estava comunicando os moradores que agora quem domina o espaço é a
polícia. Entretanto, a UPP ou quem quer que tenha realizado a pintura na parede, abriu
espaço para outros tipos de intervenções. Assim, na parede em questão, em cima da pintura
que se refere à UPP foi sobreposto as siglas do Comando Vermelho (ver Figura 11).
30
Aliás, a não exibição de armas, carros de luxos e joias porte parte dos traficantes com objetivos de não
chamarem a atenção, têm fragilizado afirmação da masculinidade dos mesmos, sendo que era justamente com
esse instrumental que eles atraíam mulheres e jovens soldados (MENEZES, 2015).
99
Figura 11 – UPP versus Comando Vermelho
O que a imagem sugere é que estava em curso “uma possível disputa, a partir de
elementos simbólicos, entre diferentes forças que buscam dominar aquele espaço”
(CARVALHO, 2013, p. 298). Destarte os embates entre o comando do tráfico armado e a
UPP, notou-se também, que o processo pacificação envolveu uma reconfiguração da conduta
dos moradores, como poderá ser observado na próxima seção.
100
1.8. UPP e a gestão da vida: Da formalização do território à instauração da “pedagogia
civilizatória”.
Uma questão que chamou atenção em algumas favelas do Rio se reporta ao fato da
chegada das UPPs instituírem uma espécie de “formalização do território”. O papel de
controle policial nas favelas transcendeu as ações que comumente são exercidas pelos
mesmos no “asfalto”, um exemplo claro disso se refere à rígida regulação do funk nas favelas.
Não bastava os organizadores terem autorizações da prefeitura e do corpo de bombeiros,
tornou-se preciso a anuência da UPP. Enquanto os shows que envolviam o ritmo do forró
transcorriam sem maiores problemas, os bailes funks apresentavam restrições, pois na visão
dos policiais eles possuíam ligações estreitas com criminosos, além de serem vistos como
propagadores de tumulto e desordem.
Pedro afirmou que na Favela Santa Marta ocorreu um forte embate dos moradores
com os policiais em virtude da proibição dos bailes funk. “Eles queriam bloquear a cultura
local. A favela vive de cultura. Se você bloquear o funk, (...) vai dar problema. Vai ter conflito
toda hora, porque ninguém vai ouvir pagode. O funk também é cultura.”. Pedro acredita que
os policiais de áreas pacificadas, antes de entrarem nesses territórios, deveriam participar de
cursos sobre as favelas para que os mesmos tivessem a condição de assimilar a cultura local.
Conforme Cano (2012), nas áreas que possuíam UPP, os jovens foram os que mais
apresentavam atrito com os policiais, entre outras coisas, em virtude da função reguladora que
estes últimos exerciam sobre as atividades de lazer, isto é, sobre o volume do som e sobre os
bailes. Em particular o funk – alvo histórico da repressão dos aparatos de segurança –
costumou ser proibido com base em uma resolução da Secretaria de Segurança que impôs
requisitos inviáveis para eventos de pequeno ou médio porte.
Dessa forma, os policiais, como eles mesmos reconhecem, acabam exercendo uma
discricionariedade que favorece outras músicas e discrimina o funk. Em relação ao
volume do som, acontecem dois conflitos em um. O primeiro se dá entre a lei formal
(‘Lei do Silêncio’) e o costume da favela. A lei formal nunca foi aplicada na favela e
também não é aplicada sistematicamente no resto da cidade, razão pela qual os
jovens das comunidades consideram esta intervenção como uma arbitrariedade. O
segundo conflito é intracomunitário, entre os vizinhos que desejam sossego e os
jovens que querem badalação e, portanto, deveria ser resolvido pela própria
comunidade. Em algumas UPPs se desenvolveu um processo de negociação sobre os
horários do som, mas em muitas outras, a polícia não consegue sair do papel de
101
regulador autoritário, tomando as decisões em exclusiva e carregando com todo o
ônus da intervenção (Cano, 2012, p. 18).
Nessa perspectiva, a regulação das festas pode propiciar momentos de muita tensão.
Na reportagem publicada no dia 30 de outubro de 2017, no jornal O Globo, foi destacada a
ação violenta dos policiais do BOPE durante uma operação na Ladeira dos Tabajaras, em
Copacabana. O periódico afirmou que os policiais encerraram uma festa de pagode que
acontecia na Rua Euclides da Rocha de maneira extremamente brutal, inclusive empregando
práticas de tortura. Moradores relataram na publicação que os agentes chegaram “espancando
e atirando em quem eles viam pela frente”. O resultado dessa ação fez com que duas pessoas
fossem baleadas, uma na barriga e outra no pescoço. Além disso, os policiais do BOPE
também tiveram a crueldade de esmagar um cachorro com um veículo blindado, o que
provocou grande revolta por parte dos moradores. Uma das participantes da festa narrou com
precisão o momento de terror vivido (O GLOBO, 2017).
O fato curioso dessa ação é que os moradores se reuniram com o capitão Aslan Santos
Orrico, o então comandante da UPP local, para denunciar os casos de agressão que sofreram.
Desse modo, a UPP, apesar de exercer uma missão disciplinar e civilizadora, passou a ser
vista como uma espécie de “socorro” para os moradores diante da brutalidade empregada
pelos policiais do BOPE. A ação violenta de determinados agentes públicos provocou a
demanda por outros, mesmo que o viés disciplinar fosse um imperativo.
Nessa perspectiva, nos anos iniciais do programa foram realizados pelo governo do
Rio, eventos musicais e esportivos nas localidades pacificadas com o objetivo de dar
visibilidade a situações de integração social de jovens moradores de favelas que antes da
pacificação sofriam com o domínio armado de traficantes. Assim, é possível destacar diversas
iniciativas, como: o ensino de artes marciais pelos policiais (ver Figura 12) e os Torneios da
Pacificação, organizados pelo BOPE com o intuito de integrar as favelas por meio do esporte.
(CUNHA, 2015). Como apontou um dos moradores entrevistados na Favela Santa Marta, as
ações sociais desenvolvidas pelo UPP fizeram com que pessoas passassem a enxergar os
policiais com “outros olhos”,
103
Com a pacificação do Santa Marta já se começa a ver o policial com outros olhos.
Ele (o filho do morador) já fez karatê na UPP, foi a passeios que a UPP organizou.
Antigamente isso era impossível de acontecer. Era mesma coisa de morder e
assoprar. Eles vinham, matavam e depois queriam negociar. Hoje em dia, tem um
diálogo diferente. O grande ganho deles será fazer um trabalho por gerações. Não
vão mudar a cabeça da hora pra outra de ninguém. Ainda mais de adulto, criança vai
ser mais fácil, porque vai ser trabalhada em relação a isso (Morador Favela Santa
Marta, 36 anos. Pesquisa de Campo, 2015).
Eu não quero meu filho no “Social da polícia”, porque é essa polícia que mata o
nosso jovem. Isso é muito louco, os malucos vêm... Pelo amor de Deus! É muito
jovem que diz assim (para o policial): “Tio, não quero”. Eles fazem o c****e dentro
da favela e agora dizem: “vem cá bonitinho”. Isso é maluco, não faz sentido, só que
acontece. O morador que faz um questionamento de maneira profunda tá pensando
nisso em uma outra perspectiva. Daí o governo assumindo para si que trouxe a paz
para gente, Hello!? Eles são um inferno aqui dentro, então como assim, você
comprar esses discursos, sem nem ao menos dizer pera aí, o que está acontecendo? É
complicado, entendeu? Eu tenho essa sensibilidade de estar questionando o que tem
por trás (Entrevista com Isabela. Pesquisa de campo, 2017).
31
Nome fictício, moradora da Favela Santa Marta, negra, 40 anos. Pesquisa de campo, 2017.
104
Figura 12- Policiais da UPP e crianças da Favela Santa Marta
Policiais ensinam aulas de Defesa pessoal para as crianças da Favela Santa Marta
Fonte: UPP/RJ (2017).
Luana Motta (2017) avalia que “o social” e os projetos sociais têm se constituído em
uma estratégia para prevenir a violência de forma complementar à segurança, como também,
mais um modo de se produzir segurança pública. Nesse prisma, o social e a intervenção no
social não seriam uma alternativa ou oposição à segurança pública, “ao contrário, mas uma
105
forma mais virtuosa de produzir ordem, incidir na violência por meio da transformação dos
corpos, dos comportamentos, das famílias e dos gostos daqueles considerados vulneráveis.”
(MOTTA, 2017, p.244). Alba Zaluar (2014) acredita que esse tipo de atividade pode provocar
desconforto dos dois lados, pois os policiais acham que os programas socioeducativos
destinados aos jovens não são tarefas a serem exercidas por policiais. E para população, tais
programas tenderiam a “aplicar as regras hierárquicas e de disciplina vigentes na PM ao
ensino do esporte” (ZALUAR, 2014, p. 10).
106
Figura 13 – Beltrame e a debutante
A incursão pacífica e permanente dos agentes de segurança pelas ruas, becos e vielas
das favelas, voltou-se a procura do consentimento da coletividade, antes invadida por policiais
e criminosos (MUNIZ, MELLO, 2015). O que estava em questão ao se analisar as nuances da
pedagogia civilizatória instituída pelas UPPs (LEITE, 2015), não é destacar a motivação do
policial em participar de ações junto a favela, mas sim, como bem salienta Andrade (2013),
evidenciar que o que estava em jogo ao se transformar o “policial matador” no “professor
bonzinho” ou no “príncipe encantado” era que tais ações buscaram desvincular a polícia do
seu histórico de repressão e matança, abrindo assim, os caminhos para a promoção e
solicitação desse tipo de gestão da vida por parte dos moradores.
Contudo, com a grave crise econômica que o Brasil e sobretudo, o Estado do Rio de
Janeiro sofre nos últimos anos, houve um redimensionamento da atuação dos mecanismos de
segurança, já que a partir do início de 2018, os policiais militares das UPPs passaram a fazer o
policiamento do entorno dos territórios em que estão baseados, em parceria com o batalhão
das respectivas áreas de atuação. O então secretário estadual de Segurança, Roberto de Sá
afirmara que as UPPs iriam continuar e que a medida indicava apenas um
“redimensionamento do programa”. “Não acho que a UPP fracassou. Ela pode ter sofrido um
abalo como toda a área de segurança está sofrendo no Brasil inteiro” (UOL NOTÍCIAS,
2018).
107
Mas essa afirmação do governo do Estado de que pacificação continua não
corresponde com a realidade das favelas. “A pacificação acabou. Por causa da crise do
Estado. Só ficam 20 policiais dentro da sede da UPP. De vez em quando eles saem de lá
trocam tiros com os traficantes. Agora toda hora tem tiroteio aqui” relatou Carambola,
morador da Favela Santa Marta (Pesquisa de campo, janeiro/2018).
Se, por um lado, teve-se a derrocada do projeto de pacificação, por outro, novos
mecanismos de segurança foram desenvolvidos pelos aparelhos de poder. Durante o carnaval
de 2018, a Rede Globo de Televisão noticiou de maneira exacerbada roubos e arrastões
ocorridos na Zona Sul do Rio. Embora a insegurança na cidade seja algo real, a representação
do Rio de Janeiro enquanto “cidade do caos” serviu de base para aplicação de medidas
contundentes na área da segurança pública. No dia 21 de fevereiro de 2018 o Senado aprovou
– com anterior chancela da Câmara dos Deputados – um decreto que objetivava a intervenção
federal no Rio de Janeiro. Essa ação fez com que a segurança pública do Rio passasse da
esfera estadual para esfera federal via comando militar até 31 de dezembro de 2018. Assim,
foi nomeado para o cargo interventor o General do Exército Walter Braga Netto, que dirigia o
Comando Militar do Leste (Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo). Desse modo, o
então secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Roberto Sá, acabou sendo destituído.
Com essa mudança, o interventor passou a ter total poder para comandar a segurança pública
fluminense, controlando assim: a Polícia Civil, a Polícia Militar, os bombeiros e a
administração penitenciária (BBC BRASIL, 2018).
Michel Misse (2018) compreende a intervenção como uma medida paliativa com
efeitos publicitários e que não possui substância de política pública. Para ele, em um estágio
de crise e de incapacidade das polícias de proporcionar uma resposta razoável para o temor da
população, convocar as Forças Armadas seria um modo politicamente eficiente de produzir,
no curto prazo, uma sensação de segurança no Rio. O autor adverte que a militarização da
segurança caminha em sentido oposto ao da modernização do sistema de justiça criminal, que
compreende polícias, Ministério Público, Judiciário e sistema penitenciário.
Jacqueline Muniz (2018) salienta que a intervenção militar corresponde a uma forma
que governos não populares e ilegítimos encontram para substituir a coesão que não possuem
pela coercitividade. Contudo, ela destaca que é possível observar uma grande passividade dos
governos eleitos no tocante na construção de planos que valorizem a vida. De um lado, os
grupos de direita bradam a lei a ordem, entretanto, não querem que o “problema da
108
segurança” seja resolvido na medida em que precisam da tragédia para terem temáticas que
lhes renderão votos. Já a esquerda, por outro lado, teria abandonado o tema conforme Muniz
(2018), apostando apenas na redução na desigualdade, contudo, não seria possível aguardar
melhorias da educação e saúde para que a vida das pessoas fossem garantidas, sendo que a
violência por si só já seria um elemento gerador de desigualdade.
Percebe-se então, que Loreto é favorável a intervenção militar, mas ao mesmo tempo é
crítico a essa ação. Ele apoia a entrada dos militares no Alemão pelo desespero de viver em
um ambiente de conflito armado e não visualizar nenhuma solução para a questão. Loreto
acredita que é necessário ter uma intervenção no Estado do Rio, sobretudo, para acabar com a
corrupção policial, mas ele acredita que o tipo de intervenção que está sendo feita atualmente
no Rio seja “algo de fachada”,
Agora o nome intervenção, o nome intervir não condiz muito com o que está sendo
feito aqui.... não está tendo intervenção de nada. Falaram que iria pegar as pessoas
que são corruptas dentro da polícia e não o fizeram. Falaram que teria treinamento
109
para essa rapaziada nova da PM que estão jogados ao léu, não fizeram. Eu não estou
vendo intervenção de nada, na boa. Eu acredito que eles vão fazer uma maquiagem,
igual fizeram com as UPPs, vão maquiar a coisa, vão comprar novas viaturas porque
é necessário, estamos sem viatura e quem comprava as novas viaturas era o Eike
Batista na época. E vai continuar a mesma coisa. E não vai ter nada de anormal com
a intervenção no Estado do Rio de Janeiro não. (Loreto, morador do Complexo do
Alemão. Pesquisa de campo, 2018).
Loreto também criticou a prisão de 150 supostos milicianos em uma festa em Santa
Cruz, Zona Oeste do Rio, durante o mês de abril de 2018. Ele acredita que a maioria dos
presos não possuía ligação com as milícias e seriam apenas convidados da festa.
110
Figura 14 – “Quem mandou matar Marielle?”
111
Figura 15– O garoto Vinícius e os helicópteros
Na imagem acima, os helicópteros da polícia sobrevoam o Complexo da Maré e tiros são disparados na direção
do garoto Marcos Vinícius da Silva. Embora ainda não se tenha a confirmação da origem dos tiros que atingiram
o garoto, tal tipo de operação policial encena um cenário apavorante para os moradores de favela.
Fonte: Ribs (2018)
Para além da indignação que uma operação letal como essa provoca, é preciso destacar
que essa operação foi conduzida pela Polícia Civil, que em tese, não possui prerrogativa
constitucional para efetuar operações táticas como a que foi realizada no Complexo da Maré.
Além disso, ressalta-se que a ideia de confronto está tão banalizada que foi a Polícia Militar
que interveio nessa situação de confronto, assim, a discussão em relação ao fim das polícias
militares como antídoto à violência institucional deve levar em consideração que o padrão de
enfrentamento não é exclusivo, pois está enraizado na política criminal do país, o que torna a
questão ainda mais complexa (SÉRGIO DE LIMA, 2018).
112
***
113
Segundo Michel Misse (2011), o desafio das UPPs não seria, como se supõe, o de
“levar políticas públicas” para os territórios da pobreza, porém – por mais paradoxal que
possa parecer – desterritorializá-los, ou seja, incorporá-los como bairros normalizados à
cidade, desintegrando-os enquanto territórios, inclusive “territórios de UPPs”. O
prosseguimento de uma lógica de territórios sinalizaria a estabilização e fixidez dessas áreas,
enquanto “margens” do Estado, perpetuando assim, relações sociais de segregação e estigma,
de desigualdade e repressão. Assim, as UPPs iriam ter obtido êxito se não buscassem a
permanência ou uma nova territorialização, ainda que bem intencionada. Entretanto, o que foi
possível observar é que a derrocada da UPP não foi acompanhada da incorporação dessas
localidades enquanto bairros da cidade. Concomitante ao declínio do projeto de pacificação,
observou-se a ascensão de uma intervenção militar que desempenha o papel de agente
produtor da violência e da barbárie nos “territórios da pobreza”, amplificando a lógica da
guerra (LEITE, 2012), com a utilização até de “caveirões voadores”.
Nos territórios em que atuou, a UPP realizou o que Michel Foucault (2008a)
denomina de “urbanização pela polícia”. Foucault (2008a) afirma que os objetos de
intervenção da polícia são estritamente urbanos. Os objetos são urbanos na medida em que
eles só existem na cidade e porque existe uma cidade, assim, eles são compostos pelas ruas,
praças, edifícios, mercado, comércio, entre outros. No século XIX, a polícia era colocada
como condição de existência da urbanidade, pois era a instituição quem definia como as
pessoas iriam interagir entre elas. Era função da polícia realizar a vigilância e o controle do
território e das pessoas, para que assim, tivesse a garantia da manutenção de uma dada ordem
civilizadora. No processo civilizatório instituído nas favelas cariocas, as UPPs tiveram o papel
114
de regular a vida dos moradores, delimitar o que é permitido e o que é proibido por meio da
força, induzindo assim, à passagem dos mecanismos de coação exteriores para mecanismos
interiores (ELIAS, 1994), em uma espécie de internalização, disciplinarização de si, para que
enfim, o morador de favela fosse considerado um sujeito civilizado e ganhasse o direito de
pertencer à cidade.
Nessa perspectiva, é possível considerar que a experiência das UPPs representou uma
maquinaria política onde nela se construiu um controle detalhado dos corpos sociais e
individuais a partir da vigilância. Ela operou intervenções pontuais com o esquadrinhamento e
normalização de pessoas e lugares, articulam-se efeitos de subjetividade em um jogo
incessante entre assujeitamentos e governo de si. Diante desta questão, torna-se importante
afirmar que ao falar da experiência das UPPs não se deve utilizar o Estado como sinônimo,
pois a UPP vai muito além de uma imposição estatal: suas práticas, discursos e efeitos são
produzidos em uma rede de relações (MELÍCIO, GERALDINI, BICALHO, 2012),da qual os
moradores também participam com movimentos de contra condutas e resistências.
115
CAPÍTULO 2
117
2.1. Favela, cidadania e poder
É! É! É! É! É! É! É!...
Gonzaguinha
118
direito de tê-la, ou seja, os favelados. Em seguida, será destacado as imbricações de tal
panorama com as estratégias dos dispositivos de poder.
Por fim, o terceiro vértice se fundou nas Revoluções Francesa e Americana, que
iniciaram a tradição até hoje majoritariamente seguida das liberdades individuais e
democracias republicanas. A Revolução Francesa marcou e praticamente fundou
politicamente, o mundo moderno e a sociedade contemporânea. Ela teceu critérios e
legitimidade a serem preservados nas relações de indivíduo com a sociedade, dos indivíduos
com os indivíduos, dos governantes com os governados, desse modo, fundou-se,
propriamente, o espaço individual numa aparente oposição ao Estado. Este, por outro lado,
quando se livrou de tendências absolutistas ou totalitárias, em tese, fortificou-se enquanto
119
instância política impessoal e de apelação para garantia do respeito aos direitos humanos
(MENDES, 2010, ULHÔA, 2000).
De acordo com Vieira (1997), a cidadania, então, seria composta pelos direitos civis e
políticos – direitos de primeira geração – e dos direitos sociais (direitos de segunda geração).
Os direitos civis, conquistados no século XVIII, dizem respeito aos direitos individuais de
liberdade de ir e vir, igualdade, propriedade, direito à vida, segurança, entre outros. Portanto,
são os direitos que estruturam a concepção liberal clássica. Por outro lado, os direitos
políticos alcançados no século XIX estão relacionados à liberdade de associação e reunião; de
organização política e sindical; à participação política e eleitoral; ao sufrágio universal, entre
outros. São também denominados direitos individuais exercidos coletivamente e acabaram se
incorporando à tradição liberal.
De acordo com Ewald (1986), o direito social possui três características principais: a)
refere-se a um direito que se dirige menos aos indivíduos de maneira isolada e mais a eles a
partir do momento em que pertencem a um determinado grupo, classe ou categoria
profissional. Nessa perspectiva os sujeitos de direito social são sujeitos qualificados em
função da situação particular que ocupam, assim, o direito social seria um direito realista; b)
121
ele não representa um direito de igualdade, em que a regra de julgamento necessariamente
passa pela igualdade de direitos, mas pelo contrário, trata-se de um direito de desigualdades,
um direito discriminatório e dotado de preferências. É nessa seara que há também uma
novidade no instituto do contrato do direito social. O contrato pressupunha para o pensamento
liberal, a igualdade entre os contratantes e no mundo contemporâneo passa a definir uma
relação de desigualdade; c) o direito social necessariamente se trata de uma questão que
possui como base a sociologia – e não a filosofia, como o direito civil clássico – na medida
em que a sociologia se constituiu em uma perspectiva histórica, como crítica da filosofia, de
suas abstrações e sua metafísica, focando assim, o estudo da apreensão dos sujeitos e grupos
sociais que estão no interior de uma realidade concreta (EWALD, 1986, MACEDO, 2010).
O usufruto dos diretos na prática se reporta a uma questão que Hannah Arendt (2009)
abordou de maneira crítica ao analisar a Declaração dos Direitos do Homem, que os
designava como inalienáveis e independentes dos governos dos Estados-Nação. Ao analisar
os gravíssimos conflitos que ocorreram na Europa durante o século XX, a filósofa afirma que
no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava
nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los. Assim,
mesmo com as constituições se baseando na Declaração dos Direitos do Homem, na prática,
existia um grupo migrante de pessoas que não eram considerados cidadãos. Judith Butler
(2009) avalia que o sujeito apenas pode ser constituído enquanto portador de direitos a partir
do momento em que é reconhecida a humanidade do Outro. Contudo, em todos os lugares do
mundo existem pessoas que são conformadas enquanto seres abjetos, cuja a materialidade da
vida não importa. Para Butler (2011), primeiramente os dispositivos de poder produzem a
“desrealização do outro” enquanto vida não passível de ser lamentada, para que em seguida, o
sujeito seja transformado em alguém que não possui o direito a ter direitos (ARENDT, 2009).
122
Vera Telles (1999) afirma que a Constituição aprovada em 1988 representou a aspiração por
uma sociedade democrática e muito mais igualitária.
123
educacionais, econômicos e ambientais abaixo da média do restante da cidade; e) elevada
incidência de situações de violência, principalmente a letal, acima da média da cidade.
Fabi Luci Oliveira (2014) em sua obra “Mais justiça e mais cidadania nas favelas
cariocas pós-pacificação”, destaca que as favelas cariocas apresentam um retrato de
subcidadania ou de cidadania incompleta. O cenário de subcidadania fica claramente exposto
na fala de um morador do Complexo do Alemão:
Sim, pra boa parte do pessoal (a infância) foi paupérrima. Porque a gente não tinha
nada. Não tinha esgoto, não tinha água, a luz era aquela coisa piscando, a casa era de
madeira. Não era como é hoje. Hoje o pessoal ainda reclama. Mas vamos analisar, se
eles voltarem um pouquinho. Antes era casa de estuque, pingava, chovia. A rua não
era asfaltada, se chovia, tinha lama até o teto (Loreto, morador do Complexo do
Alemão, Pesquisa de campo, 2016).
A partir da segunda metade da década de 90, entretanto, vem encontrando cada vez
mais ressonância na cidade uma corrente de pensamento e opinião alternativa [...].
Esta corrente vem propondo a pacificação da cidade por meio de soluções
democráticas para o problema da violência e da segurança pública, com isso
significando o respeito aos direitos humanos e civis de toda a população e a
submissão das atividades policiais ao controle da sociedade civil. Advoga a
necessidade de “domesticar a polícia” e de “levar a cidadania para as favelas e
periferias”, integrando seus habitantes, particularmente os jovens, à cidade (LEITE,
2000, p. 82).
124
A partir de então, diversos foram os “atos de paz” promovidos pelos movimentos
sociais, como por exemplo, o “Abraço à Candelária”32, em 1993 (LEITE, 2000). Enquanto os
grupos subalternizados se mobilizavam na construção de elementos simbólicos que
valorizassem a vida dos mesmos, o governo do Estado definiu a ocupação armada como
estratégia para “pacificar” os territórios da pobreza, como foi evidenciado no capítulo
anterior. Tomasi e Velazco (2013) advogam que com o início da implantação das UPPs nas
favelas cariocas, houvera um investimento significativo na produção de um regime discursivo
que buscou promover uma nova imagem de cidade, uma cidade pacificada e em via de ser
“integrada”, em que a UPP Social seria um instrumento tido como fundamental para que esse
processo de integração acontecesse.
32
Refere-se a um ato protestava contra a chacina da Candelária (1993) que ocorreu próximo da Igreja da
Candelária.
125
2.2. “A UPP Social foi um paliativo e muita gente acreditou”. UPP Social: Uma política
de direitos?
Conforme Lia Rocha (2014), após a implantação das UPPs, moradores de favelas,
pesquisadores e autoridades públicas compartilhavam a ideia de que apenas essa nova política
de segurança não seria suficiente para “integrar” as favelas à cidade e à cidadania. Desse
modo, os variados agentes declararam a necessidade de outros tipos de atuação nesses
territórios. É nesse contexto que o Programa UPP Social foi apresentado como uma agenda
posterior à pacificação. A preocupação com a “regulação da vida coletiva durante a transição
para outro regime, com o suposto fim da dominação sobre os moradores pelos grupos de
traficantes de drogas locais, era central na criação do Programa UPP Social” (ROCHA, 2014,
p.05).
O então Secretário Estadual de Segurança Pública, José Maria Beltrame, revelou sua
angustia referente ao processo de pacificação aos meios de comunicação, em 2011. Ele
afirmou que: “Nada sobrevive só com segurança. Não será um policial com um fuzil na
entrada da favela que vai segurar, se lá dentro das comunidades as coisas não funcionarem. É
hora dos investimentos sociais” (O GLOBO, 2011). Na visão de Beltrame, as UPPs estariam
“agradando”, contudo, seria preciso viabilizar a chegada da dignidade nas favelas, pois essa
seria a razão da existência das UPPs.
126
O Programa das Unidades de Polícia Pacificadoras - UPP criado pelo Decreto nº
41.650 de 21 de janeiro de 2009; o que consta do art. 1º do referido Decreto, acerca
da pacificação e manutenção da ordem pública em comunidades populares; que a
manutenção das comunidades já pacificadas requer a presença do Estado não só
executando ações de segurança pública, mas também executando políticas sociais;
e que a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos necessitará,
também, de uma equipe especializada e tecnicamente adaptada para a execução de
projetos e programas concernentes à consolidação do controle territorial e da
pacificação, à promoção da cidadania e do desenvolvimento social e à integração
plena das comunidades pacificadas por Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) ao
conjunto da cidade do Rio de Janeiro (Decreto nº 41.650 de 21 de janeiro de 2009).
DECRETA:
Art. 1º - Fica criado, na estrutura da Secretaria de Assistência Social e Direitos
Humanos, o Programa “UPP Social” para a execução de ações especiais de
promoção do desenvolvimento social em áreas pacificadas por Unidades de Polícia
Pacificadora - UPP.
Art. 2º - O Secretário de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos editará
ato disciplinando e regulamentando a execução das ações especiais de que trata o
art. 1º deste Decreto, inclusive no que tange à designação de pessoal (DECRETO
41.650/ 2009).
O programa UPP Social iniciou as suas ações a partir do segundo semestre de 2010
vinculado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos – entidade pública
responsável pela integração e coordenação de ações sociais nas favelas com UPPs – e teve
como coordenador principal, o economista Ricardo Henriques (ROCHA, 2014). As bases
fundamentais do programa podem ser averiguadas no artigo intitulado “UPPs Social: ações
sociais para a consolidação da pacificação” de autoria de Ricardo Henriques e Silvia Ramos
(2011).
127
território: haviam áreas ou setores ou famílias a quem se ofertavam programas similares e
áreas totalmente descobertas por qualquer programa (HENRIQUES, RAMOS, 2010).
129
Figura 17 - O policial e o “cidadão”
130
transferência seria de que a maior parte dos serviços públicos ofertados nas favelas era de
responsabilidade do município (ROCHA, 2014). Contudo, após essas mudanças no arranjo
institucional e um discurso oficial afiado em torno da cidadania, como funcionou a UPP
Social na prática?
A gente foi muito resistente com essa coisa da UPP Social, porque o que acontece...
O governo agiu malandramente. Ele deveria ter colocado secretaria aqui. Por que
não trouxe a secretaria de educação? Não é missão da polícia fazer social. Quem são
os responsáveis por estarem fazendo esse tipo de trabalho e serviço? Ou você
articula as secretarias governamentais dentro de um espaço ou caso contrário você
vem com um paliativo. A UPP Social foi um paliativo e muita gente acreditou. A
UPP foi o caramba, viu. A UPP ocupou a creche aqui no morro, viu. Então se a UPP
ocupou a creche, onde estão as crianças? Então a UPP Social foi um paliativo.
(Entrevista com uma moradora da Favela Santa Marta. Pesquisa de Campo, 2017).
131
maior da proposta do programa, que era a de produzir um diálogo horizontal com a população
atendida (RODRIGUES, 2015, COUTO, 2016).
Essas demandas eram catalogadas por meio do contato diário que as equipes do
programa tinham com os moradores, sendo que posteriormente ocorria uma sistematização
das informações identificadas em campo. No âmbito das articulações que a UPP Social
conseguiu construir com as secretarias municipais, destacam-se os projetos: “Vamos
Combinar uma Comunidade Mais Limpa”, que representou um acordo de gestão firmado com
a Comlurb, 33 e o “Vamos Iluminar”, que foi um pacto de gestão construído com a Rio Luz 34
(RODRIGUES, 2015).
Em relação às políticas desenvolvidas pela UPP Social, Ganem Misse (2016) destaca
que o projeto desenvolvido por Ricardo Henriques e Silvia Ramos carecia de uma melhor
capacidade de articulação institucional – ou governabilidade. O fato de não haver um objetivo
comum a ser alcançado por todas as secretarias envolvidas ocasionou uma desarticulação das
políticas setoriais, dessa forma, as intervenções nos territórios geraram baixo impacto e baixo
controle de resultados.
Contudo, toda dinâmica desenvolvida pela UPP Social passou por modificações ao
longo dos anos. Em 2013 – o então vice-prefeito do Rio – Adilson Pires, entrou em rota de
colisão com o ex-prefeito Eduardo Paes ao declarar o fim do programa UPP Social.
33
Comlurb – Companhia Municipal de Limpeza Urbana. O acordo com a Comlurb envolvia um pacto em que
a companhia pública comprometia-se, por um lado, a adquirir novos equipamentos e recursos para aperfeiçoar
sua capacidade técnica nas áreas de favela e, por outro, a envolver participativamente a população atendida na
elaboração e implantação do programa, o que envolvia a determinação de pontos e horários de coleta do lixo e
locais para instalação de caçambas, papeleiras e equipamentos afins; além disso, o “Vamos Combinar...” previa a
criação de uma comissão de moradores responsável pelo acompanhamento da implementação da nova logística
de coleta de lixo e pela sua avaliação periódica (ver RODRIGUES, 2014, p. 87).
34
Rio Luz – Companhia Municipal de Energia e Iluminação. O “Vamos Iluminar”, por sua vez, consistia de uma
rotina mensal de reparo e manutenção de pontos de iluminação pública (troca de lâmpadas, de sensores etc.); a
planilha era preenchida pela equipe de campo do UPP Social e enviada regularmente para a gerência da RioLuz
pertinente, que enviava uma equipe de técnicos para fazer os reparos ((ver RODRIGUES, 2014, p. 87).
132
Posteriormente, a prefeitura desmentiu a afirmação do então vice-prefeito e o programa
seguiu até agosto de 2014. Nesse mesmo mês, o programa acabou ganhando uma nova
roupagem e foi nomeado de “Rio Mais Social”. Essa nova nomenclatura pretendia retirar o
35
estigma que o programa anterior possuía, sobretudo, por ter a sigla UPP. Conforme Rocha
(2014), a complementaridade entre UPP Militar e “o social da UPP”, foi constituinte do
projeto das UPPs desde seu início. Desse modo, a UPP Social foi desenvolvida como forma
de operacionalizar o trabalho de outras entidades públicas nas favelas ocupadas pelas forças
de pacificação, e nessa perspectiva, exercia uma função complementar à ocupação militar,
ainda que com lugar institucional diferenciado. Porém, o fato de o projeto ser nomeado UPP
Social dificultou a separação entre as duas linhas de atuação, civil e militar, o que auxilia a
explicar a mudança de nome do programa.
Maria Isabel Couto (2016) revelou com precisão no estudo “UPP e UPP Social:
narrativas sobre integração na cidade” os pormenores envolvidos na mudança dos princípios
da UPP Social, com a implantação do programa Rio Mais Social. Esse processo se iniciou em
2012, quando o idealizador das ações da UPP Social, Ricardo Henriques, deixou o Instituto
Pereira Passos para presidir o Instituto Unibanco. Assim, o seu posto acabou sendo ocupado
por outra pessoa também graduada em Economia. Eduarda La Rocque – ex-secretária de
fazenda do município do Rio de Janeiro – assumiu coordenação da UPP Social e começou a
modificar as diretrizes desse programa, dessa forma, deixou de lado as propostas anteriores
que vinham sendo desenvolvidas desde a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos
Humanos (SEASDH).
Assim, uma das primeiras medidas de Eduarda La Rocque foi a participação ativa no
projeto denominado "Favela como Oportunidade". O projeto teve a coordenação feita pela
Marília Pastuk – do Instituto Nacional de Altos Estudos/INAE – e pelo então ministro do
Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso. Essa iniciativa começou a partir da publicação de
um estudo que mapeava as demandas por serviços e melhorias de qualidade de vida em
algumas favelas e a partir delas propunha um plano de desenvolvimento local. Após o
lançamento desse trabalho, formou-se então um grupo cujo principal intuito era providenciar
uma espécie de fundo de investimentos para projetos locais. A proposta apresentada e
35
Revista Piauí. Quem se lembra da UPP Social. Reportagem. Data de publicação: 10/05/2017. Disponível em:
<http://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2017/05/10/quem-se-lembra-da-upp-social/>. Acesso em 18/12/2017mas
23:14.
133
amplamente defendida pela então presidente do IPP, era que o BNDES36 criasse linhas de
subsídio a iniciativas de “organizações de favelas, que não seriam estruturadas o suficiente
para captar os recursos sozinhas. Seriam, então, estas organizações que levariam adiante os
planos de desenvolvimento locais, utilizando-se de recursos públicos cedidos pelo BNDES”
(COUTO, 2016, p. 192).
36
BNDES: Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social.
134
atualização do papel da UPP Social como órgão de fomento à investimentos privados e
públicos em favelas” (COUTO, 2016, p. 193).
135
2. 3. Os nexos do processo de desconstrução da questão social nas favelas pacificadas
Historicamente, a questão social foi retratada sob o ângulo do poder, enquadrada como
ameaça que a luta de classes – em particular, da classe operária – representava para ordem
instituída. Marilda Iamamoto (2011) afirma que os processos sociais que ela traduz se
encontram no centro da análise de Marx sobre a sociedade capitalista. Nessa escola
intelectual, o sistema capitalista de produção “é tanto um processo de produção das condições
materiais da vida humana, quanto um processo que se desenvolve sob relações sociais
histórico-econômicas de produção específicas” (IAMAMOTO, 2001, p. 11).
136
Então, se a “velha questão social” se relacionava ao pauperismo, a “nova questão
social” para Castel (1998) estaria vinculada a três pontos principais: a) a desestabilização dos
estáveis (uma parte da classe operária integrada e dos assalariados passaram a ser ameaçados
pela desestabilização socioeconômica; b) a implantação do trabalho na precariedade, isto
é, a constituição de um trabalho aleatório, descontínuo e que não pode servir de base à
proteção de um futuro planejado; c) a precarização do emprego e a escalada do
desemprego, manifestando-se assim, um déficit de lugares ocupáveis pelos pobres na
estrutura social, compreendendo-se por lugares, as posições relacionadas à utilidade social e
ao reconhecimento público.
Desse modo, Castel (1998) desenhou por meio de seu estudo, uma espécie de
diagrama da questão social, em que a vulnerabilidade de massa se traduz em contingentes
cada vez maiores de desempregados, de inimpregáveis, de precarizados, de pessoas que
sobrevivem graças “aos programas de renda mínima, de jovens sem perspectiva de um
emprego estável e de todos aqueles que mesmo momentaneamente incluídos, estão separados
da insegurança social por um linha muito frágil” (MIAGUSKO, 1999, p. 171).
Para Pastorini (2004), a “nova questão social” não se trata da mesma que surgiu no
século XIX, pois representa o resultado da revolução tecnológica de uma sociedade agora
configurada como “pós-industrial” ou “pós-trabalho”. Assim, as evidências da questão social
na contemporaneidade não são decorrência somente de um irreversível progresso tecnológico,
mas sim, consequência da crise do sistema capitalista internacional com esgotamento do
modelo fordista-keynesiano no início da década de 1970.
137
Apesar das análises de Robert Castel estarem relacionadas à realidade francesa é
possível utilizar seus questionamentos para verificar as condições sociais do Brasil, pois o
estudo do referido autor envolve apontamentos que convergem com o contexto brasileiro. A
principal, “seria a produção de vulnerabilidades sociais acopladas à perda do lugar de
trabalhador para uma parcela da sociedade que, se instala em uma área de precariedade de
suas condições materiais de reprodução” (BRANDÃO, 2002, p.142).
Nesse sentido, Lúcio Kowarick (2009) realiza a seguinte indagação: Qual é a questão
social brasileira? Para o autor, a questão social brasileira, na realidade, abrange várias
questões. Todavia, aquela que mais se sobressai no âmbito das relações entre o Estado e a
sociedade está relacionada à dificuldade de expandir os direitos de cidadania para toda
população brasileira.
Para Telles (2001) a nossa velha e persistente questão social é historicamente definida
entre a tutela estatal e a gestão filantrópica da pobreza, pois a questão social foi projetada “no
138
cenário político brasileiro sob uma figuração plural que colocava no foco do debate as
possibilidades de se firmar os direitos como princípios reguladores da economia e sociedade”
(TELLES, 2001, p.04). Ianini (1991) acredita que há uma tendência a naturalizar-se a questão
social por meio de duas visões. A primeira, é que ela é compreendida como um “problema de
assistência social”. Já na segunda percepção, a questão social é entendida enquanto problema
de violência (repressão, segurança e opressão).
Feltran (2008) avalia que novas nuances foram incorporadas à questão social a partir
de 2004. O autor acredita que as dinâmicas sociais das periferias urbanas poderiam ser
interpretadas a partir de uma série de crises – do emprego formal, da religiosidade católica, da
promessa de mobilidade social da família operária, dos movimentos sociais e de sua
representatividade. Tal panorama representaria uma crise, mas não um aniquilamento, pois: a)
as relações sociais e a sociabilidade permaneceram em grande medida estruturadas pela
categoria trabalho, apesar do desemprego crescente; b) a moral popular católica permaneceu
dominante, embora o crescimento dos evangélicos neopentecostais fosse evidente; c) as ações
coletivas populares seguiram atuando, embora sua representatividade passasse a ser
questionada; d) “a perspectiva de ascensão social da família se mantinha como esperança,
reanimada pelo crédito a Casas Bahia, embora a frustração do sonho de viabilizá-la pelo
emprego fordista já fosse inescapável” (FELTRAN, 2008, p.97).
139
dispositivos de gestão: se por um lado, as favelas consideradas um entrave ao
desenvolvimento deveriam ser removidas, por outro, os favelas em que a remoção não fosse
viável, fazia-se necessário a integração da mesma à cidade. Ao mesmo tempo em que se
esvaziava a questão social, essa ação teria como objetivo estratégico, a ampliação do mercado
consumidor nas favelas e a transformação das mesmas em ativos a serem explorados sob a
perspectiva do “empreendedorismo dos ricos”.
Sabrina Ost e Sonia Fleury (2013) salientam que é lugar comum a constatação de que
a atuação estatal nos “territórios da pobreza” – seja ela policial, assistencial ou promocional –
possibilitou a expansão do mercado e gerou novas possibilidades e tensões em relação às
garantias cidadãs dos favelados em virtude das ameaças de remoção e à elevação do custo de
vida. A conformação da favela-mercadoria sinalizou uma progressiva mercantilização dos
espaços e a cidade passou a ser um lugar estratégico para se entender as relações entre
produção dos mercados, dispositivos de poder e gestão das populações (TELLES, 2015).
140
2.4. “Pague a conta de luz. Seja um cidadão!”: Pacificação, cidadania e o
“empreendedorismo dos ricos” nos “territórios da pobreza”
O Rio de Janeiro vem passando por modificações no seu padrão de governança, que
parece caracterizar-se por uma gestão empreendedora, sendo que as ações dos dispositivos de
gestão vêm promovendo profundas reestruturações na cidade tendo como meta a urbanização
neoliberal, isto é, a transformação socioespacial adequada à dinâmica de mercantilização de
cidades. Nas últimas décadas, a capital fluminense se tornou palco de grandes eventos
internacionais – Jogos Pan-Americanos, em 2007, Jornada Mundial da Juventude, em 2013, a
Copa do Mundo, em 2014 e por fim, Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, em 2016. Esses
eventos foram divulgados pelo poder público e pela mídia hegemônica como um “momento
de oportunidade” para a feitura de grandes intervenções urbanísticas que, passados os eventos,
deixariam um importante legado para a população carioca (LACERDA, SALLES e
NOVAES, 2016).
141
E a implantação das UPPs estaria atrelada a um planejamento urbano carioca que
viabilizaria o novo modelo empresarial proposto para a cidade. Brito (2013) ressalta um
exemplo ilustrativo da relação existente entre pacificação e o empreendedorismo urbano. O
autor destaca que o papel das UPPs instaladas em favelas do centro da cidade para garantir a
realização do projeto Porto Maravilha foram fundamentais na privatização do espaço público
local, como também, na comercialização de Certificados de Potencial Adicional Construtivo –
CEPACS – no mercado financeiro, o que acabou por promover “a financeirização da cidade,
aprofundando o processo de empresariamento urbano em uma área onde cerca de 70% do solo
é público” (BRITO, 2013. p.97). Tal processo segue na contramão do Estatuto da Cidade e da
função social da propriedade,
Conforme Vanessa Andrade (2013), os moradores das favelas estão sendo “ensinados”
que as práticas que forjaram ao longo dos anos como forma de se integrarem à sociedade de
consumo, como os gatos de internet, luz, TV a cabo devem ser consideradas execráveis e que
pagando regularmente as contas desses serviços se transformarão, enfim, em cidadãos. Tal
“Vontade pela cidadania” – expressão cunhada por Fonseca (1997) – representa um
desdobramento e ao mesmo tempo, um facilitador da implantação e desenvolvimento de
142
“procedimentos da biopolítica neoliberal que transformam a cidadania em uma mercadoria
fabricada em série comprada a prestações que devem ser pagas junto com as taxas de IPTU,
luz, TV a cabo, cartão de crédito, etc” (ANDRADE, 2013, p. 59).
Assim, nas favelas pacificadas a seguinte frase se tornou popular: “A Sky vem em
cima do caminhão do BOPE”. A atuação da empresa só foi possível graças a um acordo
realizado entre a Sky, a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos e a Secretaria de
Segurança do Governo do Estado que, por sua vez, resultou em um pacote promocional da
Sky chamado “Sky UPP”. O pacote “Sky UPP” disponibiliza 89 canais de todos os gêneros,
incluindo sete dos dez canais mais assistidos da TV paga. Os assinantes também contam com
a rede de assistência técnica da operadora. O então presidente da Sky, Luiz Eduardo Baptista
Rocha, explanou o seguinte discurso no dia da inauguração do programa: “A Sky, como
empresa cidadã, espera sinceramente poder colaborar com a reintegração dessas comunidades
ao processo econômico”. Já o então secretário de Assistência Social e Direitos Humanos,
Ricardo Henriques, avaliou que oferta do pacote da Sky é importante conquista para o
exercício da cidadania dos cariocas nesses territórios, onde se promove a formalização,
integração e o progresso (PROP MAK, 2010).
Em março de 2014, o jornal The Guardian publicou uma matéria escrita por Clarissa
Lins, consultora contratada pela Light. Na referida publicação, Lins enfatiza que por muito
tempo os moradores de favela roubaram a energia das empresas concessionárias – que nada
podiam fazer diante do controle armado do tráfico de drogas – porém, o panorama havia se
143
modificado totalmente com a pacificação. De acordo com a consultora da Light, com o
território sob controle do Estado, havia uma necessidade urgente de retomar a prestação de
serviços básicos de forma regular. “As pessoas arriscaram suas vidas para roubar energia e
não levaram em consideração os níveis de consumo. Para a empresa local, esses potenciais
clientes foram responsáveis pelo alto nível de perdas e inadimplência”, disse Lins. Ela
completou o artigo afirmando que o “contrato social havia sido interrompido” e fez questão
de frisar que a Light não pode ser vista como “vilã da história”, mas sim, um ente importante
no processo civilizatório pelo qual os moradores deveriam passar (THE GUARDIAN, 2014).
Entretanto, a visão a respeito da Light por parte de quem vive nas favelas pacificadas
é nada positiva. De acordo com relatos de moradores da Favela Santa Marta, as primeiras
faturas da Light vieram com preços abusivos, em torno de RS 1.000,00. Pedro, morador do
território37, relatou que vários residentes tiveram que sair da favela porque não conseguiram
pagar as contas. Ele considera essa situação “muito triste”. Esse calamitoso panorama acabou
causando grande indignação. Em 2014, os moradores organizaram um protesto contra os
abusos da Light no Santa Marta, bloqueando a Rua São Clemente, uma das principais vias do
bairro de Botafogo. Centenas de pessoas partiram da Praça Corumbá – ponto de entrada da
Favela Santa Marta – e marcharam com as contas de energia elétrica nas mãos, em uma das
mais intensas mobilizações já ocorridas na favela (ver Figura 18).
37
A entrevista com Pedro foi realizada em 2015.
144
Figura 18 - Imagens do “Ato contra as contas abusivas da Light”
Eu quero que vocês entendam e compreendam que isso faz parte de um projeto de
cidade. Um projeto onde o que está à venda é a própria cidade, uma cidade elitizada,
mercantilizada. Uma cidade onde hoje, você que é pobre, é da classe trabalhadora
você não pode residir nas áreas nobres. Depois da militarização das UPPs há uma
intenção... veja bem quem estão alugando os imóveis no Santa Marta, se é o
migrante nordestino, que migrou do Nordeste para tentar uma vida melhor em uma
grande metrópole. Não é mais, porque? Encareceu. Quem tá subindo é classe média
que também está sofrendo em uma das cidades com o custo de vida mais caro do
mundo, porque hoje (o Rio é) pra burguesia e pra elite. Porque você trabalhador,
serve como força de trabalho da elite, mas não serve pra viver próximo dos ricos.
Eles querem enviar você pra Campo Grande. O PAC no papel é um projeto bom,
mas na prática virou um plano muito bom para higienização da pobreza. O Paes não
quer mais pobreza nas áreas nobres. E o que manterá a gente aqui? É a nossa
resistência, favela é quilombo. Temos que manter com a nossa história. Eles estão
mexendo com o maior bem que o pobre tem, que é a sua casa. Estamos contra esse
38
Ato contra as contra as contas abusivas da Light realizado no Santa Marta. Data:25/03/2014. Disponível em:<
https://www.youtube.com/watch?v=zbYUNo3wRGg> Acesso em 14/04/2016
145
processo fascista de gentrificação da pobreza. (Morador da Favela Santa Marta, em
ato contra as contas abusivas da Light, 2014)
39
Documentário Historias da “Pacificação” – Descaso da Light (2013).
40
Idem.
41
O termo gentrificação é uma tradução literal da palavra gentrification. Ele foi utilizado pela primeira vez pela
socióloga britânica Ruth Glass em 1964. A expressão descrevia um novo processo de mudança urbana que se
iniciava no centro de Londres. As mudanças descritas pela pesquisadora atualmente são conhecidas como
gentrificação clássica e representam a “invasão” da gentry (termo que pode ser traduzido como “pequenos
nobres ingleses, porém, reporta-se as classes médias) nos bairros onde morava a classe trabalhadora, substituindo
a população então residente pela gentry (OLIVEIRA, 2017).
146
Para a diretora executiva da ONG Comunidades Catalisadoras, Theresa Williamson, a
remoção branca ou gentrificação, normalmente, inicia-se com um grupo bem-intencionado,
como os estrangeiros que se mudam para as favelas em busca de experiências culturais e
moradias mais baratas. “A gentrificação é o contrário do desenvolvimento comunitário.
Quando há o desenvolvimento, os moradores conseguem se beneficiar, o que não ocorre nesse
processo de remoção branca, em que as pessoas são expulsas da comunidade”, avalia
Williamson. Contudo, ela enfatiza que a culpa maior é do empresário carioca que realiza
grandes empreendimentos nas favelas (CBN, 2014).
No Rio de Janeiro, a Favela do Vidigal é uma das mais atingidas pelo processo de
gentrificação (ver Figura 19). Conhecida como o “Morro dos artistas”, tornou-se local que
abriga festas e casas luxuosas. O presidente da Associação dos Moradores do Vidigal,
Marcelo da Silva, avalia que os residentes da favela ficam contentes em receber visitantes.
Porém, essa popularidade também tem acarretado problemas. “Muitos não têm mais
condições de viver aqui, os aluguéis deles sobem de preço e eles têm que arranjar outro lugar
para morar”, ressaltou Silva (DW BRASIL, 2014).
À esquerda da imagem, observa-se a construção de uma casa luxuosa no Vidigal. Ao fundo, casas de padrão
costumeiro nas favelas.
Fonte: DW Brasil (2014)
147
gentrificação, foi possível evidenciar que a já “esvaziada” questão social nas favelas cariocas
cada vez mais é secundarizada, pois os dispositivos de gestão apenas conseguem conceber
esses territórios na ótica da mercantilização de espaços e da gestão militarizada, passando ao
largo da pauta dos direitos sociais.
No texto “O mercado sobe o morro. Cidadania desce?”, Sabrina Ost e Sonia Fleury
(2013), avaliam que a expansão do mercado propiciada pela maior inserção do Estado nas
favelas pacificadas possibilitou a chegada de alguns benefícios – como serviços de melhor
qualidade, diversidade na oferta, conhecimento, oportunidades de fontes de renda e de
capacitação – contudo, aqueles que tiveram mais capacidade de aproveitar a oportunidade de
lucrar foram os mais beneficiados com a pacificação, como é o caso das grandes empresas e
alguns pequenos empreendedores, enquanto outros tantos vivem na insegurança. Assim,
correu-se o risco de que esta política acabasse acarretando o empobrecimento da população,
ao mesmo tempo em que o governo do Estado dizia ter “como meta a redução da pobreza”
(OST, FLEURY, 2013, p. 663). As autoras cunharam o termo “cidadania de exceção” para
nomear o tipo de cidadania que o Estado buscou oferecer ao favelado, pois as políticas
implantadas pelo mesmo, por um lado, não levaram em consideração as desigualdades
históricas entre a população da favela e a população do asfalto; e por outro, igualaram os
deveres de consumidores sem que os moradores de favela fossem agraciados com os bens
públicos que o Estado oferece à população do asfalto. Elas advogam que o Estado deveria ter
como foco a proteção social,
A história nos mostra que o Estado tem papel primordial na compatibilização entre
mercado e a segurança do cidadão visando o enriquecimento da vida civilizada com
a redução do risco e da insegurança. Sem proteção e regulação estatal, os moradores
da favela veem os direitos de cidadania ameaçados pela crescente especulação
mercadológica e imobiliária, além de sofrerem o empobrecimento causado pelo
aumento do custo de vida (OST, FLEURY, 2013, p. 664-665).
Nessa perspectiva, Dardot e Laval (2016) avaliam que a racionalidade neoliberal – que
hegemônica em todo mundo – não indaga sobre que tipo de limite dar ao governo político, ao
mercado, aos direitos ou ao cálculo da utilidade, sua preocupação se relaciona sobre como
fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens como o do governo de si. “O
neoliberalismo é precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica
148
normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade” (DARDOT,
LAVAL, 2016, p. 34).
149
CAPÍTULO 3
151
3.1. Ensinando da norma empreendedora
Pessoas com vidas interessantes não têm fricotes. Elas trocam de cidade. Investem
em projetos sem garantia. Interessam-se por pessoas que são o oposto delas. Pedem
demissão sem ter outro emprego em vista. Aceitam um convite para fazer o que
nunca fizeram. Estão dispostas a mudar de cor preferida, prato predileto. Começam
do zero inúmeras vezes. Não se assustam com a passagem do tempo. Sobem no
palco, tosam o cabelo, fazem loucuras por amor e compram passagem só de ida.
A frase acima pertence a jornalista e escritora Martha Medeiros e circula pelas redes
sociais de modo contínuo, tornando-se assim, atemporal. A jornalista dita as regras que as
pessoas devem seguir para trabalhar as relações que são estabelecidas consigo mesmo. Desse
modo, para o sujeito se conformar enquanto pessoa de sucesso e realizada, a jornalista afirma
que é necessário não ter medo de se aventurar e que é preciso assumir riscos, correr atrás dos
seus sonhos, responsabilizar-se pelos seus fracassos, conduzir-se a felicidade que deseja na
vida.
Para Nicolas Rose (2015), a partir do momento em que o poder político nota que as
pessoas têm aspiração por liberdade, o mesmo passa acompanhar esse desejo individual e
estruturar um campo de ação por onde os sujeitos aspirantes devem ser conduzidos. Na
contemporaneidade, o empreendedorismo se tornou uma atividade fomentada pelos mais
diferentes dispositivos para que os sujeitos passassem a conduzir-se enquanto “protagonistas
de seu destino”.
Para Meirelles e Athayde (2014), é importante destacar que nas favelas pacificadas,
perdeu-se o “investimento” do tráfico, que de uma forma ou de outra, proporcionava a
circulação do dinheiro na favela. Um dos interlocutores do estudo revelou que no Complexo
do Alemão os moradores consideravam o traficante Orlando – atuou no tráfico em décadas
passadas – uma figura amada por todos, pois ele sempre dispunha de dinheiro para as pessoas
necessitadas, incentivava as crianças a irem à escola e promovia até eventos culturais, como
por exemplo, o financiamento do show do cantor Elymar Santos. Porém, desde a morte do
estimado traficante, o Alemão sofreu com invasões constantes que provocaram o surgimento
de novos chefes de tráfico a cada dia, e por não serem “nascido e criado” no território, não
desenvolveram empatia em relação aos moradores, tratando-os assim, sob “rédeas curtas”.
154
entidade ser privada, prestou apoio junto ao poder público por meio do programa “Sebrae nas
pacificadas”.
155
atividades e a relação com as instituições de apoio e fomento ao
microempreendedorismo;
e) Captar a utilização e domínio de ferramentas de gestão, contabilidade,
manipulação de estoques, conhecimento de mercado e clientes, entre outros que
permitam conhecer melhor os micros processos da atividade e a relação entre o
microempreendedor e o seu negócio;
f) Coletar e sistematizar informação de aspectos que aprofundem o debate sobre os
determinantes da formalização e os possíveis gargalos decorrentes para o
desenvolvimento e sustentabilidade dos microempreendimentos (SEBRAE, 2012, p.
8-9).
156
microempreendedores se autoqualificam nessa classificação, assim como 37% dos habitantes
da cidade. Já entre os autodeclarados pretos, a variação é menor: 11% dos moradores do
município contra 21% dos microempreendedores pesquisados. Assim, realizando o
agrupamento sugerido pelo IBGE, as favelas da pesquisa contam com 73 % de
empreendedores negros e 26% de empreendedores brancos.
❖Registro dos negócios: No total das favelas com UPPs estudadas pelo Sebrae (2012),
apenas 17% dos microempreendedores afirmaram que possuem algum tipo de registro de
negócio. Este resultado foi influenciado pelo baixo patamar de formalização entre as pessoas
que trabalhavam por conta própria, dos quais somente 14% tinham algum tipo de registro. Os
registros mais frequentes nas favelas avaliadas foram o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica
(74% dos empregadores formalizados43 e 47% dos trabalhadores por conta própria
formalizados possuíam CNPJ), o cadastro de microempreendedor individual (32% dos
empregadores formalizados e 27% dos trabalhadores por conta própria formalizados eram
MEIs), as licenças ou permissões estadual ou municipal (22% dos empregadores formalizados
e 17% dos trabalhadores por conta própria formalizados) e os alvarás (24% dos empregadores
formalizados e 13% dos trabalhadores por conta própria formalizados).
A partir de 2011, o Sebrae iniciou uma “cruzada” nas favelas com a meta de
combater o trabalho informal. Segundo a instituição, 92% dos negócios nas favelas não eram
regularizados. Conforme a coordenadora de empreendedorismo em comunidades pacificadas,
Carla Teixeira, o Sebrae lançou mão de diversos meios para atingir os objetivos da entidade:
"Temos consultores nas UPPs e nas associações de moradores. Utilizamos rádios
comunitárias e até capacitamos soldados da polícia sobre a importância do comércio legal ".
Ela evidencia ainda que a informalização se refere a uma “cultura” que precisa ser mudada e
que com a pacificação a tendência era que os negócios fossem formalizados (UOL
ECONOMIA, 2012).
Ainda conforme Carla Teixeira (2015), o Sebrae observou um obstáculo nas favelas
pacificadas que é comum para todos os empreendedores brasileiros: a falta de preparo ao
montar um negócio. Para ela, com as empresas que nascem em favelas, essa dificuldade é
agravada devido à falta de estudo desses pequenos e médios empresários.
43
Empregadores formalizados são empreendedores que possuem funcionários, ao contrário dos empregadores
por conta própria, que executam todo o serviço sem o auxílio de funcionários.
157
O trabalho do Sebrae é realizar palestras e capacitar esses empresários para que eles
consigam gerir seus negócios. Durante os trabalhos realizados nas comunidades,
tivemos que adaptar o material para uma linguagem mais acessível e que fosse
compatível com a escolaridade desses empreendedores. Além disso, orientamos
sobre diversos aspectos de um negócio, como o acesso ao crédito e precificação de
produtos. Desde 2010, fizemos 60 mil atendimentos e conseguimos formalizar mais
de seis mil empresários. Devido à localização geográfica e a forma como as
construções foram organizadas, uma dificuldade especifica das favelas, está
relacionado com a logística. Alguns fornecedores não conseguem entregar
mercadorias: as ruas são muito estreitas e íngremes, então, caminhões não passam.
A logística fica geralmente mais cara (TEIXEIRA, 2015, p.01).
Ela destacou que fez vários cursos no Sebrae e que a entidade foi fundamental para
que a mesma soubesse organizar o seu negócio, sendo que foi no Sebrae que conheceu a sua
sócia, Margarete (nome fictício, guia de turismo. Pesquisa de Campo, 2017). Samanta acredita
que “o Sebrae é muito bom, ele ajudou a gente bastante. Só não teve ajuda do Sebrae quem
não quis. O Sebrae deu uma grande oportunidade aqui para galera”. Outro guia de turismo
do Santa Marta –Carambola – também disse que participou de vários cursos do Sebrae nos
dois anos em que o programa “Sebrae nas comunidades” esteve no território.
Henrique (nome fictício, guia de turismo do Santa Marta) segue a mesma perspectiva
de Carambola. Para ele, o Sebrae foi fundamental para que entendesse o que era o
empreendedorismo,
Já Andressa – nome fictício, dona de uma loja de souvenir na Favela Santa Marta.
Pesquisa de campo, 2017 – disse que ter frequentado vários cursos que o Sebrae
disponibilizou na favela foi motivo de orgulho para ela. “Eu fiz vários no Sebrae, meu filho!
Eu quase morava lá. Eu fiz formação de preço, fiz monitora de turismo. O curso de serigrafia
foi no Sesi. Eu fiz muito curso no Sebrae”.
Em sua cartilha, o Sebrae detalha os passos que os moradores de favela devem seguir
para desenvolverem uma atitude empreendedora. Assim, eles necessitam ter: a) Persistência:
saber que todo empreendedor comete erros, porém, se eles acontecerem é necessário
prosseguir; b) Resiliência: possuir capacidade de retornar ao seu estado natural após viver
159
“situações incomuns”; c) Mente aberta: ler materiais de apoio, livros, revistas, blogs que
possam expandir o conhecimento do empreendedor e por fim, d) Mentoria: ouvir os
conselhos empreendedores experientes e de consultores especializados (SEBRAE, 2015).
Contudo, não foi apenas o Sebrae que auxiliou os moradores de favela a se tornarem
empreendedores. Isabela – nome fictício, guia e dona de uma agência de turismo na Favela
Santa Marta. Pesquisa de campo, 2017 – afirmou que após passar por um rigoroso processo
seletivo, conseguiu ser assessorada pela incubadora Rio Criativo. A empreendedora destacou
que a entidade somente a aprovou no certame pelo fato da Favela Santa Marta contar com
uma base da UPP.
44
FAPERJ: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
160
Resumidamente, o pensamento que envolve a incubação é trazer a empresa e o
empreendedor para um espaço controlado, de modo que a entidade, como também, e o sujeito
empreendedor sejam modelados de maneira permanente por uma rede de especialistas. Isabela
afirmou ao pesquisador que considera que a participação na incubadora Rio Criativo fez com
que ela se tornasse de fato um empreendedora, sendo que ela trata esse projeto como um
“divisor de águas” em sua vida. “Eu sempre falo, todo empreendedor deveria ter uma
incubadora para chamar de sua, porque para mim fez muita diferença”.
Isabela avalia que participar da Rio Criativo “foi muito interessante, como
empreendedora eu me senti mais confiante para lidar com o mercado, para lidar com as
pessoas e como eu já tinha aquela coisa de pensamento crítico e tudo mais, me ajudou”. Ela
disse que a Rio Criativo ajudou a mesma a conformar a sua empresa como um negócio social.
“Eu na verdade acabei parando na Rio Criativo porque o Sebrae não entendeu a minha
proposta de negócio, como o Sebrae trabalha muito com essa coisa mais crua, eu não estava
crua”. Assim, a empreendedora já possuía plano de negócio e o escopo de como a sua
empresa iria funcionar, então acreditava que precisava ir além.
161
Contudo, para Isabela se tornar uma empreendedora incubada pela Rio Criativo, a
mesma teve que seguir os ditames da rede de consultores e “abrir mão” de seus valores
pessoais. Ela foi praticamente obrigada pela Rio Criativo a participar de um comercial que
seria veiculado na Rede Globo de Televisão. Na época em que a reportagem foi gravada,
Isabela estava em um momento angustiante, em que tinha que divulgar a empresa e fazê-la
faturar a todo custo, já que tinha assumido compromissos bancários, entretanto, “aparecer na
Globo para mim não é uma coisa que eu tenha o maior tesão, muito pelo contrário, a Globo
representa o turismo de massa, e eu não quero o turismo de massa na favela”,
Só que eu tava lá na incubadora né, esses desgraçados (TV Globo) conseguiram né...
quase acabar com a minha vida... esses miseráveis. Porque eles vieram fazer uma
entrevista comigo e eu falei olha: É tiro, porrada e bomba e aí era aquele cara, o
Fábio Judice, [...] então eles vieram, uma repórter da Globo veio também e era
aquela coisa assim, você tem que falar isso, isso e isso. Eu já ficava estressada,
entendeu? O repórter falava: “Você tem que falar assim: A água é insípida e
inodora”. Eu falava assim: “Bom gente, tudo bem?”. Eles diziam: “Bom gente não,
você tem que falar água é insípida e inodora, eu não falei para você falar bom
gente, não tem bom gente”. Eram frasezinhas curtas (que eu tinha que falar). Então
nesse sentido para mim foi muito frustrante, você não tem ideia do que as pessoas
vão escrever. Aí as pessoas falam: “Isabela você apareceu, você é muito orgulho”,
mas eu não senti orgulho, entendeu? Eles fizeram uma matéria sobre a Copa do
Mundo. Pô, eu sou uma pessoa que foi em todos os movimentos, eu fui em todos
esses protestos, essa p***a toda (Entrevista com Isabela. Pesquisa de Campo, 2017).
Isabela aprendeu a “duras penas” que para tornar-se uma empreendedora, antes de
tudo, é preciso sujeitar-se. A partir do momento em que ela assinou uma linha de crédito junto
a Rio Criativo, a empreendedora entrou em um sistema de recompensas e punições. Os
tesionamentos de relações de poder marcadas pela dissimetria de poder fizeram com que
162
Isabela fosse pressionada a renunciar as suas ideias para aliar-se ao pensamento institucional,
já que como ela mesma afirma, “o Rio Criativo ficava no meu pé comendo meu fígado”.
163
Eu não poderia deixar de vir inaugurar esse projeto (Rio Top Tour) porque nós,
da nossa geração, precisamos recuperar o tempo perdido para que os nossos filhos
não precisem chamar nenhum bairro de favela, para que tudo seja bairro, tudo seja
comunidade (O GLOBO, 2012). Visitando, andando pelas ruas é que temos a
certeza de que a comunidade está em paz [...]. (ex-presidente, Luiz Inácio Lula da
Silva). As UPPs estão mudando o Rio e o turismo está acompanhando essa
revolução, abrindo oportunidades de geração de emprego e renda para a população -
ex-ministro do Turismo, Luiz Barreto (MINISTERIO DO TURISMO, 2012).
Este programa é uma celebração do direito de ir e vir –ex-secretária Estadual de
Turismo, Márcia Lins (O GLOBO, 2012, p.01).
Conforme a pesquisa realizada pelo Instituto Data Favela (2015), ser o dono do
próprio negócio é o desejo de 40% dos 12 milhões de moradores das favelas brasileiras, tal
número é maior que a média brasileira. No Brasil, 23% das pessoas querem se tornar donos de
empresas, segundo o estudo. “Entre os moradores de favelas que querem ter o próprio
negócio, 55% pretendem abrir em até três anos. A maior parte (35%) deseja investir no ramo
de alimentação. Quanto à localização, 63% querem empreender dentro da favela onde vivem”.
(UOL ECONOMIA, 2015).
164
A seguir, serão apresentadas as histórias de alguns empreendedores das favelas
pacificadas do Rio de Janeiro.
165
3.2. Os empreendedores turísticos das favelas pacificadas
Ao entrar na Favela Santa Marta é possível ver centenas de casas aglutinadas. Existem
desde grandes construções com três andares a casas com estruturas precárias (que misturam
madeira com placas de ferro sobrepostas). Nas lajes das residências de alvenaria se observou
muitas caixas de água e antenas parabólicas, sobretudo da Sky. Os turistas que transitam pela
favela têm como parada principal a laje do Michael Jackson, onde podem tirar diversas fotos
com a estátua do cantor, situado em um espaço conhecido como “Laje do Michael Jackson”.
Na mesma laje tem um muro com a imagem do cantor americano feita por pequenos ladrilhos.
Esse ambiente é cercado por guarda-corpos por causa da expressiva altura do lugar e recebe
muitos eventos, normalmente de samba, que são organizados por empreendedores da favela –
mas o público é do “asfalto” – quase não tem morador nas festas realizadas ali.
Não muito distante do bar de múltiplas funcionalidades, foi possível avistar um Sushi
bar. O dono do estabelecimento apesar de “ser nascido e criado” na favela não trabalha ali, ao
invés disso, fez com que dois moradores se transformassem em chapeiros. “Ele teve o dom de
montar o negócio, me profissionalizou, assim como meu amigo, que trabalhava na chapa e
166
que daqui a pouco está chegando”. A pacificação ajudou a dinamizar o movimento do Sushi
Bar, já que agora o pessoal do “asfalto” passou a adentrar a favela sem grandes temores.
“Aqui é pra geral, não tem o negócio de mais para morador não. Vem turista, morador, gente
da pista, vem todo mundo. Eles também podem pedir comida pelo whatsapp” completou o
chapeiro.45
45
A entrevista com o chapeiro foi realizada em 2016.
46
O museu territorial é um tipo de museu que articula a paisagem de uma comunidade por meio de todo tipo de
relação entre sociedade e natureza na produção de cultura (SCHEINER, 2009 apud MORAES, 2010)
167
Assim como o Pavão-Pavãozinho/Cantagalo, o Complexo do Alemão viveu um
boom turístico após a pacificação e chegou a receber até a visita do príncipe Harry, em 2012.
Na ocasião, o príncipe foi apresentado a alguns militares da Força de Pacificação e chegou a
vestir o boné azul turquesa da tropa. Os militares quebraram o protocolo e sacaram suas
máquinas fotográficas para tirarem fotos do príncipe "Ele quis saber se hoje nós podemos
transitar livremente por todas as ruas do Alemão. Falei para ele que podemos, e os
moradores também", disse o então comandante Miguel Paiva (BBC, 2011). Entretanto, dois
anos após ser pacificado o “Alemão turístico” esmoreceu com a volta dos tiroteios, o que
acabou frustrando os empreendedores daquele território.
168
3.2.1. Carambola: “A pacificação foi tipo assim: vai lá e faz pô! Você tem que fazer
diferente, entendeu? Aí, todo mundo teve que fazer diferente”
O empreendedor acredita que a participação no projeto Rio Top Tour foi um “start”,
pois o mesmo afirmara que possuía algumas ideias, mas que não sabia como concretizá-las.
Conforme ele, as pessoas dizem: “Vai se capacitar!... falar é fácil, mas pra quem sabe como
é viver em uma favela, a dificuldade que tem, do que precisa fazer, você acordar cedo para
trabalhar e do trabalho ter que voltar para cuidar dos filhos e ter que estudar. É difícil”.
Quando o projeto Rio Top Tour veio para o Santa Marta foi dada a possibilidade aos
moradores de favela de fazer um curso de guia de turismo em um colégio estadual situado na
Praça da Bandeira (as pessoas teriam que ter o ensino médio concluído). Carambola acredita
que o conhecimento adquirido no curso de guia foi fundamental para desenvolver o seu
negócio. No final de cada semestre, os alunos tinham que apresentar um trabalho acadêmico
“Então, por exemplo, eu apresentava um roteiro no Santa Marta, apresenta um sistema de
hospedagem no Santa Marta, apresenta uma reserva no Santa Marta”. Desse modo, as
tarefas acadêmicas serviram de base para a implantação do seu negócio. “Então daquilo ali eu
consegui ter uma visão ampla e aberta. Eu fui investindo em conhecimento e fazendo as
coisas acontecerem”. Após o término do curso, Carambola se regularizou enquanto MEI
(Microempreendedor Individual).
Quando eu abri a empresa em 2012, eu abri o MEI. Eu já era guia. Então, já foi um
trabalho muito rentável, rentável na questão de você conseguir trabalhar, ter um
salário para você e com um pouquinho que sobrasse você empreender com
investimentos. Por exemplo, no hostel. Então, desde o primeiro ano, começou a dar
47
As entrevistas com o Carambola foram feitas em dois períodos distintos. A primeira foi realizada no mês de
janeiro de 2015 e a segundo foi efetuado em dezembro de 2017.
169
lucro. As pessoas acham o seguinte: começou a dar lucro, então já vem um monte de
cifrão, um monte de dinheiro. Desde que você consiga se manter, manter os seus
filhos, você consegue pegar um pouquinho da grana e fazer um investimento no seu
negócio, fazer um novo cartão, um novo panfleto, um site, já é um lucro. Porque
como a gente atua com uma mentalidade de negócio social, ele não visa só o lucro, o
lucro é revertido para que as pessoas cresçam e se desenvolvam, então no Santa
Marta eu comecei como o primeiro guia da comunidade. Agora nós temos 12 guias,
entendeu? E isso para mim é um ganho muito grande. Porque agora, por exemplo,
tenho a condição de pegar um aluno que estuda para ser guia e botar num táxi e levar
ele na escola para não se atrasar e fazer a matrícula e ajudar ele fazer um curso de
guia e hoje ele ser um guia. Então isso é um investimento (Entrevista com
Carambola. Pesquisa de Campo, 2017)
Ele acredita que qualquer um pode empreender, mas acha que não é só o fato da
pessoa ter dinheiro que a habilita a empreender, como também, não seria somente o fato de ter
conhecimento, pois “são um conjunto de coisas que tornam alguém em um empreendedor e
eu costumo dizer que as pessoas que nascem nas favelas já nascem empreendedores, é só
deixar aflorar”. Quando confrontado pelo pesquisador porque as pessoas na favela já nascem
empreendedoras, Carambola afirma que é “porque as pessoas são menos favorecidas, daquela
dificuldade transforma em algum negócio para sua família e consegue resolver um problema
na sua comunidade, em seu meio de sobrevivência”.
Carambola acha que o empreendedor precisa ter comprometimento por aquilo que faz
e necessita realizar algo que cause um impacto positivo no local onde vive, pois na sua
opinião: “Eu falo para qualquer um que seja empreendedor há muito mais tempo do que eu,
não é só visar lucro, visar só dinheiro. É visar transformar um problema numa causa e dessa
causa empreender”. O guia considera o empreendedorismo uma espécie de “varinha mágica”,
capaz de transformar um barracão de madeira em uma guest house (adaptação de uma casa
para receber turistas).
170
Eu trabalhava com coisas que eu não tinha amor, por conta do dinheiro, tinha que
pagar as contas de casa para ajudar os meus filhos, fui participar de um projeto
social, de um projeto chamado Rio Top Tour, um projeto de turismo, desse projeto
eu conheci o mundo do turismo e vi na minha comunidade, na favela, uma
oportunidade de empreender e transformar de fato minha favela em um local de
acesso para visitantes no mundo inteiro, transformar minha casa em um local onde
as pessoas possam se hospedar e ter uma hospedagem de experiência mais
diferenciada do que você estar em um hotel cinco estrelas, por exemplo. Você tá em
um prédio, tudo bem, você está lá e tal, tal, tal. Mas você não tem uma vista da
favela, por exemplo, você não tá vendo uma vista de uma pessoa que mora na
favela, muita das vezes em um barracão simples de madeira, através disso
(empreendedorismo) consegue transformar sua casa em uma guest house, e dessa
guest house ele consegue movimentar uma grana e com isso sustentar melhor a
família, gerar a economia local, fazer com que os turistas gastem dentro da
comunidade, isso é muito importante (Entrevista com Carambola. Pesquisa de
Campo, 2017).
O outro ponto interessante que Carambola destaca, refere-se ao fato dele acreditar que
existe uma grande diferença entre os empreendedores da favela e do “asfalto”, pois esses
últimos contam com grande aporte financeiro ao iniciarem os seus negócios,
A diferença é muito grande, a maioria das pessoas que empreendem no asfalto tem
dinheiro para investir. Conheci uma menina agora que fez uma guest house aqui
perto. Na parte de baixo ela alugou o espaço dela, tem um restaurante... fez uma
cozinha, um novo negócio vamos dizer, de alimentação saudável. Ela gastou 200 mil
no espaço, entendeu? O cara vai fazer um negócio na favela. Aqui na favela não tem
um negócio desse. A gente tá ajudando a criar, a desenvolver. A gente criou do
nada, do zero, entendeu? Com o que entra a gente conseguiu fazer uma lojinha, com
o que entrou a gente conseguiu comprar a bancada, com o que entrou a gente
conseguiu pintar. A diferença é muito grande. Desde o conhecimento que eles têm,
até contatos e oportunidade financeira, que é o que nós mais nos esbarramos
(Entrevista com Carambola. Pesquisa de Campo, 2017).
172
morro” e ex-presidiário complicava a sua vida. Assim, tornar-se empreendedor se configurou
em uma brecha, uma forma de “driblar” os preconceitos do mercado de trabalho.
Ele considera que faz parte de uma geração perdida, onde a maioria de seus amigos foi
morta pela polícia, em uma perspectiva onde sua trajetória com final vencedor se refere a uma
exceção,
Faço parte de uma geração que não teve oportunidade de trabalho, oportunidade de
fazer curso, oportunidade de nada, sempre foi discriminada. Se não for fazer como
eu fiz, correr atrás, ir batalhar, buscar seu lugar ao sol, vai ser só mais um para
sociedade. Mais que morreu, mais um que está buscando trabalho, mais um que está
desempregado. Infelizmente, eu sou dessa geração e não vou deixar que a sociedade
me conte como mais um. Eu sou mais um sim, mais um que batalha, mais um que
corre atrás, que apesar de ter a infância e adolescência perdida... por exemplo, dos
18 aos 20 anos eu estava preso. Eu saí e não consegui arrumar trabalho. Era taxado
como ex-presidiário. Não se consegue trabalho. Não se consegue nada. E mesmo eu
preso... e muitos amigos meus, mesmo os que não foram presos, sofrem com a
mesma discriminação (Carambola, morador e empreendedor da Favela Santa Marta.
Pesquisa de campo, 2015).
Essa discriminação que Carambola diz sofrer, mesmo com a saída do “mundo do
crime” pode estar relacionada ao fato das pessoas acreditarem que os sujeitos que têm uma
trajetória de vida como a dele, possuem uma subjetividade peculiar (MISSE, 2010), algo
como um “carisma de valor negativo”, fazendo com que sempre sejam taxados como
“bandidos”.
De acordo com Michel Misse (2010, p.24), a formação de tal subjetividade peculiar
está vinculada aos processos de sujeição criminal. A primeira dimensão desse conceito é a que
seleciona um agente a partir de sua trajetória criminável, diferenciando-o dos demais agentes
sociais, por meio de expectativas de que haverá, em algum momento, demanda de sua
incriminação. Já, a segunda dimensão é a que espera que esse agente tenha uma “experiência
social” específica, conseguida em suas relações com outros bandidos e/ou com a experiência
penitenciária.
173
passível de ter-lhe permitido acessar registros ontológicos incomuns. “O carisma negativo se
metamorfoseia em carisma positivo. Não basta que haja conversão, é necessário dar-lhe o
testemunho público” (MISSE, 2010, p.30). O autor completa afirmando que não são poucos
os casos em que o ex-bandido se transforme no seu tipo oposto, em pastor, sacerdote ou
mesmo em “santo”.
Quando a experiência da sujeição criminal não é tão radical assim, ou é atenuada por
uma subcultura que lhe confere intersubjetividade suficiente para arrefecer essa
individuação extrema, o indivíduo, que geralmente também não se desfiliou tão
completamente dos vínculos que o integram à ordem legítima, poderá abandonar a
sujeição criminal utilizando-se de recursos sociais mais variados e menos
extremados. Ainda assim, sua experiência anterior lhe servirá para diferenciar-se do
homem comum (MISSE, 2010, p. 29).
A conversão pela qual Carambola passou é uma questão interessante. Alguns pontos
de sua trajetória se assemelham com as asserções teóricas de Misse (2010), pois Carambola é
uma figura pública dentro da Favela Santa Marta, uma pessoa conhecida por todos pelo seu
carisma, pelo seu trabalho como guia turístico, como também, por organizar diversos eventos
no território. O fato de toda favela o avistar conduzindo grupos de turistas poderia delinear
uma espécie de “testemunho público”, o que evidenciaria que Carambola deixou o “mundo do
crime” e redirecionou a sua trajetória. Outra questão que Misse (2010) coloca é que para
integrar-se ao “mundo social da ordem legítima” o sujeito pode lançar mão dos mais variados
recursos sociais.
Nesse sentido, Carambola utiliza em seu trabalho como guia turístico todo seu
estoque de conhecimento referente à favela, contando aos turistas histórias que se reportam a
época em que a favela era dominada por traficantes, porém, sempre busca enfatizar que a
favela também possui aspectos positivos,
Porque nos telejornais sai que tem troca de tiros, morte...não...Porque na favela não
tem só coisa ruim, tem pessoas do bem, tem pessoas que trabalham, pessoas que
criam seus filhos com amor e carinho. Viver numa favela não é fácil, ser taxado pela
sociedade não é fácil. É viver matando um leão por dia e correndo de dois
(Entrevista com Carambola. Pesquisa de campo, 2015).
174
êxito, reconduzindo assim, a sua trajetória que anteriormente estava ligada ao “mundo do
crime”. “Hoje em dia, sou empresário, e proprietário do meu próprio estabelecimento [..] saí
da linha da pobreza e hoje sou um empreendedor de sucesso, e muito sucesso, por sinal.
Meus sete filhos, comem do bom e do melhor”. Ele pode ser considerado uma espécie de
personalidade na favela, pois frequentemente é destaque em diversos meios de comunicação,
sendo que inclusive sua trajetória como empreendedor é utilizada em projetos publicitários do
Banco do Brasil.
Os tours desenvolvidos por ele são diversificados, pois são vendidos diversos
pacotes com preços que variam de R$90,00 a R$130,00. Além dos tours, Carambola possui
um hostel na localidade para que as pessoas possam vivenciar como é morar em uma favela.
Para ele, por meio do hostel se cria novas experiências que ficam na memória do turista,
acredita que o intercambio social é bom tanto para o turista, quanto para o morador, pois
“ajuda a incentivar o talento da galera local, fortalece o empreendedorismo no morro e
contribui para o desenvolvimento sustentável das favelas no Rio”.
175
3.2.2. Isabela: “O meu negócio se fortaleceu pós-pacificação”
Isabela (nome fictício, negra, 46 anos) é moradora da Favela Santa Marta.48 Ela
administra uma agência de turismo receptivo dentro da favela juntamente com uma sócia.
Isabela e sua parceira atuam na empresa enquanto guia de turismo. A empreendedora afirma
que representa o que os moradores do Santa Marta chamam de “cria da favela” por sempre ter
residido a vida toda no território. “Economicamente falando”, considera que teve uma
infância muito pobre e viveu momentos extremamente difíceis e conturbados na favela, pois
“foi um período de muitas guerras, tráfico de drogas e tudo mais. Então assim, não foi uma
infância muito tranquila, mas foi uma infância a onde a gente brincava na rua, a gente corria
por aqui (Praça do Cantão)”. Isabela considera que não teve uma “infância dos sonhos”,
porém, classifica a adolescência como o pior período de sua vida,
Quando você é criança, você não entende muita coisa, né. Mas depois que você fica
mais velho as coisas já começam a fazer sentido... em relação a entender o que está
acontecendo a sua volta. Quando você é criança quer muito é brincar. Quando já é
adolescente, você já entende um pouco as relações. Na adolescência eu vivenciei
muita coisa, muita guerra. Foram experiências bem fortes. Experiências bem
profundas (Entrevista com Isabela. Pesquisa de Campo, 2017).
Ela afirma que parte de suas profundas experiências são relatadas aos turistas durante
os tours. Isabela avalia que devido ao fato de morar na favela sempre tem alguma coisa nova
para contar. “Às vezes eu explico para as pessoas que quando eu era mais jovem eu tinha que
dormir com um travesseiro na cabeça, porque teve uma época aqui que a gente tinha muito
estupro. Eu ouvia as meninas serem estupradas, isso me perturbava muito”. Ela disse que tal
prática violenta não acontece mais na Favela Santa Marta, mas que o estupro de mulheres
ainda é uma realidade em muitas favelas do Rio de Janeiro. “São coisas que você vivencia.
Você conhece mulheres que foram estupradas e essa coisa toda, é pesado né. As próprias
guerras mesmo, você sai para escola e tem corpo pelo caminho. Essa era coisa que fazia
parte da vivência”.
Isabela disse que buscou apagar da memória muitas coisas doloridas que vivenciou
“para tentar seguir a vida”. Outras coisas ela avalia que é preciso falar (aos amigos), pois é
48
A entrevista com Isabela foi realizada em 2017, na praça principal do Santa Marta.
176
impossível ficar carregando tantos acontecimentos terríveis em sua vida por tanto tempo. “Eu
comecei a falar dessas coisas muitos anos depois, então você acaba virando psicólogo de si
mesmo. Então você processa essas coisas junto com outras pessoas, no dia a dia, né”.
Uma questão relevante que Isabela aborda se refere ao fato de que sua geração no
Santa Marta não teve muita possibilidade de sonhar. Ela acredita que em um passado não
muito distante os jovens não eram estimulados a sonhar. “Sou de uma geração de que
qualquer trabalho que se conseguisse na casa na madame já estava bom pra caramba. Então
a gente não foi educada para pensar, em querer ser um advogado”. Isabela relatou que
gostaria de ser veterinária “para o pessoal”, contudo, os moradores da favela zombavam dela
e diziam “que veterinária o que, vai trabalhar, vai fazer alguma coisa”.
A partir de então, ela começou a trabalhar com doze anos de idade. O primeiro
emprego dela foi em uma padaria. Na visão da empreendedora, isso aconteceu por não ter
sido estimulada a apenas estudar, mas sim, cumprir sua função social. “Nossa função social
era abastecer esse mercado. Eu não fui educada para fazer uma universidade, eu não fui
educada para concluir os meus estudos, entendeu? Eu fui educada para servir como mão-de-
obra”. Conforme Isabela, o trabalho de carteira assinada era algo muito valorizado dentro da
favela, não era necessário ter em uma profissão gratificante, pois o objetivo a ser alcançado
seria “pelo menos você não correr o risco de entrar para a marginalidade. É você tentar ter
uma vida digna. (Vida) digna é ter um trabalho fixo, uma parada assim”.
Nos seus vinte e poucos anos ela teve a possibilidade de estudar. Ela começou a
trabalhar na biblioteca de uma faculdade particular. Pouco tempo depois pleiteou uma bolsa
junto à instituição e conseguiu a mesma. Acabou escolhendo fazer faculdade de turismo,
“para ver se eu viajo nessa budega, na verdade é um pouco ilusório. Mas você alimenta esse
sonho”. Mas ao entrar na faculdade passou a conviver com novos desafios. O principal
problema para Isabela consistiu em estudar com o que denomina “nata da playboyzada da
Zona Sul”. E quando ela entrou na faculdade percebeu que era a única favelada. “Então você
sempre era minoria”. Quando indagada pelo pesquisador qual foi a reação dos estudantes ao
saber que ela morava na favela, Isabela afirmou que escondia de todos essa informação,
Na escola eu nunca falava que era da favela. Na faculdade eu meio que cansei um
pouco disso. Eu falei... Eu não vou mais vestir essa máscara. Vocês vão ter que
aceitar do jeito que eu sou. Eu não era uma pessoa de f***-se. Mas naquela época eu
fiquei um pouco assim. Agora eu vou assumir essa p***a. Eu nunca tive orgulho
177
de ser favelada naquela época, não é orgulho estar na favela. Mas eu estava um
pouco cansada de ter que ficar fingindo, de ter que ficar escondendo para as pessoas.
Nunca na minha vida acadêmica as pessoas vinham na minha casa para fazer o
dever de casa. Então é um pouco assim... Eu falei... não vou mais inventar história,
(pois para mentir) você tem que ficar inventando muita história. Então isso é uma
coisa que na época da escola era muito difícil, né (Entrevista com Isabela. Pesquisa
de Campo, 2017).
Assim, lembrar do passado é algo que deixa Isabela atordoada. Enquanto lembrava dos
momentos difíceis vivenciados na faculdade regrediu seu pensamento para dificuldades
vividas em época anterior, na escola. Isabela se sentia apequenada por ser favelada e os outros
alunos serem abastados. Quase todo o material da escola dela era feito com coisas recicladas.
“Há sempre aquela luta. Eu ia para a escola com o uniforme todo usado, minha mochila era
uma calça jeans que minha mãe fez. O estojo era de um pano que minha mãe também fez.
Meu pai amolava o lápis com faca”.
Quando estudou no Colégio Pedro II ela sofreu muito por também ter que mentir em
relação ao lugar onde morava. Uma questão que a apavora era contar como foram as suas
férias nas redações que os professores pediam no início do ano. “Eu mentia horrores”, disse
ela. Nessa época, Isabela teve que começar a pensar aonde iria “inventar que foi viajar”, pois
todos os alunos compartilhavam relatos de suas viagens pela Europa e que inclusive
chegavam a encontrar o professor em determinado país europeu. “Então, eu tinha que ir em
um lugar que ninguém conhecia. Eu sempre estava viajando para Argentina no final do ano”.
Ela ganhou um cartão postal de uma coordenadora de uma instituição de caridade. Nesse
cartão postal, a coordenadora descreveu como era a cidade de Mendoza. “E quando eu fazia a
redação... eu pegava essas informações. Porque ninguém conhecia essa p***a de Mendoza.
Pelo menos eu saia do país. Então era assim. Você mente muito sobre a sua origem”. A
adolescência de Isabela se resumiu em “esconder onde morava”, sendo que ela sempre optava
por fazer os trabalhos escolares sozinha, pois tinha vergonha de levar algum colega para casa.
178
favelada”, o pior aconteceu. Isabela passou a ser configurada como traficante pelos seus
colegas e a todo instante era pressionada a comprar e usar drogas,
A vida acadêmica foi essa luta com a minha identidade. (Eu dizia a todos) Eu sou
da favela. Não era essa coisa de dizer eu sou favelaaaaada (de modo escancarado).
Tinha época também que as pessoas da faculdade vinham aqui comprar maconha e
tinha aquela coisa... (Dizia aos alunos) “Já falei que eu não sou traficante!”. Eles
achavam que os moradores eram traficantes ou que a gente era usuário de droga. Na
minha turma só eu e o Gabriel, no primeiro ano da faculdade... só eu e ele não
éramos usuário de droga e todo o restante da classe usava. Eu tive que brigar com
eles porque falavam assim: “Ah, Isabela traz lá um pouco disso...maconha”. Eu falei
para eles: “Olha só, eu vou baixar a porrada se começar com essa palhaçada de
achar que eu vou ficar indo no morro para comprar drogas para vocês”. Era a
maior tortura, porque no recreio, na época da faculdade, as pessoas fumavam e só eu
e o Gabriel que não. A pressão foi tão grande que ele saiu do curso. Ele disse que
não conseguia aguentar. Ele não aguentou. Era essa pressão, era muita pressão, a
playboyzada querendo pressionar para você fazer parte... imagina... a turma inteira
usava droga e não era uma turma grande. Você ia para um lugar e a galera consumia
e você fica pensando: P***a, “O que você está fazendo aqui?”. Aí você diz: “Quer
saber, eu não vou!”. A pressão era muito grande, você ia na casa dos playboy e até a
mãe dos caras usava droga. Então, assim, você não usar era muito esquisito
(Entrevista com Isabela. Pesquisa de campo, 2017).
Para Isabela, o uso de drogas não fazia sentido, pois ela viu muita gente morrer de
overdose, como também, pelo fato de ter perdido muitos amigos em virtude da “guerra as
drogas”. “Então quando eu vi esse ambiente assim eu tinha alguma coisa muito forte com
isso, eu pensava, cara! Como é que alguém consegue relaxar com aquela p***ra.” Desse
modo, nada que estivesse conectado com as drogas a fazia relaxar.
Outra questão marcante que aconteceu na vida de Isabela durante a faculdade, foi
ganhar uma bolsa de alemão no instituto Goethe. Ela era a única pessoa que estudava alemão
na faculdade toda. “A minha vida acadêmica foi toda de resistência. Eu estudei no Instituto e
eu era a única bolsista. Eu tinha bolsa integral. Era só eu e outra menina que tinha bolsa
integral e como a gente tinha bolsa integral a média era muito alta. Era oito ou nove”. Então
se ela tirasse uma nota menor do que a estabelecida pela instituição perderia a bolsa. Além de
toda pressão de tirar notas altas “outra parada era que era só playboizada que estudava, era
filho de alemão, tinha um povo que estava querendo fazer diplomacia, que tinha um poder
aquisitivo muito alto e todo o ambiente da sala era de classe alta”.
A vivência em um ambiente de classe média alta fez com que ela tivesse que lidar com
inúmeras humilhações que inclusive partiram de quem menos se podia esperar. Em uma
179
oportunidade, “a professora pediu para eu descrever a minha casa e ela me devolveu e disse:
Eu não entendo a sua casa, se você não refizer o trabalho, você vai ficar sem nota”. Isabela
então teve que pegar uma planta de um prédio e fazer dessa projeção a sua casa. Ela teve que
fingir que morava em um prédio para que a professora pudesse entender o seu contexto. “Eu
falei para ela, olha, mas eu moro em uma favela e ela disse que não queria saber onde eu
morava, só queria saber se tinha conhecimento das partes da casa e que pouco importava”.
Por ser bolsista, ela não se sentia no direito de questionar o Instituto Goethe, então, por isso,
optou por refazer todo o trabalho. Contudo, Isabela teve um momento de redenção. Ela
apresentou a favela aos alunos do curso de alemão em trabalho final.
Mas também foi uma época boa (estudar no Instituto Goethe), porque na
apresentação final do curso eu falei sobre o Santa Marta, da colônia de férias, então
ficou todo mundo surpreso. Porque também lá era um mundo muito fake, muito
conectado com aparência do ter. Era só eu que morava no morro também, então os
alunos ficavam assim... e depois vieram me perguntar como era. Eu quase não fiz
amigo no curso de alemão porque era uma galera muito rica. Você fazia interação se
você ia no cinema com a galera, se ia no teatro. Eu estava meio fora e também não
me sentia, eu não me sentia pertencendo àquele grupo. Uma vez eu fui almoçar no
centro da cidade... em um restaurante panorâmico. Eu contava o dinheiro na mão
naquela p***a de restaurante caro. Eu sempre me perguntava se eu poderia pedir
uma água ou não. Às vezes eu não bebia. Eu dizia para todos que não bebia durante
a refeição. Até hoje eu não bebo durante a refeição, porque eu não podia comprar
bebida para tomar durante o almoço (Entrevista com Isabela. Pesquisa de campo,
2017).
Na mesma época em que cursou a faculdade, Isabela também participou muito dos
movimentos sociais e de instituições de base comunitária. Ela não participou de encontros
somente no Santa Marta, mas também em outras localidades, como por exemplo, na periferia
de Nova Iguaçu. Por participar muito dos movimentos sociais acabou sendo escolhida – por
um programa que apoia o intercâmbio de jovens engajados – para realizar uma viagem até a
Alemanha. “Eles escolheram só os melhores, não os melhores, mas as pessoas queriam
alguém que seria uma boa representatividade da juventude carioca [...] a galera me escolheu
para participar”. O fato de ter viajado para Alemanha mudou completamente a vida de
Isabela, pois no país europeu encontrou uma realidade completamente diferente da vivida na
favela. Enquanto no morro existia momentos em que se alimentava uma vez por dia, na
Alemanha havia café da manhã, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e lanche do
jantar. “Tive uma overdose de comida, né, passei muito mal nessa viagem. Eu emagreci muito
porque não consegui me adaptar. Porque era muita comida”.
180
Após viajar pela Alemanha, de Norte a Sul, Isabela teve que lidar com o impacto da
volta para o Santa Marta. Ela lembrou também que nas primeiras semanas que voltou para
favela, não reconhecia mais a sua casa. Quando retornou para sua residência no Santa Marta
disse que: “voltava para o quarto e achava que tinha cama”. Quando dormia e depois
despertava levava sustos ao abrir os olhos e se ver imersa na pobreza. “Eu não conseguia me
achar no meu espaço. Foi uma experiência que foi dura né, porque as pessoas foram muito
duras comigo, porque como eles não viveram aquilo, tinha meio que aquela raiva né
(inveja)”. Isabela se sentia totalmente isolada em um ambiente em que as pessoas tinham
dificuldade em lidar com o sucesso alheio. “Quando eu voltei para cá, eu voltei totalmente
sozinha nos meus devaneios dessa viagem, né. Aí você não tem ninguém para conversar, as
pessoas falam: Aí que saco, vai falar de novo de Europa, de não sei o que”.
Depois que conheceu a Alemanha, Isabela não parou mais de viajar. Ela viajou muito
pelo Brasil pois era engajada em um movimento nacional de meninos de rua, sendo que por
fazer parte do colegiado dessa organização sempre viajava muito para as reuniões que
aconteciam em diferentes cidades. Participar dos movimentos sociais a retirou, em certa
medida, do ambiente do Santa Marta, “me fez entender que o mundo era maior do que isso
aqui né, então foi um pouco assim, essa experiência me ajudou nesse sentido, foi a minha
base para fazer o trabalho que eu faço hoje (guia de turismo)”.
Apesar de guiar na Favela Santa Marta desde a década de 1990, ela apenas conseguiu
estruturar o seu negócio juntamente com sua sócia muitos anos depois, após passar pela
incubadora Rio Criativo. Isabela considera que o morador de favela empreende “por
necessidade” e que o “empresariamento de si” seria uma espécie de “carta de alforria” em
relação aos desmandos dos patrões,
Eu acho que assim, para gente que está nessa situação de empreendedor de favela,
não é o mesmo que empreender na rua, não é. A gente realmente empreende por
necessidade. O empreendedorismo é uma possibilidade de você quebrar um pouco
todo o trabalho formal que está em volta de você. É um pouco sua carta de alforria.
Empreendedorismo é um pouco isso, não ter ninguém chicoteando você, você
acorda motivado para fazer uma coisa, mas você não grita com você, você não é
maltratado por uma outra pessoa que detém o poder, o dinheiro de pagar você. Mas
por outro lado é um caminho de incerteza, também de dificuldade, um caminho onde
você tem o tempo todo que se reconstruir, às vezes você começa com alguma coisa e
daí tem que mudar para poder adaptar (Entrevista com Isabela. Pesquisa de campo,
2017).
181
Quanto Isabela iniciou o seu negócio achava que ele deveria ter uma “veia social” e
ajudar as pessoas a terem uma visão positiva sobre a favela. Mas ganhar dinheiro e ter um
negócio social era algo confuso para ela. “Como é que você faz negócio social? Isso era uma
dificuldade muito grande porque... a gente fazia dinheiro. Se alguém perguntar assim, você
começou impactando... impactava nada, o impacto é (bate a mão no bolso) monetário”. Ela
afirma que o empreendedorismo não é “nada romântico”, pois se refere a um caminho árduo,
em que “você ficar por conta própria, você tem que responder por fracassos também,
responder por coisas que não dão certo, é bastante complicado, mas também é um processo
de bastante crescimento, de bastante autoconhecimento”.
Conforme Isabela, o negócio dela tomou corpo após a implantação da UPP no Santa
Marta e o consequente aumento do fluxo turístico, já que quando a favela era controlada pelo
tráfico armado poucas pessoas se aventuravam a subir no morro. “Fortaleceu depois, né, foi
pós-pacificação, porque quando eu tinha terminado o MBA de turismo que eu comecei a ver
o que eu estava fazendo como uma possibilidade de negócio mesmo”. O processo de
estruturação do negócio de Isabela coincidiu com o momento em que o governo estava
pacificando a Favela Santa Marta. “A pacificação, na verdade, mudou muito a estrutura
dentro da favela, então, muita gente viu a pacificação como uma oportunidade”.
182
3.2.3. Vanessa: “A pacificação deu uma quebrada em alguns negócios e abertura para
outros”
Vanessa (nome fictício) é negra e possui 45 anos. Ela é dona de uma barraca de
souvenir situada na laje do Michael Jackson. A comerciante iniciou a entrevista de maneira
muito bem-humorada e afirmou que apesar de morar na favela desde criança, argumentou que
não é “nascida e criada na favela” – expressão popular entre os moradores – “Eu falo para as
pessoas que não sou cria, quem cria é rato (risos). Então eles falam nascida e criada e eu
falo que não, porque eu nasci na maternidade e vim para cá”.49
Ela revelou ao pesquisador que resolveu empreender para ficar disponível ao seu filho
por mais tempo. O filho dela possui nanismo. Conforme a empreendedora, na época em que
foi diagnosticada a doença, os médicos disseram que ele não iria andar e nem falar porque
possuía a cabeça maior que o corpo. Ela iniciou, então, uma batalha incessante em busca de
uma melhora em relação ao estado físico da criança. “Ele começou a fazer fisioterapia e tudo
mais só que eu trabalhava nessa época e eu não conseguia fazer duas coisas ao mesmo tempo
então eu preferi dar atenção para o meu filho. Eu saí do meu trabalho””.
Depois da pacificação não teve mais baile funk. Daí a gente observou um fluxo
muito grande de turistas nesse próprio bar e nós começamos a fazer algumas coisas
de artesanato para os turistas. Vimos que dava certo. Decidimos montar uma
barraquinha e fazer alguma coisa para vender e foi assim que a gente teve a ideia de
colocar aqui, logo após a inauguração da estátua (do Michael Jackson). Nós viemos
e colocamos do outro lado, uma barraquinha de ferro e começamos a vender. Depois
dessa barraquinha de ferro, a Coral Tintas, que era uma empresa que tinha na favela,
fez a revitalização da laje (o alicerce). Eles me ofereceram aquele espaço para fazer
essa loja porque eles sabiam que a gente estava querendo fazer isso e que nós
tínhamos planos futuros, como também, que nós estávamos juntando dinheiro para
fazer a loja. E aí eles falaram: “Vocês topam construir?”. Eu falei: “Que dia a gente
começa a construir? Amanhã? Pode começar a furar os buracos” (risos). Eles
49
A entrevista com Vanessa foi realizada em 2017.
183
falaram que apenas não iriam fazer a decoração da loja. Eu respondi: “Meu amigo,
vocês fazendo a loja, o resto a gente se vira”. Eles construíram isso aqui (loja). A
estrutura dela por fora, a iluminação, o rebaixamento, tudo isso foi a Coral que fez.
Isso aqui era uma vala que tinha aberta e como a gente trabalhava em frente, a gente
colocou um tablado tampando a vala. Em cima da vala nos colocávamos a nossa
arara e vendíamos as coisas (Entrevista com Vanessa. Pesquisa de Campo, 2017).
“A pacificação deu uma quebrada em alguns negócios e abertura para outros. Porque
pelo menos aqui no Santa Marta não tinha loja de Souvenir, porque não tinha turismo. Não
tinha um turismo tão forte como tem hoje, só após a pacificação”. Além da pacificação,
Vanessa considera a instalação da estátua do Michael Jackson na favela um fator decisivo
para o aumento do fluxo turístico na localidade. Em virtude do fluxo ela resolveu construir
uma barraca de souvenir no território (ver Figura 20).
184
Assim, para a dona da loja de souvenir, o empreendedorismo representa a montagem e
continuação de um negócio,
Enfim, Vanessa apenas deseja que o seu negócio continue prosperando e que tenha
tempo e renda necessária para pagar os cuidados médicos que o filho dela tanto necessita.
185
3.2.4. Margarete: “Olha que engraçado. Eu tinha bolsa família, hoje eu já não tenho mais,
porque hoje eu sou empresa”
Margarete (nome fictício, 40 anos, branca) é moradora da Favela Santa Marta. Antes
da pacificação possuía “uma barraca de lanche na favela. Eu vendia sanduíche, comida,
salgado. Eu me virava nos trinta”. Contudo, ela resolveu aproveitar a “boa fase” da favela
após a pacificação para investir em seu próprio negócio. Margarete disse que chega a ganhar
mais de dois mil reais por mês. O rendimento é maior em relação ao que ganhava em seus
empregos anteriores. Margarete consegue pagar um colégio particular para o filho (de quatro
anos) com a renda auferida. Ela relatou de teve a ideia de ser empreendedora a partir do
momento em participou do projeto Rio Top Tour,
Em 2015, ela se graduou como guia de turismo. Após a realização de uma série de
cursos no Sebrae a moradora do Santa Marta resolveu formalizar o seu negócio. “No início,
com a capacitação na área de turismo, pensei em procurar emprego. Mas depois percebi que
não precisava. Aqui é uma mina de outro”. Conforme Margarete, cada guia oferece um
serviço diferenciado. “Eu, por exemplo, ofereço tour mais almoço na laje, tour com
feijoada. Existe um limite de pessoas que eu atendo na laje, né. O Carambola tem o
hostel, cada um tem um diferencial”. Ela criou diversos pacotes personalizados para oferecer
aos turistas, como por exemplo, trilha com futebol, trilha com pipa, “e por aí vai”.
Conforme Margarete, todo esse sucesso que obteve enquanto empresária possui
relação com a implantação das UPPs. “A pacificação veio, ela foi um divisor de águas, ela
realmente no começo foi, muito boa, trouxe progresso, veio projetos bons para favela, mas
que infelizmente se perdeu”. Ela afirma que o projeto de turismo Rio Top Tour acabou, “mas
nós, guias, demos seguimento com as próprias pernas, independente de pacificação, de estar
aqui ou não, a gente dá continuidade a esse projeto”.
187
3.2.5. Henrique: “Eu me formei como guia foi graças a implantação da UPP em favelas”
Henrique (nome fictício, branco, 48 anos) é natural do Rio de Janeiro e veio para o
Santa Marta quando tinha 10 anos de idade.50 Ele é guia de turismo no local onde vive. O
morador decidiu ser um empreendedor “porque eu trabalhei 24 anos com carteira assinada e
cheguei à conclusão que você não chega a lugar nenhum. Quando você trabalha com
carteira assinada você é limitado em alguma coisa”. Ele acredita que enquanto funcionário só
poderia crescer trabalhando em uma empresa multinacional, assim, quando a pessoa não
observa um notório crescimento na vida é preciso empreender. Para Henrique, as pessoas
deveriam fazer aquilo que gosta, como também, aquilo que proporcionasse dinheiro suficiente
para o próprio sustento.
Eu tô mais feliz agora, porque agora eu faço o que eu gosto. Eu consigo tirar o meu
sustento no que eu gosto de fazer e isso não tem preço. É uma questão muito
pessoal. Eu abri uma empresa de turismo, uma MEI. Atualmente não tenho nenhum
funcionário, mas eu estou com algumas projeções futuras que... se Deus quiser... Eu
vou conseguir chegar lá (Entrevista com Henrique. Pesquisa de Campo, 2017).
Ele planeja contratar um funcionário para ajudá-lo nos serviços da empresa. Henrique
disse que já possui uma pessoa que trabalha para ele, porém, trata-se de uma relação informal,
“ele é apenas um prestador de serviço”. A motivação de contratar um funcionário está
vinculada ao fato da empresa ter tido retorno financeiro satisfatório nos últimos tempos.
50
A entrevista com Henrique foi realizada em 2017, no Posto de Informação Turística da Favela Santa Marta.
188
muito na empresa, ou seja, quando você abre uma empresa na favela você tem os valores”.
Ele avalia que consegue manter os “valores sociais” com sua empresa, diferentemente dos
empreendedores dos bairros mais abastados da cidade. “Você não encontra lá (valores
sociais) no asfalto, o asfalto é muito capitalismo e você esquece dos valores”. Na opinião
dele, os empreendedores que trabalham nas favelas respeitam mais a área em que ganham
dinheiro. “Nós respeitamos os moradores, ganhamos dinheiro na comunidade. mas nós
respeitamos”. O contraditório discurso de Henrique – em que apesar de ganhar dinheiro, não
executa uma atividade “muito capitalista” – sustenta-se pelo fato de que os empreendedores
que moram na Favela Santa Marta acreditam que o trabalho deles possui uma “conotação
social”, pois grande parte do dinheiro que auferem é gasto na própria favela.
Eu particularmente não posso falar mal da UPP e não posso falar bem da UPP. Mas
eu tenho que dizer o seguinte, se não fosse a UPP não teria turismo na favela. Então
se eu tô trabalhando hoje, como guia... Eu me formei como guia graças a
implantação da UPP em favelas, quando falo em favelas não é nessa favela só, mas
favelas em geral. Então teve inúmeras atividades e foi decorrente dessa implantação
das UPPs (Entrevista com Henrique. Pesquisa de Campo, 2017).
189
3.2.6. Alessandro: “A pacificação deu um boom gigante, todo mundo queria abrir um
negóciozinho”
O morador do Pavão-Pavãozinho lembra da sua infância como uma fase positiva, pois
acredita que a favela lhe propiciou muitos aprendizados. “As pessoas têm uma gratidão muito
grande por esse lugar. Eu lembro da inocência de uma criança, você era criado não somente
pelos seus pais, mas por todo mundo que morava aqui em volta”. Alessandro recorda que a
educação das crianças se constituía em um processo coletivo, os vizinhos cuidavam dos filhos
dos outros vizinhos, “chamavam a atenção”, e até mesmo davam algumas palmadas quando
necessário. Você é criado por todo mundo da região, todo mundo querendo o seu bem, a
amizade que tenho é irmandade, você dormia na casa, você comia na casa dos seus amigos”.
Ele tratava as mães dos seus vizinhos como se fossem a dele. “A minha infância foi muito
produtiva, você brincava, você tinha sempre muitos amigos perto. Os amigos eram como
irmãos, você brincava e se divertia bastante”.
Então eu chamei um outro amigo meu lá que fazia aula de inglês também para poder
mostrar o lugar que a gente mora, né. No meu primeiro contato com o tour em si
trouxe ele onde eu morava. Eu mostrei mais ou menos como é que era favela. Na
época era muito difícil de fazer um negócio desse, porque ninguém estava
acostumado a receber pessoas na favela. Em 2004, 2003, 2005... essa época aí, não
51
A entrevista com Alessandro foi realizada em 2017, em um jardim situado na Favela Pavão-Pavãozinho.
190
tinha o costume de trazer pessoas na favela, não tinha pessoas de fora aqui, então
quando (os moradores) viam pessoas de fora ficavam meio assim... assustados,
questionando o que você está fazendo aqui. Eu era um pouco conhecido, mas não
tinha aquele respeito que eu tenho hoje, foi um pouco complicado no começo, aí
depois fiz parceira com um rapaz que já sabia do meu background, de ser um cara
que fala inglês, e dedicado... Depois de 2006, 2007, 2008 já fazia tours, tours
periódicos aqui na favela... sábados e domingos. Esse rapaz me convidou para ser o
guia com ele (Entrevista com Alessandro. Pesquisa de campo, 2017).
A partir de então, por meio de parceiras efetuadas com seu amigo, Alessandro
começou a guiar turistas na Favela Pavão-Pavãozinho. “Eu me considero um empreendedor,
tudo que eu fiz na minha vida até hoje, [..] tive que buscar informações sozinho, tudo que eu
tive que fazer era sozinho, então eu sou um empreendedor natural da vida”. Assim, ele
avalia que tudo o que conseguiu na vida foi “por conta própria”.
A experiência que teve ao trabalhar em uma empresa privada não foi interessante para
Alessandro, o que o auxiliou a perceber que deveria ter o seu próprio negócio, pois não se
adequava à condição de trabalhador. “Tenho uma visão empreendedora diferente da maioria
das empresas do Brasil. As empresas brasileiras, a maioria delas, não estou julgando todas,
mas elas não tendem a respeitar o individual. Para eles você tem que trabalhar e acabou”.
Na opinião do Alessandro, as empresas não querem que seus funcionários melhorem de vida,
ou melhor, não querem que os seus empregados ao menos tenham uma vida, querem que o
“mundo do funcionário” seja apenas dimensionado pelas questões que envolvam o trabalho.
Desse modo, a “visão empreendedora” dele fez com que não pensasse em ser empregado de
alguém.
Alessandro acha que qualquer um pode ser empreendedor. Contudo, ele adverte que é
preciso ter algumas qualidades básicas, “porque você pode empreender, mas para ser um
empreendedor de sucesso você tem que ter algum conhecimento um pouco mais aprofundado
de como gerenciar o seu dinheiro e acompanhar o mercado”. Ele destaca que um bom
empreendedor deve sempre estar buscando coisas novas, deve sempre estar “seguindo o
mercado”. “Porque o mercado tem tendências e você não pode ficar para trás, né”. O
empreendedor exemplifica esse dinâmica citando a cantora baiana Ivete Sangalo, já que na
opinião dele, ela sabe acompanhar todas as tendências musicais que estão em voga, cantando
assim, diversos ritmos musicais.
191
Ele acredita que o empreendedor possui a iniciativa e a vontade de criar coisas novas
como características e que tais engajamentos se reportam a questões que são “naturalmente”
afloradas nas pessoas,
O empreendedor tem que ter iniciativa, dando um exemplo aqui, eu fui para o
Centro de Operações da Reserva, eu sou aspirante da R2, e no caso, ali... você tinha
que ser posto em posição de comando, você via que tinha pessoas que não tinham
aquilo ali já aflorado. E você via que tinham pessoas que naturalmente já tinham
aquilo. Você já sabe como se comportam no comando, que você precisa ter uma
postura. Você tem que ter uma posição de comando, iniciativa, você tem que gostar
de aprender e principalmente gostar de empreender também porque eu também
conheço muitas pessoas que não gostam do cargo de superior. Eles querem sempre
ficar ali porque quando você está em baixo, você tem menos responsabilidade,
assim, sendo o último da cadeia, você só obedece, você só executa, só que têm
pessoas que também gostam de empreender. Você tem que falar: “Aqui!Eu tô aqui
no comando. Vamos fazer assim, do meu jeito, vamos ter ideias novas”. E isso é
uma coisa que você tem que ter, tem que ter iniciativa, e também ter espírito de
grupo, porque você nunca faz nada sozinho, só que lógico no começo, você está
meio que sozinho, mas depois você vai criando uma equipe e aí você vai sempre
melhorando a equipe (Entrevista com Alessandro. Pesquisa de campo, 2017).
192
muita lanchonete. Todo mundo abre um bar”. Alessandro aponta que uma das razões para
que isso é aconteça se refere ao fato dos moradores não “abraçarem o novo” e como também,
não gostarem de gastar muito dinheiro na favela, desse modo, os empreendedores acabam
seguindo “na mesma toada” e apenas abrem negócios convencionais.
Para Alessandro, a pacificação fez com que a favela fosse vista pelos “de fora”, como
um ambiente tranquilo e os discursos da mídia conformaram a favela como um lugar vintage,
gourmet, um “território de oportunidades”,
193
3.2.7. Andressa: “A pacificação foi uma maquiação. Mas os negócios foram um estouro”
“Eu sou da Paraíba, de Joao Pessoa, hoje em dia, eu queria voltar para lá. Faz trinta
e poucos anos que estou aqui e o meu esposo nasceu no Rio de Janeiro, criou-se aqui na
favela, ele tem 43 anos de comunidade”. Andressa (nome fictício) possui 52 anos de idade.
Ela é proprietária de um hostel no Cantagalo, favela “colada” ao Pavão-Pavãozinho.52
Ela acredita que quem empreende em favelas lida com muitas dificuldades, como por
exemplo, o lixo nas ruas e o que chama de “nossos jovens” (meninos do tráfico). Andressa
acredita que as desvantagens de se abrir um negócio na favela se referem aos episódios de
52
A entrevista com Andressa foi realizada em 2017, em seu hostel – situado no Cantagalo.
194
violência. “A violência é o que mais perturba. Um tiroteio um dia, acaba valendo por três
meses. Todo mundo cancela as reservas”. A empreendedora argumenta que o fato de uma
turista ter sido morta por um policial na Rocinha53 – em outubro de 2017 – fez com que
movimento do seu hostel caísse drasticamente.
Logo quando chegou a pacificação, todo mundo falava que era uma “maquiação”.
Mas os negócios foram um estouro. Todo mundo ficou falando. Todo mundo queria
abrir um hostel aqui. Hoje, quase não tem mais nenhum. Só o do Vidigal que tá
resistindo e no Cantagalo, esse daqui. O resto está abrindo para fazer aluguel fixo,
porque a violência é muita. Ela está na mesma intensidade de antes da pacificação.
Nós vivemos meses e meses de tiroteio forte. A gente pedia para que os hóspedes
saíssem sempre desse portão depois das 9 horas, porque era muito perigoso levar um
tiro se saíssem antes. Você vê que no portão foi colocada uma placa de aço. Os tiros
estavam quase botando a pilastra do meu prédio abaixo, pois foram muitos tiros na
porta. A situação era muito complicada. Teve muito tiro com hóspede aqui dentro.
A gente falava... eu o meu marido reclamávamos para polícia: “Tem hóspede aqui
dentro e você está atirando aqui dentro da cozinha”. Eles (policiais) levaram meu
marido para delegacia. Eles deram voz de prisão dizendo que era um desacato. Aí,
eu fui na delegacia buscar ele. Aí, meu marido disse que não foi desacato e os
policiais registraram como desacato. Eu falei para os policiais que atirar aqui dentro
estava errado (Entrevista com Andressa. Pesquisa de Campo, 2017).
Andressa acredita que os “garotos do tráfico” respeitam ela muito mais do que a
polícia. Por morar muito tempo no Cantagalo, ela relatou que viu os “moleques” crescerem
diante dos olhos dela, em virtude disso, Andressa acredita que estabeleceu certo tipo de
relação com eles. “Nós não gostamos da polícia. Seria muito melhor assim, só os garotos.
Mas a polícia vem e quer dinheiro, o dinheiro do traficante. Você deve saber como é”.
53
Uma turista espanhola foi morta por um policial na Rocinha – em outubro de 2017 – após a van em que estava
“furar” um bloqueio feito pelos policiais. Para mais informações, acessar: < https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/turista-
espanhola-morre-em-tiroteio-na-rocinha.ghtml> . Acesso em 21/01/2018 às 17:34.
195
3.2.8. Loreto: “O Sebrae foi uma benção. Todo mundo deveria empreender”
Primeiro (quando eu cheguei) que não existia o Complexo. Meu pai veio pra cá,
morou na Providência, se não me falhe a memória na Gamboa, depois foi morar em
Caxias e depois ele veio morar de aluguel aqui na Rua Joaquim de Queiroz, que é
onde que eu moro. A Joaquim de Queiroz é uma rua que passa dentro da região da
Grota. O que é a Grota? A Grota é geograficamente o encontro entre dois morros, no
fundo é a Grota. Então, dentro da comunidade da Grota, meu pai teve sorte de
encontrar um líder comunitário chamado Teófilo da Souza Pinto. Na qual o acolheu,
deu uma casa para ele morar pagando um aluguel irrisório e antes de morrer a
mesma casa que meu pai pagava de aluguel passou para ele, porque ele então pode
comprar. E hoje a minha família mora nela. Seu Teófilo da Souza Pinto foi
assassinado, ele era uma figura bem carismática, para o bem e para o mal... a
comunidade estava crescendo. Ele era o responsável para as pessoas não fazerem as
casas no entorno rua. Mas é claro, o cara chega do Nordeste e vai querer fazer na
rua. Numa dessas, fizeram uma tocaia e o mataram pelas costas. Mas antes de
morrer o Seu Teófilo fez o Centro Social Joaquim de Queiroz, com meu pai e mais
doze ou quinze homens. Esse centro social era responsável por receber as pessoas e
dar alguma coisa pra comer, naquela época a coisa era bem paupérrima (Entrevista
com Loreto. Pesquisa de Campo, 2016).
Ele disse que sua infância foi paupérrima, já que seu pai teria chegado ao Rio “com
uma mão na frente e outra atrás”. O pai dele veio trabalhar em uma empresa chamada
Companhia Carioca Industrial que fazia gordura de óleo de coco. “Mas enfim....quarta série, o
cara vem, com um filho, arruma mais um filho..Naquela época já era difícil nos anos 60.
Depois de um certo tempo começou ganhar o dinheiro, arrumou muita mulher. E completa:
“Daí você pode imaginar como que era né”. Loreto afirma que hoje é possível ter bolsa
família e outros auxílios governamentais, mas naquela época tudo era difícil. A compra do
material da casa era muito complicada, e hoje, com a expansão no crédito nas periferias tudo
havia ficado mais simples.
Ele avalia que para boa parte dos moradores do Complexo do Alemão a infância foi
muito pobre. No Alemão não tinha esgoto, não tinha água e o abastecimento de energia
54
A entrevista com Loreto foi realizada em 2016, em um ponto próximo ao Teleférico do Alemão.
196
elétrica era extremamente precário. “A casa era de madeira. Não era como é hoje. Hoje o
pessoal ainda reclama. Mas vamos analisar, se eles voltarem um pouquinho. Antes era casa
de estuque, pingava, chovia. A rua não era asfaltada, se chovia, tinha lama até o teto.”
Loreto recorda que em uma oportunidade arrumou uma namorada quando estava no
primeiro grau. Ele a classificava como de “classe média”, pois apesar de morar em rua
paralela a da casa dele, a namorada tinha uma condição financeira melhor. Acredita que por
tocar violão, despertava a atenção das garotas. “Eu era feio pra ... Arrumei a porra de uma
mulher bonita. E ela sempre querendo ir lá em casa e eu com uma vergonha. Um belo dia,
chega lá em casa e bate na porta, quando vejo a mulher viu... lama até o teto. E para sua
infelicidade: “Não deu duas semanas acabou o namoro”
Com o passar dos anos, o pai dele começou a ganhar dinheiro, mas gastava tudo com
muita “festança”, pois todo fim de semana realizada festas “regadas” com muita bebida e
comida para os convidados. A sua infância havia sido muito ruim, porém, na adolescência as
coisas começaram a melhorar. Loreto conta que seu pai chegou a possuir duas empresas de
construção civil, mas foi à falência. Quando completou dezoito anos, ainda não tinha feito o
segundo grau. “Eu fiz o segundo grau depois de velho. Porque a gente era educado para
primeiro trabalhar e depois estudar, quando eu vim montar a minha família eu já estava com
meus 28 anos para 29”.
Entretanto, ele avalia que filho de pobre não pode ter só segundo grau, filho de pobre
tem que fazer cursos de mecânica, consertar ventilador, liquidificador, entre outros. O seu
primeiro emprego foi aos treze anos na função de lixador de tamanco,
No carnaval carioca não se usava sandália, apenas tamanco e a gente lixava tamanco
e vendia tamanco no carnaval carioca. Meu primeiro emprego foi esse. Depois fui
para exército brasileiro, fiquei um ano lá, depois voltei e meu pai arrumou um
emprego de almoxarife para mim, dentro da construção civil e eu fiquei oito anos
dentro da construção civil, só que fazendo a parte técnica no negócio, nunca fui de
pegar a mão na massa. Eu era curioso, sempre perturbava o mestre daqui o mestre
dali. (Entrevista com Loreto. Pesquisa de campo, 2016).
Quando eu pergunto a Loreto se na sua infância ele teve que lidar com a violência, o
mesmo responde: “Não, não tinha uma violência tão exacerbada como esta agora”. Ele
afirma que na década de 1970 já tinha tráfico de drogas no Alemão, mas não era aquela “coisa
pesada”. Ele mora no Complexo do Alemão desde 1960 e a história da violência, segundo o
197
mesmo, começou quando assassinaram o seu Teófilo. Nesse período já tinha arma, mas “não
era essa coisa de arma de guerra”. Loreto considera que a partir desse evento, o tráfico se
intensificou. Naquela época, as pessoas traficavam apenas maconha, “não tinha droga
pesada”.
Ele relatou que praticamente “cresceu” com os traficantes, “a gente não se misturava,
eles escutavam a gente tocar violão ali e a gente aqui. Olha, era vocês lá e eu cá. A gente não
se misturava e eles não queriam que a gente se misturasse”. Naquele tempo, os traficantes
não pegavam garotos de doze e treze anos para ficarem tomando conta de boca de fumo,
segundo Loreto.
O fato de ter seguido uma vida completamente diferente dos seus amigos propiciou
com que o mesmo constituísse uma família com certa tranquilidade. Hoje, Loreto trabalha em
uma gráfica situada na Zona Norte do Rio.
198
3.3. Um dispositivo e seus sujeitos normalizáveis
Isabela ressaltou ao pesquisador que boa parte dos jovens da favela continua
envolvida com o tráfico de drogas. Na Favela Santa Marta e no Pavão-Pavãozinho, por
exemplo, os “meninos do tráfico” circulam pelos territórios com armas na cintura. Eles não
foram capturados pelo dispositivo da pacificação e são compreendidos pela integibilidade
governamental enquanto sujeitos “não normalizáveis”, desse modo, estariam “entregues à
própria sorte”, ou melhor, apenas estariam a espera da próxima bala disparada por um policial
ou por um integrante de uma gangue rival.
199
para não colocar em risco a vida dos turistas que adentravam à favela. “Como posso fazer
contrato com operadora de turismo sabendo que a qualquer momento o turista pode ficar
preso no teleférico durante o tiroteio?” disse Silvana (guia de turismo do Complexo do
Alemão. Pesquisa de campo, 2016).
200
CAPÍTULO 4
E por fim, na última parte do capítulo, evidenciou-se o papel dos empresários locais na
produção da favela turística, como também, destacou-se que eles costumam utilizar o “saber
especializado” que possuem em relação ao conflito social para conformar a favela enquanto
produto turístico. Verificou-se também que, por um lado, os moradores tentam diversificar o
imaginário social em relação à favela – buscando assim, contestar os vários estereótipos
atribuídos a ela – por outro, os turistas que visitam esses territórios desejam vivenciar
202
cenários de hiper-realidade e excitação extrema, em que a violência pode fazer parte de uma
inusitada atração.
203
4.1. A invenção de novas subjetividades nas favelas cariocas: o dispositivo da pacificação
como catalizador da racionalidade neoliberal
204
corpos, estabelecendo desse modo, um quadro social determinado em que o favelado teria que
adaptar-se a ele e modificar a sua conduta. Entretanto, muito mais do que a modificação da
dinâmica social da favela, seu objetivo derradeiro tinha o propósito de “modificar as almas”,
ou seja, produzir subjetividades afeitas a ordem institucional.
Com relação a racionalidade econômica alemã, Foucault (2008b) considerou que ela
possuía uma contradição. Por um lado, após a Segunda Guerra Mundial a Alemanha queria
implantar a Gesellschaftspolitik, uma política “orientada para a constituição do mercado. Era
uma política que devia assumir e levar em conta os processos sociais a fim de abrir espaço, no
interior desses processos sociais, para um mecanismo de mercado” (FOUCAULT, 2008b,
p.330), em que o Estado deveria fomentar a concorrência empresarial e generalizar a “forma
empresa” para toda a sociedade. Isso significava desdobrar o modelo investimento-custo-lucro
205
e estendê-lo para as relações sociais, criando assim, um modelo de existência e formas de
relações consigo mesmo.
Já por outro lado, os alemães não consideravam que seria adequado que a lógica da
concorrência fosse um princípio ideal para comandar uma sociedade inteira. Então ao mesmo
tempo em que o Estado estimulava a existência de grupos concorrenciais, de empresas
competindo uma com as outras, ele criava também políticas de cunho social, para que o senso
de “cooperação entre os homens” não fosse totalmente dizimado pela racionalidade neoliberal
(FOUCAULT, 2008b).
A partir de então, diversas técnicas contribuem para a fabricação desse novo sujeito
unitário, que chamaremos indiferentemente de “sujeito empresarial”, “sujeito
neoliberal” ou simplesmente, neossujeito. Não estamos mais falando das antigas
disciplinas que se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e dobrar os
espíritos para torná-los mais dóceis – metodologia institucional que se encontrava
em crise havia muito tempo. Trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade
deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. Para
isso, deve-se reconhecer nele a parte irredutível do desejo que o constitui. As
grandes proclamações a respeito da importância do “fator humano” que pululam na
literatura da neogestão devem ser lidas à luz de um novo tipo de poder; não se trata
mais de reconhecer que o homem no trabalho continua a ser um homem, que ele
nunca se reduz ao status de objeto passivo, trata-se de ver nele o sujeito ativo que
deve participar inteiramente, engajar-se plenamente, entregar-se por completo a sua
atividade profissional. O sujeito unitário é o sujeito do envolvimento total de si
mesmo. A vontade de realização pessoal, o projeto que se quer levar a cabo, a
motivação que anima o “colaborador” da empresa, enfim, o desejo com todos os
nomes que se queira dar a ele é o alvo do novo poder. O ser desejante não é apenas o
ponto de aplicação desse poder ele é substituto dos dispositivos de direção de
condutas. Porque o efeito procurado pelas novas práticas de fabricação e de gestão
do novo sujeito é fazer com que o indivíduo trabalhe para a empresa como se
trabalhasse para si mesmo e, assim, eliminar qualquer sentimento de alienação e até
mesmo qualquer distância entre o indivíduo e a empresa que o emprega. Ele deve
trabalhar para sua própria eficácia, para a intensificação de seu esforço, como se essa
conduta viesse dele próprio, como se esta lhe fosse comandada de dentro por uma
ordem imperiosa de seu próprio desejo, à qual ele não pode resistir (DARDOT,
LAVAL, 2016, p. 327).
207
progressiva a norma pela qual o indivíduo deve se fazer sujeito: cada um é chamado a agir
como uma empresa de si mesmo, o que não se faz sem envolver certo tipo de relação com os
outros – a saber, uma relação de concorrência. Daí decorre uma consequência de importância
primordial. Do ponto de vista da subjetividade, não é mais tanto o valor da força de trabalho
ou o valor criado pela força de trabalho no processo de produção que importa, mas o valor
que o sujeito “se torna em si mesmo e que ele tem que valorizar cada vez mais ao longo de
toda a sua existência. É o sujeito que se relaciona consigo próprio durante toda a sua vida sob
o modo da autovalorização como um capital” (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 29).
Michel Foucault (2008) considera que um “bom governo” seria aquele que conhece
exatamente tudo o que acontece no que diz respeito aos processos econômicos. Esse governo
“deverá explicar aos diferentes agentes econômicos, aos diferentes sujeitos, como a coisa
acontece, porque acontece e o que devem fazer para maximizar seu lucro” (FOUCAULT,
2008b, p. 388). O filósofo francês afirma que para ocorrer o modelamento da sociedade em
torno das políticas neoliberais é preciso que haja a construção de um saber econômico a ser
difundido o mais amplamente e uniformemente possível, entre todos os sujeitos. Nesse
prisma, o Sebrae operou na implantação de uma “consciência de verdade”, isto é, construiu
um saber bem erigido com o intuito de difundi-lo entre os sujeitos econômicos dos “territórios
da pobreza”.
208
O dispositivo da pacificação acabou por instaurar uma “nova ordenação” das
atividades econômicas, das relações sociais, dos comportamentos e das subjetividades. Esse
dispositivo teve uma ação sobre as ações de sujeitos supostamente livres em suas escolhas e
operou por meio de uma diversificação de integibilidades e estruturações dos campos de
ações, que variou conforme a situação em que se localizava cada morador de favela. “De fato,
aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não age direta e
imediatamente sobre os outros, mas que age sobre a sua própria ação” (FOUCAULT, 2008b,
p. 243).
(A pacificação) teve um impacto na realização dos eventos, vamos dizer assim, meio
que uma proibição das UPPs em fazer os eventos. As pessoas tiveram que se
transformar, evoluir. Vou dar um exemplo bem claro, a senhora que fazia uma
quentinha e vendia para tráfico de drogas, não podia mais vender aquela quentinha
para o tráfico de drogas, ela teve que fazer o que? Dar um jeito de fazer com que a
quentinha chegasse ao pessoal da Zona Sul do Rio de Janeiro, porque o traficante
ficou enfraquecido, têm menos pessoas trabalhando com o tráfico, como é que ela
vai vender as quentinhas dela? Quem é que vai comprar? Então ela teve que se
reinventar, fazer o possível para as quentinhas chegarem ao pessoal das Furnas – eu
digo Furnas de energia – ela teve que fazer a marmita chegar lá e ela consegue
entregar lá, então para isso ela precisou fazer o que? Se reinventar, esse é um
exemplo clássico e claro. Todo mundo teve que se reinventar de alguma forma. Por
exemplo, o turismo não existia, foi outra coisa, me reinventei e fui trabalhar como
guia de turismo, entendeu? O cara que não fazia caipirinha nenhuma, só vendia
cachaça, vou fazer o que? Vou fazer caipirinha de morango, de abacaxi, maracujá e
de melancia, que o gringo se amarra. Aí o público dele muda, começa a cobrar um
valor mais alto, consegue arrumar mais dinheiro, consegue ter um rendimento maior.
209
O que ele fez? Se reinventou. Então é uma reinvenção do seu negócio (Entrevista
com Carambola. Pesquisa de campo, 2017).
A entrada coercitiva ao mundo social da ordem legítima por meio da pacificação fez
com que certo grupo de moradores tivessem que reorientar as suas condutas, como é o caso da
vendedora de quentinhas que ficou impossibilitada de vender seus produtos para o tráfico e
foi obrigada a buscar outra carteira de clientes, como bem salientou Carambola. Vanessa,
dona de uma barraca de souvenir na Favela Santa Marta, destacou que “A pacificação deu
uma quebrada em alguns negócios e abertura para outros”. Ela teve que fechar o seu bar
após a proibição dos bailes funk na favela pelos policiais da UPP e reorientar a sua conduta
em uma nova atitude empreendedora.
210
como um campo de oportunidades, em que a intencionalidade individual foi presumida como
preponderante para tornar-se um “empreendedor de sucesso”. Esse conjunto de dispositivos
apreendeu o favelado e o induziu a pensar em termos de ganhos sobre sua vida. Essas novas
subjetividades foram estruturadas de modo de surgissem governos de si, cumprindo assim, as
metas do poder político. Margarete, guia de turismo da Favela Santa Marta, ao expressar que
largou o bolsa família “porque hoje eu sou empresa” deixou evidente a sua subjetivação da
forma-empresa e como o dispositivo da pacificação ao catalisar o neoliberal produziu
governos de si mesmo e fez com que a empreendedora deixasse de ser “assistida” pelas
políticas sociais.
Rose (2011) reforça que a autonomia do self não pode ser classificada como a eterna
antítese do poder político, mas sim, um dos objetivos e instrumentos das mentalidades e
estratégias modernas de condução da conduta. A democracia liberal – se compreendida como
uma arte de governo e uma tecnologia de governar – há muito tempo tem estado vinculada à
invenção das técnicas para constituir os cidadãos de uma política democrática com as
capacidades “pessoais” e aspirações necessárias para suportar o peso político que repousa
sobre eles. A possibilidade de impor limites “liberais” sobre a extensão e a meta do governo
político tem sido sustentada pelo aumento de discursos, práticas e técnicas por meio das quais
as capacidades de autogoverno podem ser instaladas em indivíduos livres a fim de fazer com
que suas próprias formas de condução e avaliação de si mesmos estejam alinhadas com
objetivos políticos,
Para Rose (2011), a “cultura empreendedora” engloba uma ética do self sedutora,
uma crítica potente da realidade contemporânea institucional e política, como também, um
design aparentemente coerente para a transformação radical das disposições sociais.
Empreendedorismo não apenas estabelece um tipo de forma organizacional – com unidades
individuais competindo entre si no mercado – mas também, de modo mais abrangente,
fornece uma imagem de um modo de atividade a ser incentivado em muitos eixos de vida – a
escola, a universidade, o hospital, os consultórios dos clínicos gerais, a fábrica e as
organizações de negócios, a família e as estruturas de bem-estar social. Em muitas ocasiões,
as organizações são problematizadas em função de sua falta de empreendedorismo, o que
demonstraria suas fraquezas e fracassos.
O empreendedorismo pode, assim, adotar uma forma “tecnológica” por parte dos
especialistas da vida organizacional, planejando relações humanas através da
arquitetura, de grades de horários, de sistemas de supervisão, de programas de
pagamentos, de currículos e coisas do gênero para alcançar a economia, a eficiência,
212
a excelência e a competitividade. Praticas regulatórias contemporâneas – desde
aquelas que procuram revitalizar os serviços públicos e civis remodelando-os como
agências privadas ou pseudo-privadas com orçamentos e alvos, até aquelas que
procuram reduzir o desemprego crônico através de transformação do indivíduo
desempregado em um indivíduo ativo à procura de trabalho, tem sido transformadas
para incorporar a pressuposição de que os seres humanos são, poderiam ser, ou
deveriam ser indivíduos empreendedores, lutando por satisfação, excelência e
realização (ROSE, 2011, p.215).
213
Segundo Rose (2011), o regime de subjetividade baseado no empreendedorismo
busca reforçar alguns mantras como: “torne-se inteiro, torne-se o que você quiser, torne-se
você mesmo”. Assim, o indivíduo deve tornar-se, por assim dizer, um empresário dele
mesmo, buscando maximizar seus próprios poderes, sua própria felicidade, sua própria
qualidade de vida, instrumentalizando assim, suas escolhas autônomas a serviço do seu estilo
de vida. Tal percepção fica evidente quando se observa que alguns dos empreendedores das
favelas pacificadas buscam enfatizar o sucesso que tiveram destacando o esforço que
empregaram. Contudo, a conformação do favelado enquanto sujeito empreendedor pode
produzir certas tensões relacionadas ao senso comunitário das favelas cariocas, como poderá
ser observado a seguir.
214
4.2. “Cada um quer furar o olho do outro”: o ethos comunitário em tensão com o ethos
empreendedor
215
migrar em direção ao Rio de Janeiro se tornou guia de turismo. Carambola citou outro
exemplo das relações contratuais existentes na “favela empreendedora”: “O Jonathan, um
morador que é guia, é contratado para fazer o tour em inglês, tem um grupo de mais de dez
pessoas? Chamo qualquer outro guia para ir lá trabalhar junto comigo”.
216
As dinâmicas concorrências fizeram com que cada guia de turismo da Favela Santa
Marta se auto direcionasse na busca do lucro individual de seu negócio. Contudo, essa
dinâmica poderia ser diferente se os guias que trabalham no Santa Marta tivessem optado por
desenvolver uma organização empresarial coletiva, em meados de 2008. O modelo de gestão
na forma de cooperativa representa àquele capaz de promover igualdade no poder decisório e
fundamenta-se na propriedade coletiva. Esse modelo assegura a cooperação e a solidariedade
de determinado grupo social (ROSENFIELD, 2007).
Após essa decisão dos guias, Sandra resolveu trabalhar com mais dois empreendedores
com que tinha afinidade. Entretanto, eles optaram por não abrir uma empresa conjuntamente.
“Aí, juntou eu, a Margarete e o marido dela. Contudo, todos tem a sua empresa própria na
forma de MEI”, revelou Sandra.
Na verdade, eu sempre trabalhei com projeto social e quando surgiu essa questão do
turismo no Santa Marta foi novidade, daí eu fui, me formei, aquela coisa toda. Aí
veio o projeto, mas eles não quiseram saber de trabalhar em conjunto. Como eu
trabalhei há muito tempo... há mais de dez anos com grupos, ONGs... para mim é
mais fácil trabalhar em grupo. Infelizmente, o pessoal não quer trabalhar em grupo
(Entrevista com Sandra. Pesquisa de campo, 2017).
Sandra considera que as pessoas não querem trabalham em grupo por não estarem
dispostas a repartir o dinheiro, como também, pela exacerbada ganância. “A real, o português
claro, cada um quer furar o olho do outro, ninguém quer ganhar a mesma coisa. Tipo, eu
quero ganhar mais, quero sair na mídia melhor, entendeu? É isso”. Já a guia Isabela
considera que a criação da cooperativa seria algo muito complexo e que sua existência
poderia transformar-se em uma “bateção de cabeça”. Outra questão que ela pontua, é a “clima
de competição” que existe entre os empreendedores,
217
A gente bate muito a cabeça, por isso que a gente diz que cooperativa é muito difícil,
porque a “bateção de cabeça” continua. É uma coisa que o sistema bota.... ele bota
muito a gente em um sistema de competitividade. Sandra é minha competidora,
Henrique é meu competidor, mas eu não estou competindo com p***a nenhuma e
quando você pensa competição, você pensa que todo mundo quer correr, mas eu não
quero correr. Vai que minha onda seja, sei lá... uma hidroginástica, uma aguinha
mais relaxante. Então isso não é competição. Porque daí eu só vou poder competir
com nadador, essa coisa de você botar todo mundo no bolo. Epa! Todo mundo
começa a correr, você dá um tiro e todo mundo começa a correr e você não sabe
nem para onde vai a p***a. Mas tá todo mundo correndo, eu vou correr também. Eu
já parei para pensar. Que p***a é essa? (Entrevista com Isabela. Pesquisa de campo,
2017).
É um conjunto de coisas, primeiramente a gente tem que ter acesso, primeiro tem
que ter acesso à educação; segundo, acesso à saúde; terceiro, direito à segurança,
isso a gente não tem. E aí, uma andorinha só não faz verão. Hoje em dia, nós somos
12 guias que trabalham aqui. Nós temos um coletivo de guias, cada um tem sua
empresa, mas nós somos um coletivo. Se cada um fizesse por si, talvez a gente não
tivesse galgado situações e momentos que a gente tem hoje em dia, de empresas
parceiras que começaram a fazer tour na favela e que hoje em dia são parceiras
nossas e que trazem turistas. (A gente tem que ter) acesso a conhecimentos e cursos
e oportunidades, a gente tem que pensar em um conjunto, agir como um conjunto,
nenhum de nós é tão bom, quanto todos nós juntos, só que nossa sociedade, eu falo
nossa sociedade, porque é ela que faz ficar do jeito de esta. Enquanto nossa
sociedade não enxergar que todos somos um só, vai ficar difícil a gente caminhar
junto (Entrevista com Carambola. Pesquisa de Campo, 2017).
218
Ele disse que para se vencer na vida é necessário um “conjunto de coisas” e enfatizou
a importância do ethos comunitário, já que considera que os empreendedores deveriam
trabalhar juntos. Entretanto, Carambola ressalta a existência de um entrave, a “sociedade”, ou
seja, os mecanismos estruturais que norteiam a proverem o seu lucro de forma individual. E se
caso algum empreendedor tiver um insucesso, ele teria que encarar essa dura realidade
sozinho, deixando a relação entre os mesmos bem distante dos nexos que compõem a
solidariedade coletiva do ethos comunitário. Essa mesma questão foi posta para Vanessa, que
respondeu da seguinte maneira:
Ah eu não vejo essa questão de você lutar, lutar... se você acha que você tem que
lutar por um objetivo seu acho que independente dela ser conjunta ou sozinha, se
tiver que dar certo, vai dar. Então não tem essa questão de você achar que vai dar
certo se tiver sozinha ou você achar que vai dar certo se tiver com o coletivo de
pessoas. Eu não vejo isso, eu acho que independente de qualquer situação, se você
tem um objetivo para buscar, você vai, não depende com quem você vai e com
quantas pessoas você vai, se você vai sozinha ou acompanhada. Vai! Eu pelo menos
penso dessa forma. (Entrevista com Vanessa. Pesquisa de campo, 2017).
Vanessa enfatiza que se a pessoa tem um objetivo na vida ela deve seguir,
independente da luta coletiva, isto é, o sujeito deve ser o protagonista de sua vida, não
importando se a favela coaduna com seus pensamentos e interesses. Já a fala de Alessandro
expõe com mais clareza os processos sociais pelos quais as favelas têm passado, pois para o
mesmo os favelados têm se tornado cada vez mais individualistas. Ele considera que o senso
coletivo vem sendo descontruído paulatinamente nesses territórios,
Então, porque essa parte aí, a favela começou com um esforço coletivo e se não
fosse um esforço coletivo não existiria a favela. Tudo que está construído aqui... no
começo eram de pessoas que tinham um sonho de ter a sua própria casa e que
necessitavam da ajuda de outras pessoas que tinham a mesma necessidade dela. Isso
criou a favela. O lugar que as pessoas dizem que o governo não gosta. Um lugar que
tem as suas próprias leis e as suas próprias regras. Isso foi um esforço coletivo e
tudo que você faz é um esforço coletivo e você ajuda a maioria, todo mundo. Só
que, hoje em dia, no século XXI, as pessoas estão se tornando muito individualistas
dentro da favela. Mudou 100 %. A minha infância é da década de 1990. De 90 para
cá já mudou muita coisa. Quando eu era novo, na década de 90, não passou nem 20
anos... já mudou bastante coisa. Hoje, as pessoas estão muito individualistas. Eu
disse que eu fui criado por todo mundo na área. Hoje em dia, se você vê algum
garoto fazendo alguma coisa errada e quer cobrar, os pais dele vão falar: “P***a,
você não é o pai dele!”. Então tem muito disso. Hoje em dia, tem uma diferença,
uma diferença discrepante. Hoje em dia, as pessoas estão muito individualistas,
estão se importando com elas próprias e estão esquecendo do coletivo (Entrevista
com Alessandro. Pesquisa de campo, 2017).
219
Alessandro acredita que o turismo na Favela Pavão-Pavãozinho estava “melhorando o
coletivo”. Essa melhora estava relacionada ao fato dos tours que realizava pela favela deixava
a mesma com “outro aspecto”, já que os turistas passaram a circular pelo território. Outro
ponto a ser destacado é que Alessandro acusa os outros moradores de serem individualistas,
mas ele não, mesmo sendo totalmente a favor de atividades empreendedoras, onde o lucro é
sempre individual.
Uma passagem na fala de Isabela reforça que as pessoas não são tão unidas na Favela
Santa Marta tal qual um presumido “senso comunitário” poderia indicar, sendo que
apresentam inclusive inveja do sucesso alheio. Isabela disse que quando retornou de uma
viagem realizada na Alemanha, na década de 1990, as pessoas da favela “foram muito duras
comigo, porque como eles não viveram aquilo, tinha meio que aquela raiva né, aquela filha
da mãe viajou para fora”. O que empreendedora deixou transparecer é que apenas existe a
solidariedade na favela enquanto os moradores estão situados no mesmo patamar social e
vivenciando as mesmas dificuldades e quando os processos de diferenciação passam a
ocorrer, sentimentos nada nobres são despertados.
220
medida é reivindicada pelos guias – eles tiveram que revezar os períodos de permanência no
local, trabalhando assim, de maneira conjunta, como relatou Sandra:
Daí a vida dá tantas voltas e viu que não adianta só trabalhar sozinho. É preciso ter
um estande. Aqui é um coletivo e acaba todo mundo trabalhando junto. Cada um
tem seu espaço e a sua empresa, mas cada um acaba sendo um coletivo. Aí tem
parceiros, né, que no final a gente rateia, acabou acontecendo o que seria a ideia no
início. Mas, além disso, cada um tem a sua empresa, tem contatos particulares fora
da favela (Entrevista com Sandra. Pesquisa de campo, 2017).
Apesar de trabalharem de maneira conjunta, tal dinâmica passa ao largo do que seria
uma cooperativa. Conforme Ost e Fleury (2013), com expansão da lógica de mercado nas
favelas, a ideia de uma sociabilidade comunitária é, de certo modo, corroída pelo
individualismo que tal lógica provoca, onde cada um tenta “garantir o seu quinhão”. Assim, a
maior entrada do mercado formal nos territórios contribuiu para disputas e prevalência de
interesses pessoais, pois a dinâmica mercantil não atua de forma especificamente solidária.
Contudo, o desmantelamento da lógica solidária nas favelas se refere a um processo histórico
e contínuo, como bem destacou Alessandro. Esse processo é global e se deve ao fato de o
dispositivo neoliberal ter impingido a incorporação das lógicas de capital nas relações sociais,
221
impessoalidade, como também, pelo desmantelamento progressivo dos laços estreitos de
comunidade.
Em suma, esses “novos sujeitos” das favelas cariocas acabaram por serem
conformados pelo dispositivo do gozo de si e do desempenho, como foi possível observar na
fala de Carambola. Com relação “ao gozo de si”, isso pode ser notado em razão do estilo de
vida do guia, que sempre busca divertir-se nas festas em que promove e nas viagens que
realiza. Em uma passagem de sua fala, o empreendedor evidenciou que gostaria de conseguir
um empréstimo de 50 mil reais em um banco para realizar investimentos em seus negócios,
contudo, deixou de pensar nessa hipótese, já que a instituição financeira que consultou apenas
lhe oferecera o crédito de três mil reais, o que Carambola considerou algo fora de propósito.
“Com três mil eu vou pegar e vou viajar e ficar dez dias fora e acabou os 3 mil reais e não
vou investir em nada. Então não me interessa”. Assim, “gozar a vida ao máximo” se constitui
em um elemento relevante no processo de constituição dos moradores de favela em sujeitos
empreendedores. Agambem (2005) pontua que na raiz de cada dispositivo está um desejo
demasiadamente humano de felicidade, sendo que a captura e a subjetivação desse desejo em
uma esfera separada constituí a potência específica do dispositivo.
Para Carambola, tão importante quanto o “gozo de si” é a fascinação pelo aumento do
desempenho de seus negócios. Ele disse que pretende investir na construção de um site com
botões de pagamento e com informações traduzidas em inglês, francês e espanhol. O
empreendedor também quer investir no sistema google adwords, para que no momento em
que o turista pesquise os termos “favela” e “turismo”, seja direcionado ao site de sua empresa.
Notou-se também que ele não se contentou em trabalhar como guia de turismo na
agência que criou. Hoje, ele administra também um hostel e uma empresa de entrega de
saladas. Assim, os governos de si mesmo produzidos pelo dispositivo da pacificação fizeram
com que ele se autorregulasse nas trilhas do empreendedorismo. Carambola revelou que teve
que reorganizar o seu tempo diário, de modo fosse possível administrar os três negócios,
Eu estou 100% neles o tempo inteiro. Eu trabalho nos três. É sentar, responder e-
mail, fazer agendamento, mandar e-mail, mandar mala direta, falar com cliente, com
fornecedor, já ir no mercadão comprar os utensílios da semana, das saladas. Eu não
me dividi, eu me organizei para atender, cada um, em um determinado horário. Na
parte da manhã, às 7:00 da manhã até às 12:00 estou em função do Saladorama, que
é de alimentação, só que eu não deixo de fazer os meus contatos... do hostel e do
tour de experiência. Na segunda-feira, por exemplo, tenho um tour às 9:00 da
manhã. O que eu vou fazer? A produção do Saladorama cai para o domingo. Eu
222
ajudo a fazer a produção, tem a cozinheira e o entregador, a gente produz, faz a pré-
produção juntos e aí é só montar as saladas. O objetivo principal é trazer acesso à
alimentação saudável para pessoas da comunidade. Eu sou sócio do Saladorama aqui
no Rio. Tem aqui no Rio, tem em Recife, em Florianópolis, tem em São Paulo
(Entrevista com Carambola. Pesquisa de Campo, 2017).
A máquina econômica mais do que nunca, não pode funcionar em equilíbrio e, menos
ainda, com perda, pois tem de mirar um “além”, um “mais”, que Marx identificou como “mais
valor”. Tal exigência própria do regime de acumulação do capital não havia desdobrado todos
os seus efeitos até então. A nova dinâmica passou a existir quando o comprometimento
subjetivo foi tal que a procura desse “além de si mesmo” tornou-se a condição de
funcionamento tanto dos sujeitos quanto das empresas. Daí o interesse da identificação do
sujeito como empresa de si mesmo e capital humano: a extração de um “mais gozar”, tirado
de si mesmo, do prazer de viver, do simples fato de viver, é que faz funcionar o novo sujeito e
o novo sistema de concorrência,
223
Enfim, o conjunto de dispositivos que estimulam o sujeito a querer sempre mais
acabou por delinear os empreendedores das favelas pesquisadas, entretanto, após o
estabelecimento da atividade empreendedora, os moradores entraram em um espiral de riscos,
como poderá ser observado na próxima seção.
224
4.3. O “empreendedor de favela”, flexibilidade e as várias dimensões do risco
Aos sujeitos modelados dentro das grandes corporações foi imposta uma série de
valores, normas e princípios vinculados à inovação, criatividade, flexibilidade e
empreendedorismo. A valorização do trabalho autônomo empreendedor é feita por meio do
seu potencial criador e por sua conformação enquanto indivíduo apto as rápidas mudanças que
se processam no âmbito de um mundo do trabalho intensamente afetado pela lógica da
flexibilização produtiva, como também, pela “predisposição” do mesmo à inovação, ao risco e
a insegurança (BARBOSA, 2011, LIMA, 2010, LOPEZ-RUIZ, 2004).
225
que fechar o restaurante em que era proprietária em virtude de os tiroteios na favela terem
“espantado” os seus clientes, isso ainda antes da instalação das UPPs. Contudo, ela se define
como uma pessoa que não desanima e que sempre busca estudar novas possibilidades de
negócio. Para a empreendedora, as pessoas precisam “saber se virar”.
A Copa do Mundo foi o show do milhão, não teve nada melhor do que a Copa do
Mundo. Eu trabalhei muito, exaustivamente. Eu consegui guiar em 30 dias, 790
pessoas. Eu sozinho guiava todos os dias, turistas do mundo inteiro. Já as
Olimpíadas aqui foram um fracasso, porque o Comitê Olímpico juntamente com os
consulados mais importantes – o consulado alemão e dos Estados Unidos –
proibiram todo participante da Olimpíada e visitante de ingressar em uma favela
para visitação. Daí não rolou. Tinha gente que não podia nem fotografar aqui senão
perdia o trabalho ou ia ser punido... foi muito ruim aqui em relação ao turismo de
favela nas Olimpíadas. (Entrevista com Henrique. Pesquisa de campo, 2017).
Além do “fracasso olímpico”, os empreendedores tiveram que lidar com outro grave
problema. Henrique afirmou que desde a morte de uma turista espanhola na Rocinha, em
2017, e posteriormente, a entrada das forças do exército na Rocinha, a imagem das favelas “se
226
manchou” de um modo geral. Como consequência, o movimento de turistas na Favela Santa
Marta caiu brutalmente: “Agora a gente segue sobrevivendo”, disse o guia. Pedro, guia do
Santa Marta, também lamenta a queda do fluxo turístico na favela, mas evidenciou que é
preciso “entender a crise e saber sambar conforme a música”. Assim, para driblar os “altos e
baixos” do turismo ele resolveu diversificar suas atividades empresariais. Além de guia de
turismo, Pedro atua como DJ e motorista do Uber. Ele segue, portanto, o retrato fiel do seria o
“trabalhador flexível” contemporâneo que enfrenta sozinho todas as intempéries que surgem
pelo caminho.
55
CLT: Consolidação das Leis Trabalhistas
227
grande medida, porque “elas nos travam em algumas coisas”. E parece que os desejos do
Alessandro foram atendidos com grande celeridade, pois com a reforma trabalhista aprovada
em 2017, várias questões sensíveis ao trabalhador – como férias, tempo de intervalo,
transporte, negociação de normas coletivas, encaminhamento de processos na Justiça do
trabalho, entre outros – foram modificadas em prejuízo à classe trabalhadora.
Para Urich Bech (1995), os significados específicos do que seria considerado coletivo
ou grupo – como por exemplo, a consciência de classe – na cultura da sociedade industrial
estão sofrendo processos de desintegração e desencantamento. Tais processos deram apoio às
democracias e as sociedades econômicas ocidentais no decorrer do século XX e conduzem à
imposição de todo esforço de definição sobre os indivíduos e sintetizam o “processo de
individualização”. Mas no momento, a individualização tem um significado bem diferente.
Conforme Georg Simmel, Emile Durkheim e Max Weber – que teoricamente moldaram este
processo e esclareceram o mesmo em vários estágios no início do século XX – a diferença
reside no fato de que na contemporaneidade as pessoas não estão sendo “libertadas” das
certezas feudais e religiosas/transcendentais para o mundo da sociedade industrial, mais sim,
228
da sociedade industrial para a turbulência da sociedade de risco. Esse tipo de sociedade
comporta uma ampla variedade de riscos globais e pessoais.
Esse novo sujeito modelado pela sociedade neoliberal foi constituído como
proprietário de um “capital humano”, capital que ele necessita acumular por escolhas
esclarecidas por um cálculo responsável de custos e benefícios. Nesse prisma, os resultados
obtidos na vida seriam fruto de uma série de decisões e esforços que dependem apenas do
indivíduo e não implicam nenhuma compensação social em caso de fracasso. Em todas as
suas esferas de existência, o “sujeito empresarial é exposto a riscos vitais dos quais ele não
pode se esquivar, e a gestão desses riscos está ligada a decisões estritamente privadas. Ser
empresa de si mesmo pressupõe viver inteiramente em risco” (DARDOT, LAVAL, 2016, p.
346).
229
Desse modo, verifica-se uma individualização radical que faz com que todas as formas
de crise social sejam interpretadas como crises individuais e que todas as desigualdades sejam
atribuídas a uma responsabilidade individual. A nova norma em matéria de risco é da
“individualização do destino”. A extensão do risco coincide com uma mudança em sua
natureza. Esse risco passa a ser visto cada vez menos como um “risco social”, que seria
assumido por certa política do Estado Social e cada vez mais um “risco ligado à existência”.
Observa-se então, o pressuposto da responsabilidade ilimitada do indivíduo, que “deve
mostrar-se ativo, ser gestor de seus riscos, assim, consequentemente convém que suscite e
alimente uma atitude ativa em questão de emprego, saúde e educação” (DARDOT, LAVAL,
2016, p. 349).
Eu moro aqui, vivo aqui, conheço todos e tudo. Converso com Deus e o diabo, do
Oiapoque ao Chuí, a gente sabe o que acontece, como funciona, como agir quando
tem uma incursão da polícia. Hoje em dia, o que a gente pede é para não subir
quando tem a possibilidade de um conflito (armado). Por exemplo, tem uma
incursão agora de manhã, agora não dá para fazer o tour, tem que esperar a incursão
da polícia... Eles subiram, desceram de lá. Só depois começa o nosso tour. E por
que acontece isso? Quem faz isso é a própria polícia, muita das vezes sem o aval do
próprio capitão. O cara fala assim: “Eu sou da polícia, vamos lá e pronto acabou”.
Entendeu? (Entrevista com Carambola. Pesquisa de campo, 2017).
Carambola disse que sabe quando vai acontecer as operações policiais. Ele avalia que
é fácil ter uma previsão dos possíveis conflitos entre traficantes e policiais pelo fato da Favela
Santa Marta ser pequena,
O Santa Marta é pequeno, só tem uma entrada e uma saída, por cima e por baixo.
Nós que somos guias... nos comunicamos para falar do assunto de turismo (e os
230
outros assuntos também), nós nos comunicamos muito bem sempre. Se eu tô no alto
do morro com um tour e chega os policiais para uma incursão... Eu fico lá e os
policias descem. Eu aviso meus companheiros: “Gente, eles já estão descendo, se
alguém for subir agora, espera um pouquinho e tal. Espera aí embaixo”. Pode não
acontecer nada e pode ter uma troca de tiro. Pode ter tiro só da polícia e eles falarem
que é troca de tiro (Entrevista com Carambola. Pesquisa de Campo, 2017).
Isabela vivenciou sua pior experiência enquanto guia de turismo quando resolveu
guiar dois alemães e repentinamente, deparou-se com policiais. “A polícia pegou a gente no
meio do morro, a gente estava descendo e o Wolfgang não falava português, então a polícia
bateu na gente, bateu nele. Foi horrível, botaram a arma na nossa barriga”. Ela ressalta que
231
era uma época diferente, onde a situação da favela era bem pior do que a encontrada
atualmente.
232
4.4. A favela turística: “Entre governamentalidades, empreendedores e turistas”
233
a Favela Santa Marta – que ganhou visibilidade com a gravação de clipe musical por Michael
Jackson e posteriormente, com a colocação de uma estátua no local (ver Figura 21) – o
Complexo do Alemão – que passou a receber visitantes após ampla exposição televisiva da
expulsão de traficantes pelas forças de pacificação, como também, após a instalação de um
teleférico (atualmente paralisado) – e outras favelas situadas na Zona Sul, como Pavão-
Pavãozinho/Cantagalo, Chapéu Mangueira, Ladeira dos Tabajaras, Vidigal, entre outros. O
fim da presença ostensiva do narcotráfico com a instalação das UPPs propiciou um
crescimento notório do turismo, sobretudo, nos primeiros anos da implantação desse
programa de segurança, entretanto, hoje, muitos desses territórios sofrem com a falta de
segurança e diminuição do fluxo turístico (FREIRE-MEDEIROS, 2009, LEITÃO, ARAUJO,
BATISTA, 2009, MENEZES, 2007).
Acho assim, na Europa não têm favelas, o que eles têm é assentamentos para receber
refugiados, imigrantes e tal. A favela virou moda desde 2010. Eles querem saber
como a gente vive, muitos deles pagam para ficar um dia na favela ou então se
hospeda lá no hostel do Carambola. Eles querem conhecer a nossa história, a nossa
cultura... a gente aqui tem história de vida, cultura e turismo. A maioria são turistas
estrangeiros, 70 % por cento dos turistas são estrangeiros e os brasileiros que vem
fazer passeio conosco não são cariocas, normalmente são de São Paulo, do Sul e de
Santa Catarina. Na maioria das vezes eu levo eles na minha casa, na casa da minha
sogra, a vista é muito boa. Eles saem do Santa Marta felizes da vida (Entrevista com
Margarete. Pesquisa de campo, 2017).
Já Isabela – guia de turismo do Santa Marta – acredita que os turistas visitam a favela
em virtude da “curiosidade mórbida por aquilo que não conseguem entender”. Ela avalia que
a favela é um ambiente muito vivo e que mantem relações impessoais que os turistas europeus
e norte-americanos não estão acostumados. “Você ainda bate na porta do seu vizinho para
pedir açúcar, tomate, qualquer coisa assim? Então, a gente ainda faz isso aqui. Quando eu
falo, as pessoas riem e dizem: Caraca! você ainda bate na porta do seu vizinho!”. Isabela
ressalta que quando os moradores querer preparar alguma iguaria, eles vão até a “mercearia
dos vizinhos”, pois é muito mais prático do que ter que se deslocar até algum estabelecimento
comercial. “Daí vai batendo na porta dos vizinhos. É nesse nível.... a gente ainda tem essa
coisa”. Para ela, as pessoas do asfalto vivem em uma “sociedade do controle”, onde tudo é
passível de fiscalização e autocontrole, assim, as relações sociais seriam todas engessadas.
“Então aqui está um pouco menos engessado do que lá embaixo”.
236
ou não ser visto, os lugares nos quais se deve permanecer por mais ou menos tempo, o que
deve ou não ser registrado pelas câmeras fotográficas, etc.” (MENEZES, 2007, p.20).
Durante as incursões nas favelas foi possível observar que os empreendedores locais
que pertencem a esses territórios geralmente evidenciam características que comumente não
são tão divulgadas e enfatizadas pela mídia hegemônica, e que os moradores acham positivas,
como: os laços de solidariedade do ambiente comunitário, as belezas naturais de algumas
partes da favela, práticas culturais locais, entre outros. A maioria dos empreendimentos
desenvolvidos pelos moradores contam com o termo “favela” como modo de destacar o
negócio. Freire- Medeiros (2009) aponta que a favela se tornou uma marca global e representa
um fenômeno da circulação e do consumo. Para autora, essa localidade detém tamanho status
em virtude dos filmes, romances e textos acadêmicos que acabaram delineando-a como um
objeto de desejo a ser consumido na perspectiva do “turismo alternativo”.
Uma das questões em voga em relação ao turismo contemporâneo, seria a de que ele
tenderia a disponibilizar visitações a “não-lugares”, ou seja, localidades que
descaracterizaram os elementos da cultura local e construíram espaços especificamente
destinados ao entretenimento. Conforme Marc Augé, “se um lugar pode se definir como
identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário,
nem como relacional e nem como histórico, definirá um não-lugar” (AUGÉ, 1994, p.83).
“Lugares autênticos” e não-lugares são tipos ideais (WEBER, 1973) que representam os
espaços dominantes nas sociedades contemporâneas (SÁ, 1994). Nessa perspectiva, nos
últimos tempos a favela vem sendo construída como um lugar autêntico e representativo da
cultura brasileira (FREIRE-MEDEIROS, 2009).
Henrique avalia que os guias locais respeitam mais a favela do que os guias “do
asfalto”. Ele acredita que se as empresas de fora da favela que querem operar no Santa Marta
237
devem antes contratar um guia local para acompanhar o guia da agência. “Os guias de fora
não têm o respeito que nós temos e não têm a visão que nós temos... não agrega valores à
comunidade como nós agregamos”. Para ele, os guias locais “agregam mais à favela”, pois
grande parte do dinheiro que ganham é gasto na localidade, propiciando assim, uma
circulação interna do dinheiro proveniente do “turismo de favela”. Como o produto “Santa
Marta” é alvo de disputa entre as empresas de “fora” e os guias de “dentro”, o Comitê de
Turismo do Santa Marta desenvolveu ações que visaram o estabelecimento de parcerias entre
esses dois grupos (FREIRE-MEDEIROS, VILAROUCA, MENEZES, 2016).
Enfim, os guias locais ressaltam os aspectos que normalmente ficam encobertos pelo
que Caldeira (2000) chama de “fala do crime”, discursos que não são feitos de visões
equilibradas, mas da repetição de estereótipos, em que de forma geral, as pessoas mais pobres
são associadas a criminosos e sempre referidas nos termos mais depreciativos, até mesmo
pelos próprios pobres. Isabela sempre pede para os turistas “relaxarem” durante o tour, pois
os mesmos andam na favela com a mochila posicionada a frente do corpo, com medo de
serem roubados. Ela costuma afirmar aos mesmos que a favela é um local em que esse tipo de
incidente não acontece, ao contrário do “asfalto”.
238
O discurso inicial da guia desqualificava os moradores: “Eles são todos ladrões,
roubam água, energia... não pagam nada”. Ela disse que comentários desse tipo apenas
poderiam ser feitos dentro do jipe. Assim, nós teríamos que ser extremamente comedidos ao
entrar na Rocinha, pois “na favela eles ouvem de tudo. A gente pensa que eles não ouvem,
mas ouvem”. Durante o passeio as pessoas tinham que andar como se estivessem em um
“campo de guerra”, todos em fila indiana, próximos uns aos outros. Ela argumentou que em
um dos tours que realizou se deparou com jovens portando metralhadoras. “Eu fiquei
apavorada. Eles não fizeram nada comigo, não me deram tiro nem nada. Mas eles olharam
pra mim e falaram: “Vai embora!”. Então a guia disse que a partir desse dia, sempre
recomenda que os turistas fiquem juntos durante o tour: “porque você nunca sabe o que vai
encontrar”, explicou ela.
“Fiquem tranquilos, não vai acontecer nada com vocês.... Vocês estão em uma favela
pacificada”. Essa é a saudação inicial que Carambola dá aos turistas que são guiados por
ele.56 Destaca-se nessa passagem que o empreendedor busca “destismificar” a percepção da
favela como um local violento e para isso, Carambola utiliza o discurso da pacificação. Para
ele, mostrar a favela ao mundo é o seu papel. O guia acredita que é importante mostrar para as
pessoas os desafios que moradores das favelas enfrentam, “faremos de tudo para quebrar
paradigmas e estereótipos de que somos apenas um simples favelado! Queremos dar o nosso
melhor sem querer ser mais que ninguém!”. Carambola deseja que o favelado seja
representado nos meios de comunicação como uma figura pró-ativa, que luta para “vencer na
vida” e que se lança ao mundo em busca de desafios, enfim, um sujeito empreendedor.
Mas de que maneira a violência é retratada nas favelas pelos guias já que de fato ela é
real? Bom, para proferir os enunciados sobre a violência os agentes locais desenvolveram
diferentes estratégias. Carambola costumava dizer que a violência que existia era parte de um
passado violento e que com a UPP, a favela passou a ser segura. Mesmo com a derrocada das
56
Carambola deu essa saudação em 2015.
239
UPPs, Carambola acredita que a violência não seja algo que define a Favela Santa Marta. Já
Pedro se apropria do discurso científico para comprovar a idoneidade dos moradores. Ele
afirma aos turistas que apenas 3% dos moradores de favela são bandidos e que 97% deles são
formados por trabalhadores, “gente do bem”.
Rodolfo, guia da Favela Ladeira dos Tabajaras, defende a sua localidade das
representações vinculadas à insegurança. Ele alega que o território em que vive é mais
seguro do que Copacabana, pois na favela ele pode deixar a porta aberta ou estacionar a moto
com a chave no contato que ninguém rouba. “Pessoas que não conhecem a favela acham
perigoso. Quem conhece a nossa favela sabe que não há um problema de segurança”. 57
Ele argumenta que a complexo é muito grande e a única coisa que o guia deve fazer é
não passar no local específico onde está ocorrendo o tiroteio. Outra estratégia de Loreto se
refere à comparação do Alemão com locais que na visão dele são mais violentos:
“O cara vai para o Iraque e você vai ficar falando que tão bombardeando lá? Vou
dar um exemplo. Meu patrão é judeu e foi pra Israel. Ele estava num barzinho de lá
tomando os seus goró e de repente surgiu uma bola de fogo. Era um homem bomba”
(Entrevista com Loreto. Pesquisa de campo, 2016).
Ele completou o argumento afirmando que o seu patrão então lhe disse o seguinte em
uma oportunidade: “Vou voltar para o Rio, aqui tem bala perdida e coisa e tal, mas homem
bomba não”. Para Loreto, “tem um monte de homem bomba em Israel”, mas os veículos de
comunicação apenas relatam que explodiu apenas uma pessoa. “Mas aqui eles fazem questão
de escrachar” argumentou o guia de forma aborrecida.
Já a guia Silvava adota uma postura diferente quando os turistas chegam ao Complexo
do Alemão: “a gente conta a verdade, doa a quem doer” diz ela. Dessa forma, não esconde
57
A entrevista com Rodolfo foi feita em 2016.
240
dos turistas que os tiroteios no Alemão são frequentes e que para entrar no Alemão é
necessário assumir alguns riscos.
Cada guia de turismo utiliza o seu capital incorporado (BOURDIEU, 1987) com a
vivência na favela para conformar o conflito social em um produto permanentemente
renovado. Como relatou Carambola: “na favela sempre tem muita coisa nova para contar”.
Nesse sentido, cada empreendedor utilizar essa vivência para situar o turista em um cenário de
hiper-realidade: Isabela relatou histórias impactantes relacionadas aos estupros que as
mulheres da Favela Santa Marta sofriam; Pedro contou histórias de como era a vida no
“período das guerras” durante as décadas de 1980 e 1990, Carambola apresentou um muro
cheio de marca de tiros oriundos das “guerras de antigamente” , buscando assim, fazer com
que turista consiga “sentir o conflito” de forma mais latente; Alessandro também mostrou as
marcas de tiros da Favela Pavão-Pavãozinho ao pesquisador, só que ao contrário do muro
perfurado e que fora apresentado pelo Carambola como marcas de um “passado longínquo”,
as digitais dos tiros no muro do Pavão-Pavãozinho se reportam aos “rastros da pacificação”,
oriundo dos embates entre polícia e traficantes (Ver Figura 22).
241
Figura 22 – Muro com marcas de tiros na Favela Pavão-Pavãozinho
A imagem mostra um muro de uma casa no Pavão-Pavãozinho com marcas de tiros. No momento em que o
pesquisador visitou a favela os muros estavam cobertos por massa corrida. Essa foto foi tirada pelo guia
Alessandro e representa o período anterior a reforma “tapa tiros”.
Fonte: Alessandro (nome fictício, guia de turismo), 2017.
242
Para Freire-Medeiros (2009), violência é um grande atrativo para os turistas que
visitam as favelas, um atrativo que é propagado pela mídia, por meio de noticiários e filmes
como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”. Para a autora, o processo de construção da favela
como destino turístico está associado à expansão dos nomeados reality tours mundo afora e
no posicionamento da favela nos circuitos do consumo em nível global, sendo que tal
localidade foi constituída como um signo a que estão vinculados significados ambivalentes
que a colocam, ao mesmo tempo, como território violento e local de autenticidades
preservadas.
“Todo mundo na Noruega sabe como a favela é... A favela é muito famosa por lá.
Principalmente depois do filme Velozes e Furiosos, com as corridas de carro... com Vim
Diesel, o filme número 5” disse Christoffer, turista e voluntário norueguês (branco, 20 anos.
Pesquisa de Campo, 2016). Ele afirmou que jogou vídeo games que simulam “situações
reais” durante sua adolescência, sendo que um deles tinha como cenário as favelas cariocas. O
garoto se encantou com as simulações violentas dos games, em que poderia escolher diversas
armas, para então, poder brincar de ser traficante ou policial. Ele tinha o grande sonho de
saber como era uma favela “de verdade”, então resolver vir para o Rio de Janeiro. “Conheci
esse universo pelo jogo Call of Duty (ver Figura 23), que tem o mapa da favela. Aí eu pensei
comigo, eu tenho que ir lá”.
243
Figura 23 – Imagem virtual do jogo Call of Duty – Rio
O jogo Call of Duty imita com perfeição a paisagem carioca, representando tanto as favelas, como também,
símbolos icônicos da cidade, no caso, o Cristo Redentor.
Fonte: Call of Duty Games (2014).
Como não dispunha de muito dinheiro para pagar a passagem aérea, como também, a
estadia na cidade, Christoffer resolveu se inscrever em um programa que conecta pessoas
dispostas a trabalhar como voluntários com empresas que precisam de algum tipo de auxílio
em determinados momentos. Ele então conseguiu estabelecer um acordo com o dono de um
hostel – situado na Favela Pavão- Pavãozinho – para que pudesse trabalhar como auxiliar de
serviços gerais. Ele desempenhava essa tarefa a contragosto, pois não estava acostumado a
receber ordens de ninguém, sobretudo, na condição de serviçal. Christoffer possui outras
ambições na vida. “Eu quero estudar direito para me tornar advogado, mas gostei tanto da
favela...talvez eu fique por aqui. Eu encontrei uma garota na favela”, disse o jovem
norueguês.
Nos momentos de folga, Christoffer aproveita para “ser turista” e desvenda o “mundo
novo” que a favela representa para ele. Até que um dia pode de fato deparar-se com a
realidade que tanto via nos games. Ele conseguiu fazer amizade com traficantes da Favela
Pavão-Pavãozinho e tirar várias fotos com fuzis. Nas imagens reveladas ao pesquisador, o
norueguês estampava um sorriso de grande satisfação juntamente com uma amiga
norueguesa, que também trabalhava como voluntária do hostel. Com o fuzil dos traficantes na
mão direita, ele simulava um “mata-leão” em sua amiga, como se ela fosse sua refém. A
jovem também aparentava estar se divertindo muito na foto.
244
Christoffer considera que “a favela é perigosa, mas também é tão legal, o espírito de
comunidade, todo mundo conhece todo mundo. Os moradores têm amizade com os vizinhos.
É algo especial”. O norueguês revelou as estratégias que utilizou para se manter a salvo no
Pavão-Pavãozinho: “Mas com relação à violência, você tem que fazer amizade com os “bad
guys”, daí você estará seguro”. Outra estratégia relevada por ele se refere ao fato de que na
favela é preciso “sorrir bastante”, já que as pessoas gostam dessa expressão facial.
“Eu me sinto mais seguro em volta dos “gangsters” (traficantes), do que perto da
polícia. Você pode ir ao baile e encontrar 30 pessoas armadas, falando pelo rádio a todo
momento, em todo lugar, já a polícia não está em todo lugar”. O jovem completou: “Entre
policiais e traficantes tem muitos tiros, mas isso é entre eles”. Pode-se considerar que o
visitante norueguês quis conhecer meandros que envolvem a favela turística e o que acontece
em seus “bastidores”. MacCannell (1989) considera que os turistas são movidos pelo desejo
de explorar o desconhecido, desejam ir além do que geralmente é mostrado, não se
satisfazendo assim, com um conhecimento de fachada. O autor recorre aos conceitos
goffmanianos de front e back region para constatar que os turistas desejam penetrar nos
bastidores dos lugares por onde anda e conhecer as condições sociais que asseguram a
realidade.
Ao perguntar para Laura58 – nome fictício, branca, 46 anos, nasceu em Cape Town, na
África do Sul, mas atualmente tem residência fixa em uma pequena cidade situada no Sul da
Inglaterra. – o porquê resolveu visitar a favela, a mesma respondeu o seguinte: “Eu queria
saber como era a vida na favela. Como são as pessoas da favela... Eu tinha um grande
interesse em conhecer”. Quando perguntado de que forma conseguiu obter informações sobre
a favela, Laura respondeu: “Eu assisti reportagens sobre o réveillon, alguns documentários,
mas nada específico. Eu assisti Cidade de Deus”.
No meio da entrevista com Laura, um turista francês de Nice disse, “Eu também assisti
o filme Cidade de Deus, ele é real ou uma ficção? Eu achei um pouco exagerado. Acredito eu
que foi uma coisa mais comercial, para fazer dinheiro para eles terem êxito com o filme”.
Para ele, esse tipo de filme não tem uma boa influência sobre os mais jovens, pois “uma
criança pode assistir o filme e querer ser traficante, imitar o filme. Seria como no filme
Scarface, de Alpacino. Seria um tipo de atração”.
58
A entrevista com Laura foi realizada em 2016.
245
Laura contesta o turista francês, “Eu acho que naquele período tinha muita violência.
Eu acredito que era daquele jeito, porque eu vivi na África do Sul, as favelas de lá eram
realmente violentas. Lá as vidas não valem nada. Eles podem te matar por 20 reais”. Ela
completou afirmando o seguinte: “Sabe, é estranho que todos os países que são muito
bonitos, têm muitos problemas, como o México, África do Sul, Brasil... os países mais bonitos
do mundo têm muita violência. Laura acredita que: “Deve ser por causa da colonização,
escravidão”.
246
Figura 24 – “Clima bélico” é atração turística no Complexo do Alemão
À esquerda, imagem de uma turista tirando fotos ao lado de um policial da UPP Fazendinha, área situada no
Complexo do Alemão. Já à direita, imagem de uma família de turistas tirando fotos em frente a um tanque de
guerra, durante o período em que o Alemão estava sendo ocupado pelas “forças da pacificação”.
247
crime, como também, os assaltos poderiam chamar a atenção da polícia, ou seja, tudo o que
traficantes do local não desejam.
Contudo, é possível fazer uma distinção referente ao gosto dos turistas que visitam as
favelas. Silvana (guia, pintora e moradora do Alemão) disse que o turista que mais gostava de
visitar o complexo é o “gringo”. Segundo ela, eles vinham pela curiosidade de conhecer como
é a favela, o “outro lado” do Rio de Janeiro e também porque eles queriam ver “se existia
mesmo a UPP”. Silvana não leva mais turistas para o local porque acredita ser inseguro, já
que os tiroteios voltaram a ser rotina no Alemão, “(imagina) o susto que a pessoa pode levar
quanto tem tiro, pode ser grande. O gringo gosta, mas o brasileiro não. Eles acham assim,
diferente... eles dizem: “Não pode ter tiro, tem UPP!”. Entretanto, Silvana argumenta aos
turistas o seguinte: “mas tem tiro, sim... O brasileiro tem medo, mas o gringo não... o gringo
tem curiosidade. Eles querem entender essa logística de: Como tem UPP para proteger a
gente e tem tiro?”. 59
Assim, o encontro com a favela pode proporcionar diferentes visões sobre a mesma.
Ibarra (turista chileno, 22 anos, Santiago. Pesquisa de campo, 2016) resolveu conhecer a favela
da Rocinha sozinho, andando a pé, e teve percepções opostas sobre a mesma durante apenas dois
dias. Na primeira visita à Rocinha disse que “todo mundo pensa que a favela é um ra ta ta
(tiros). Não achei perigosa, porque tinha muita polícia, muita polícia”. No dia seguinte, resolveu
visitar novamente a favela e encontrou um grupo de garotos jogando bola – que aparentavam
terem em torno de dez anos – porém, um deles portava um revólver na cintura, ao avistar essa
cena, teve medo e resolveu “partir em retirada”: “Eu creio que eles estavam olhando para mim.
Eles olharam para mim porque eu sou um gringo, se ficasse por mais tempo lá poderiam gritar:
“Hey, motherfuc... e começar a atirar”.
Ele disse que conheceu um pouco das favelas por meio do filme “Tropa de Elite”, que
por sua vez, ficou muito famoso no Chile. Quando perguntado sobre a razão de ter visitado a
Rocinha, ele disse que: “Todos querem visitar uma favela. Não tem como ir ao Rio e não visitar
a favela. É como ir a Roma e não ver o papa. No Chile tem bairros pobres como as favelas do
Rio, mas não tão perigosos como aqui. No Rio tem muita ação... muita ação.” Ibarra acha que as
favelas são muito bonitas, com arquitetura interessante e vista privilegiada. Ele gostou muito de
conhecer o Vidigal e disse que a favela pareceu segura, porém, fez um adendo: “mas isso foi de
dia, à noite já não sei se é perigoso”.
59
A entrevista com Silvana foi feita em 2016.
248
Os turistas também relatam as suas experiências em plataformas virtuais, como é o caso
dos blogs. O parisiense Lino relatou em sua página pessoal como foi o seu passeio na Favela
Santa Marta com tons dramáticos:
Nesse relato, foi possível perceber que o turista ficou agoniado ao entrar na favela –
embora nada tenha acontecido com ele – isso ocorre porque a representação da favela como
cenário onde reina a criminalidade violenta acaba afetando a percepção que o turista tem em
relação ao ambiente social.
60
Na página do site de viagens Tripadvisor também foi possível encontrar diversos
relatos de turistas que visitaram a Favela Santa Marta acompanhados pelos guias locais. Em
um dos comentários, uma turista brasileira relatou que foi muito interessante conhecer a
história dos moradores, como também, verificar as mudanças na favela depois da pacificação,
sendo que avalia que a visita se configura em uma experiência necessária para todos os
turistas do Rio. Ela ressalta que: “foi um passeio muito agradável e seguro. A agência é
organizada e os guias conhecem muito favela, tem muitas histórias para contar, super
pontuais. Recomendo!”.
Outra turista disse que achou o passeio muito interessante e enriquecedor, sendo que
ser guiada por um morador tornou a visita mais segura e intimista. “Foi uma ótima
oportunidade para romper diversos preconceitos que possuía e verificar novos modos de
vida. É um passeio singular que contribuiu muito para o meu crescimento pessoal”. Ela
conclui que: “É, convém repetir que o passeio é bastante seguro. Os moradores são muito
receptivos, inclusive. O valor cobrado é acessível.”
60
Os relatos da página Tripadvisor foram postados em 2014.
249
Freire-Medeiros (2009) avalia que os turistas que saem de passeios como os da Favela
Santa Marta podem ter o seu self “transformado”, na medida em que os mesmos se colocam
na situação dos moradores da favela, que normalmente vivem em situação precária. Em uma
acepção geral, compreende-se por self aquilo que define a pessoa na sua individualidade e
subjetividade. O “self” (“eu”) é reflexivo e aberto ao desenvolvimento de novas experiências,
tais como as viagens,
Contudo, esse turista que busca obter novas experiências por meio do contato com a
alteridade já tem em sua mente uma representação definida do que seria uma favela. O
pesquisador acompanhou a visita de um turista francês – Louis, branco, 36 anos – a Favela
Santa Marta (2016). Ele teceu alguns comentários sobre o lugar. “Aqui existe um projeto
artístico com a cor... casas coloridas. É a favela mais famosa (do Rio), turística, não gosto
disso. Penso que é um bom projeto, as pessoas podem ter as suas casas coloridas”. Ele
completou o comentário da seguinte forma: “É um bom projeto, mas é um projeto turístico
que eu não gosto”. Louis relatou que gosta da favela em sua forma “natural”, isto é, casas sem
reboque e tinta. Quando ele chegou até a última estação do plano inclinado, conseguiu avistar
o modelo de favela idealizado pelo mesmo e finalmente, abriu um largo sorriso e tirou várias
selfies. Para Frenzel (2016), os turistas que se sentem atraídos pelas favelas costumam se
comportar contrários as expectativas que comumente possuem em relação ao “turismo
convencional”. Ao invés de procurarem espaços urbanos hegemonicamente considerados
“racionalizados”, eles buscam lugares onde possam satisfazer a expectativa que possuem em
relação ao Outro.
Além do interesse pela própria estética das favelas, as drogas podem ser consideradas
outro chamariz relevante. Pierre (turista francês natural de Montpellier, branco, 35 anos.
Pesquisa de Campo, 2016) visitou a Favela Santa Marta, o Pavão-Pavãozinho e uma favela
situada próximo ao bairro do Flamengo e afirmou que em todas elas teve facilidade para
encontrar drogas. Ele disse ser usuário de cocaína e o Rio de Janeiro seria o lugar onde esse tipo
250
de droga possui a “melhor qualidade” no mundo todo. Quando perguntado como encontrou os
traficantes, Pierre respondeu: “Ah, eu pergunto para uma pessoa que parece que vende drogas.
Porque eu sei como identificar um traficante. Eu sei ver quem é um traficante e quem não é
um traficante.” E completa asseverando que: “eu sei as características de um traficante... não
vou abordar uma mulher com uma criança, pergunto para homens que para mim parecem
serem vendedores de drogas”. 61
Ele acredita que os turistas estrangeiros que buscam droga, mas têm medo visitar as
favelas, buscam a mesma em Copacabana, porém, Pierre adverte: “É mais caro, duzentos
reais a grama em Copacabana e na favela é trinta reais. A cocaína é melhor do que em
Copacabana. Encontrei pessoas que queriam me vender em Copacabana. Disse “não”! E
completou: “Eu achei a coca muito cara, caríssima”.
O turista italiano deu o dinheiro para Christoffer e o mesmo foi buscar a droga.
Porém, instantes depois resolveu retornar, pois disse que não poderia tornar-se intermediário
na compra de droga, pois iria se sentir “quase um traficante”. Aí então, Christoffer resolve
disponibilizar sua própria “reserva” de maconha para seu novo amigo. Gerano fumou o
61
A entrevista com Pierre foi realizada em 2015.
251
cigarro de maconha feito pelo norueguês, mas logo depois desdenhou do “presente” dizendo
“Essa maconha é muito preta, não é de boa qualidade”. 62
Aliás, grande parte dos turistas estrangeiros que vêm ao Rio de Janeiro têm o interesse
de conhecer as mulheres brasileiras. Eles buscam estabelecer contato indo a festas na Lapa,
nas praias e nos bailes funks. A conformação do Rio de Janeiro como destino de “mulheres
exuberantes” vem de longa data. Durante a década de 1970, a Embratur – Empresa Brasileira
de Turismo – realizou uma série de ações promocionais de cunho internacional, derivadas
principalmente de duas campanhas publicitárias, a Conheça o Brasil (EMBRATUR,1973) e
Rio, Samba e Carnaval (EMBRATUR,1975) que estimulavam a vinda de turistas ao Brasil
(ver Figura 25). O material publicitário da Embratur destacava a imagem de um país que
fosse um verdadeiro paraíso tropical, cosmopolita, com mulheres deslumbrantes, sem a
existência de tensões sociais e violações dos direitos humanos, agindo assim, conforme os
interesses do regime militar. Após sofrer muitos questionamentos, a Embratur mudou o foco
de suas campanhas nos anos 2000, focando apenas nos aspectos naturais e culturais do país
(DAMAS, 2009). Hall (2016) salienta que toda a representação de grupos não hegemônicos é
62
As interações entre Christoffer e Genaro foram observadas em 2016.
63
A entrevista com Jamel foi feita em 2016.
252
perigosa, pois as suas características podem ficar reduzidas e fixadas sob a forma do
estereótipo.
A favela apenas recebe esse fluxo de pessoas porque ela se tornou algo que “está na
moda”. Os turistas e visitantes agora frequentam bailes funks, hospedam-se em hostels,
253
escalam morros em busca de vistas deslumbrantes, enfim, estão em contato com o que alguns
configuram como o “Outro Rio”. No texto “Filosofia da Moda”, Georg Simmel considera que
o fundamento fisiológico do indivíduo é caracterizado pelo repouso e movimento, pela
atividade e receptividade, assim, o mesmo sempre é constituído por processos antagônicos,
pelo interesse de unir permanência com a perseverança na mudança, de proporcionar um
compromisso com a totalidade social e ao mesmo tempo impor a própria individualidade. Tal
contexto social dialoga perfeitamente com a moda, pois: ela satisfaz, por um lado, a
necessidade de apoio social, “na medida em que é imitação; ela conduz o indivíduo às trilhas
que todos seguem. Ela satisfaz, por outro lado, a necessidade da diferença, a tendência à
diferenciação, à mudança, à distinção [...]” (SIMMEL, 1988, p. 45-46, tradução do autor).
Assim, pode-se considerar que o turista que visita a favela buscaria seguir as
tendências que estão na moda, nesse prisma, destaca-se o Morro do Vidigal, que se tornou
“cool” com uma série de espaços “gourmets”, abrangendo restaurantes, casas de Jazz e hotéis
com vista panorâmica para praia. Ao mesmo tempo, esses visitantes desejam diferenciar-se
das pessoas que apenas visitam os pontos turísticos tradicionais da cidade. Além de visitar
lugares considerados mais “exclusivos”, eles estariam se distinguindo dos turistas
convencionais por demonstrarem terem uma maior “preocupação social” com pobre, ao se
mostrarem dispostos a visitar os “territórios da pobreza”, “agregando pontos” no “mercado de
bens simbólicos” que configura os processos de distinção (BORDIEU, 2007).
254
Figura 26 – Tour Fotográfico na Favela Santa Marta
Esse tour foi organizado por um guia local e contou com a participação de 94 pessoas.
Mas não é apenas a favela que está na mira das câmeras fotográficas dos turistas, os
moradores também estão. Na Favela Santa Marta foi colocada uma placa com os seguintes
dizeres: “Proibido Tirar Foto”, em meados de 2012. A placa foi colocada após uma reunião
entre moradores e os agentes promotores do turismo no local. Os moradores relataram grande
desconforto com a presença de turistas e suas câmeras. Alguns moradores não gostam nem de
serem filmados em reportagens televisivas.
Um moradora da Favela Santa Marta (negra, 43 anos) relatou que não gosta que os
turistas tirem fotos dela, pois não sabe qual será o destino delas,
255
Antigamente eles chegavam e ficavam tirando foto. Isso daí realmente não é certo.
Porque se você for no país deles, eles não gostam que fiquem tirando fotos deles...
querem entrar na justiça, dizem que não pode, porque estão usando a sua imagem,
então realmente não gostam. Tem criança que fala, tira a minha foto, mas eles não
têm maldade nenhuma, tá entendendo? Agora gente adulta já não gosta, vai tirar
minha foto pra quê? Vai levar minha foto pra onde? As pessoas ficam meia que
cismadas. Eu também não gosto (moradora da Favela Santa Marta. Pesquisa de
campo, 2017).
Cabe destacar que o modo como a favela é representada por quem a fotografa é um
campo em disputa e os moradores do Santa Marta buscaram tensionar as relações de força ao
256
seu favor ao criarem a Agência Olhares do Morro. De acordo com seu idealizador, Vicent
Rosenblatt, esse projeto social tem o objetivo simbólico de “introduzir nos veículos de
comunicação outras imagens e olhares, diferentes dos clichês da violência que são
dominantes. Conquistar um espaço para representações do cotidiano e da cultura” 64. Esse
projeto social tem os jovens favelados como público-alvo (ver Figura 27).
À direita, uma criança acaricia a barriga da mãe grávida. A imagem ao lado mostra um garoto sendo fotografado
durante um salto.
Fonte: Agência Olhares do Morro (2018)
64
Agência Olhares do Morro. História. Disponível em: < http://www.olharesdomorro.org/uma-
historia/2/#.Wqm6eWrwbIU> . Acesso em 14/01/2018 às 9:31.
257
A busca por um “outro mundo” do Rio de Janeiro tem como pano de fundo uma
alteridade racializada que represente a “autêntica cultura brasileira”. O processo que conforma
a favela como um local a ser fantasiado compreende a estrutura radical do estereótipo. A
favela e seus moradores estão presos em uma estrutura binária, a qual é dividida entre dois
extremos opostos. De um lado a favela é retratada como “berço do samba”, com pessoas
solidárias que possuem grande senso de comunitário. Por outro lado, a favela também é
representada como lócus do mal e os favelados como bandidos. Dessa forma, o significado de
favela e favelado transita por entre esses dois polos de forma interminável, sendo que muitas
vezes são figurados ao mesmo tempo com esses dois tipos de representação.
258
Segundo Brito (2013), a própria representação pública da favela nos meios de
comunicação normalmente recebe um tratamento ambíguo. Em determinados momentos se
ressalta a violência, a “sexualidade exacerbada” manifestadas nos bailes funks e o desprezo
que a sociedade tem pela favela e pelos que lá habitam. Já em outros momentos, tem-se uma
exaltação desmedida, por meio de novelas e reportagens que mostram todo o “progresso” que
lá existe, sob a ótica do consumo e do empreendedorismo dos pobres, como se essas
populações não vivessem processos de extermínio e exclusão sistemática.
Laura, a turista da Inglaterra, demonstra grande fascínio pelas favelas, tanto interesse a
fez hospedar-se em três favelas – Pavão-Pavãozinho, Babilônia e Rocinha – e quando
indagada sobre o motivo de tanto interesse ela relatou: “Como eu te disse... sou a “garota da
favela”. Sério! Eu não sei porque eu estou tão fascinada pelas favelas, mas eu estou. Elas são
bonitas”. Mas em outra oportunidade ela fez uma explanação sobre o “Brexit” – referendo
que decidiu que o Reino Unido não deveria mais ser membro da União Europeia. Ela afirmou
que votou a favor da saída da Inglaterra da zona do euro, pois o país já não suportava mais
sustentar tanta “gente de fora” – sobretudo, do leste europeu – achava injusto pagar impostos
que não sejam retornados em proveito do povo britânico e que os serviços públicos estavam
se deteriorando, citando como exemplo, os hospitais abarrotados de pessoas. Parece que ao
mesmo tempo em que Laura deseja ter contato com o “Outro”, deseja manter certa distância,
nesse sentido, pode-se supor o “favelado” apenas seria um “objeto fascinante” se
permanecesse em seu “habitat natural”.
Mas que tipo de elemento vincularia o turista com o Outro? Nessa perspectiva, é possível
evidenciar que no “turismo de favela” o dinheiro engendra uma associação entre pessoas que
normalmente estão circunscritas em realidades completamente díspares: o favelado e o turista.
259
Para Simmel (2009), a impessoalidade do dinheiro permite, de fato, o despontar de uma ação
comum de indivíduos e grupos diferentes, que em outros âmbitos acentuariam com nitidez sua
separação e reserva.
Isabela afirma que apesar de não aprovar o desenvolvimento do turismo nas favelas do
Rio, ela desempenha o trabalho de guia por causa do dinheiro, pois não encontrou outras
possibilidades de auferir renda. Margarita Barreto (2003) acredita que certos habitantes dos
lugares turísticos que se beneficiam economicamente com a presença dos turistas não estão
precisamente interessados em receber os visitantes, “mas o dinheiro dos turistas. Os turistas
passam a ser um mal necessário. Mal porque sua presença incomoda; necessário porque seu
dinheiro faz falta” (BARRETO, 2003, p.26). Isabela desabona o “turismo de favela” porque
acredita que essa atividade econômica romantiza a favela e a configura como um lugar
maravilhoso: “Você quer morar na favela? Porque tudo nela ainda é negativo e não mudou
muita coisa, então parem com esse discurso de que morar na favela é legal, morar na favela
é legal o caramba! Então vem para cá, você fica aqui”.
Porque eu na verdade não gosto do Favela tour, como eu sou um negócio social,
porque a proposta do meu trabalho é desconstruir a imagem estereotipada da favela e
muita gente quando faz o “turismo de favela” exotiza e romantiza ainda mais, a
coisa da favela, então é um movimento na verdade contrário. Só que eu não sei se as
pessoas conseguem entender isso (Entrevista com Isabela. Pesquisa de campo,
2017).
A fala de Isabela fica evidenciado que os guias preferem retratar a atividade que
desenvolvem como um “negócio social”. Carambola avalia que os moradores de favela
empreendem “por uma causa” que estaria relacionada ao bem comum, isto é, mudar a
percepção negativa que as pessoas possuem em relação aos “territórios da pobreza”. Henrique
avalia que o “bem comum” do turismo de favela estaria relacionado com o fato dos moradores
fazerem o dinheiro circular pela favela e desse modo, todos beneficiarem com o turismo.
Porque a gente leva os turistas nas lojas de souvenir, nas biroscas, levamos para
almoçar no restaurante, leva na escola de samba. A gente faz com que a moeda
circule aqui na favela. Isso é bom! A partir do momento que a gente contrata um
guia que é aqui da favela, a gente dá apoio a Associação dos Moradores. A gente
recebe o apoio deles, então, nós damos uma contribuição em dinheiro. Aí todo
mundo fica feliz, todo mundo ganha. (Entrevista com Henrique. Pesquisa de campo,
2016).
260
“A gente cobra por esse passeio, então parte do dinheiro vai para Associação dos
Moradores, é um turismo sustentável de base comunitária” completa Henrique. A relação que
os guias locais possuem com a Associação de Moradores é controversa, pois, se por um lado
os guias consideram que estão contribuindo com a favela ao repassarem determinada quantia
de dinheiro para a associação, por outro, essa ação mina a “política na favela” e qualquer
avaliação crítica por parte da entidade em relação ao trabalho desenvolvido pelos guias.
Afinal, quando o dinheiro vai para a associação, “todo mundo fica feliz”, como bem enfatiza
Henrique.
Freire-Medeiros (2009) avalia que quando se faz a associação entre dinheiro, moral,
lazer e miséria, usualmente, provoca-se um “mal-estar” nas pessoas. Mas com seu estudo ela
objetivou fugir do senso comum, considerando que não é possível culpar o “turismo de
favela” pela pobreza. Segundo a autora, torna-se necessário superar as posições extremas:
tanto a que “aposta em sua promoção como saída parcial ou total para os males das
localidades em desvantagem econômica quanto [...] a que indica uma suposta imoralidade
inscrita na comercialização da pobreza pela via do turismo e prefere ignorar a sua existência”
(FREIRE-MEDEIROS, 2009, p. 147).
261
262
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entretanto, a configuração dos favelados enquanto “sujeitos livres” não pode mascarar
o fato de que nas favelas pacificadas sempre existiu uma “desigualdade nas relações de
poder” e que a imposição hierárquica do policial se fazia valer na maior parte do tempo. Por
meio da construção de um ambiente de permanente controle, o dispositivo da pacificação
atuou dentro de uma dinâmica que envolvia a captura – resistência – recaptura, tendo como
objetivo derradeiro a normalização do favelado, isto é, a produção de “novos sujeitos”
vinculados a uma dada “ordem civilizadora”.
“Mas a pacificação foi tipo assim: vai lá e faz pô! Você tem que fazer diferente,
entendeu? Aí, todo mundo teve que fazer diferente”. Com essa afirmação, Carambola perfaz a
UPP como uma potente maquinaria capaz de impor um novo modo de ação ao indivíduo
considerado “incivilizado”. O dispositivo da pacificação funcionou como um aparato
disciplinar exaustivo, que buscou abranger todos os aspectos do favelado, sua aptidão para o
trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral e suas disposições. O dispositivo
esquadrinhou a população favelada na medida em que orquestrou de forma calculada as
atividades dos moradores sob uma racionalidade prática dirigida a certos objetivos,
maximizou assim, certas capacidades e restringiu outras.
65
A necropolítica se refere a “destruição material dos corpos e populações humanas julgadas como descartáveis
e supérfluos” (MBEMBE, 2012, p. 135).
265
a chegada e efetivação dos direitos sociais. A retórica dos aparatos governamentais apresentou
a implantação das UPPs como uma “primeira etapa” que, uma vez consolidada, possibilitaria
a inserção de outras atividades estatais voltadas à oferta de bens de cidadania. O programa
UPP Social representou a possibilidade da “chegada dos direitos” às favelas ocupadas, mas
uma mudança em sua perspectiva original fez com que o escopo de uma política de direitos
fosse esvaziado. Nesse panorama, é importante destacar que os sujeitos de direitos socias são
qualificados em razão de uma situação particular que ocupam, isto é, em função da forma
como eles são caracterizados enquanto grupo pelos aparelhos governamentais.
Historicamente, os favelados são figurados como sujeitos de não-direitos, sendo assim, uma
mudança no que tange à inferência institucional em relação a esse grupo social em um curto
espaço de tempo seria muito difícil.
266
pela instalação da UPP – que segundo os moradores durou dois anos – configurou-se na
percepção pública, como um local a “ser evitado”, em virtude dos tiroteios rotineiros. E foi
possível observar que por mais paradoxal que possa ser, o clima de “intensa instabilidade”
serviu de “chamariz” para diversos turistas, sobretudo estrangeiros, que ficaram fascinados
por estarem em cenários de “hiper-realidade”. Destaca-se que, nas últimas décadas, os
conflitos das favelas foram exaustivamente retratados em representações fílmicas mediadas
por redes socio técnicas (LATOUR, 2012), em um cenário em que as novas tecnologias foram
fundamentais na conformação, circulação e comercialização do “produto favela” (FREIRE-
MEDEIROS, 2009).
Na visão dos moradores, o Sebrae representou uma das poucas instituições que
poderiam ser decisivas na transformação de suas vidas, já que grande parte deles são
destituídos da possibilidade de inclusão social por meio da obtenção de um trabalho
assalariado que garanta uma remuneração digna com uma ampla proteção de direitos.
Notadamente, essas pessoas são destituídas – pela ausência de capital cultural incorporado
(BOURDIEU, 2007) – da condição de disputarem colocações em espaços de poder e
prestígio. Assim, muitos moradores de favela vislumbraram no “empresariamento de si” uma
forma de inserção no mercado de trabalho, como bem salientou Tomasi e Velazeo (2013). A
pesquisa abordou inúmeros moradores, dentre eles: ex-presidiário, ex-beneficiária do bolsa
família, assalariados de baixa renda e desempregados. Todos eles possuem suas
especificidades, mas têm em comum o fato de vivenciarem a vulnerabilidade social e de
enxergarem no empreendedorismo uma forma de encontrar um “lugar ao sol”.
Essas pessoas são obrigadas a “se virarem” como podem e o “turismo de favela”
representou uma possibilidade de obterem alguma ocupação profissional. Observou-se então o
267
surgimento de guias de turismo, vendedores de souvenires, proprietários de pequenos
restaurantes e lanchonetes, como também, pessoas que transformaram as lajes de suas casas
em “espaços culturais” com o intuito de receber turistas. A lógica de ação desses
empreendedores compreendeu o ato simbólico de “arregaçar as mangas”, tornaram-se assim,
“protagonistas do seu destino”.
Contudo, os moradores percorreram esse caminho porque, antes de tudo, houvera uma
estruturação dos seus campos de ação por um conjunto de dispositivos. Notou-se que o
empreendedorismo circunscreveu uma linguagem relevante para articulação de uma
racionalidade política e o que a pesquisa cunhou como dispositivo da pacificação teve um
papel fundamental na catalisação da racionalidade neoliberal nas favelas cariocas. O
dispositivo acompanhou e orientou o desejo individual, agiu assim, sobre as “antecipações
imaginárias” de diversos favelados. É preciso destacar que pacificação catalisou algo que já
era existente na favela, pois a processo de subjetivação da forma empresa é hegemônico e
como ressalta Valladares (2005), é infrutífero pensar que certas dinâmicas sociais são
exclusivas das favelas.
Mas qual seria o propósito da expansão da lógica neoliberal nas favelas pelos aparatos
de poder? Como bem frisa Foucault (2008b), a “condução das condutas” sob essa perspectiva
possibilita à racionalidade política governar de modo mais avançado com a promoção de um
leque de mecanismos indiretos que produzem governos de si mesmo. Nesse sentido, é
possível afirmar que o dispositivo da pacificação criou maneiras pelas quais os favelados
vieram a compreender e realizar coisas em relação si mesmos. O trabalho argumentou que a
pacificação teve um papel fundamental na constituição de um regime de subjetividade nas
favelas cariocas, que por sua vez, abrangeu somente os favelados considerados normalizáveis.
268
governa” (DARDOT, LAVAL, 2016, p.333). Nesse sentido, “fazer diferente” pode
representar o que Leite (2015) evidencia como “retirada da favela si” – ou seja, todos os
aspectos da vida que os dispositivos gestionários consideram incivilizados – o que autora
destaca como um dos principais objetivos da pacificação ao promover a gestão da vida nesses
territórios.
Olha, eu vou falar por mim, eu pessoa, trabalhador e morador. Eu nunca fui
destratado. Eu particularmente nunca fui. Mas eu já vi aqui muitos “revoltosos” que
“malham” a UPP, que colocam a UPP lá em baixo. Mas que estão ganhando o seu
dinheiro na comunidade e que estão trabalhando graças a UPP. Porque antes não
tinha turismo. Hoje eu trabalho graças a UPP (guia de turismo, 42 anos, Favela
Santa Marta. Pesquisa de campo, 2015).
“Fazer com que os favelados ganhem seu dinheiro” pode ser interpretado como uma
nova faceta do capitalismo brasileiro, isto é, investir na circulação do dinheiro na favela como
forma de mediar o conflito, reatualizando assim, a atuação dos dispositivos de poder nas
periferias (FELTRAN, 2014).
“Eu quero me livrar do trabalho formal a minha volta”, “Eu quero ter minha empresa,
porque nasci para comandar”, são discursos dos “empreendedores de favela” que
representam a incorporação das estratégias neoliberais de promoção da “liberdade de
escolher”. Contudo, ressalta-se que na maior parte do tempo os sujeitos não distinguem a
dimensão normativa que necessariamente lhes pertence. Em outras palavras, a “liberdade de
escolher” se relaciona com a obrigação de obedecer a uma conduta maximizadora que é
269
centro de um quadro “legal, institucional, regulamentar, arquitetural, relacional, que deve ser
construído para que o indivíduo escolha com toda liberdade o que deve obrigatoriamente
escolher” para seu próprio interesse (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 216).
Nessa perspectiva, notou-se que a expansão da lógica neoliberal nas favelas cariocas
pode ter intensificado os processos relacionados a: (1) Individualização do destino e
culpabilização do pobre e (2) Precarização dos direitos e esvaziamento da esfera pública.
Souza (2009) salienta que no Brasil se tem uma crença hegemônica ancorada no
economicismo. O ideal fundamental do economicismo se estrutura na percepção da sociedade
como sendo formada por um conjunto de homo economicus, isto é, agentes racionais que
calculam suas chances relativas na luta social por recursos escassos, com as mesmas
disposições de comportamento e as mesmas capacidades de disciplina, autocontrole e
autorresponsabilidade. Nesse olhar distorcido do mundo, o marginalizado social é percebido
como se fosse alguém com as mesmas capacidades e disposições de comportamento do
indivíduo da classe média, por exemplo. Por conta dessa visão, o miserável e sua miséria são
sempre classificados como contingentes e fortuitos, um mero acaso do destino, sendo a sua
“situação de absoluta privação facilmente reversível, bastando para isso uma ajuda passageira
e tópica do Estado para que ele possa andar com as próprias pernas. Essa é a lógica, por
exemplo, de todas as políticas assistenciais entre nós” (SOUSA, 2009, p.16).
270
formas de sociabilidade dos “indivíduos, principalmente quando consideramos o fenômeno da
precarização dos direitos vinculados à condição de assalariamento e a fragilização dos
vínculos sociais produzida pela crise do Estado como esfera provedora de bens públicos”
(BARBOSA, 2011, p. 126).
Hannah Arendt (1999) advoga que a esfera pública é constituída a partir do conceito
de política. E contrariando o conceito moderno de política, ela acredita que a política deve ser
pensada totalmente separada da lógica econômica e liberal. Tal pensamento parte do princípio
de que “uma esfera formada por indivíduos que afirmam e defendem interesses privados, nega
radicalmente esse nós que é a vida política” (FERREIRA, 2017). Assim, a gestão desses
territórios compreendeu uma racionalidade governamental cujas práticas fazem com que – a
perspectiva da figura de um “cidadão” amparado por uma responsabilidade coletiva –
desapareça pouco a pouco, para dar lugar ao “sujeito empreendedor”, um sujeito ao qual a
sociedade “não lhe deve nada”, aquele que “tem que se esforçar para conseguir as suas
coisas”.
Assim, o ideário da ação pública em relação aos moradores de favela não seria
conformá-los como sujeitos de direitos, mas sim, como atores empreendedores que fazem os
mais variados contratos privados com outros atores empreendedores. Longe de ser “neutra”, a
reforma gerencial da ação pública atenta diretamente contra a lógica democrática da cidadania
social, “reforçando as desigualdades sociais na distribuição dos auxílios e no acesso aos
recursos em matéria de emprego, saúde e educação, ela reforça as lógicas sociais de exclusão
que fabricam um número crescente de subcidadãos e não cidadãos” (DARDOT E LAVAL,
2016, p. 381).
Pode-se considerar que dispositivo da pacificação forjou os favelados como seres que
possuem uma ampla gama de capacidades e possibilidades, ao mesmo tempo que impôs
271
fardos e decepções. Tal processo foi notado nas entrevistas que o pesquisador desenvolveu
com Carambola, na primeira (2015), ele se configurava com um “empreendedor de sucesso”,
na segunda (2017), retratou-se como um empresário endividado que sofre para pagar a conta
correspondente aos investimentos que não deram o retorno esperado. Esse mesmo processo de
“desilusão” em relação ao empreendedorismo foi notado que aconteceu com outros
moradores.
272
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300
ANEXOS
301
Anexo 3. Questionário para os turistas
302